Open-access Adiposidade, estresse e atividade física habitual são preditores da função executiva e desempenho em tarefas de memória em crianças e adolescentes obesos

RESUMO

A obesidade na infância e adolescência pode contribuir para atrasos no desenvolvimento cognitivo. Este estudo tem como objetivo avaliar preditores que influenciam as funções executivas e a memória em crianças e adolescentes obesos. Foi realizado um estudo transversal com crianças e adolescentes obesos (7-18 anos) (n=32). Foram avaliadas funções executivas; memória episódica; memória semântica; composição corporal; biomarcadores de inflamação; aptidão cardiorrespiratória; estresse; nível socioeconômico; e prática regular de exercícios físicos. Para análise dos dados, foi realizada regressão linear (modo Stepwise), com as variáveis com correlação significativa. Adiposidade (% gordura) e escore z do Índice de Massa Corporal (IMC) foram associados à pior memória episódica. Fluência verbal foi associada à gordura visceral. No teste da Torre de Hanói, as funções de planejamento e flexibilidade cognitiva foram associadas à gordura visceral, enquanto o número de movimentos foi associado à prática de esportes e exercícios físicos. A prática regular de exercícios físicos favoreceu o planejamento cognitivo de crianças e adolescentes obesos. O número de erros foi diretamente associado à pontuação da children stress scale. Concluindo, houve associação entre composição corporal, memória e funções executivas de flexibilidade cognitiva e controle inibitório. Funções executivas e memória em crianças e adolescentes podem estar associadas ao estresse e ao hábito de exercícios físicos regulares, independentemente da intensidade.

Descritores
Crianças; Adolescentes; Obesidade; Memória

ABSTRACT

Obesity during childhood and adolescence may delay cognitive development. This study aims to evaluate predictors that influence executive functions and memory in children and adolescents with obesity. A cross-sectional study was carried out with children and adolescents with obesity (aged 7–18 years) (n=32). Executive functions; episodic memory; semantic memory; body composition; inflammation biomarkers; cardiorespiratory fitness, stress, socioeconomic status, and regular physical exercise were assessed. A linear stepwise regression was performed with the variables with significant correlation. Adiposity (%fat) and BMI z-scores were associated with worse episodic memory. Verbal fluency was associated with visceral fat. At the tower of Hanoi test, planning and cognitive flexibility were associated with visceral fat, whereas the number of movements was associated with the practice of sports and physical exercise. Regular exercise favored the cognitive planning of children and adolescents with obesity. The number of errors was directly associated with the children stress scale score. In conclusion, body composition, memory, and the executive functions of cognitive flexibility and inhibitory control showed an association between each other. Executive functions and memory in children and adolescents might be associated with stress and regular physical exercise practice regardless of intensity.

Keywords
Children; Adolescents; Obesity; Memory

RESUMEN

La obesidad en la infancia y la adolescencia puede contribuir a retrasos en el desarrollo cognitivo. Este estudio tiene como objetivo evaluar los predictores que influyen en las funciones ejecutivas y en la memoria de niños y adolescentes obesos. Se realizó un estudio transversal con niños y adolescentes obesos (7-18 años) (n=32). Se evaluaron las funciones ejecutivas; la memoria episódica; la memoria semántica; la composición corporal; los biomarcadores de inflamación; la aptitud cardiorrespiratoria; el estrés; el nivel socioeconómico; y la práctica de ejercicio físico regular. Para el análisis de datos se realizó regresión lineal (modo Stepwise), con variables con correlación significativa. La adiposidad (% de grasa) y la puntuación z del Índice de Masa Corporal (IMC) se asociaron con una peor memoria episódica. La fluidez verbal se asoció con la grasa visceral. En la prueba de la Torre de Hanoi, las funciones de planificación y la flexibilidad cognitiva se asociaron con la grasa visceral, mientras que el número de movimientos se asoció con la práctica de deportes y de ejercicio físico. La práctica regular de ejercicios físicos favoreció la planificación cognitiva de niños y adolescentes obesos. El número de errores se asoció directamente con la puntuación de la escala de estrés infantil. Se pudo concluir que hubo una asociación entre la composición corporal, la memoria y las funciones ejecutivas de la flexibilidad cognitiva y del control inhibitorio. Las funciones ejecutivas y la memoria de niños y adolescentes pueden estar asociadas con el estrés y con la práctica de ejercicio físico regular, independientemente de la intensidad.

Palabras clave
Niños; Adolescentes; Obesidad; Memoria

INTRODUÇÃO

A obesidade representa um desafio significativo para a Saúde Coletiva devido ao aumento acentuado de sua prevalência global, afetando tanto adultos quanto crianças e adolescentes1. As taxas de prevalência geral de obesidade, sobrepeso e excesso de peso pediátrico totalizam 8,5, 14,8 e 22,2%, respectivamente. A obesidade apresenta variações regionais substanciais; a Polinésia possui a maior prevalência em todas as categorias, enquanto a África Central e Ocidental relatam as menores prevalências2. No Brasil, a prevalência de obesidade entre crianças e adolescentes aumentou dramaticamente nas últimas décadas. Nas crianças de cinco a nove anos, a prevalência de obesidade é ligeiramente maior nas meninas (9,2%) do que nos meninos (9,0%), enquanto para os adolescentes, os meninos têm uma prevalência maior (6,7%) do que as meninas (6,2%)3.

A obesidade na infância e adolescência pode levar ao desenvolvimento precoce de outras comorbidades, resultando em pior prognóstico de saúde para os indivíduos ao longo da vida4. Além disso, a obesidade juvenil pode contribuir para atrasos no desenvolvimento cognitivo e deficiências na função da memória5.

As funções executivas e a memória passam por refinamento e amadurecimento durante a primeira infância e adolescência, tornando esses períodos cruciais para o seu desenvolvimento adequado6. A obesidade durante a infância e adolescência induz alterações metabólicas, cerebrovasculares e estruturais no sistema nervoso central em desenvolvimento. Essas alterações progressivas podem impactar negativamente o desempenho da função executiva, retenção, consolidação e recuperação da memória5 , 7.

Diversos aspectos podem ser mecanismos preditivos que inter-relacionam a obesidade infantil com prejuízos nas funções executivas. Estudos sugerem que um maior índice de massa corporal (IMC) ou gordura visceral, baixos níveis de atividade física, níveis elevados de estresse e cortisol e menor nível socioeconômico podem estar associados a pior desempenho em testes cognitivos e de memória em crianças e adolescentes com obesidade. No entanto, a maioria dos estudos que abordam esse tema avaliou cada preditor isoladamente, em vez de usar uma regressão linear com variáveis independentes5 , 7. Especula-se que o desenvolvimento dessas funções em crianças não constitui um fenômeno unilateral e pode ser impactado por diferentes fatores. Assim sendo, é imperativo conduzir uma avaliação mais robusta com múltiplos parâmetros.

Este estudo teve como objetivo identificar potenciais preditores do desempenho cognitivo relacionados ao desenvolvimento das funções executivas e da memória em crianças e adolescentes com obesidade. Considerou-se status socioeconômico, biomarcadores de concentração, nível de atividade física e nível funcional como potenciais preditores.

METODOLOGIA

Desenho

Este é um estudo transversal, com 32 crianças e adolescentes de ambos os sexos, na faixa etária de sete a 18 anos.

Participantes

Foram escolhidos os seguintes critérios de inclusão: crianças ou adolescentes com escore z de IMC para idade e sexo maior ou igual a +2, que não apresentassem condições ortopédicas, neurológicas ou sistêmicas e nem utilizassem medicação contínua. Além disso, foram incluídos no estudo aqueles que obtiveram até dois desvios-padrão negativos da média para sua idade (ou seja, sem déficit cognitivo) no Mini Exame do Estado Mental (MEEM; adaptado para a população pediátrica) 8.

Procedimentos

No total, foram realizados dois encontros com os participantes. No primeiro, foram avaliadas as funções executivas (torre de Hanói – ToH e o teste de Stroop - ST); memória episódica (Teste de Aprendizagem Verbal Auditiva de Rey – RAVLT); memória semântica (fluência verbal – VF); composição corporal (absorciometria de raios X de dupla energia); aptidão cardiorrespiratória (teste modificado de Shuttle – MST), estresse (escala de estresse infantil – CSS); nível socioeconômico (Associação Brasileira de Pesquisa de Mercado – ABEP). e exercício físico regular (questionário de atividade física habitual de Baecke). Após 72 horas, foi realizado o segundo encontro, no qual foi coletado sangue para futura avaliação dos níveis de cortisol e proteína C reativa.

Variáveis

Em relação ao nível socioeconômico, o questionário da ABEP consiste em uma lista de eletrodomésticos e bens de consumo de propriedade da família e o nível educacional do chefe da família. O questionário classifica os participantes nas classes D-E, C2, C1, B2, B1 e A (da classe socioeconômica mais baixa para a mais alta)9.

A aptidão cardiorrespiratória foi avaliada pelo teste modificado de Shuttle (MST), seguindo as normas da European Respiratory Society/American Thoracic Society10. O MST consiste em um teste cadenciado externamente no qual a velocidade aumenta a cada minuto, a ser realizado em um corredor de 10 metros no qual os voluntários podem caminhar ou correr. O teste foi realizado duas vezes com um intervalo de 30 minutos entre as instâncias. A distância percorrida do melhor teste foi considerada o desfecho11.

O peso e a altura foram medidos usando balanças com um estadiômetro. Massa magra, massa gorda e densidade mineral óssea foram analisadas por absorciometria de raios X de dupla energia (modelo DPX; Lunar Radiation Corporation, Madison, Wisconsin, EUA)12.

O protocolo RAVLT consistiu em descrever uma série de estímulos verbais em uma lista contendo 15 substantivos. A idade dos participantes foi considerada ao examinar parâmetros relacionados à memória imediata, curva de aprendizagem da recordação de palavras ao longo das tentativas e taxa de aprendizagem13.

No teste VF, os participantes receberam a tarefa de gerar o maior número possível de palavras dentro de um limite de tempo de 1 minuto, começando com as letras “F”, “A” e “S” nas seguintes classes semânticas: “animais”, “partes do corpo” e “comida”. A pontuação foi feita de acordo com o número de palavras distintas por categoria, considerando palavras com múltiplos significados14.

ToH foi conduzida usando uma placa com três discos graduados dispostos em três pinos. No total, duas regras foram definidas pelo examinador: (1) os participantes só podiam mover um disco de cada vez e (2) era proibido colocar um disco maior em cima de um disco menor. A tarefa de ToH foi realizada duas vezes, uma para treinamento e outra para testar os participantes. O tempo de planejamento (definido como a duração entre o primeiro e o último movimento dos participantes) foi medido usando um cronômetro. O tempo médio para completar cada conjunto de discos, o número de movimentos e o número total de erros foram computados15.

O ST mede a capacidade dos participantes de desviar sua atenção e suprimir uma resposta habitual em favor de uma não convencional (atenção seletiva e aspectos das funções executivas, como flexibilidade cognitiva e suscetibilidade a interferências). Neste estudo, foram utilizados três cartões. A primeira carta consistia em retângulos coloridos em azul, marrom, verde e rosa. O segundo cartão continha várias palavras sem sentido escritas nas cores correspondentes aos retângulos do primeiro cartão. O terceiro cartão exibia os nomes das cores, mas eram escritos em cores diferentes de seus nomes reais. O tempo necessário para concluir a leitura de cada uma das três cartas e a contagem cumulativa de erros foram computados16.

O CSS é composto por 35 itens com escala Likert de 0 a 4 pontos que se agrupa em quatro fatores ligados aos sintomas de estresse: reações físicas, reações psicológicas, reações psicológicas com componente depressivo e respostas psicofisiológicas17.

Para avaliar o nível de atividade física habitual (NAFH), foi utilizada uma subseção do Questionário de Atividade Física de Baecke18. O NAFH foi classificado em três categorias: 1) suficientemente ativo: intensidade igual ou superior a 150 minutos por semana; 2) insuficientemente ativo: intensidade inferior a 150 minutos por semana; e 3) aqueles que não praticavam atividades físicas.

Amostras de sangue para cortisol e proteína C-reativa foram avaliadas após jejum de mais de oito horas em um período específico (7:30–8:30 da manhã). Um kit de teste de ensaio de cortisol foi usado para o imunoensaio de quimioluminescência automatizado seguindo as recomendações do fabricante (Liason® XL, DiaSorin®, Itália).

Estatísticas

Os dados categóricos são apresentados por frequências absolutas e relativas. Os dados quantitativos são apresentados por médias e desvios-padrão ou medianas (QI 25–75%), dependendo da normalidade dos dados. A normalidade dos dados foi analisada pelo teste de Shapiro-Wilk.

A análise de correlação de Pearson ou Spearman foi realizada para variáveis dependentes (desempenho em testes de funções executivas e memória) e independentes (idade; percentual de gordura corporal; gordura visceral em relação ao peso total; escore z de IMC para idade; escore da escala de estresse; níveis de cortisol; escore ABEP; distância percorrida e velocidade alcançada no MST; escore NAFH). Realizou-se regressão linear passo a passo para as variáveis com correlação significativa (p: 0,05). A multicolinearidade entre as variáveis independentes foi testada, bem como a interação entre as variáveis. Os participantes foram categorizados em faixas etárias distintas: de sete a 10 anos (final da infância), 11 a 14 anos (início da adolescência) e 15 a 18 anos (final da adolescência). Os dados foram analisados usando o pacote estatístico IBM SPSS Statistics, versão 22 (Inc, EUA).

Tamanho da amostra

O tamanho da amostra foi determinado por um estudo que encontrou associação entre aptidão cardiorrespiratória e função executiva em crianças e adolescentes com obesidade/sobrepeso, com tamanho de efeito de 23%. Considerando um nível de significância de 5% e potência de 80%, a análise mostrou que era necessário um tamanho amostral mínimo (n) de 29 participantes19.

RESULTADOS

A amostra foi composta por 32 participantes de ambos os sexos (56% meninos) com média de idade de 11 anos. Os participantes com estratos socioeconômicos B2 e C apresentaram maior percentual de massa gorda (Tabela 1).

Tabela 1.
Características dos participantes

Em relação aos possíveis preditores de desempenho no teste RAVLT, a massa gorda correlacionou-se negativamente com os índices de aprendizagem e interferência (p<0,05; r=−0,36). Este estudo encontrou correlação negativa entre o escore z do IMC (p<0,05; r=−0,37) e o índice de recordação no RAVLT (p<0,05; r=−0,35) (Tabela 2).

Em relação ao teste de fluência verbal, este estudo observou, para a categoria semântica de animais, não haver diferenças significativas com as variáveis independentes. Quanto às categorias “partes do corpo” (p<0,05; r=−0,43) e “alimento” (p<0,05; r=−0,35), a variável GV/PC apresentou correlações negativas. Da mesma forma, o escore total da FV também apresentou correlação negativa (p<0,05; r=−0,41) com essa variável (Tabela 2).

O teste ToH mostrou algumas correlações com as variáveis analisadas. O número de erros neste teste foi negativamente correlacionado (p<0,01; r= -0,49) com os níveis de estresse. O número de novatos no teste ToH apresentou correlação negativa (p<0,01; r=−0,47) com o NAFH (Tabela 3).

Tabela 2.
Análises de correlações entre variáveis relacionadas ao desempenho nos testes de Aprendizagem Verbal Auditiva de Rey e de fluência verbal
Tabela 3.
Análises de correlações entre variáveis relacionadas ao desempenho nos testes Torre de Hanói e Stroop

Após a análise das correlações de desempenho em testes cognitivos e prováveis preditores, foi realizada uma análise de regressão linear. A descrição dos resultados seguiu o nível de significância (p), um coeficiente padronizado (b) e o coeficiente de determinação (R2).

No RAVLT, o aprendizado apresentou associação negativa com percentual de gordura e GV/PC (p:0,04, b:−0,36 e R2:0,13). A interferência foi significativamente associada à % de gordura (p:0,01, b:−0,51 e R2:0,25). O índice de recordação mostrou associação com o escore z do IMC (p:0,01, b:−0,51, R2:0,25). A gordura visceral influenciou o índice de reconhecimento (p: 0,01, b:−0,43 e R2:0,19).

A memória semântica (no teste FV) mostrou associação significativa apenas com GV/PC (p:0,04, b:−0,36, R2:0,13).

O tempo de execução na ToH apresentou associação significativa com a proporção de gordura visceral (p:0,04; b:−0,38; R2:0,14), enquanto o número de movimentos foi associado à dominância esportiva e ao exercício (p:0,007; b:−0,45; R2:0,22) e o número de erros foi correlacionado com o escore da escala de estresse (p:0,004; b:0,49; R2:0,25).

O ST apresentou associações significativas para o primeiro cartão ST (ST1) com o escore CSS (p:0,04; b:0,36; R2:0,13), o escore socioeconômico ABEP (p: 0,03; b:-0,38; R2:0,15) e com as concentrações de cortisol no sangue (p:0,03; b:0,40; R2:0,16). Para o segundo (ST2) e terceiro cartão ST (ST3), associações significativas ocorreram com o escore da escala de estresse (p:0,04, b:0,35, R2:0,12 e p:0,04, b:0,37, R2:0,14, respectivamente). O número total de erros apresentou associações significativas com o CSS (p:0,01, b:0,43, R2:0,19) e o escore socioeconômico da ABAEP (p:0,02, b:−0,40, R2:0,17).

A Figura 1 resume essas informações.

Figura 1.
Resumo dos resultados obtidos nas análises de regressão linear

DISCUSSÃO

Este estudo mostrou que a adiposidade esteve associada a pior memória episódica em crianças e adolescentes com obesidade. A memória semântica (teste VF) foi associada à gordura visceral. No ToH, a tarefa de planejamento e a flexibilidade cognitiva foram associadas à gordura visceral, enquanto o número de movimentos foi correlacionado com a prática de esportes e exercícios físicos. O exercício regular favorece o planejamento de tarefas em crianças e adolescentes com obesidade. O número de erros na torre de Hanói foi diretamente associado aos níveis de estresse (CSS). Os níveis de estresse (níveis de CSS e cortisol) e o nível socioeconômico foram associados à atenção seletiva e às funções executivas.

Este estudo encontrou uma associação negativa entre a adiposidade (avaliada pela massa gorda, GV/PC e escores z do IMC) e o desempenho nos domínios de aprendizagem, interferência, recordação e reconhecimento do RAVLT. Estudo prévio observou desempenho diminuído em adolescentes com obesidade (avaliados pelo IMC) na faixa etária de 12 a 18 anos, especificamente nos índices de recordação e reconhecimento20. Isso sugere que o aumento dos índices de adiposidade em crianças pode estar associado à redução do desempenho nos parâmetros avaliados no teste. Os resultados em nosso estudo indicam que a obesidade infantil impacta negativamente todo o processo de memória episódica desde a fase de aprendizagem até os processos finais de recordação e reconhecimento. Deficiências no domínio de interferência significam que dados relevantes são esquecidos devido à invasão de novas informações, constituindo um mecanismo que avalia a consolidação da memória21.

Este estudo observou uma correlação entre FV dentro do domínio semântico de “partes do corpo” e GV/PC, sugerindo uma potencial relação. Foi identificado que níveis elevados de adiposidade visceral nos participantes estavam associados à diminuição da proficiência na execução dessa tarefa cognitiva. Outros autores mostraram resultados comprometidos nas avaliações de FV dentro da população de crianças com obesidade/sobrepeso (idade média de 4,59 anos)22. O hipocampo é responsável pela consolidação das memórias episódicas e espaciais23. Existe uma conexão plausível entre a obesidade infantil e os efeitos potenciais no processo de consolidação do hipocampo para a memória episódica, apoiada por pesquisas anteriores24. Em estudos futuros, a análise de imagens neuroanatômicas dessa estrutura pode identificar possíveis relações causais.

A infância e a adolescência são períodos de alto neurodesenvolvimento, englobando processos vitais como a sinaptogênese e a poda, que são fundamentais para estabelecer conexões neuronais precisas25.

A associação do teste de FV com regiões corticais tem sido extensivamente investigada. Os lobos frontais, especialmente o córtex pré-frontal, desempenham um papel fundamental nas tarefas de FV25. Em estudos envolvendo crianças com obesidade, alterações anatômicas na região cortical foram associadas a menor habilidade no teste de FV26. Os resultados de nossa investigação se alinham com os achados anteriores e podem estar ligados ao período do neurodesenvolvimento entre a infância e a adolescência.

As funções executivas compreendem um conjunto de processos cognitivos intrincados associados ao córtex frontal, desempenhando um papel fundamental no planejamento, tomada de decisão, controle inibitório, flexibilidade cognitiva, atenção seletiva, resolução de problemas e outras atividades que exigem a coordenação de processos mentais para atingir objetivos específicos27. Nesse contexto, um corpo de evidências liga a obesidade infantil ao comprometimento da função executiva. Por exemplo, crianças com obesidade apresentaram déficits no controle inibitório e na atenção, principais componentes das funções executivas avaliadas pelo ST28. Da mesma forma, crianças com obesidade/sobrepeso também apresentam maior número de erros na realização do teste ToH22.

A resolução bem-sucedida do ToH ou a obtenção de erros mínimos no ST decorre de interações complexas entre várias funções executivas27. No presente estudo, houve correlações positivas entre cortisol, níveis de estresse e desempenho nessas duas tarefas. Isso sugere que o estresse serve como fator preditivo na cognição de crianças com obesidade, comprometendo diversos domínios das funções executivas. O corpo libera cortisol quando confrontado com estressores. A elevação dos níveis de cortisol pelo estresse prolongado e sustentado pode modificar processos cognitivos e padrões comportamentais29. Níveis elevados de cortisol e alta reatividade a situações estressantes ocorrem consistentemente em crianças com obesidade30.

O desempenho no ST apresentou associações com o nível socioeconômico, pois os participantes de menor nível econômico apresentaram pior desempenho no componente inicial. Estudo envolvendo pré-escolares de classes socioeconômicas mais baixas mostrou desempenho inferior em tarefas de controle inibitório e habilidades de leitura31.

O número de movimentos ToH foi negativamente associado ao escore NAFH. Isso sugere que crianças com obesidade que praticam exercício físico regularmente são mais assertivas em testes envolvendo funções executivas, o que vai ao encontro de dados anteriores5. O nível de atividade física habitual pode promover maior neuroplasticidade, principalmente em uma janela crítica de neurodesenvolvimento32. Esse processo permite que o cérebro modifique as vias neurais, fortaleça as conexões sinápticas e gere novos neurônios em certas regiões, o que pode reduzir os efeitos deletérios da obesidade no neurodesenvolvimento33.

Vários parâmetros da composição corporal servem como preditores de desempenho em avaliações cognitivas e de memória. Os níveis de estresse e cortisol afetaram as funções executivas. Além disso, o envolvimento em atividade física regular pode configurar um efeito protetor. Essas descobertas têm implicações substanciais para melhorar nossa compreensão dos fatores preditivos e formular diretrizes para reduzir os impactos adversos nas funções cognitivas e de memória em crianças e adolescentes obesos.

As limitações deste estudo incluem sua ampla faixa etária. Para reduzir essa limitação, foram aplicados escores z de desempenho à amostra segmentada por faixas etárias. Esta pesquisa ignorou avaliações de estados inflamatórios e imagens neuroanatômicas, o que pode oferecer um forte preditor para avaliação em estudos futuros.

Este estudo sugere uma associação significativa entre adiposidade e memória episódica e semântica. Além disso, as funções executivas estão ligadas ao estresse, aos níveis de cortisol e ao status econômico, enquanto o engajamento na atividade física habitual pode influenciar positivamente a função executiva. Portanto, é essencial que os sistemas de saúde implementem políticas de combate à obesidade infantil, particularmente por meio de iniciativas que promovam a atividade física, pois isso tem um efeito protetor sobre as funções executivas e pode ajudar a reduzir o estresse e os níveis de cortisol, que também estão associados ao desempenho da memória cognitiva. Este estudo destaca a utilidade potencial da adiposidade como um parâmetro de composição corporal para prever o desempenho em avaliações de memória. Se pesquisas futuras corroborarem esses achados, elas poderão informar estratégias para abordar a obesidade em crianças e adolescentes, melhorando o desenvolvimento cognitivo.

CONCLUSÃO

Este estudo indica que a adiposidade pode estar associada a pior memória episódica e que a gordura visceral pode estar relacionada à memória semântica (teste de fluência verbal) e à tarefa de planejamento e flexibilidade cognitiva (torre de Hanói) em crianças e adolescentes com obesidade. Além disso, a prática esportiva e o exercício físico podem estar associados a tarefas de planejamento (o número de movimentos na Torre de Hanói) em crianças e adolescentes com obesidade. O número de erros foi diretamente associado ao estresse (escala de estresse infantil). Os níveis de estresse (níveis de CSS e cortisol) e o nível socioeconômico foram associados à atenção seletiva e às funções executivas.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem à FAPEMIG, CNPq e CAPES pelo apoio financeiro e bolsas de estudo.

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  • Fonte de financiamento: FAPEMIG; CAPES
  • Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa CAAE nº 82041317.4.0005108

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2024
  • Aceito
    02 Jan 2025
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