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O paciente queimado e a adesão ao tratamento: análise funcional de caso

Born patient and treatment compliance: functional analysis of a case

Resumos

O presente estudo teve por objetivo descrever as variáveis que levaram o sujeito a abandonar o tratamento de reabilitação. Teve também como objetivo a introdução de variáveis que permitissem o retomo ao tratamento. Este trabalho foi um estudo de caso de uma criança queimada, de doze anos de idade, sexo masculino, nível sócio-econômico baixo, que recebeu preparação para realização de cirurgias. Foram realizadas seis sessões psicoterápicas de 50 minutos cada. Os resultados apontaram a importância das intervenções psicológicas para possibilitar a adesão do sujeito ao tratamento. O sucesso da intervenção tomou possível o retomo e a realização do tratamento cirúrgico

paciente queimado; adesão; análise funcional


The present study aimed at describing the variables that lead to abandon rehabilitation treatment. It has as objective also the introduction the variables to enable the patient to return to treatment. This case study deals with a twelve-years-old mal e child of low social extraction and income, who had suffered bums and who received psychological treatment preparing for surgeries. Six psychotherapy sessions were conducted for 50 minutes each. The results pointed the importance of psychological intervention improving patient compliance. The successful intervention enable the patient to return and undergo plastic surgery treatment.

bum patient; compliance; functional analysis


COMUNICAÇÃO

O paciente queimado e a adesão ao tratamento: análise funcional de caso

Born patient and treatment compliance: functional analysis of a case

Maria Carolina Lizarelli Bento RezendeI; Silvia Regina Teixeira Pinto de AlbuquerqueII; Vera Lúcia Adami Raposo do AmaralIII

IMestre em Psicologia Clínica da Puc-Campinas e Psicóloga do Instituto de Cirurgia Plástica Crânio facial da SOBRAPAR

IIMestre em Psicologia Clínica pela Puc-Campinas

IIIProfessora do Curso de Pós-Graduação da Puc-Campinas. Chefe do Setor de Psicologia do Instituto de Cirurgia Plástica Craniofacial SOBRAPAR

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Av. Adolfo Lutz, 100. Cidade Universitária. Barão Geraldo. Campinas-SP. CEP 13084-880 Fone: (19) 3289-4465.

RESUMO

O presente estudo teve por objetivo descrever as variáveis que levaram o sujeito a abandonar o tratamento de reabilitação. Teve também como objetivo a introdução de variáveis que permitissem o retomo ao tratamento. Este trabalho foi um estudo de caso de uma criança queimada, de doze anos de idade, sexo masculino, nível sócio-econômico baixo, que recebeu preparação para realização de cirurgias. Foram realizadas seis sessões psicoterápicas de 50 minutos cada. Os resultados apontaram a importância das intervenções psicológicas para possibilitar a adesão do sujeito ao tratamento. O sucesso da intervenção tomou possível o retomo e a realização do tratamento cirúrgico. Palavras-chaves: paciente queimado, adesão, análise funcional.

ABSTRACT

The present study aimed at describing the variables that lead to abandon rehabilitation treatment. It has as objective also the introduction the variables to enable the patient to return to treatment. This case study deals with a twelve-years-old mal e child of low social extraction and income, who had suffered bums and who received psychological treatment preparing for surgeries. Six psychotherapy sessions were conducted for 50 minutes each. The results pointed the importance of psychological intervention improving patient compliance. The successful intervention enable the patient to return and undergo plastic surgery treatment.

Keywords: bum patient, compliance, functional analysis.

Introdução

A queimadura consiste em uma lesão térmica causada pela aplicação de calor sobre o corpo. A extensão e a gravidade dependem do tempo de exposição e da intensidade do calor (Russo, 1960 apud Lopes, 1996).

A falta de conhecimento do perigo e a curiosidade podem aproximar crianças de locais ou objetos perigosos que podem causar queimaduras.

As conseqüências físicas e psicológicas são desastrosas quando uma criança passa por um acidente traumático como uma queimadura. Segundo Amaral (1986), essas conseqüências podem estar associadas com um período longo de hospitalização, bem como procedimentos médicos aversivos, dores, desfiguramento, podendo chegar até a morte.

Além disso, um acidente desse tipo pode levar o indivíduo ao isolamento social, uma vezque sua aparência é desagradável aos olhos dos outros, pois a pele deformada, enrugada, gera muitas vezes uma atitude de espanto e rejeição por parte da sociedade (Lopes, 1996).

Ao lidar com essas dificuldades físicas e psicológicas, a pessoa que se queimou ainda deverá, por um longo período de tempo, enfrentar o tratamento de reabilitação da queimadura. O tratamento de um queimado é um processo dolorido e demorado, no qual o indivíduo tem que se submeter a vários procedimentos cirúrgicos. A grande aversividade e os poucos resultados cirúrgicos obtidos, que caracterizam este tratamento, podem levá-lo à descontinuidade do mesmo.

Kroll, Barlow e Shaw (1999) relataram que o abandono do tratamento pode ser entendido como uma completa recusa à intervenção terapêutica ou pode-se caracterizar por interrupções irregulares no cumprimento do tratamento.

As variáveis que contribuem para o abandono do tratamento, segundo Haynes (1976), podem ser categorizadas da seguinte forma: características pessoais do paciente, características do tratamento, aspectos da doença, relacionamento entre os profissionais e o paciente e o ambiente clínico.

Outro autor, Janis (1984), descreveu algumas razões pelas quais o paciente decide não aderir ao tratamento: incerteza sobre a eficácia do tratamento; experiência anterior com doenças e alterações na saúde do paciente; variáveis relacionadas à própria doença, aos profissionais e ao tratamento; experiências passadas com outros profissionais; dificuldades financeiras para o prosseguimento do tratamento; pessimismo com relação ao efeito do tratamento; desejo de manter o controle da própria vida; e impaciência com o nível do progresso do tratamento.

A combinação dessas variáveis com a aversividade do tratamento de um queimado pode, facilmente, levá-lo à desistência. Desta forma, é de grande importância que profissionais estejam atentos às variáveis que permeiam essa desistência.

A intervenção do psicólogo, nesses casos, pode ser de grande valia. Esse profissional deve realizar uma análise funcional do comportamento, para compreender as variáveis que estão controlando o comportamento de não mais freqüentar o hospital para dar continuidade ao tratamento. Segundo Delitti (1997, p. 38),

"a identificação das variáveis e explicitação das contingências que controlam o comportamento permitem que sejam levantadas hipóteses acerca da aquisição e manutenção dos comportamentos considerados problemáticos".

Torós (1997) afirmou que é necessário que se compreenda porque o indivíduo, dentro de determinadas circunstâncias, comporta-se daquela maneira e porque esse comportamento se mantém.

Por fim, é importante que seja realizada a análise funcional, para compreensão das contingências que estão controlando o comportamento de desistência do tratamento e, assim, poder modificá-Ias.

Sobre esse enfoque teórico, desenvolveu-se a presente pesquisa com o objetivo de descrever as variáveis que levaram um indivíduo queimado a deixar de freqüentar o hospital, e, assim, abandonar o tratamento, e alterar as contingências para que ele pudesse retomar ao seu tratamento.

Método

Sujeito

Este trabalho foi um estudo de caso de uma criança de 12 anos de idade, sexo-masculino, nível sócio-econômico baixo, cujo diagnóstico médico foi seqüela de queimadura.

A queimadura, neste caso, foi resultado do contato com fogo.

O sujeito abandonou o tratamento por dois anos.

Material

Os instrumentos utilizados foram:

Entrevista comportamental: este instrumento teve por objetivo obter o maior número de dados a respeito das experiências passadas e atuais do sujeito.

Técnica de relaxamento de Jacobson: esta técnica visou a diminuição do grau de ansiedade do sujeito frente à situação de cirurgia.

Jogo "cara a cara": este jogo teve o objetivo de minimizar o grau de ansiedade do sujeito ao final das sessões.

Procedimento

Foram realizadas 6 sessões psicoterápicas de 50 minutos cada.

O paciente retomou ao local onde realizava o tratamento devido a uma solicitação por parte do Setor de Psicologia, que estava fazendo uma pesquisa sobre adesão e abandono do tratamento, sem correlação direta com a reabilitação desse sujeito. Aproveitando a oportunidade de sua presença, a psicóloga sugeriu o retomo ao tratamento, propondo uma preparação para a cirurgia.

Descrição das sessões:

Sessão 1: estabelecimento do "rapport" e início da entrevista comportamental (levantamento de dados da história de vida e relacionamento familiar).

Sessão 2: finalização da entrevista comporta-mental (levantamento dos fatos que ocasionaram o abandono do tratamento). Ao final da sessão, psicóloga e sujeito jogaram "Cara a Cara" para minimizar a ansiedade do paciente frente aos assuntos abordados.

Sessão 3: discussão dos sentimentos e pensamentos do sujeito sobre a realização da cirurgia e outros procedimentos necessários ao tratamento, tais como uso de malha compressiva e expansor. Ao final da sessão, novamente houve a atividade lúdica com o jogo "cara a cara".

Sessão 4: realização do Relaxamento Progressivo de Jacobson.

Sessão 5: discussão da possibilidade da realização da cirurgia e descrição mais realística dos possíveis riscos e sucessos. Ao final da sessão, jogo "Cara a Cara".

Sessão 6: discussão sobre a cirurgia, recordando as técnicas e as informações discutidas; em seguida foi feito o agendamento da data da cirurgia.

Resultados e discussão

Dados pessoais: J., 12 anos de idade, nível sócio-econômico baixo, irmão mais velho de duas irmãs, estava cursando a 6a série do Ensino Fundamental.

Tipo de deformidade: Seqüela de queimadura

Queixa principal: Medo de se submeter às intervenções cirúrgicas.

História familiar: A família do sujeito consiste em seu pai, sua mãe e duas irmãs (sete e dois anos) e um tio materno com dezenove anos de idade. O pai e o tio trabalham com pastilhas de carro. A mãe não trabalha fora.

Os pais estão separados há seis meses. A mãe sofre de depressão. Este quadro instalou-se logo após a primeira cirurgia do filho, e agravou-se depois da separação do marido. Em virtude desses fatos, a mãe esteve internada num hospital psiquiátrico. Durante esse período, as crianças ficaram sob os cuidados do pai e da avó. A avó é uma pessoa dedicada, que aparenta dar muito carinho aos netos. Atualmente, a mãe não se encontra mais hospitalizada. Dessa maneira, mãe e filhos retomaram para casa. O sujeito tem encontros esporádicos com o pai.

História de Vida: Quando tinha 5 anos, J. sofreu um acidente com álcool. Estava perto de sua mãe, quando o acidente aconteceu. O pai a culpa pelo acidente e ela não se conforma de não ter conseguido evitar. A queimadura atingiu o rosto, o pescoço, o tórax e as pernas.

Quando estava com 6 anos de idade, iniciou o tratamento de reabilitação de queimadura. Em sua última cirurgia, teve uma complicação (hemorragia) que fez com que ele passasse a evitar as situações cirúrgicas e culminou com o abandono do tratamento por dois anos. Ao ser chamado para ser entrevistado por ocasião de uma coleta de dados sobre adesão e abandono do tratamento, o sujeito retomou ao Instituto. Após o primeiro retomo, deu-se início às sessões de manejo de contingências com o objetivo de fazê-Io engajar-se novamente no tratamento cirúrgico.

Quanto aos seus relacionamentos, ele se descrevia como tendo muitos amigos, na vizinhança e na escola. Com relação aos seus principais reforçadores, o sujeito mencionou andar de bicicleta, jogar futebol, carros e desmontar aparelhos eletrônicos.

Análise funcional dos comportamentos do paciente:

Diagnóstico

O sujeito não comparecia ao hospital, nem quando solicitado. Numa primeira análise dessa situação pode-se afirmar que a freqüência do comportamento de vir ao hospital era zero.

Em função das complicações passadas em sua última cirurgia, o sujeito relatou situações (submeter-se às sessões de radiografia, anestesia geral, tirar pontos, tirar a sonda e andar de cadeira de rodas) que ocasionaram respostas autonômicas do tipo sentir ânsia, tontura, vertigens e dificuldade de respirar. Essas situações, por estarem associadas com repostas autonômicas aversivas, tomaram-se também aversivas, levando, então, o sujeito a se esquivar delas


Quadro 1 - Clique para ampliar

A cirurgia era um estímulo incondicionado que eliciava respostas de dor. Com o condicionamento do tipo respondente, o hospital, juntamente com as situações de radiografias, anestesia, tirar pontos, tirar sonda, tomaram-se estímulos condicionados, que passaram a eliciar reações autonômicas (enjôo, vertigem, fraqueza e dor de cabeça), semelhantes às eliciadas pelo estímulo incondicionado, gerando encobertos de medo e ansiedade.

Tendo-se um repertório condicionado classicamente, estabeleceu-se uma seqüência de comportamentos operantes.

Diante de estímulos discriminativos (aversivos), que são o Instituto e todas as situações aversivas que passou, o sujeito apresentava comportamentos encobertos de ansiedade e medo, que ele, então, respondia com esquiva. Como conseqüência ele evitava as situações aversivas (freqüentar o Instituto e se submeter a todos os procedimentos necessários para o tratamento), descrevendo uma contingência de reforçamento negativo.

Juntamente com a regra que ele desenvolveu: "Se eu for ao hospital, eu vou sofrer e sentir dor", que também passou a governar seu comportamento, houve uma generalização para qualquer aproximação ao hospital e qualquer intervenção pré-cirúrgica.

Estabeleceu-se ainda uma equivalência de estímulos, na qual o hospital, associado às palavras e imagens, tomou-se suficiente para gerar as mesmas respostas de esquiva ocasionadas pela presença efetiva do hospital.

Tratamento

A psicóloga convidou-o para voltar ao tratamento de reabilitação e participar de algumas sessões psicoterápicas.


Quadro 2 - Clique para ampliar

Ele concordou. Iniciou-se, então, um momento em que a psicóloga escutava o relato de seus medos e angústias de maneira acolhedora, com o objetivo de estabelecê-Ia com um estímulo reforçador. Com o passar das sessões, o terapeuta foi-se transformando em um estímulo reforçador condicionado para o paciente.

Verificou-se, então, um aumento na freqüência do paciente em comparecer ao hospital. O terapeuta reforçou esses comportamentos de vinda.

No decorrer das sessões, o terapeuta extinguiu a regra semi-falsa que controlava seu comportamento, passando uma regra mais realística - que é uma descrição da contingência real - "Complicações podem ocorrer, e havendo uma, não necessariamente pode acontecer outra; os médicos redobrarão os cuidados". O terapeuta discutiu as condições reais de uma nova cirurgia e ensinou um relaxamento que poderia produzir respostas incompatíveis com o medo e a ansiedade.

O relaxamento foi um contra condicionamento que já tinha força suficiente para gerar respostas incompatíveis com esses encobertos e permitiu que ele se submetesse a uma nova intervenção cirúrgica (Wolpe, 1958)

O paciente se expôs a uma nova cirurgia com a presença do terapeuta na sala.

Ao se expor a uma condição positiva (sucesso da cirurgia), ainda amedrontado, grande parte do comportamento encoberto de medo é eliminado. O comportamento de se expor à cirurgia é reforçado pelas conseqüências (ficar melhor, recuperar-se das seqüelas da queimadura). A partir desse momento, a presença da psicóloga não é mais necessária, pois o comportamento de se submeter à cirurgia passa a ser controlado pelas suas próprias conseqüências, assim como recuperar-se das marcas deformantes da queimadura.

Conclusão

A realização deste trabalho permitiu verificar a importância de uma intervenção psicológica baseada na Análise Funcional do Comportamento. Este modelo é extremamente útil e se mostra muito efetivo, principalmente quando se parte de uma análise funcional diagnóstica, que permite uma compreensão adequada das variáveis particulares que controlam o comportamento de um sujeito especificamente, possibilitando, assim, manipular essas variáveis e alterar as contingências que mantêm o repertório do sujeito.

  • Amaral, V. L. A. R. (1986). Vivendo com uma face atípica: Influência da deformidade facial, no auto e hetero-conceitos e na realização acadêmica de crianças entre 6 e 12 anos Tese de Doutorado. USP.
  • Delitti, M. (1997). Análise funcional: O comportamento do cliente como foco da análise funcional, In: M. Delitti,Sobre comportamento e cognição, 2, 37-44.
  • Haynes, R.B. (1976). Strategies for improving compliance: A methodological analysis and review. In: D.C. Sackett & Haynes (eds.), Compliance with therapeutic regimens Baltimore: Johns Hopkins, University Press.
  • Janis, I.L. (1984). Factors atIecting adherence , In: D. Meinchbaum & D. Turk, Faciliting treatmente adherence Plenum Press, New York.
  • Kroll, T., Barlow, J. H. & Shaw, K. (1999). Treatment adherenceinjuvenile rheumatoid arthritis-A Review. Second J Rheumatoid, 28, 10-18.
  • Lopes, A C.P. (1996)Estratégias de enfrentamento a estímulos aversivos em paciente queimados, Tese de Mestrado. PUC-Campinas.
  • Torós, D. (1997). O que é diagnóstico comporta-mental. In: M. Delitti, Sobre comportamento e cognição, 2, 98-103.
  • Wolpe, J. (1958).Psychoterapy byreciprocal inhibition. Stanford: Stanford University Press.
  • Endereço para correspondência:

    Av. Adolfo Lutz, 100.
    Cidade Universitária.
    Barão Geraldo.
    Campinas-SP.
    CEP 13084-880
    Fone: (19) 3289-4465.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jul 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2001
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