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REDE DE TEXTOS E IMAGENS E METAMORFOSES VISUAIS* * Artigo publicado originalmente no livro: BITTENCOURT, A.B.; CORBALÁN, M.A. (Orgs.). Américas y Culturas. Buenos Aires: Biblos, 2009. p. 223-250. ISBN 978-950-786-774-3. Direitos de publicação cedido pela Editorial Biblos, a quem agradecemos. Algumas referências estão incompletas no texto, uma vez que no texto original e mesmo fora dele não foi possível encontrar dados para completá-las.

Text and image network and visual metamorphoses

Réseau de textes et d’images et métamorphoses visuels

RESUMO:

O propósito [deste artigo] é procurar uma rede de imagens longínquas que estariam no espírito visual da pintura do conhecido mestre Ataíde - Manoel da Costa Ataíde -, que, entre 1800 e 1809, pintou a nave central da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, cujo tema condutor é a Assunção da Virgem. Estou falando de Memórias Longínquas, aquelas imagens que talvez Ataíde nunca tenha visto, e texto que nunca tenha lido, mas que pulsam nessa pintura numa variedade de origens literárias e visuais europeias da Idade Média até nossos dias. Um aglomerado assincrônico que podemos ver com os olhos de hoje, ao tomarmos a sua pintura como um vórtice visual e temporal. A pintura de Ataíde servirá para nos mostrar algumas das formas políticas e visuais que persistem hoje numa parte da cultura comum, tanto na cultura popular, quanto na cultura acadêmica. Ataíde, tanto quanto outros pintores de sua época, em diversos países, praticavam sua arte sob um conjunto de regras para a invenção e produção de imagens, que é ao mesmo tempo um conjunto de regras morais e religiosas, uma espécie de lei do bom senso, do senso estético daquilo que são as imagens comuns, populares. Não nos interessa aqui se Ataíde foi um bom ou mau pintor, ou compará-lo a grandes pintores da sua época. Ele não excede em brilho técnico nem em qualidade de invenção. É um pintor médio, talvez medíocre, que pintou o possível em suas condições materiais e culturais. Sem grandes informações culturais, foi representativo da média cultural de seu tempo.

Palavras-chave:
Imagem; Memória; Moral e religião; Manoel da Costa Ataíde

ABSTRACT:

The purpose of this article is to search for a network of distant images that would be in the visual painting spirit of well-known master Ataíde - Manoel da Costa Ataíde -, who, between 1800 and 1809, painted the central nave of the Church São Francisco de Assis, in Ouro Preto, whose guiding theme is the Assumption of Virgin Mary. We address Memórias Longínquas, images that Ataide may never have seen, and texts that he may never have read, but which pulsate in this painting in a variety of European literary and visual origins from the Middle Ages to our days. An asynchronous cluster that one can look upon with today’s view, as we take his painting as a visual and temporal vortex. Ataíde’s paintings will serve us as display of political and visual forms that linger nowadays across part of the common culture, both in popular and academic culture. Just like other painters of his time from various countries, Ataíde practiced his art under a set of rules while creating and producing images which is also a set of moral and religious rules, a kind of common sense law regarding the esthetic sense of common, popular images. Our concern is not whether Ataíde was a good or a bad painter, or to compare him to the great painters of his time. He does not surpass in technical brilliance or quality of invention. He is an average painter, perhaps even mediocre, who painted what his material and cultural conditions allowed him to. Without great cultural information, he was a representative of the cultural average of his time.

Keywords:
Image; Memory; Moral and religion; Manoel da Costa Ataíde

RÉSUMÉ:

Le but [de cet article] est à la recherche d’un réseau d’images à distance qui serait dans l’esprit visuel du peintre connue sous maître Athayde - Manoel da Costa Ataíde - qui, entre 1800 et 1809, a peint la nef centrale de l’église São Francisco de Assis, à Ouro Preto, dont le thème principal est l’Assomption de la Vierge. On parle de lointains souvenirs, les images qui Ataide peut être n’a jamais vu, et textes qu’il n’a jamais lu, mais que pulse dans ce tableau avec une variété de sources littéraires et visuelles européennes du Moyen-Age à nos jours. Un groupe asynchrone que nous pouvons voir avec les yeux d’aujourd’hui, lors de sa peinture comme un tourbillon visuel et temporel. La peinture de Ataide servira à nous montrer les formes politiques et visuelles qui persistent aujourd’hui dans une partie de la culture commune, à la fois dans la culture populaire, comme dans la culture universitaire. Autant que d’autres peintres de son temps de plusieurs pays, Ataíde a pratiqué son art sous un ensemble de règles pour créer et produire images, ce qui est à la fois un ensemble de règles morales et religieuses, une sorte de loi de bon sens, du sens esthétique de ce que sont les images communes et populaires. Il ne nous concerne pas ici si Ataide était une bon ou mauvais peintre, ou lui comparer à grands peintres de son temps. Il ne dépasse pas la brillance technique ou la qualité de l’invention. C’est un peintre moyen, peut-être médiocre, qui a peint ce qui était possible sous ses conditions matérielles et culturelles. Sans beaucoup d’informations culturelles, il représentait la moyenne culturelle de son temps.

Mots-clés:
Image; Mémoire; Morale et religion; Manoel da Costa Ataíde

Introdução

As imagens são moralidades em pensamento visual, propõem em sua retórica um ideal político, social, religioso, uma sociedade. As diversas facetas dessas representações visuais venho mostrando em vários artigos e livros1 1 . Ver: ALMEIDA, 1999; 2000; 2003; 2004; 2005a; 2005b; 2007a; 2007b. .

Neste artigo, vou expor alguns aspectos, nas imagens do pintor Ataíde, de uma retórica não explícita muito presente na época e que povoou e conduziu sua imaginação ao realizar suas pinturas. A ideia é mostrar uma rede de imagens longínquas que estariam no espírito visual da pintura do mestre Ataíde.

Manoel da Costa Ataíde, entre 1800 e 1809, pintou a nave central da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto (MG), cujo tema condutor é a Assunção da Virgem. Estou falando de memórias longínquas, aquelas imagens que talvez Ataíde nunca tenha visto e textos que nunca tenha lido, mas que pulsam nessa pintura numa variedade de origens literárias e visuais europeias da Idade Média até nossos dias. Um aglomerado assincrônico que podemos ver com os olhos de hoje, ao tomarmos a sua pintura como um vórtice visual e temporal.

O leitor terá citações de diferentes autores, e distintas imagens e poucas explicações minhas sobre elas, que no mais das vezes reescreveriam com diferentes palavras aquilo que os autores dizem em seus textos originais. Deixo ao leitor a leitura interpretativa que quiser fazer, o caminho que quiser seguir, pois os textos não terão preocupações causais ou cronológicas. Espero aqui, um leitor em colaboração.

Pequena nota biográfica de Ataíde

Segundo Salomão de Vasconcellos, Manoel da Costa Ataíde nasceu em Mariana (MG) e foi batizado no dia 18 do mês de outubro de 1762 na Igreja Matriz dessa cidade. Eis o documento transcrito em seu livro:

Certifico que, a fls. 113 do L. 6. de batizados da Cathedral de Mariana, consta o termo seguinte:

“Manoel” - Aos dezoito dias do mez de outubro de 1762, baptizou solenemente de licença minha o Devmo. Manoel da Silva Salgado, e poz os Santos Oleos a Manoel ignocente, filho legitimo de Luiz da Costa Ataíde e sua mulher Maria Barbosa; forão padrinhos Sebastiam Martins da Costa, todos desta cidade, o que para constar, mandei fazer este assento que assignei; eu o Cura Luciano Ferreira da Costa (VASCONCELLOS, 1941VASCONCELLOS, D. de. A Arte em Ouro Preto. Belo Horizonte: Edições da Academia Mineira de Letras, 1941., p. 21).

O pai de Ataíde era militar e possuía a patente de alferes. O artista seguiu os mesmos passos paternos, pois em 1797 foi ordenado sargento da Companhia de Ordenanças do arraial de São Bartolomeu:

Por se achar vago o posto de sargento da Companhia de Ordenanças do arrayal de São Bartholomeu, de que sou capitão, nomeio para exercer o dito posto ao cabo de esquadra da mesma Companhia, Manoel da Costa Ataíde, em quem concorreram os requizitos necessarios, aprovando o meu capitão, sr. José da Silva Pinto. - O capitão comandante, Francisco Alvares da Costa. Em 1º de abril de 1797. (cod. 257 S.G., do Arq. Publ. Mun., págs. 152, verso) (VASCONCELLOS, 1941VASCONCELLOS, D. de. A Arte em Ouro Preto. Belo Horizonte: Edições da Academia Mineira de Letras, 1941., p. 21).

Em 1799, Ataíde era promovido a alferes da Companhia da Ordenança do Distrito de Mombaça (documento nº 7 do Livro de Ivo Porto de Menezes). Por esses documentos, pode-se concluir que o artista não vivia apenas de sua produção artística, tendo de dividir suas obrigações entre o quartel e a capela, entre a espada e o pincel. Porém, pelo que nos diz Fritz Teixeira de Salles, com base em documentos assinados pelo pintor referentes a trabalhos prestados na Ordem Terceira do Carmo de Ouro Preto (Ataíde realizou diversas obras nesse templo), o temperamento de Ataíde era o de um homem calmo, fino, rico de dotes e prestígios, que Fritz carinhosamente chama de “diplomata ameno”2 2 . Pequena nota biográfica, segundo Diogo de Vasconcellos (1934, p. 50). (concupivi, do verbo concuspico, “desejar ardentemente” do qual deriva o substantivo concupiscência), “apetite por prazeres sensuais”. A Idade Média não deixava de atribuir à Virgem certa sensualidade. Esta podia se manifestar em relação a seu pai-filho-marido, Cristo, como aqui, ou mais adiante, nesse mesmo capítulo, quando afirma, seguindo muitas autoridades teológicas, que a Virgem foi levada ao thalamos (quarto nupcial, leito nupcial) celeste. A sensualidade da virgem manifestava-se também em relação a seus fiéis, como mostram diversos episódios da hagiografia mariana, inclusive da própria legenda áurea. Nota do tradutor do livro. .

Rede de imagens

A pintura de Ataíde mostra-nos algumas das formas políticas e visuais que persistem hoje numa parte da cultura comum, tanto na cultura popular quanto na cultura acadêmica. Ataíde, tanto quanto outros pintores de sua época, em diversos países, praticava sua arte sob um conjunto de regras para a invenção e produção de imagens, que é ao mesmo tempo um conjunto de regras morais e religiosas, uma espécie de lei do bom senso, do senso estético daquilo que são as imagens comuns, populares. Não nos interessa aqui se Ataíde foi um bom ou mau pintor, ou compará-lo a grandes pintores da sua época. Ele não excede em brilho técnico nem em qualidades de invenção. É um pintor médio, talvez medíocre, que pintou o possível em suas condições materiais e culturais. Foi representativo da média cultura de seu tempo.

Inúmeros artistas compõem uma rede de imagens longínquas e que estão no pano de fundo da memória visual na pintura de Ataíde e na iconologia da Virgem. Cito alguns: Andrea Pozzo (Itália, 1642 - Viena, 1709), Jérôme Nadal (Espanha, 1507-1580), Bartolomé Murillo (Espanha, 1628-1682), Francesco Bartolozzi (Itália 1727-1815), Correggio da Parma (Itália, 1489-1534) e Van Dyck (Bélgica, 1599 - Londres, 1641).

Rede de textos

O Dogma da Assunção, 1950

Este dogma foi proclamado pelo Papa Pio XII, no dia 1º de novembro de 1950, na Constituição Munificentissimus Deus:

3. De fato, Deus, que desde toda a eternidade olhou para a Virgem Maria com particular e pleníssima complacência, quando chegou a plenitude dos tempos (Gl 4,4) atuou o plano da sua providência de forma que refulgissem com perfeitíssima harmonia os privilégios e prerrogativas que lhe concedera com sua liberalidade. A Igreja sempre reconheceu essa grande liberalidade e a perfeita harmonia de graças, e durante o decurso dos séculos sempre procurou estudá-la melhor. Nesses nossos tempos refulgiu com luz mais clara o privilégio da assunção corpórea da Mãe de Deus.

4. Esse privilégio brilhou com novo fulgor quando o nosso predecessor de imortal memória, Pio IX, definiu solenemente o dogma da Imaculada Conceição. De fato, esses dois dogmas estão estreitamente conexos entre si. Cristo com a própria morte venceu a morte e o pecado, e todo aquele que pelo batismo de novo é gerado, sobrenaturalmente, pela graça, vence também o pecado e a morte. Porém Deus, por lei ordinária, só concederá aos justos o pleno efeito dessa vitória sobre a morte, quando chegar o fim dos tempos. Por esse motivo, os corpos dos justos corrompem-se depois da morte, e só no último dia se juntarão com a própria alma gloriosa.

5. Mas Deus quis excetuar dessa lei geral a bem-aventurada Virgem Maria. Por um privilégio inteiramente singular, ela venceu o pecado com a sua concepção imaculada; e por esse motivo não foi sujeita à lei de permanecer na corrupção do sepulcro, nem teve de esperar a redenção do corpo até ao fim dos tempos.

6. Quando se definiu solenemente que a Virgem Maria, Mãe de Deus, foi imune desde a sua concepção de toda a mancha, logo os corações dos fiéis conceberam uma mais viva esperança de que em breve o supremo magistério da Igreja definiria também o dogma da assunção corpórea da virgem Maria ao céu.

Legenda Áurea, Jacopo da Varazze (1229-1298)

A Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria

Escreve Varazze que, enquanto os apóstolos percorriam diferentes lugares, a Virgem permaneceu perto do Monte Sião:

Visitava os lugares que lembravam seu filho. Segundo Epifânio, ela tinha 14 anos quando concebeu Cristo, 15 quando o pôs no mundo, viveu com ele 33 anos, sobreviveu 24 anos à sua morte, e morreu com 72 anos. Ou sobreviveu 12 anos à morte de seu filho, tempo em que os apóstolos saíram pregando e voltaram.

Um dia em que estava desesperada de saudades de Cristo, apareceu um anjo cercado de intensa luz, saudou-a como a mãe do senhor:

“Salve, bendita Maria, receba a benção daquele que deu a salvação a Jacó. Aqui está um ramo de palmeira que trouxe do paraíso para você, minha senhora, e que deve ser levado em seu caixão, pois em três dias sairá do corpo, já que o filho espera sua reverenda mãe”. Maria responde: “Se encontrei graça diante de seus olhos, peço que se digne a revelar seu nome. Mas o que peço mais insistentemente é que meus filhos e irmãos, os apóstolos, estejam reunidos junto de mim para que possa vê-los com os olhos do corpo antes de morrer, e que possa ser sepultada por eles depois que tiver entregue meu espírito ao Senhor na presença deles. Há outra coisa que desejo avidamente: que ao sair do corpo minha alma não veja nenhum mau espírito e que nenhuma das potências de Satanás apareça nesse momento”.

O anjo prometeu, e subiu aos Céus no meio de muita luz. A palma, cujo verdor parecia o de um ramo, resplandecia de forma intensa, com folhas brilhando como a estrela da manhã.

João estava em Éfeso quando trovejou e uma nuvem branca levantou-o, transportou-o e colocou-o diante da porta de Maria. Maria fala do anjo e da sua morte, e pede que ele tome conta para que seu corpo não ser levado pelos judeus que ameaçam.

João fala de seu desejo de que todos os apóstolos estivessem ali para celebrarem as exéquias de Maria. Enquanto falava os apóstolos foram arrancados por nuvens dos lugares onde pregavam e colocados diante da porta de Maria. João vai recebê-los e explica. E pede para que não chorem para as pessoas verem e dizerem que eles temem a morte.

Dioniso, o Areopagita, escreveu que, quando a bem-aventurada Maria viu todos os apóstolos reunidos, sentou-se no meio deles. Por volta da terceira hora da noite, Jesus chegou com os anjos, a assembleia dos patriarcas, a tropa dos mártires, o exército dos confessores e os coros das virgens. Todos se agruparam em torno do trono da virgem e entoaram sem parar doces cânticos. Aprende-se no citado livro atribuído a São João como foram os funerais então celebrados: Jesus começou e disse: “Venha, minha eleita, e eu a colocarei em meu trono porque desejo sua beleza”. Ela responde: “Meu coração está preparado, Senhor, meu coração está preparado”:

Todos cantaram.

Por fim o chantre: “Venha do Líbano, minha esposa, venha do Líbano e você será coroada”, e ela: “Aqui estou, pois está escrito no Livro da Lei que eu faria sua vontade, Deus, porque meu espírito exulta de alegria, em Deus, meu Salvador”.

Assim a alma de Maria saiu de seu corpo e voou nos braços de seu filho.

A virgem foi levada para o vale de Josafá, por 3 dias, por ordem do Senhor, que disse voltar em 3 dias. O corpo da virgem foi imediatamente cercado por rosas vermelhas, os mártires, e por lírios do vale, o exército dos anjos, dos confessores, das virgens.

Os apóstolos: “Virgem cheia de prudência para onde vai? lembre-se de nós, senhora”.

Os coros que permaneceram no céu, admirados pelas vozes, desceram e vendo seu rei, perguntaram: “Quem é essa que sobe do deserto, cumulada de delícias, apoiada nos braços de seu amado?”. E foi colocada num trono de glória à direita de seu filho.

Enquanto isso, 3 virgens cuidavam do corpo de Maria e despiram-na para lavá-lo. Imediatamente o corpo brilhou intensamente, e elas podiam lavá-lo mas não podiam vê-lo. Os apóstolos pegaram o corpo para colocá-lo no féretro. João: “Pedro, você levará a palma, pois o Senhor o colocou à frente de nós e ordenou pastor e príncipe de suas ovelhas”. Pedro: “Cabe a você levá-la, pois foi escolhido virgem pelo Senhor e é conveniente que leve a palma de uma virgem, quem é virgem. Você teve a honra de repousar no peito do Senhor, e assim ganhou mais sabedoria... Você que bebeu na taça de luz da fonte da eterna claridade. Eu levarei o corpo santo no caixão, em volta do qual estarão nossos irmãos celebrando a glória de Deus”.

Paulo interveio: “E eu, que sou o menor de todos, o ajudarei a levar o corpo”.

O Senhor envolveu com uma nuvem o palanquim e os apóstolos, de maneira que não se via nada, só se escutava o canto.

Os apóstolos puseram Maria na sepultura e sentaram-se em torno, como o senhor ordenara. No 3o. dia, Jesus chegou com uma multidão de anjos.

Jesus: “Que graça e que honra vocês pensam que eu devo conceder agora à minha mãe?”. Eles: “Estes seus escravos, Senhor, acham justo que da mesma forma que depois de ter vencido a morte você reina eternamente, ressuscite, Jesus, o corpo de sua mãe e o coloque à sua direita por toda a eternidade”.

Ato contínuo, o arcanjo Miguel apresentou a alma de Maria ao senhor. O Salvador falou assim: “Levante-se, minha mãe, minha pomba, tabernáculo de glória, vaso de vida, templo celeste, e da mesma maneira que me gerou sem coito e sem mácula, também no sepulcro manterá o corpo íntegro”. Imediatamente, a alma de Maria aproxima-se de seu corpo, que saiu glorioso do túmulo e foi alçado ao tálamo celeste, acompanhado por uma multidão de anjos. Tomé não estava, e como não acreditasse caiu o cinto usado por Maria para que ele compreendesse que ela subira também de corpo. Subiu com o corpo, a carne incorrupta, que havia gerado Cristo também incorrupto, foi levada aos céus com toda a milícia celeste, pois Jesus e a milícia foram ao seu encontro (Jacopo da Varazze, A Legenda ÁureaVARAZZE, Jacopo da. Legenda Áurea: vida de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003., p. 662).

Escreve também Varazze, que, segundo Agostinho:

Antes de falar do santíssimo corpo da perpétua virgem e da Assunção da sua alma sagrada, digamos primeiro que a Escritura não se refere a ela depois que o Senhor na cruz recomendou-a ao discípulo, a não ser aquilo que Lucas relata nos Atos dos Apóstolos: “Todos perseveravam, unanimemente, na prece com Maria, mãe de Jesus”. Que dizer então de sua morte? Que dizer de sua Assunção? Já que a Escritura se cala, deve-se pedir à razão que nos guie para a verdade. Portanto, que a verdade seja nossa autoridade, pois sem ela sequer há autoridade. Baseados no conhecimento da condição humana é que não hesitamos em dizer que ela sofreu morte temporal, mas se dizemos que ela foi alimento da podridão, dos vermes e da cinza, devemos considerar se esse estado convém à sua santidade e às prerrogativas desta casa de Deus. Sabemos que foi dito a nosso primeiro pai: “Você é o pó e ao pó voltará”. A carne de Cristo escapou dessa condição pois não foi submetida à corrupção, foi poupada da sentença geral da natureza que foi tomada da Virgem. O Senhor disse também à mulher: “Multiplicarei suas misérias e você dará à luz com dor”. Maria teve sofrimentos, uma espada trespassou sua alma, contudo ela deu à luz sem dor. Assim, embora partilhando as tribulações de Eva, Maria não partilhou as do parto com dor. Ela foi uma exceção da regra geral, gozou de uma grande prerrogativa, sofreu a morte sem ser aprisionada por ela. Não seria então uma impiedade dizer que Deus não tenha querido poupar o corpo de sua mãe da podridão, da mesma forma que quis conservar intacto o pudor de sua virgindade? Não cabia à bondade do Senhor conservar a honra de sua mãe, pois Ele viera não para destruir a lei, mas para cumpri-la? Se Ele a honrou durante sua vida mais que a qualquer outra pessoa, pela graça que lhe fez de o conceber, é ato piedoso crer que a honrou também em sua morte com uma preservação da condição humana, e se Jesus esteve isento desse opróbrio, Maria também, já que Jesus nasceu dela. A carne de Jesus é a carne de Maria, que Ele elevou acima dos astros, honrando com isso toda a natureza humana, mas sobretudo a de sua mãe. Se o filho tem a natureza da mãe, é conveniente que a mãe possua a natureza do filho, não quanto à unidade da pessoa, mas quanto à unidade da natureza corporal. Se a graça pode fazer que haja unidade sem que haja comunidade de natureza, com mais razão quando há unidade na graça e no nascimento corporal. Há unidade de graça, como a dos discípulos com Cristo. Ele mesmo diz: “A fim de que eles sejam um como nós somos um”, ou, em outro lugar: “Meu pai, quero que eles estejam comigo em todo lugar que eu estiver”. Se Ele quer ter consigo aqueles que, reunidos pela fé, formam com Ele uma mesma pessoa, que dizer em relação à sua mãe, cujo lugar digno para estar só pode ser em presença de seu filho? Tanto quanto posso compreender, tanto quanto posso crer, a alma de Maria é honrada por seu filho com uma prerrogativa ainda superior, já que ela possui em Cristo o corpo desse filho que ela gerou com os caracteres da glória. E por que esse corpo não seria o seu, já que ela o concebeu? Se uma autoridade maior não o negar, creio que foi por Ele que ela gerou, pois tão grande santidade é mais digna do Céu que da Terra. O trono de Deus, o leito do esposo, a casa do Senhor e o tabernáculo de Cristo têm o direito de estar onde Ele próprio está. O Céu é mais digno que a Terra de conservar tão precioso tesouro. Como a incorruptibilidade, a dissolução causada pela podridão é conseqüência direta de tanta integridade, não imagino que esse santíssimo corpo poderia ser abandonado como alimento dos vermes. Mas as graças incomparáveis que lhe foram concedidas permitem-me rejeitar esse pensamento, baseado em várias passagens da Escritura. A Verdade disse a seus ministros: “Onde estou, ali estará também meu ministro”. Se esta sentença geral refere-se a todos os que servem a Cristo por sua crença ou por suas obras, aplica-se especialmente, sem a menor dúvida, a Maria, que o ajudou por todas as suas obras: carregou-o em seu útero, colocou-o no mundo, alimentou-o, aqueceu-o, deitou-o na manjedoura, ocultou-o na fuga para o Egito, guiou seus passos na infância, seguiu-o até a cruz. Ela não podia duvidar de que ele fosse Deus, pois sabia tê-lo concebido não por sêmen viril, mas pela aspiração divina. Ela não duvida que seu filho tem poder de Deus, daí ter-lhe dito: “Eles não têm vinho”, sabendo que Ele poderia, com um milagre, produzi-lo. Portanto, Maria foi, por sua fé e suas obras, servidora de Cristo. Mas se ela não está onde Cristo quer que estejam seus ministros, onde então estaria? E se está ali, é com a mesma graça que outros? E se é com a mesma graça, como fica a igualdade diante de Deus que dá a cada um conforme seus méritos? Se foi por mérito que Maria recebeu em vida tanta graça, esta poderia ser menor quando morta? Certamente não! Se a morte de todos os santos é preciosa, a de Maria é preciosíssima. Assim, penso que Maria, elevada às alegrias da eternidade pela bondade de Cristo, foi ali recebida com mais honras que os outros, porque Ele a honrou com sua graça mais que aos outros, e ela não teve de sofrer depois da morte o mesmo que os outros homens, podridão, vermes e pó, pois ela gerou o Salvador de si mesma e de todos os homens. Se a divina vontade escolheu manter intactas no meio das chamas as vestes das crianças, por que não preservaria as de sua própria mãe? A misericórdia que quis manter Jonas vivo no ventre da baleia não concederia a Maria a graça da incorrupção? Daniel foi preservado apesar da grande fome dos leões, e Maria não teria sido conservada pelos tantos méritos que a dignificavam? Portanto, reconhecendo que tudo quanto dissemos ocorreu contra as leis da natureza, não podemos duvidar de que a integridade de Maria deveu-se mais à graça que à natureza. Cristo, como filho de Maria, fez com que a alegria dela decorresse da alma e do corpo de seu próprio filho, que não a submeteu ao suplício da corrupção para dar à luz íntegra, sempre incorrupta, cheia de graça, e vivendo integralmente porque gerou aquele que é a vida íntegra de todos. Se falei como devia, Cristo, aprove-me, você e seus seguidores. Se não falei a verdade, peço que você e os seus me perdoem (Jacopo da Varazze, A Legenda ÁureaVARAZZE, Jacopo da. Legenda Áurea: vida de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003., p. 678).

Usa-se assunção para a Virgem, pois ela não ascendeu por si mesma aos céus, mas Cristo veio buscá-la. Usa-se ascensão para se referir à subida por si mesmo de Cristo aos céus. A história da Assunção da Virgem não consta dos textos canônicos, mas sim de um livro apócrifo atribuído a São João Evangelista.

O Que é Que é a Luz, de Marsilio Ficino

A pintura é manifestação da luz, luz material e luz divina. É uma linguagem de afetos que se exprimem e aparecem quando a imaginação entra em contato com a imagem. Luz divina e luz material agem reciprocamente pela linguagem da magia, gerando um conhecimento que é ao mesmo tempo uma educação visual do espírito, um movimento de correspondências entre o encanto estético e os propósitos morais da pintura.

O amor, conforme o entendiam os neoplatônicos, presidia a beleza e assim se revelava na arte, ao mesmo tempo que conduzia os afetos - pela simpatia, pelo êxtase, pela fascinação, pela atração -, e isso era também magia. O amor é laço e encantamento. Graças à luz material que ilumina os corpos na Terra, o amor humano em virtude da simpatia une dois seres, os enlaça em paixão recíproca, cega os amantes e os arrebata para a luz divina do amor.

Sem luz própria, só aparecemos ou nos vemos quando iluminados por alguma fonte de luz, e somente podemos experimentar a luz do amor como luz refletida da luz divina que nos deixa envoltos, ao mesmo tempo, em sentimentos contrários, de liberação e posse, desprendimento e ciúme, espírito, tudo em calor, fogo, conflito e divisão.

Escreveu Camões (1972CAMÕES, L. de. Lírica. São Paulo: Cultrix, 1972.):

Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer; É um não querer mais que bem querer; É solitário andar por entre a gente; É nunca contentar-se de contente; É cuidar que se ganha em se perder; É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Nós, tanto quanto a Virgem de Ataíde, somos arrebatados pela mesma luz, aquela do afresco. Como escreve Klein (1998KLEIN, R. A forma e o inteligível: escritos sobre o Renascimento e a arte moderna. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998., p. 55): “A obra de arte exercia uma espécie da magia simpática determinada por dois princípios: a representação de um afeto suscita automaticamente esse afeto naquele que a capta, e o afeto só pode ser comunicado por aquele que por ele está possuído”.

O afresco de Ataíde mostra o momento da assunção da Virgem, arrebatada pelo inequívoco amor divino, o momento da passagem dela da luz profana, por isso podemos ainda vê-la, para a una e invisível luz divina. Passagem visualmente simulada pela magia da pintura.

Seguem alguns trechos de Marsilio Ficino3 3 . Marsilio Ficino, Figline Valdarno, próximo a Florença, 1433-1499. de seu escrito sobre a luz:

QUID SIT LUMEN

O que é que é a Luz 4 4 . Tradução de Claudia Ortiz, revisão acadêmica de Milton José de Almeida.

Marcílio Ficino

“AQUILO QUE É A LUZ NO CORPO DO MUNDO, NA ALMA, NO ANJO E EM DEUS; POR MARCÍLIO FICINO, FLORENTINO, PARA O ILUSTRE EMBAIXADOR VENEZIANO PHOEB5 5 . Phoebus Capela, embaixador de Veneza e amigo de Ficino ligado ao projeto platônico. Cf: Opera Omnia, 1576, Basilea, p. 949 (reimpressão: 19959, Turim, Bottega d’Erasmo, 2 v.). Ficino faz aqui um jogo com o nome de Febo, epíteto do deus da luz, segundo um procedimento com que agraciará, muitas vezes, seus “amigos platônicos” em sua correspondência. .”

SAUDAÇÕES a você, nosso Febo, sempre na luz da vida. Saudações a você, celeste Febo, cuja luz não vem de fora, mas brilha no mais profundo de você. Estes últimos dias, o espírito do teu Marcílio, fecundado, na medida de suas forças, pelos raios do Sol Platônico, como por sementes, esforçou-se por gerar o Sol e, por muito infortunado, não sei por qual fraqueza de natureza estéril, gerou no lugar do Sol a lua de luz emprestada. Também, para que este fruto obscuro do Sol Platônico, nascido de minhas trevas seja ao menos iluminado por seus raios, eu lhe dedicarei imediatamente ao Fédon 6 6 . Diálogo sobre a imortalidade da alma, tema favorito das conversas da academia platônica, e Fédon é, com O Banquete, a obra mais representativa do espírito platônico de acordo com o iluminismo florentino. A autoridade do Fédon deve ser entendida segundo o espírito do diálogo, como uma injunção para se buscar a verdadeira contemplação no distanciamento, na elevação e na purificação. de Platão. Quanto a você, ilustre Febo, aceite de bom grado estas coisas que lhe chegam. E, porque elas vão até você por direito, eu rogo de as esclarecer a partir da luz do seu espírito.

Seja feliz perto do seu divino senado, ilustre Febo. Em nome de Marcílio, e de todos os homens das letras, nossa saudação ao veneziano, ou melhor florentino, Bernardo Bembo 7 7 . Bernardo Bembo, pai do poeta Pietro Bembo, embaixador de Veneza em Florença (1474-1475), companheiro dos banquetes platônicos. .

I

Cada sentido atinge só o objeto ao qual ele convém.

EU odeio mais que tudo as trevas, pois por sua causa todas as coisas desagradáveis me desagradam, já que elas são acompanhadas por trevas, ou melhor, já que, surgindo delas, elas se deterioram e a elas retornam. Eu amo, acima de tudo, a luz, onde a graça torna-me todas as outras coisas amáveis, pois são acompanhadas de luz, ou melhor, já que provêm dela, elas para aí refluem e daí regressam. Então, instruam-me, ó meus sentidos, vocês que aprendem incontáveis coisas sobre quase tudo; instruam-me, eu lhes rogo, sobre o que é a luz8 8 .Quid sit lumen: segundo a tradição escolástica, quid sit (o que é) é a questão da essência da coisa. . E o ouvido responde: “Sou aéreo, é suficiente que eu o instrua dos sons aéreos”. E o odor responde: “Quanto a mim, por forte razão não sou luminoso, sou vaporoso: aprenda de mim os vapores”. “Porque me perguntar aquilo que me é estranho? Diz o paladar: eu me banho no elemento líquido e lhe esclareço sobre os líquidos.” “Não procure, diz o tato, retirar de mim aquilo que não posso lhe dar: sou corporal, e o instruo do corporal. Busque mais alto a luz9 9 . As qualidades que Ficino atribui aos sentidos correspondem aos “meios” de propagação das sensações segundo tese de Aristóteles. .”

II

Descrição da luz visível

Graças a estes conselhos elevei-me do mais baixo, onde havia caído, para as alturas do meu corpo para aí receber uma luz toda mais leve e mais alta. Bem, vamos meus olhos luminosos! Em nome desta luz que só nos encanta, e mais que tudo, eu os conjuro, mostrem para a razão, seu reino, aquilo que é a luz. E a esplêndida visão logo responde: “Eu, eu sou espírito, sou esplendor espiritual”. E, por ser justamente o meu papel o que você me solicita, é com grande prazer que eu lhe exponho: a luz é uma emanação de alguma forma espiritual, súbita e muito extensa dos corpos, dos quais ela não altera a natureza. Ela é emanação de uma luz brilhante para os corpos diáfanos, isto é, transparentes: emanação da cor para os corpos que lhe fazem obstáculo, e enfim, para todos os corpos, emanação da quantidade, da figura e do movimento10 10 . Em termos aristotélicos, o “meio” da luz é o diáfano, e a luz, o ato do diáfano. A essência formal da cor consiste em colocar em movimento o diáfano em que “enteléquia” é a luz: a cor não é visível sem a luz e a luz é de toda forma a cor do diáfano. Por conseguinte, um ato (movimento) é uma determinada (figura) que a luz faz aparecer e surgir a partir do elemento material e extenso (quantidade). . Reúne em um só todos os gêneros de cor: o que será esta reunião, se não uma luz de todas as cores, ou melhor, uma luz feita na matéria a mais sólida e a mais obscura da terra e, por conseguinte, opaca? Separe a terra que nela está misturada: o que restará, se não uma qualidade, ou mais precisamente a claridade e o ato da transparência, como a cor é o ato da opacidade? De fato, a cor é uma luz opaca e a luz uma cor clara, ou ainda um tipo de flor e de cintilação do corpo transparente e das cores que, por assim dizer, de uma só cor em ato, é de todas as cores em potência.

III

Nada é mais claro do que a luz e Deus, e nada é mais obscuro.

É um esboço, ó meus olhos, mais que uma pintura. Nunca entendi mais obscura definição. Ou verdadeiramente, que maravilha! Como se faz para que nada seja mais obscuro do que a luz, quando não há nada mais claro, posto que ela elucida e faz que se conheça claramente todas as coisas? Daí, subi então ao sublime topo do intelecto11 11 .Intellect, traduzido do latim mens. para vê-lo, ao menos um pouco, este sentido sem o qual eu não podia ver nada em lugar algum. Ó intelecto, você que mede tudo com exatidão, diga-me se por acaso a luz é Deus ele mesmo, posto que nada é mais obscuro e luminoso ao mesmo tempo. Nada é mais claro do que a existência de Deus, e que ele é, soberanamente poderoso, sábio e bom. De fato, todas as suas obras proclamam-no aos nossos ouvidos, e por isso não há mais surdos do que aqueles que não o escutam alto e forte em todas as coisas. Entretanto, nada é mais obscuro do que é Deus, já que nada é mais tenebroso para quem pensa ser uma coisa muito clara.

IV

A luz inteligível é a causa dos inteligíveis, a luz visível é a causa das coisas visíveis.

Ó intelecto responda que Deus é pai das luzes, com quem não existem nem mudança, que o apagaria ou o arruinaria, nem sombra de variação, que o mergulharia na noite ou o eclipsaria. Ele responde ainda que Deus é a luz na qual nenhuma treva existe, quer dizer uma forma (forma) que não contém nada de informe e uma beleza (formositas) que não contém nada de disforme. Deus é com toda evidência, como o mostra o intelecto que é seu raio luminoso, uma luz invisível, a infinita verdade, a causa de cada verdade e de todas as coisas, cujo esplendor, ou antes a sombra12 12 . A sombra é mais exatamente a luz enquanto é relativa ao grau do ser que lhe é superior. Toda luz, exceto aquela de Deus, é então ao mesmo tempo uma sombra, segundo Marsilio Ficino. é esta luz, visível e finita, da causa das coisas visíveis. Ora, posto que a natureza da luz e da verdade é de revelar realmente as coisas umas às outras, Deus percebe assim, clara e verdadeiramente, cada coisa por si. Como se a luz visível, que é a fonte das cores e das coisas sensíveis, trouxesse seus olhares sobre ela mesma como sobre uma luz de todas as cores, e visse nela todas as cores e todas as coisas sensíveis.

V

Luz visível, racional, inteligível, divina.

Na verdade, o intelecto nos adverte de não nos elevarmos tão repentinamente a esta sublime contemplação, mas de subirmos por degraus para não sermos agitados e o menos possível cegados pelo clarão (splendor) da luz. “Não confie nos sentidos, ó minha razão: a visão não instrui suficientemente; quanto aos outros sentidos, eles não ensinam nada. Por que a visão é uma luz relativa aos sentidos, ela só pode receber e dar um brilho sensível, e reciprocamente, porque ela não pode dar e receber se não um brilho sensível você sabe que ela é uma luz relativa aos sentidos. Toda progressão torna-se então impossível13 13 . Tal é a dificuldade e a circularidade de uma descrição da luz sensível. Enquanto ato do diáfano, a luz é o que torna visível, mas não é visível ela mesma a não ser na e pelas cores ou atos do opaco. A luz é sempre vista por aquilo que ela clareia e jamais por ela mesma. Assim, a análise aristotélica deixa espaço para uma pergunta platônica: a luz visível traz nela mesma sua própria superação: ver a luz é ver a fonte transcendente do visível que clareia sem jamais ser vista nela mesma. .

“Mas no momento, aprenda isso: eu, a inteligência, sou uma luz, de certa maneira, intelectual, forma intelectual, posto que meu objeto é a luz inteligível, que procuro em tudo aquilo que pode ser buscado, e encontro em tudo o que pode ser encontrado, por que a luz de cada ser é ao mesmo tempo sua verdade. Também a verdade é ela uma luz interior e a luz uma verdade que se desdobra fora14 14 . Tal é a definição da luz em Santo Agostinho e São Tomás. .

“Aprenda isso agora: você, a razão, é uma luz de certa forma racional e uma razão luminosa, porque é raciocinando que você procura tão avidamente a razão da luz como a sua própria origem. Mas quer você procurar mais convenientemente a razão da luz? Busque-a na luz de toda razão: é lá que está a razão da luz e de todos os seres, é lá que você descobre, na soberana verdade que é ela mesma soberana certeza e clarão, a verdade e a claridade da luz, porque são idênticas a claridade e a verdade desta luz que você procura15 15 . Esses quiasmas, característicos do estilo de Ficino, fazem da luz o paradigma da assimilação do sujeito ao objeto do conhecimento. .

“O que é a luz em Deus? A imensa exuberância de sua bondade e de sua verdade. O que é ela nos anjos? A certeza da inteligência que emana de Deus e a alegria transbordante de sua vontade. O que é ela nos corpos celestes? A abundância da vida nos anjos, o desdobramento do poder nos céus. Riso do céu16 16 . A imagem aparece no Paraíso por diversas vezes. Dante vê no céu estrelado “o riso do universo” (XXVII, p. 4), “o céu risonho com as belezas de todas as regiões” (XXVII, p. 83). . O que é ela no fogo? Uma força vital enxertada nos corpos celestes, uma propagação eficaz. A graça descida do céu naquilo que está privado de sentido. A alegria do espírito e a força dos sentidos naquilo que é dotado de sentido. Enfim, a efusão da íntima fecundidade em todas as coisas, e em toda parte, a imagem da bondade e da verdade divinas.”

VI

Emanando da alegria das divindades, o riso do céu, quer dizer, a luz, reaquece e encanta todas as coisas.

Que a luz seja o riso do céu emanante da alegria dos espíritos celestes, os homens o indicam, eles que se alegram constantemente pelo espírito e riem com seu rosto, eles que resplandecem certamente no interior e se abrem pelo espírito, eles que parecem resplandecer também por seu rosto e mais ainda por seus olhos que são essencialmente celestes, cada olho cumprindo, sob a influência do riso, um movimento circular à semelhança do céu. Mas, ao contrário, logo que choram, tudo fica ensombrecido, apagado e mergulhado na imobilidade17 17 . A correspondência entre o microcosmo e macrocosmo é particularmente sensível no rosto humano que exprime os sentimentos da alma como o corpo do mundo exprime as vontades da alma do mundo. Cf. De Vita, III, p. 17. . Quanto aos raios vindos das estrelas sorridentes, como os olhos das inteligências divinas, é com muita alegria e generosidade, que eles são levados nos germes dos seres que incubam e engendram, como o faz o olhar que o avestruz lança sobre seu ovo18 18 . Símbolo bíblico da crueldade e do esquecimento (Jó, 39, 13), o avestruz abandona seus ovos sob a areia, vigia-os e choca-os, por assim dizer, com os olhos. Ele é ainda, segundo os bestiários medievais de Brunetto Latini e Guillaume Le Clerc de Normandie, o pássaro que mantendo continuamente os olhos no ar contempla a estrela e representa o homem sábio, de vida santa, que abandona as coisas terrestres e se liga às celestes. . De fato, o calor natural destes raios é uma energia que se introduz em cada coisa: é daí que a vida tira sua origem, daí ela se levanta e se desenvolve. Eis porque todos as criaturas vivas desejam o prazer, porque eles são engendrados não somente no prazer terrestre, mas também pela alegria celeste. Quem poderá então negar que as potências divinas, por uma feliz disposição, movem e engendram todas as coisas, no momento mesmo em que as vemos; tanto pela natureza dos seres viventes, quanto pela sua arte, tudo está procriado e concluído no prazer19 19 . Essa ideia do prazer (voluptas) é própria do platonismo de Ficino. O amor conclui-se em prazer porque ele é o último movimento pelo qual o laço que nos reúne a Deus “volta ao seu autor e o une a sua obra”. Ponto de partida da geração entre as criaturas, o prazer deve ser no criador ele mesmo a fonte da geração. .

IX

A luz é, de certa maneira, espiritual, e os espíritos são como as luzes.

A luz é, pois, de certa maneira mais espiritual que corporal, porque ela se propaga por toda parte sem temporalidade, porque ela enche os corpos transparentes sem com eles se chocar e porque ela se derrama sobre os corpos grosseiros sem se sujar. Por outro lado, ela se oferece tanto mais facilmente aos corpos que estão mais afastados do peso corporal. É por esta razão que os corpos mais puros do céu e do fogo, como o pensam os Platônicos20 20 . Plotino, Ennéade, II, I, 6. Milano, Rusconi Libri, 1999. , brilham em si mesmos; que o ar e a água brilham graças aos corpos mais puros e que os corpos interiores à terra não têm brilho, nem neles mesmos, nem graças aos outros. Na superfície da terra, a luz, que está infusa em numerosas misturas dos quatro elementos onde domina o elemento terrestre, sonha as formas das diversas cores que são como corpúsculos cujas pequenas almas, por assim dizer, são as faíscas da luz infusa neles. Se você os separa destas misturas e os conserva, talvez veja o que são, separadas dos corpos, as almas racionais. São, de fato, as luzes, habitualmente muito confusas nos corpos, mas que se tornam mais claras, uma vez restabelecidas em sua verdadeira natureza. Assim, o corpo sendo muito diferente da alma, recobre-a como, quando em eclipse, a lua entra em conjunção com o sol, ou melhor, como a mistura terrestre, que está muito distante do céu, torna a luz celeste opaca e forma a cor a partir da luz; assim o corpo que cinge a alma produz o sentido a partir da inteligência21 21 . O sentido é assimilado à opacidade ou ao estado material da inteligência. Inversamente, a inteligência é encaminhamento da matéria para a sua forma, o processo de abstração do dado sensível para as ideias. .

Arte de Saber Ver nas Belas Artes do Desenho, de Francesco Milizia

Seguem alguns trechos anotados da obra de Francesco Milizia (­1725-­1798), Arte de Saber Ver em as Bellas Artes del Diseño, para quem o objetivo final da pintura é instruir deleitando a vista, representando objetos tomados da bela natureza. O homem deve ter na arte o mesmo fim que tem a natureza: prazer sim, mas por meio do prazer útil. Isto é, tornamo-nos melhores se nos ligarmos aos objetos mais belos e cheios de utilidade. As belas artes não só deleitam, mas instruem-nos para fazer-nos melhores (MILIZIA, 1987MILIZIA, F. Arte de saber ver en las bellas artes del diseño. Barcelona: Editorial Alta Fulla, 1987., p. 20-21).

Esse texto expressa o que há de mais comum e estabelecido nas regras para uma arte bem realizada na época e hoje corresponde a lugares comuns nas artes decorativas, no que chamamos de arte plástica decorativa, nas artes de gosto médio, das feiras de artesanato, das paisagens e naturezas-mortas bem-comportadas.

Invenção

Toda a natureza se apresenta à inteligência do poeta e do pintor, e se apresenta não só como é no presente, mas também como foi, e ainda como pode e poderá ser. À ordem presente, deve-se juntar a cadeia imensa dos tempos e do espaço, conhecer todas as causas, fazê-las agir em nossa mente segundo as leis da harmonia, reunir os sedimentos do passado, solicitar a fecundidade do futuro, dar uma existência aparente e sensível ao que não é ainda, e talvez não será jamais, se não na essência ideal das coisas.

Mas nem todo o possível é verossímil, nem todo o verdadeiro é interessante. Interessante é o que nos toca ao vivo, e para tocar-nos ao vivo é preciso que nos seja imediato. Daí é que o inventar não é lançar-se àquilo que está fora ou muito distante de nossos sentidos, é sim combinar diversamente nossas percepções e afinidades, o quanto passa ao redor de nós mesmos, entre nós e em nós mesmos.

Logo, inventar não é copiar fiel e friamente aquilo que nos apresenta diante dos olhos. É, sim, descobrir, desenredar, discernir, recolher e reunir aquilo que não se vê do comum dos homens, mas que entretanto compõe um todo ideal, interessante e novo, formado da união de coisas conhecidas, ou um todo já existente, mas depurado de todo defeito, e adornado de novas graças e belezas.

A história, as fábulas, a sociedade raramente nos apresentam um quadro naturalmente como deve ser. Os assuntos mais extraordinários são sempre fracos e defeituosos em alguma de suas partes. O artista deve suprir tudo o que falta, mas sem deixar-se seduzir pelo brilhante que é comumente falso (MILIZIA, 1987MILIZIA, F. Arte de saber ver en las bellas artes del diseño. Barcelona: Editorial Alta Fulla, 1987., p. 29).

É a pintura uma espécie de máquina na qual tudo deve ser combinado para produzir um movimento comum. A peça mais trabalhada não tem valor algum se não for essencial à máquina, ocupando exatamente seu lugar, e alcançando seu destino. Não é a beleza de tal ou tal parte que deve determinar a escolha do assunto, mas sim uma ação interessante que produza em todo seu desenrolar o efeito desejado de provocar o interesse, de agradar e de instruir - é a culminância da arte.

Saber selecionar, a Escolha, é o mais difícil na Invenção, o dom mais raro. A natureza se apresenta a todos os homens, e quase a mesma para todos os olhos. Mas o ver é nada; discernir é que é tudo, e a vantagem do homem sublime sobre o médio é saber escolher o melhor o que lhe convém. (Conveniência.)

Não é a bela natureza a mesma em um Fauno, um Apolo, em uma Diana. A ideia do belo individual varia continuamente em todas as belas artes, depende de relações sujeitas a mudanças. Não é mesma num fauno, num apolo...

Como distinguir para escolher.

A escolha deve corresponder ao fim proposto, ao efeito que se quer alcançar, vê-se aí o caráter.

O que em algumas circunstâncias é beleza, em outras não o é.

Como no aspecto físico, quanto no moral, a natureza é como a paleta do pintor sobre a qual não há cores belas nem feias. As relações dos objetos conosco mesmos; veem-se aí o princípio e a intenção do pintor, veem-se aí sua regra e a essência de todas as regras.

A finalidade do pintor é interessar com a imitação. O artista fica seguro de seu efeito quanto consegue excitar nossa atividade interna, isto é, o interesse, o amor próprio, princípio de todas as nossas ações. Os dias mais interessantes de um homem são aqueles em que ele mais fez atividades. É claro que o artista nos há de interessar não a favor do vício, mas da virtude. Mas para interessar, é preciso que seja interessado.

Escolhido o assunto interessante, há de ser exposto em um todo reunido em um só ponto de vista, de modo que todas suas partes concorram para um mesmo fim, e formem por sua recíproca correspondência, um todo simples e único. É o que se chama de unidade de composição.

Unidade supõe um fim, um objeto único que atrai, e para cuja direção todo o mais é atraído. Unidade de ação, de interesse, de tempo, de lugar, de costumes e de desenho.

A ação é um conjunto de causas dirigidas a produzir o acontecimento, e de obstáculos que se opõem a isso. A ação principal é o resultado de todas as ações particulares empregadas como episódios e incidentes.

Entre os episódios e o assunto principal tudo deve estar bem amarrado, que se despencar um despencam todos. Se tirar uma figura, cai a máquina, ou pelo menos se ressente.

A obra, quanto mais simples, mais bonita. Com o menos possível se há de obter o máximo. A composição tem que ser equilibrada, ou com menos figuras, e rica de ideias.

É necessário muito estudo e engenho para fazer cada pedaço diferentemente belo, diferentemente expressivo, mas todos necessários, todos convenientes ao assunto, e todos compondo unidade.

Em certos episódios pode talvez usar algum descuido para dar mais realce ao objeto primário, mas usar tais descuidos requer muita arte. [...]

O interesse ou a impressão não é necessário que esteja numa só pessoa; deve distribuir-se gradativamente da principal às outras. Mas é necessário que se reúna em um só ponto.

Deve-se escolher um só instante, o mais interessante da ação, sem cuidar do antecedente e do consequente. Uma vez dado esse instante, está dado todo o resto, e se segue imediatamente a conveniência do todo (MILIZIA, 1987MILIZIA, F. Arte de saber ver en las bellas artes del diseño. Barcelona: Editorial Alta Fulla, 1987., p. 31).

A conveniência é a relação que há entre a propriedade essencial e a assessória de um assunto. A primeira virtude é estar isenta de vícios. Mas é raro. Em um assunto sério, pode entrar um garoto brincando com um cachorro? ­Conveniência nas roupas, lugares e em tudo que pode entrar na composição de qualquer quadro. Tudo deve ser precisamente relativo ao assunto.

Esta é a primeira parte da composição que se chamou invenção, e que pode também chamar-se expressiva, e é a mais importante.

Sobre a composição, pode entender qualquer um que goze do senso comum. Vê ali um quadro. Se não conheço o argumento, pobre de mim, conhecê-lo toma paciência; se de pronto o conheço, ótimo, põe-te a examinar se a ação foi escolhida no melhor momento com as mais vantajosas circunstâncias, com os caracteres mais expressivos e convenientes. Os defeitos da invenção estão em tudo aquilo que é contra a natureza, contra a verossimilhança e contra a unidade. Os músculos contraditórios, obscuros e ambíguos ofendem, da mesma forma os objetos estranhos, ociosos e que distraem do assunto principal (MILIZIA, 1987MILIZIA, F. Arte de saber ver en las bellas artes del diseño. Barcelona: Editorial Alta Fulla, 1987., p. 32).

Distribuição Lucidus ordo.

Sem confusão, da bem ordenada disposição deriva aquele agradável efeito que se logra ver em uma multiplicidade de coisas. Cada figura deve estar em lugar conveniente, a principal deve localizar-se com preferência, e as outras a distância conveniente. Tudo deve comparecer disposto com facilidade. Assim se passeia o olho do espectador, descansa e se entretém com satisfação.

Os grupos contribuem para perceber-se a harmonia. Um grupo estará bem disposto se as partes iluminadas fizerem uma massa de luz, e as obscuras uma massa de sombra, com tal verossimilhança, que toda figura fica distinta e revelada como num cacho de uvas, e vê-se aí o claro escuro.

Claro escuro

Jamais o negro ao lado do branco, somente gradualmente do branco ao cinza claro, e do negro ao cinzento escuro. Esta é a doçura do claro escuro.

A obscuridade é sempre ingrata e se corrige com os reflexos. Pois, com poucos claros e muitos reflexos, se obtém algo grandioso e nada de apoucado, muito de brilhante e nada de confuso.

Efeitos da Pintura

É a arte de dar a cada objeto a cor que lhe convém, a fim de que o todo imite belamente a natureza. Todos os efeitos resultantes, as formas, adquirem das cores maior energia. [...] Quem queira ver bem, veja primeiro a natureza e a estude como ela é em seu original, para depois gozá-la melhor nas cópias dificilmente mais formosas. Verá reunida nestas a bela natureza em muitos assuntos de composições inventadas e dispostas com engenho e gosto, expressos todos com correção, graça, com elegância, com conveniência tanto no desenho como no colorido em todos objetos principais e subalternos, todos caracterizados segundo sua índole respectiva, e dirigidos todos para formar unidade em cada argumento: unidade sempre, bem que sempre diversificada de roupagens, de arquitetura, de engenho, de paisagem, de campo; dirigido tudo sempre para uma expressão que encante a vista ao apresentar aquilo que assim na natureza como na sociedade não se vê jamais tão belo, nem tão arrumado, e tudo a fim de penetrar no coração, incitando-o à virtude, e de nutrir o entendimento com conhecimentos verdadeiros e úteis. [...] Já foi dito que o primeiro efeito da pintura é o prazer dos olhos, e também que nenhum prazer deve estar jamais distante do útil. Assim é que a pintura tem necessariamente por finalidade a utilidade por meio do deleite da vista (MILIZIA, 1987MILIZIA, F. Arte de saber ver en las bellas artes del diseño. Barcelona: Editorial Alta Fulla, 1987., p. 37).

Exercícios Espirituais, de Inácio de Loyola

Retomando a tradição milenar da arte da memória22 22 . Yates. para imagens e textos, Inácio de Loyola (2002LOYOLA, I. de. Exercícios Espirituais de Santo Inácio. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 43-48.) escreve Exercícios Espirituais, a prática-chave catequética e doutrinária da catequização universal dos jesuítas. Segue para o leitor o primeiro exercício:

PRIMEIRO EXERCÍCIO

MEDITAÇÃO COM AS TRÊS POTÊNCIAS SOBRE O PRIMEIRO, O SEGUNDO E O TERCEIRO PECADO

compreende, depois da oração preparatória e dois preâmbulos, três pontos principais e um colóquio

46 A oração preparatória consiste em pedir graça a Deus nosso Senhor para que todas as minhas intenções, ações e operações sejam dirigidas unicamente ao serviço e louvor de sua divina Majestade.

47 O 1º preâmbulo é a composição do lugar. É de notar aqui que, se o assunto da contemplação ou da meditação for uma coisa visível, como na contemplação de Cristo nosso Senhor, que é visível, esta “composição” consistirá em representar, com o auxílio da imaginação, o lugar material onde se encontra o objeto que quero contemplar. Lugar material, digo, como o templo, ou monte onde se encontram Jesus Cristo ou Nossa Senhora, conforme o mistério que escolhi para a contemplação.

48 O 2º preâmbulo consiste em pedir a Deus nosso Senhor o que quero e desejo. Esta petição deve ser conforme o assunto da meditação. Na contemplação da Ressurreição, por exemplo, pedirei alegria com o Cristo inundado de alegria; na da Paixão pedirei dor; lágrimas, sofrimentos com Cristo torturado.

Na meditação presente pedirei vergonha e confusão de mim mesmo, vendo quantos têm sido condenados por um só pecado mortal, e quantas vezes eu mereceria ser condenado para sempre por meus pecados tão numerosos.

49Nota. Antes de cada contemplação ou meditação, deve-se fazer a oração preparatória, que será sempre a mesma e os dois preâmbulos que variam conforme o assunto.

501º ponto. O primeiro ponto será aplicar a memória ao primeiro pecado, que foi o dos anjos, e a seguir o entendimento, que refletirá sobre o mesmo, e finalmente, a vontade. ­Procurarei recordar e entender tudo isto, para mais me envergonhar e confundir: comparando com um só pecado dos anjos, tantos pecados meus. E considerando como eles, por um só pecado, foram para o inferno, e quantas vezes eu o mereci por tantos pecados.

Trarei, pois, à memória o pecado dos anjos como, tendo sido criados em estado de graça, recusaram ajudar-se da sua liberdade para render a seu Criador e Senhor a homenagem e a obediência que lhe eram devidas; encheram-se de soberba, e, por isso, passaram do estado de graça ao de malícia e do Céu foram precipitados no Inferno.

E assim, em seguida, discorrerei sobre tudo mais em particular com o entendimento, e finalmente moverei mais os afetos com a vontade.

512º ponto. Seguir o mesmo processo, isto é, aplicar as três potências ao pecado de Adão e Eva. Trarei à memória como por este pecado fizeram tão longa penitência e quanta corrupção veio a gênero humano, indo tanta gente para o inferno.

Hei de, pois, avivar na memória o segundo pecado: o de nossos primeiros pais. A saber, como Adão foi criado no campo Damasceno e posto no Paraíso terrestre, e como Eva foi formada de uma das suas costelas, e como, apesar de lhes ser proibido comer da árvore da ciência, contudo comeram e por isso pecaram. Depois, vestidos de túnicas de peles e expulsos do paraíso, viveram toda a vida em muitos trabalhos e muita penitência, sem a justiça original, que tinham perdido. A seguir refletirei com o entendimento mais em particular e exercitarei a vontade, como se explicou no primeiro ponto.

523º ponto. Proceder do mesmo modo sobre o terceiro pecado, isto é, o pecado particular de qualquer pessoa, que por uma só culpa portal foi para o inferno e de muitas outras, sem conta, que lá estão por menos pecados dos que eu tenho cometido.

Procederei do mesmo modo sobre o terceiro pecado particular: isto é, trarei à memória a gravidade e malícia do pecado contra o seu Criador e Senhor. Refletirei com o entendimento, como por pecar e agir contra a bondade infinita, este homem foi justamente condenado para sempre. Concluirei pelos atos da vontade, como foi dito.

Colóquio. Imaginando, diante de mim, Cristo nosso Senhor, crucificado, farei um colóquio, ponderando como Ele sendo Criador veio a fazer-se homem, e como da vida eterna chegou à morte temporal, e desta forma veio a morrer por meus pecados. Olhando depois para mim mesmo, perguntar-me-ei o que fiz por Cristo, o que faço por Cristo e o que devo fazer por Cristo.

E vendo-O assim pregado na cruz, refletirei sobre o que me ocorrer.

53 O colóquio, propriamente dito, se faz falando, como um amigo fala com o outro, ou um servo com o seu senhor. Ora pedindo alguma graça, ora acusando-se por alguma má ação, ora comunicando as suas coisas e querendo conselho nelas. E rezar um pai-nosso (LOYOLA, 2002LOYOLA, I. de. Exercícios Espirituais de Santo Inácio. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 43-48., p. 43-48).

Referências

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  • *
    Artigo publicado originalmente no livro: BITTENCOURT, A.B.; CORBALÁN, M.A. (Orgs.). Américas y Culturas. Buenos Aires: Biblos, 2009. p. 223-250. ISBN 978-950-786-774-3. Direitos de publicação cedido pela Editorial Biblos, a quem agradecemos. Algumas referências estão incompletas no texto, uma vez que no texto original e mesmo fora dele não foi possível encontrar dados para completá-las.

Notas

  • 1
    . Ver: ALMEIDA, 1999ALMEIDA, M.J. de. Cinema: Arte da Memória. Campinas: Autores Associados, 1999.; 2000ALMEIDA, M.J. de. A Educação Visual da Memória: Imagens Agentes do Cinema e da Televisão. Pro-Posições, Campinas, v. 10, n. 2, 2000.; 2003ALMEIDA, M.J. de. Imagens e Sons: a Nova Cultura Oral. São Paulo: Cortez, 2003.; 2004ALMEIDA, M.J. de. As Idades, o Tempo. Pro-Posições, Campinas, v. 15, n. 1, p. 39-61, 2004.; 2005aALMEIDA, M.J. de. O Teatro da Memória de Giulio Camillo. São Paulo: Ateliê Editorial/Editora da Unicamp, 2005a.; 2005bALMEIDA, M.J. de. O Triunfo da Escolástica, a Glória da Educação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 90, p. 17-39, 2005b. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-73302005000100002
    http://dx.doi.org/10.1590/S0101-73302005...
    ; 2007aALMEIDA, M.J. de. Investigação Visual a Respeito do Outro. Educação Temática Digital, Campinas, v. 9, n. 1, 2007a. Disponível em: <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/749>.
    https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
    ; 2007bALMEIDA, M.J. de. Um Castelo para a Memória. Educação Temática Digital, Campinas, v. 9, n. 1, 2007b. Disponível em: <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/748>.
    https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
    .
  • 2
    . Pequena nota biográfica, segundo Diogo de Vasconcellos (1934VASCONCELLOS, D. de. A Arte em Ouro Preto. Belo Horizonte: Edições da Academia Mineira de Letras, 1941., p. 50). (concupivi, do verbo concuspico, “desejar ardentemente” do qual deriva o substantivo concupiscência), “apetite por prazeres sensuais”. A Idade Média não deixava de atribuir à Virgem certa sensualidade. Esta podia se manifestar em relação a seu pai-filho-marido, Cristo, como aqui, ou mais adiante, nesse mesmo capítulo, quando afirma, seguindo muitas autoridades teológicas, que a Virgem foi levada ao thalamos (quarto nupcial, leito nupcial) celeste. A sensualidade da virgem manifestava-se também em relação a seus fiéis, como mostram diversos episódios da hagiografia mariana, inclusive da própria legenda áurea. Nota do tradutor do livro.
  • 3
    . Marsilio Ficino, Figline Valdarno, próximo a Florença, 1433-1499.
  • 4
    . Tradução de Claudia Ortiz, revisão acadêmica de Milton José de Almeida.
  • 5
    . Phoebus Capela, embaixador de Veneza e amigo de Ficino ligado ao projeto platônico. Cf: Opera Omnia, 1576, Basilea, p. 949 (reimpressão: 19959, Turim, Bottega d’Erasmo, 2 v.). Ficino faz aqui um jogo com o nome de Febo, epíteto do deus da luz, segundo um procedimento com que agraciará, muitas vezes, seus “amigos platônicos” em sua correspondência.
  • 6
    . Diálogo sobre a imortalidade da alma, tema favorito das conversas da academia platônica, e Fédon é, com O Banquete, a obra mais representativa do espírito platônico de acordo com o iluminismo florentino. A autoridade do Fédon deve ser entendida segundo o espírito do diálogo, como uma injunção para se buscar a verdadeira contemplação no distanciamento, na elevação e na purificação.
  • 7
    . Bernardo Bembo, pai do poeta Pietro Bembo, embaixador de Veneza em Florença (1474-1475), companheiro dos banquetes platônicos.
  • 8
    .Quid sit lumen: segundo a tradição escolástica, quid sit (o que é) é a questão da essência da coisa.
  • 9
    . As qualidades que Ficino atribui aos sentidos correspondem aos “meios” de propagação das sensações segundo tese de Aristóteles.
  • 10
    . Em termos aristotélicos, o “meio” da luz é o diáfano, e a luz, o ato do diáfano. A essência formal da cor consiste em colocar em movimento o diáfano em que “enteléquia” é a luz: a cor não é visível sem a luz e a luz é de toda forma a cor do diáfano. Por conseguinte, um ato (movimento) é uma determinada (figura) que a luz faz aparecer e surgir a partir do elemento material e extenso (quantidade).
  • 11
    .Intellect, traduzido do latim mens.
  • 12
    . A sombra é mais exatamente a luz enquanto é relativa ao grau do ser que lhe é superior. Toda luz, exceto aquela de Deus, é então ao mesmo tempo uma sombra, segundo Marsilio Ficino.
  • 13
    . Tal é a dificuldade e a circularidade de uma descrição da luz sensível. Enquanto ato do diáfano, a luz é o que torna visível, mas não é visível ela mesma a não ser na e pelas cores ou atos do opaco. A luz é sempre vista por aquilo que ela clareia e jamais por ela mesma. Assim, a análise aristotélica deixa espaço para uma pergunta platônica: a luz visível traz nela mesma sua própria superação: ver a luz é ver a fonte transcendente do visível que clareia sem jamais ser vista nela mesma.
  • 14
    . Tal é a definição da luz em Santo Agostinho e São Tomás.
  • 15
    . Esses quiasmas, característicos do estilo de Ficino, fazem da luz o paradigma da assimilação do sujeito ao objeto do conhecimento.
  • 16
    . A imagem aparece no Paraíso por diversas vezes. Dante vê no céu estrelado “o riso do universo” (XXVII, p. 4), “o céu risonho com as belezas de todas as regiões” (XXVII, p. 83).
  • 17
    . A correspondência entre o microcosmo e macrocosmo é particularmente sensível no rosto humano que exprime os sentimentos da alma como o corpo do mundo exprime as vontades da alma do mundo. Cf. De Vita, III, p. 17.
  • 18
    . Símbolo bíblico da crueldade e do esquecimento (Jó, 39, 13), o avestruz abandona seus ovos sob a areia, vigia-os e choca-os, por assim dizer, com os olhos. Ele é ainda, segundo os bestiários medievais de Brunetto Latini e Guillaume Le Clerc de Normandie, o pássaro que mantendo continuamente os olhos no ar contempla a estrela e representa o homem sábio, de vida santa, que abandona as coisas terrestres e se liga às celestes.
  • 19
    . Essa ideia do prazer (voluptas) é própria do platonismo de Ficino. O amor conclui-se em prazer porque ele é o último movimento pelo qual o laço que nos reúne a Deus “volta ao seu autor e o une a sua obra”. Ponto de partida da geração entre as criaturas, o prazer deve ser no criador ele mesmo a fonte da geração.
  • 20
    . Plotino, Ennéade, II, I, 6. Milano, Rusconi Libri, 1999.
  • 21
    . O sentido é assimilado à opacidade ou ao estado material da inteligência. Inversamente, a inteligência é encaminhamento da matéria para a sua forma, o processo de abstração do dado sensível para as ideias.
  • 22
    . Yates.
  • 1
    Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação - Campinas (SP), Brasil

Figura 1

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2018
  • Aceito
    05 Fev 2018
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