RESUMO
Este estudo teve como objetivo investigar a relação entre parâmetros do sistema respiratório e marcadores clínicos em indivíduos com fibrose cística (FC), bem como comparar indivíduos com parâmetros oscilométricos alterados àqueles com valores dentro da faixa de normalidade. Trata-se de um estudo analítico transversal com crianças e adolescentes com FC. Foram coletados dados antropométricos, de gravidade da doença, colonização bacteriana, mutações genéticas e parâmetros obtidos por oscilometria de impulso (IOS) e espirometria. Foram realizadas 115 avaliações. Identificou-se correlação entre os parâmetros do sistema respiratório e a associação da resistência total das vias aéreas (R5) e da reatância a 5 Hz (X5) com mutações genéticas, percentis de IMC e gravidade da doença. Diferenças significativas foram observadas entre os grupos com X5 típico e X5 alterado (VEF1% e FEF25-75%, p<0,001) e entre os grupos com R5 típico e R5 alterado (VEF1% e FEF25-75%, p<0,001). A altura, o VEF1 (L) e o FEF25-75% (L) explicaram 69,2% das variações em X5 (kPa), enquanto a altura e o VEF1 (L) juntos explicaram 68,2% das variações em R5. Conclusão: Este estudo verificou a relação entre os parâmetros espirométricos e oscilométricos, e identificou que R5 e X5 estão associados à mutação genética, ao percentil de IMC e à gravidade da doença. A espirometria de rotina e a avaliação do peso e da altura são essenciais no manejo da doença pulmonar.
Palavras-chave
Adolescente; Fibrose Cística; Marcadores Clínicos; Criança; Função Pulmonar; Mecânica Respiratória
ABSTRACT
This study aimed to investigate the relationship between respiratory system parameters and clinical markers in individuals with cystic fibrosis (CF), as well as to compare individuals with altered oscillometric parameters to those with values within normal range. This cross-sectional analytical study involved children and adolescents with CF. Data collected included anthropometric measurements, disease severity, bacterial colonization, genetic mutations, and parameters from impulse oscillometry (IOS) and spirometry. A total of 115 evaluations were conducted. Correlation was found between respiratory system parameters and the association of total airway resistance (R5) and 5 Hz reactance (X5) with genetic mutations, BMI percentiles, and disease severity. Significant differences were observed between the TypicalX5 and AlteredX5 groups (FEV1% and FEF25-75%, p<0.001) and the TypicalR5 and AlteredR5 groups (FEV1% and FEF25-75%, p<0.001). Height, FEV1 (L), and FEF25-75% (L) explained 69.2% of variations in X5 (kPa), while height and FEV1 (L) together explained 68.2% of variations in R5. Conclusion: This study verified the relationship between spirometric and oscillometric parameters, and found that R5 and X5 are linked to genetic mutation, BMI percentile, and disease severity. Routine spirometry, as well as weight and height assessment, are essential in the management of lung disease.
Keywords
Adolescent; Cystic Fibrosis; Clinical Markers; Child; Pulmonary Function; Respiratory Mechanics
RESUMEN
Este estudio tuvo como objetivo analizar la relación entre los parámetros del sistema respiratorio y los marcadores clínicos en individuos con fibrosis quística (FQ), así como comparar los individuos con parámetros oscilométricos alterados con aquellos con valores dentro del rango normal. Se trata de un estudio analítico transversal realizado con niños y adolescentes con FQ. Se recogieron datos antropométricos, sobre la gravedad de la enfermedad, la colonización bacteriana, las mutaciones genéticas y los parámetros obtenidos por oscilometría de impulso (IOS) y espirometría. Se realizaron 115 evaluaciones. Se identificó una correlación entre los parámetros del sistema respiratorio y la asociación de la resistencia total de las vías respiratorias (R5) y la reactancia a 5 Hz (X5) con mutaciones genéticas, percentiles del IMC y gravedad de la enfermedad. Se encontraron diferencias significativas entre los grupos con X5 típico y X5 alterado (VEF1% y FEF25-75%, p<0,001) y entre los grupos con R5 típico y R5 alterado (VEF1% y FEF25-75%, p<0,001). La altura, el VEF1 (L) y el FEF25-75% (L) explican el 69,2% de las variaciones en X5 (kPa), mientras que la altura y el VEF1 (L) juntos ilustran el 68,2% de las variaciones en R5. Este estudio verificó la relación entre los parámetros espirométricos y oscilométricos, e identificó que R5 y X5 están asociados con la mutación genética, con el percentil del IMC y con la gravedad de la enfermedad. La espirometría de rutina, así como la evaluación del peso y la altura, son esenciales en el tratamiento de la enfermedad pulmonar.
Palabras clave
Adolescente; Fibrosis Quística; Marcadores Clínicos; Niño; Función Pulmonar; Mecánica Respiratoria
INTRODUÇÃO
A fibrose cística (FC) é uma doença genética autossômica recessiva que afeta múltiplos órgãos1. Dada sua natureza progressiva, o acompanhamento rigoroso das manifestações clínicas após o diagnóstico é essencial2. Em indivíduos com FC, a gravidade da doença é um marcador importante, associado a diferentes classes de mutações genéticas que contribuem para a variabilidade clínica e podem acelerar o aparecimento dos sintomas3),(4. Da mesma forma, o estado nutricional e a colonização por patógenos estão diretamente relacionados à progressão da doença pulmonar - um marcador clínico relevante para essa população5),(6.
Embora a FC seja uma doença multissistêmica, o comprometimento respiratório é a principal causa de morbimortalidade nos indivíduos acometidos. Portanto, o monitoramento de diferentes parâmetros do sistema respiratório é essencial para o manejo da doença1. Nesse sentido, recomenda-se que a avaliação da função pulmonar por meio da espirometria seja iniciada ainda na infância para indivíduos com FC. Dentre os parâmetros espirométricos, o volume expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1) é considerado um dos principais indicadores. O VEF1 é empregado para monitorar o prognóstico da doença, detectar precocemente exacerbações pulmonares agudas, orientar decisões quanto ao transplante pulmonar e avaliar a resposta ao tratamento2.
Além da espirometria, o sistema de oscilometria de impulso (IOS) oferece uma avaliação complementar do sistema respiratório. Embora seja menos utilizado do que a espirometria, o IOS tem se mostrado um método relevante para a análise das propriedades mecânicas pulmonares, sendo utilizado rotineiramente em importantes centros de referência em FC6. No contexto da FC, o IOS tem sido cada vez mais empregado para a detecção precoce de alterações nas vias aéreas. Esse método permite discriminar as propriedades resistivas das vias aéreas proximais e distais. Trata-se de um procedimento rápido e seguro que requer apenas respiração tidal, o que facilita sua aplicação em crianças, já que não depende de manobras forçadas nem de comandos verbais vigorosos7.
Estudos anteriores demonstraram associação entre marcadores clínicos na FC e a redução do VEF1 na espirometria3)-(5. No entanto, a relação entre esses marcadores e os parâmetros do IOS ainda é pouco explorada, apesar de o IOS ser considerado uma ferramenta complementar aos testes tradicionais de função pulmonar. Diante disso, o objetivo deste estudo foi investigar a relação entre os parâmetros do sistema respiratório e marcadores clínicos em indivíduos com FC, bem como comparar indivíduos com parâmetros oscilométricos alterados àqueles com valores dentro da faixa de normalidade.
METODOLOGIA
Um estudo analítico de corte transversal foi realizado no centro de referência em fibrose cística (FC) do Hospital Infantil Joana de Gusmão - Florianópolis, Santa Catarina. Foram incluídas avaliações dos parâmetros do sistema respiratório de crianças e adolescentes com FC, com idades entre cinco e 15 anos e diagnóstico confirmado conforme as Diretrizes Brasileiras de Diagnóstico e Tratamento da Fibrose Cística2. Os participantes foram selecionados por amostragem não probabilística por conveniência. Foram consideradas as avaliações realizadas de maio de 2017 a maio de 2018. Foram excluídos da amostra indivíduos que não conseguiram realizar algum dos procedimentos de avaliação e que apresentavam exacerbação pulmonar no momento da coleta.
Foram obtidos dados antropométricos de massa corporal e altura, seguidos do cálculo do índice de massa corporal (IMC) e dos percentis de IMC8. A estabilidade clínica foi verificada por meio do Cystic Fibrosis Clinical Score (CFCS) (9 e do Cystic Fibrosis Foundation Score (CFFS) (10. O CFCS inclui cinco sintomas comuns e cinco achados físicos; uma pontuação final igual ou superior a 25 indica exacerbação pulmonar9, assim como a presença de quatro ou mais sinais e sintomas no CFFS10. A gravidade da doença foi determinada por meio do escore de Shwachman-Doershuk (SDS) (11, aplicado por um especialista do centro de referência. Os dados sobre colonização bacteriana e mutação genética foram obtidos dos prontuários médicos.
Para avaliação dos parâmetros do sistema respiratório, a função pulmonar foi analisada por meio de espirometria (Master Screen IOS, Jaeger®), conforme as diretrizes da American Thoracic Society (ATS) (12. A mecânica respiratória foi monitorada por meio da oscilometria de impulso (IOS) (Master Screen IOS, Jaeger®), também de acordo com as recomendações da ATS13. Os parâmetros espirométricos analisados foram o volume expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1) e o fluxo expiratório forçado entre 25% e 75% da capacidade vital forçada (FEF25-75%), expressos em valores absolutos e em percentuais dos valores previstos, conforme Polgar et al. (14 e Knudson et al. (15. Os parâmetros oscilométricos analisados foram: impedância a 5 Hz (Z5), resistência total das vias aéreas (R5), resistência central das vias aéreas (R20), reatância a 5 Hz (X5), frequência de ressonância (Fres) e área de reatância (AX), todos apresentados em valores absolutos e em percentuais dos valores previstos, de acordo com as equações de referência propostas por Assumpção et al. (16 para crianças brasileiras.
Para a análise dos dados de IOS, os indivíduos foram divididos em grupos com valores típicos de X5 (TípicoX5) e R5 (TípicoR5), e em grupos com valores alterados (AlteradoX5 e AlteradoR5). Valores de X5 e R5 iguais ou superiores a 150% dos valores previstos foram considerados alterados17.
Todas as análises estatísticas foram realizadas no software IBM SPSS® 20.0, com nível de significância estatística estabelecido em p<0,05. A normalidade dos dados foi verificada pelo teste de Kolmogorov-Smirnov. O teste U de Mann-Whitney foi utilizado para comparar as diferenças entre os grupos TípicoX5 e AlteradoX5, bem como entre TípicoR5 e AlteradoR5. A correlação de Spearman foi aplicada para analisar associações entre o SDS, os parâmetros do sistema respiratório, idade e medidas antropométricas. Foram realizadas análises de regressão linear simples (RLS) e regressão linear múltipla (RLM) para determinar a influência das variáveis preditoras - massa corporal, altura, idade, SDS, VEF1 e FEF25-75% (valores absolutos) - sobre as variáveis dependentes R5 e X5 (também em valores absolutos). Inicialmente, identificaram-se os outliers nas variáveis dependentes e preditoras. Em seguida, analisou-se o ajuste das variáveis dependentes à distribuição normal, havendo a necessidade de transformação logarítmica (base 10) para R5 e transformação exponencial para X5. O coeficiente de correlação de Pearson foi aplicado entre as variáveis dependentes transformadas e as variáveis preditoras, seguido do desenvolvimento dos modelos de RLS e, posteriormente, de RLM. Utilizou-se o método stepwise de seleção. A probabilidade de inclusão de uma variável preditora no modelo foi p≤0,05, e a de exclusão, p≥0,10. Para avaliar o ajuste do modelo, foi realizada análise dos resíduos, que apresentou média zero e distribuição normal. O melhor modelo foi escolhido com base no coeficiente de determinação ajustado (R2 ajustado) e no referencial teórico adotado pelos autores.
RESULTADOS
Ao todo, foram realizadas 118 avaliações; no entanto, três foram excluídas por falta de acesso dos pesquisadores aos prontuários médicos, o que impossibilitou a coleta de dados. De acordo com os critérios de estabilidade clínica, 25 avaliações foram excluídas devido à presença de exacerbações pulmonares. Assim, este estudo incluiu 115 avaliações de crianças com FC, com média de idade de 9,84±2,80 anos e média de IMC de 16,29±2,35 kg/m2.
Das avaliações realizadas, 54,8% foram de meninas, 75,7% de indivíduos colonizados por bactérias, 82,6% apresentavam pelo menos um alelo com a mutação ∆F508, e 83,5% foram classificados como tendo gravidade de excelente a boa de acordo com o escore de Shwachman-Doershuk (SDS). Nenhum paciente apresentou pontuação igual ou inferior a 40, considerada gravidade severa segundo o SDS.
A Tabela 1 apresenta as médias e os desvios padrão dos parâmetros de VEF11, FEF25-75%, Z5, R5, R20, X5, Fres e AX, tanto em valores absolutos quanto em percentuais dos valores previstos. Foram observadas alterações nos valores percentuais previstosde VEF1, FEF25-75%, Z5, X5 e AX. Cerca de 40% da amostra apresentou valores de VEF1 maiores ou iguais a 80% do previsto e, entre esses, 43% apresentaram FEF25-75% abaixo de 70% do valor previsto.
A análise de correlação mostrou uma associação fraca entre massa corporal, altura e idade com o X5 expresso em percentual do previsto. Os valores de VEF1% e FEF25-75% apresentaram correlações moderadas a fortes com todos os parâmetros oscilométricos expressos em percentuais dos valores previstos. A gravidade da doença, avaliada pelo SDS, apresentou correlação com todos os parâmetros oscilométricos, exceto com R20%.
O grupo TípicoX5 incluiu 43 avaliações, com média de VEF1 de 91,16±18,40% e FEF25-75% de 77,02±34,18%. O grupo AlteradoX5 foi composto por 72 avaliações, com médias mais baixas de VEF1 (58,80±23,66%) e FEF25-75% (37,77±26,60%) em comparação ao grupo TípicoX5 (p<0,001). A comparação entre os grupos também indicou diferença significativa nos escores do SDS (p<0,001): a média do grupo TípicoX5 foi de 91,28±8,87 pontos e a do grupo AlteradoX5, de 82,99±14,62 pontos.
O grupo TípicoR5 foi composto por 96 avaliações, com média de VEF1 de 75,81±23,88% e FEF25-75% de 57,64±35,05%. O grupo AlteradoR5 incluiu 19 avaliações, com média de VEF1 de 46,06±27,81% e FEF25-75% de 26,21±21,63%. O grupo TípicoR5 apresentou valores superiores em comparação ao grupo AlteradoR5.
A Tabela 2 apresenta os resultados das análises de regressão linear simples (RLS) e múltipla (RLM) para a variável R5. O escore SDS não apresentou correlação significativa com a variável R5 transformada, por isso não foi incluído nos modelos de regressão. A altura e o VEF1 juntos explicaram 68,2% da variação de R5. Assim, para cada aumento de 1 cm na altura, estima-se uma redução de 0,334 kPa/L/s em R5, e para cada aumento de 1 L em VEF1, espera-se uma redução de 0,154 kPa/L/s em R5.
A Tabela 3 mostra os resultados das análises de RLS e RLM para a variável X5. A idade não apresentou correlação significativa com a variável X5 transformada e, por isso, não foi incluída nos modelos de regressão. As variáveis preditoras - altura, VEF1 e FEF25-75% - explicaram juntas 69,2% da variação de X5. Assim, para cada aumento de 1 cm na altura, estima-se uma redução de 0,338 kPa/L/s em X5; para cada aumento de 1 L em VEF1, um aumento de 0,433 kPa/L/s em X5; e, para cada aumento de 1 L/s em FEF25-75%, um aumento de 0,076 kPa/L/s em X5.
DISCUSSÃO
Este estudo apresenta achados sobre a relação entre marcadores clínicos e parâmetros do sistema respiratório, aspecto relevante nos estudos da fibrose cística (FC). Sua originalidade reside na apresentação de dados sobre a interação entre essas variáveis. Até onde sabemos, este é o primeiro estudo a demonstrar uma associação entre parâmetros oscilométricos e espirométricos em indivíduos com FC.
Em relação à análise de regressão linear, as variáveis de massa corporal, idade e escore SDS não se mostraram relevantes para predizer os parâmetros R5 e X5, uma vez que não foram incluídos no modelo de regressão. No entanto, altura e VEF1 foram associados a ambos os parâmetros oscilométricos (R5 e X5), indicando que prejuízos na função espirométrica levam ao agravamento de R5 e X5. Além disso, o FEF25-75% foi incluído no modelo de regressão para X5 e, como ambos os parâmetros refletem a função das pequenas vias aéreas, esse resultado sustenta o uso da oscilometria de impulso (IOS) como ferramenta complementar à espirometria na avaliação da função pulmonar18),(19. Essa análise ainda não havia sido realizada em outros estudos que correlacionaram IOS e espirometria, o que incentiva novas investigações e reforça a importância do monitoramento rotineiro da função pulmonar por meio da espirometria e, com base nesses achados, da interpretação das possíveis repercussões sobre a resistência e a reatância das vias aéreas.
Alguns estudos avaliaram a correlação entre parâmetros oscilométricos e espirométricos, com resultados conflitantes18),(20. Moreau et al. observaram uma fraca correlação positiva entre X5 e índices espirométricos em 30 indivíduos com FC, com idades entre 4 e 19 anos20. De forma semelhante, Raj et al. (18 avaliaram 39 indivíduos com FC (34 crianças e 5 adultos) e não encontraram correlação significativa entre X5 e nenhum parâmetro espirométrico. Ambos os estudos apresentaram amostras pequenas e incluíram participantes com ampla faixa etária.
Na espirometria, o VEF1 tende a se manter dentro da faixa de normalidade na maioria dos indivíduos jovens. Consequentemente, sua sensibilidade para detectar obstrução das vias aéreas em comparação com FEF75 e FEF25-75% tem sido tema de discussão21. Isso se deve ao fato de que alterações no FEF25-75% ocorrem de forma precoce, destacando-se como parâmetro capaz de detectar alterações mesmo em indivíduos assintomáticos21. Esses achados são corroborados por König et al., (22 que analisaram 3.169 espirometrias de indivíduos com FC. Os autores observaram que, entre os testes com VEF1 acima de 80% do previsto, cerca de 58% apresentaram alterações no FEF75, 31% no FEF25-75% e 72% na razão VEF1/capacidade vital forçada (CVF). Reforçando os achados de König et al., (22 este estudo mostrou que, entre os indivíduos com VEF1 acima de 80% do previsto, 43% apresentaram FEF25-75% abaixo de 70% do previsto, indicando comprometimento evidente das pequenas vias aéreas. Embora classificados como de baixa gravidade segundo o SDS, a alteração no FEF25-75%, combinada com valores elevados de X5 na maioria das crianças, reforça o comprometimento precoce das vias aéreas periféricas.
A FC é caracterizada pelo acometimento precoce das pequenas vias aéreas, o que leva ao aumento da tensão superficial, alteração da espessura da parede brônquica e redução do tônus da musculatura lisa, entre outras alterações23. O X5 reflete o recuo elástico pulmonar e é alterado em doenças obstrutivas e das vias aéreas periféricas, como a FC19,24. Outro parâmetro indicativo de comprometimento das vias aéreas periféricas é a resistência a 5 Hz (R5), que representa a resistência total das vias aéreas. Sakarya et al. (19 observaram aumento dos valores de R5 e R20 em indivíduos com FC em comparação com indivíduos saudáveis, sendo o aumento mais evidente em R5 do que em R20. Segundo os autores, esse achado demonstra obstrução das vias aéreas periféricas na FC, e não das vias aéreas centrais (R20). Esse achado também foi verificado neste estudo, no qual os valores de R5 foram numericamente superiores aos de R20, embora a diferença não tenha sido estatisticamente significativa. No entanto, um achado relevante desta investigação, não abordado por Sakarya et al., (19 foi o parâmetro X5, cujo comprometimento permitiu o desenvolvimento de uma equação incluindo variáveis antropométricas e espirométricas, assim como ocorreu com o R5.
Ao comparar os grupos TípicoR5 e AlteradoR5, observaram-se diferenças nos valores de VEF1 e FEF25-75%, sendo que o segundo grupo apresentou resultados espirométricos mais baixos. Padrão semelhante foi observado no grupo AlteradoX5. Isso sugere que indivíduos com valores espirométricos mais baixos apresentam alterações na mecânica respiratória, reforçando o potencial da IOS como instrumento sensível para detectar prejuízos na mecânica respiratória na FC e apoiando seu uso como complemento à espirometria18. Entretanto, uma limitação deste estudo foi o tamanho desigual das amostras dos subgrupos (AlteradoR5=19; TípicoR5=96), o que indica a necessidade de mais investigações. Embora este estudo tenha oferecido contribuições relevantes sobre a relação entre os parâmetros do sistema respiratório e marcadores clínicos em crianças com FC, seu delineamento retrospectivo deve ser reconhecido como uma limitação, sendo necessário considerá-lo ao interpretar os resultados e suas implicações.
Apesar disso, os valores de X5 e R5 (expressos em porcentagem dos valores previstos) mostraram associação com percentil de IMC, mutação genética e SDS, o que contribui para que as equipes de saúde compreendam a interação entre marcadores clínicos e os parâmetros da IOS. Com relação a esses marcadores, destaca-se especialmente o percentil de IMC, cuja associação com R5 e X5 em porcentagem dos valores previstos revelou que todos os indivíduos com percentil de IMC comprometido apresentaram valores de X5 acima da faixa prevista. Indivíduos com comprometimento nutricional e atraso no crescimento tendem a apresentar função pulmonar reduzida, o que pode impactar negativamente os parâmetros de mecânica respiratória25.
A maior gravidade e progressão da doença também estão associadas ao genótipo na FC, especialmente à mutação ∆F50826, presente na maior parte da amostra. Observou-se associação entre esse genótipo e os valores de R5 e X5 (em porcentagem do previsto), sendo que a maioria das crianças com alterações nesses parâmetros possuía ao menos um alelo ∆F508. Essa mutação é a mais comum na população do sul do Brasil e é classificada como do tipo II, estando associada a um fenótipo de doença mais grave26),(27, o que pode explicar as alterações na mecânica respiratória, especialmente em X5.
A gravidade da doença na amostra estudada foi classificada por meio do escore de Shwachman-Doershuk11, reconhecido por se correlacionar com a função pulmonar, especialmente com o VEF128. Observou-se uma relação negativa entre SDS e X5, sugerindo que indivíduos com doença menos grave tendem a apresentar menor alteração no recuo elástico pulmonar. Em relação à antropometria, os modelos de regressão para ambas as variáveis oscilométricas incluíram a altura como preditora de alterações na resistência e reatância das vias aéreas. O aumento da altura esteve associado à melhora nos valores de R5 e X5. Esse resultado era esperado, uma vez que crianças mais velhas tendem a apresentar maiores volumes pulmonares e menor resistência das vias aéreas29. Esses achados corroboram os resultados descritos por outros autores16),(30 e reforçam a importância da promoção do crescimento saudável em altura e peso entre crianças com FC.
CONCLUSÃO
Este estudo identificou uma relação entre os parâmetros do sistema respiratório e marcadores clínicos em crianças com fibrose cística (FC), incluindo IMC, mutação genética, colonização bacteriana e gravidade da doença. Foram encontradas associações entre parâmetros espirométricos e oscilométricos, especialmente R5 e X5, e variáveis clínicas como mutação genética, percentil de IMC e gravidade da doença. O modelo de regressão desenvolvido foi capaz de prever os valores de R5 e X5 com base em medidas espirométricas (VEF1 e FEF25-75%) e na altura das crianças. Esses achados reforçam a importância do monitoramento clínico na fibrose cística e a necessidade de considerar todos os fatores na avaliação dos indivíduos acometidos. A realização rotineira de espirometria, aliada à avaliação do peso e da altura, é essencial para o manejo da doença pulmonar nessa população.
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Estudo desenvolvido no Centro de Ciências da Saúde e do Esporte (CEFID) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e no Hospital Infantil Joana de Gusmão (HIJG) - Florianópolis (SC), Brasil.
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Fonte de financiamento:
Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
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Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado de Santa Catarina [Protocolo nº 80800217.4.0000.5361]. Editor responsável: Sônia LP Pacheco de Toledo
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
18 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
06 Ago 2024 -
Aceito
19 Out 2024
