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Apresentação

APRESENTAÇÃO* * Tradução de Lílian do Valle.

Igualdade e liberdade em educação: a propósito de O mestre ignorante

Jorge Larrosa; Walter O. Kohan

A linguagem que conecta educação e política tornou-se, para nós, quase impronunciável. Não que não haja palavras: é que elas pouco têm a ver conosco. Julio Cortázar, por exemplo, o havia formulado:

Digo: liberdade, digo: democracia, e de imediato sinto que disse essas palavras sem avaliar mais uma vez seu sentido mais profundo, sua mensagem mais aguda; e sinto, também, que muitos dos que as escutam as estão recebendo, por sua vez, como algo que ameaça converter-se em um estereótipo, em um clichê sobre o qual todo mundo está de acordo, porque essa é a própria natureza do clichê e do estereótipo: antepor um lugar comum a uma vivência, uma convenção a uma reflexão, uma pedra opaca a um pássaro vivo.

As palavras-clichê, diz Cortázar, são palavras gastas pelo uso, obtusas, sem fio; palavras que se pronunciam e se escutam quase automaticamente, superficialmente, sem encarnação singular, nem no corpo, nem na alma; palavras mortas, solidificadas e opacas, não mais capazes de captar, ou de expressar vida; palavras comuns e homogêneas, que já não podem incorporar um sentido plural. Talvez por isso, dá-se conosco o que acontecia a Peter Handke: "(...) queria escrever de maneira política e faltavam-me as palavras. Havia palavras, claro, mas nada tinham a ver comigo".

O presente conjunto de textos não obedece a claves disciplinares ou temáticas. Tampouco é clara sua filiação teórica a qualquer "corrente de pensamento". E decerto não estamos interessados em discutir questões ligadas a sua "aplicação prática". Este conjunto de artigos trata de algumas palavras, dos rastros e ressonâncias de algumas palavras, da força vital de algumas palavras. Trata das palavras "liberdade" e "igualdade", na medida em que dizem, de certa maneira, o pedagógico e o político. Busca resistir à banalização e à instrumentalização interessada dessas palavras, voltar a significá-las, fazê-las mais profundas, mais afiadas, mais vivas, menos inofensivas, menos assimiláveis, mais difíceis de se pronunciar. Pretende pensar a liberdade e a igualdade e, assim, propor um debate intempestivo sobre o modo como conectamos educação e política.

E o pre-texto para tanto é um livro. No ano passado, apresentou-se aos leitores brasileiros O mestre ignorante, de Jacques Rancière1 1 . Desta edição são tomadas todas as citações presentes nos textos que compõem o conjunto de artigos: RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. (Série "Educação: experiência e sentido"). – um livro que dá a ler, em claves do presente, um excêntrico e pouco conhecido pedagogo francês da época da Revolução: Joseph Jacotot. E o que aqui se apresenta, neste conjunto de textos, nada mais é do que uma série de leituras que, desde distintas perspectivas, vários pedagogos fizeram do livro. Por um lado, este dossiê é uma homenagem ao livro. Por outro, é um conjunto de pensamentos apaixonados sobre alguns de seus temas. Mas, fundamentalmente, ele é o lugar em que uma série de pessoas busca pensar a relação entre educação e política, no que concerne à igualdade e à liberdade.

Tais palavras têm, possivelmente, uma ressonância toda especial no Brasil dos tempos atuais. Tempos de muita ambigüidade e desencanto. Pois não basta prometer acabar com o analfabetismo, se alfabetizar significa dar palavras fechadas, que só podem dizer uma única coisa. Se as palavras escapam da boca como ali entraram. Se têm seu futuro hipotecado por tantos interesses acumulados. Se todos já sabemos – claro, como não, evidentemente – o que querem dizer. Se precisamos estar de acordo para que possam ser pronunciadas. Se o medo dá o tom da palavra.

Jacotot certamente não será uma tábua de salvação para os problemas "crônicos" da educação brasileira. Não oferecerá um método para estruturar nenhum programa de "analfabetismo zero". Não permitirá formar quadros, nem exércitos de instrutores. Sequer poderá formar um só instrutor. Seguramente será de pouca utilidade pragmática para essa terra povoada de analfabetos. Mais ainda, não poderá servir de muito a ninguém que queira fazer algo com o outro, com os outros, com qualquer um que não seja si próprio. Em compensação, se educar tem algo a ver com pensar com outros e pensar a nós mesmos, quem sabe... Precisamente acerca da relação consigo mesmo, Foucault pensava que não é necessário saber com exatidão quem se é. E acrescentava: "o principal interesse da vida e do trabalho é que eles te permitem tornar-se alguém diferente do que eras a princípio."

Talvez encontremos sentido em parar para pensar sobre esse interesse principal da vida e do trabalho – tornar-se alguém diferente. Quem sabe valha a pena descobrir um Jacotot que nos ajude a encontrar a ausência de nosso pensamento. Um Jacotot que nos ajude a pensar que, de tanto nos encontrarmos sem palavras, de tanto quase não poder falar, de tanto vazio em nossas palavras, de tão analfabetos que estamos de liberdade, de igualdade e de pensamento, ficamos sem poder ser de outro modo. E, nesse vazio que estamos sendo, quem sabe, poderemos voltar a falar a linguagem de outra educação e outra política.

Gadamer dizia que levar uma palavra à boca não era usar uma ferramenta, mas "situar-se em uma direção de pensamento que vem de longe e nos supera". Pronunciar uma palavra é situar-se nos rastros que traz e nos caminhos que abre. Na interseção entre educação e política, as palavras "igualdade" e "liberdade" vêm de longe. Estão tão trivializadas em nós que, quando as pronunciamos, quase todos se põem de acordo. Poderíamos seguir levando-as à boca? Seríamos capazes de lançá-las em direção ao porvir, situando-nos com elas em uma direção em que elas ainda se possam fazer lugar de desacordo? Conseguiríamos arrancá-las do clichê? Ser-nos-ia concedido escrever (pensar, educar) de uma maneira política, que tenha a ver com nós outros, com os nossos outros nós?

Nota.

Recebido e aprovado em fevereiro de 2003

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    . Desta edição são tomadas todas as citações presentes nos textos que compõem o conjunto de artigos: RANCIÈRE, Jacques.
    O mestre ignorante. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. (Série "Educação: experiência e sentido").
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    Tradução de Lílian do Valle.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Jun 2003
    • Data do Fascículo
      Abr 2003
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