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Subjetivação, discursos científicos e midiáticos: revisitando estudos foucaultianos sobre corpos

Subjectivity, scientifics and mediatics discourses: revisiting foucault studies about bodies

Resumos

Este estudo teórico tem como objetivo discutir a produção do modo de conduzir a si mesmo em discursos científicos e midiáticos, com base no pensamento de Michel Foucault acerca do sujeito, do discurso e do corpo. Ciência e mídia são problematizadas na relação saber-poder, atuando por meio de discursos na produção de regimes de verdade. Os discursos científicos não traduzem verdades sobre a natureza das coisas, nem são apenas um reprodutor das lutas de classe e/ ou dos conflitos psíquicos. Eles são materialidades produtoras de modos de viver, de corpos e de sujeitos. Também os discursos midiáticos não são valorizados apenas por mediar informações entre produtores e espectadores. A mídia produz e faz circular discursos incitando o sujeito a se confessar, a produzir um saber sobre si mesmo. Por fim, ciência e mídia são estratégias de poder-saber que conjuntamente atuam nos corpos e implicam modos de conduzir-se a si mesmo.

discurso; sujeito; corpo


This theoretical study aims to discuss the production of self-care in scientific and mediatic discourses, based on the thougth of Michel Foucault about subject, speech and body. Science and media issues in the relationship are knowledge-power, operating through discourses in producing regimes of truth. The scientific discourses do not translate the truth about the nature of things, nor are just reproducers of the class struggles and/or the psychical conflicts. They are materiality producers of ways of living, bodies and subjects. Also the mediatic discourses are not only valued for mediating information between producers and spectators. The media produces and circulates discourses urging the subject to confess, to produce knowledge of himself. Finally, science and media are strategies of knowledge-power that together act on bodies and involve ways of self-behaviour.

discourse; subject; body


TEMÁTICAS DIVERSAS

Subjetivação, discursos científicos e midiáticos: revisitando estudos foucaultianos sobre corpos

Subjectivity, scientifics and mediatics discourses: revisiting foucault studies about bodies

Luísa Escher FurtadoI; Shirley Dias GonçalvesII; Luciana Lobo MirandaIII; Jesus Garcia PascualIV

IPsicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC)

IIPsicóloga. Mestranda em Psicologia da Universidade Federal do Ceará

IIIPsicóloga. Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-Rio. Professora do programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Endereço: Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades. Av. da Universidade – Benfica. Fortaleza, CE – Brasil. CEP: 60000-000. E-mail: lobo.lu@uol.com.br IVDoutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Professor do Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Ceará

RESUMO

Este estudo teórico tem como objetivo discutir a produção do modo de conduzir a si mesmo em discursos científicos e midiáticos, com base no pensamento de Michel Foucault acerca do sujeito, do discurso e do corpo. Ciência e mídia são problematizadas na relação saber-poder, atuando por meio de discursos na produção de regimes de verdade. Os discursos científicos não traduzem verdades sobre a natureza das coisas, nem são apenas um reprodutor das lutas de classe e/ ou dos conflitos psíquicos. Eles são materialidades produtoras de modos de viver, de corpos e de sujeitos. Também os discursos midiáticos não são valorizados apenas por mediar informações entre produtores e espectadores. A mídia produz e faz circular discursos incitando o sujeito a se confessar, a produzir um saber sobre si mesmo. Por fim, ciência e mídia são estratégias de poder-saber que conjuntamente atuam nos corpos e implicam modos de conduzir-se a si mesmo.

Palavras-chave: discurso; sujeito; corpo.

ABSTRACT

This theoretical study aims to discuss the production of self-care in scientific and mediatic discourses, based on the thougth of Michel Foucault about subject, speech and body. Science and media issues in the relationship are knowledge-power, operating through discourses in producing regimes of truth. The scientific discourses do not translate the truth about the nature of things, nor are just reproducers of the class struggles and/or the psychical conflicts. They are materiality producers of ways of living, bodies and subjects. Also the mediatic discourses are not only valued for mediating information between producers and spectators. The media produces and circulates discourses urging the subject to confess, to produce knowledge of himself. Finally, science and media are strategies of knowledge-power that together act on bodies and involve ways of self-behaviour.

Keywords: discourse; subject; body.

RECORTANDO SUJEITOS E CORPOS

[...] o homem não existe, é uma construção. Mas não é uma "construção social". Dizer isso seria uma banalidade. Do modo como leio Foucault, ele nos diz que, em boa medida, a imagem do que o homem é está na imagem que ele faz de si mesmo, e essa imagem depende das suas relações, como corpo – sexuado, que é o que ele vê –, com mecanismos de poder. É assim que Foucault se coloca contra o humanismo. Não há essência humana. Nem devemos dizer, de modo vago, que é a "existência humana" que define o homem. O que podemos fazer para recortar o homem é saber como ele está se recortando na medida em que ele se vê nas tramas de um poder que, de fato, o recorta – como corpo (GHIRALDELLI JR., 2007, p.104).

Michel Foucault oferece a possibilidade de abraçar outros modos de compreender o ser humano ao opor-se à noção de ser este dotado de corpo (como todos os outros animais) e de razão (o que o torna humano), contrapondo-se ao humanismo e ao privilégio adquirido pela racionalidade no mundo ocidental. Em Foucault (1984, 2007, 2009a, 2009b), o corpo assume um novo lugar, de centralidade, como pode ser observado nas suas obras Vigiar e punir e História da sexualidade I, II e III.

O processo de recorte do corpo tem sido marcado por redes de poder e saber, resistências e subjetivações. Recortar pode ser entendido como um ato que, ao mesmo tempo que delimita, dá forma e produz exclusões. Quando se recorta, imprime-se uma força numa direção e a esta força sempre aparecem resistências, seja do material que está sendo cortado, seja da destreza da mão que corta. No processo de recortar corpos, são exercidos poderes, produzidos saberes e operam-se exclusões que não determinam exatamente como este corpo é, pois sua materialidade atua e se contrapõe a qualquer tentativa de estabelecimento de uma carne inerte. Segundo Foucault (2009a, p. 105-106):

[...] onde há poder há resistência [...] resistências, no plural, que são casos únicos: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício.

Conforme se nota, as resistências acontecem em ato. Como afirma Foucault (1995), o poder é ação, é condução de condutas, assim, o autor trabalha com materialidades. Entre os materiais produzidos em nosso cotidiano está a noção "sujeito", que atua como verdade e que oferece a possibilidade de nos tornarmos um "eu" que age sobre "si". Deleuze (1990) utiliza a metáfora de linhas para contar como Foucault compreende essas forças que atuam na produção do sujeito. Esta metáfora ajuda a compreender que a subjetivação ocorre numa relação entre as linhas, as forças que as tensionam e as resistências que se apresentam. Ao esticar uma linha, esta pode arrebentar ou tomar um rumo diferente da direção na qual foi esticada. Este rumo tem a possibilidade de dobrar-se em torno de si. Assim também acontece com o corpo: as forças vão modelando, enquanto seu material é capaz de ir resistindo e, quando este dobra sobre si mesmo, é possível nascer nele um sujeito, mas isso só acontece porque, no mesmo movimento, em nosso cotidiano, produzimos saberes sobre o sujeito.

Quais linhas estão tensionadas na contemporaneidade, ajudando em suas dobras a fabricar o sujeito e o seu corpo? O presente trabalho pretende destacar algumas dessas linhas-forças, a saber: ciência e mídia, não as tomando como algo em si, mas sim como relação saber-poder, como discurso na produção de regimes de verdade. Desse modo, objetivamos discutir a produção do modo de conduzir a si mesmo em discursos científicos e midiáticos que atuam sobre os corpos no contemporâneo.

ALINHAVANDO NOÇÕES DE SUJEITO, DISCURSO E CORPO

Que novos modos de subjetivação vemos aparecer hoje, que nem são gregos nem cristãos? (DELEUZE, 1990, p. 161).

Foucault em diferentes momentos de seus estudos dissertou acerca do sujeito, do discurso, da ciência e do corpo e o fez de um modo diverso. Como aponta Veiga-Neto (2007), em linhas gerais, Foucault utiliza o método arqueológico para pesquisar saberes. Quando se trata do poder, o método empreendido é o genealógico.

A arqueologia tem o saber como um campo de análise (MACHADO, 1981) que consiste no procedimento de escavar os discursos, buscando suas descrições, regularidades que funcionam como leis de dispersão dos enunciados. Foucault (1997, 2008a) conceitua o discurso como um conjunto de enunciados. Pode-se falar, por exemplo, em discurso pedagógico, discurso feminista, discurso científico, pois todos são constituídos de uma série de enunciados, que existem propriamente como prática discursiva, como acontecimento histórico, institucional e social.

O método arqueológico não pretende interpretar o discurso como propõe a hermenêutica, mas tenta determinar as regras de formação das práticas discursivas e como estas podem estar articuladas com as práticas não discursivas, sem buscar uma causalidade única (VEIGA-NETO, 2007).

Como afirma Foucault, em Arqueologia do saber, descrições epistemológicas analisam a estrutura interna de uma teoria, já "o estudo arqueológico está sempre no plural: ele se exerce numa multiplicidade de registros" (FOUCAULT, 1997, p. 180). Desse modo, o que está sendo definido por meio das formações discursivas é um saber, que é o objeto de estudo da análise arqueológica e não uma ciência como no propósito epistemológico. Assim, segundo a perspectiva arqueológica nos permite compreender, pesquisar discursos científicos não se constitui em buscar a verdade que os fundamenta, mas entender que estes acontecem por meio das dispersões e regularidades que engendram sua formação.

A genealogia, termo de Nietzsche do qual Foucault se apropria, consiste em um "tipo especial de história" (VEIGA-NETO, 2007, p. 56) que busca descrever uma gênese no tempo, mas não de forma a fixar no presente um objeto e ir ao passado na tentativa de descobrir sua origem. Ela procede à análise histórica das condições de possibilidades dos discursos que instituíram um objeto, atentandose em saber como e em que ponto este surge e não de onde ele veio. Assim, a genealogia desnaturaliza enunciados que são repetidos como se tivessem sido descobertos e não historicamente inventados.

A proposta genealógica de Foucault foi produzida para além do estudo das condições de produção dos discursos, interessando também como estes atuam nos corpos, nas vidas, na condução de condutas, como se encadeiam em redes de poder. Assim, o autor se empenhou em estudar o poder, por considerá-lo necessário à compreensão do sujeito, na medida em que é um operador capaz de explicar como nos subjetivamos. Como menciona Foucault (1995), em O sujeito e o poder, o tema geral da sua pesquisa e obra, diferentemente do que se poderia imaginar, não seria o poder, mas o sujeito. Seu objetivo "foi criar uma história dos diferentes modelos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos" (FOUCAULT, 1995, p. 231).

Em A verdade e as formas jurídicas, Foucault (1996) afirma que um dos eixos do seu trabalho é a reelaboração da teoria do sujeito. Para ele, essa teoria tem como marco o pensamento de René Descartes (1996[1637]) que, em Discurso sobre o método, escreve sobre seu caminho de construção de um método para conhecer, sinalizando em toda a obra ser este marcado pela busca de qualidades que levem à perfeição do espírito, da razão e do senso. A proposta de chegar ao verdadeiro conhecimento por meio da razão é um dos pontos fundamentais da teoria do sujeito moderno.1 1 A noção de ser humano como sujeito da razão sofre impacto, séculos mais tarde, com o surgimento da psicanálise. Propositora do rompimento da noção dual de corpo versus espírito e de racionalidade versus irracionalidade, a psicanálise acaba por redimensionar a noção de sujeito, como aponta Joel Birman (2000, p. 21): "A rigor, não existe o sujeito e seu corpo, numa dualidade e polaridade insuperáveis, mas um corpo-sujeito propriamente dito".

Nesse contexto de discussão acerca do sujeito da razão, um interlocutor privilegiado, seguidamente citado nos escritos de Michel Foucault, é Friederich Nietzsche. Foucault (1996, p. 13) diz ter aprendido com Nietzsche a recusa à essência, à busca de origens, e faz uma crítica à afirmação de que o conhecimento é inventado por um ou mais sujeitos, ou seja, se opõe à noção do sujeito como origem do discurso, pois o próprio sujeito é uma invenção histórica:

Em Nietzsche, parece-me, encontramos efetivamente um tipo de discurso em que se faz a análise histórica da própria formação do sujeito, a análise histórica do nascimento de um certo tipo de saber, sem nunca admitir a preexistência de um sujeito de conhecimento.

Sobre a articulação, a aparição e a constituição de discursos, sobretudo o científico, Foucault (2008a) realiza um belo estudo sinteticamente apresentado em sua aula inaugural no Collège de France, na qual fala do desejo de que seu discurso estivesse apenas encadeando, prosseguindo frases já ditas. Contudo, sinaliza que a esse desejo a instituição responde:

Você não tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que ele advém (FOUCAULT, 2008a, p. 7).

Pode-se dizer que o processo de produção do discurso científico, atualmente, se constitui numa rede de instituições, como agências de fomento à pesquisa, universidades, laboratórios, editoras de livros, revistas, congressos, dentre outros. Essa rede, no mesmo movimento que ascende a força do sujeito que profere o discurso, o desarma. Ao serem publicados, produzidos por universitários, avaliados por doutos, um texto, uma fala tornam-se científicos, tornam-se referências de modos de vida acertados. No entanto, o valor já não é mais do que foi dito, ou de quem disse, mas sim das instituições que permitiram que aquilo fosse dito e houvesse plateia para ser escutado. Desse modo, a produção e circulação do discurso científico configuram um território marcado por tensões, como sinaliza o próprio Foucault (2008a, p. 9):

Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

Na sociedade moderna, a ciência controla, domina e organiza discursos, assumindo um lugar de verdade: "[...] as grandes mutações científicas podem talvez ser lidas, às vezes, como conseqüências de uma descoberta, mas podem também ser lidas como a aparição de novas formas de vontade de verdade" (FOUCAULT, 2008a, p. 16). O saber científico, como discurso legitimamente instituído, não traduz verdades sobre a natureza das coisas, nem é apenas um reprodutor das lutas de classe, dos conflitos psíquicos, ele se constitui como materialidade produtora de modos de viver, de corpos, de sujeitos.

Ainda a respeito da interação discurso e sujeito, Fischer (2001a, p. 218) salienta: "[...] os sujeitos são efeitos de discursos, e esses efeitos – produzidos no interior de inúmeras e bem concretas relações institucionais, sociais e econômicas – não existem senão nos corpos".

A experiência humana se dá no corpo, espaço ambíguo, cuja espacialidade não se coloca de forma concêntrica, encerrada em si, mas na sua excentricidade, conjugada, marcada, modificada por inúmeros atravessamentos. O corpo, para o filósofo francês, é um espaço privilegiado de subjetivação (FOUCAULT, 2008b).

Michel Foucault não se propunha a definir o que são corpos, mas como se chega a produzi-los em práticas discursivas e não discursivas; dito de outra forma, como os corpos flagelados medievais se transformavam em corpos produtivos (nas fábricas), em obedientes (nas escolas), em sexuados (nos mais diversos lugares). Assim, interessa produzir ecos para a pergunta que Foucault (2008b, p.147-148) lançou em uma das suas conferências intitulada Poder-Corpo:

[...] do século XVII ao início do século XX, acreditou-se que o investimento do corpo pelo poder devia ser denso, rígido, constante, meticuloso. Daí, esses terríveis regimes disciplinares que se encontram nas escolas, nos hospitais, nas casernas, nas oficinas, nas cidades, nos edifícios, nas famílias [...] E depois, a partir dos anos setenta, percebeu-se que esse poder tão rígido não era assim tão indispensável quanto se acreditava, que as sociedades industriais podiam se contentar com um poder muito mais tênue sobre o corpo. Descobriu-se, desde então, que os controles da sexualidade podiam se atenuar e tomar outras formas [...] Resta estudar de que corpo necessita a sociedade atual [...].

Fazer uma ruptura com a noção de um sujeito de conhecimento a priori possibilita o questionamento do corpo como aquilo que circunscreve, lugar onde habita o sujeito. Assim, o corpo não se apresenta como um dado, um elemento pré-discursivo. Ele é produzido em práticas discursivas e não-discursivas que circulam no cotidiano e, atualmente, os discursos da ciência e da mídia, conforme será visto, têm ocupado um espaço de grande relevância nessa produção.

Quando corpos sarados são "eleitos" em capas de revistas ou desfilam em programas de televisão; quando programas jornalísticos "divulgam" as recentes descobertas científicas a respeito dos benefícios ou malefícios de um alimento ou dos problemas de saúde vinculados à obesidade; quando finalmente pode-se acompanhar em um reality-show o passo a passo de uma cirurgia de redução do estômago, pode-se perguntar de que corpo se necessita hoje?

QUE REGIMES DISCIPLINARES SÃO ESSES?

Foucault (2009b), em sua obra Vigiar e punir escreve sobre o processo que torna os indivíduos sujeitos a partir de uma rede de poderes que o dividem e o classificam. O autor tece uma análise do poder que age nos corpos, enfatizando as técnicas de controle e produção destes. Conforme salienta, a partir do século XVII e especialmente no século XIX, em escolas, hospitais, prisões e fábricas, a disciplina apropria-se do corpo e aproveita-o ao máximo, retira-lhe a força para o trabalho, enfim, torna-o um corpo útil e dócil.

A produção desse corpo acontece por meio de dois dispositivos: o controle das atividades e a arte da distribuição no espaço (FOUCAULT, 2009b). O primeiro visa a utilizar corretamente o tempo, tornando-o um tempo de qualidade, no qual, durante todo o seu transcurso, o corpo deve estar aplicado ao exercício. Como Machado (1981) esclarece, essa sujeição do corpo ao tempo tem por objetivo produzir a máxima eficácia e rapidez.

Para se constituir um tempo útil, sem desperdícios nas fábricas, por exemplo, faz-se uso de um controle ininterrupto, pressão dos fiscais e anulação de tudo o que possa, por ventura, distrair os operários. O ato também é elaborado funcionalmente de forma que cada gesto deverá ser realizado no seu devido tempo, como na marcha da tropa. Essa decomposição dos gestos é outra maneira de ajustar o corpo ao substrato temporal, denotando um controle minucioso de poder. Nos dias de hoje, essa forma de ajustar corpos aos substratos de tempo ainda é encontrada. Na mídia, em especial na televisão e no rádio, apresentadores/as, jornalistas e repórteres têm gestualidades prescritas em sintonia com o tempo de cada programa, cronometricamente marcado; dispondo-se rigorosamente sobre o encadeamento de cada notícia, a inserção de imagens e de horários de propaganda, distribuídos em alguns minutos para um bloco do programa e intervalos de alguns segundos para os comerciais.

Na televisão, os programas comumente são coloridos, curtos e prezam pela rapidez na mudança de assuntos que, frequentemente, são tratados em poucos minutos, mas costumam ser repetidamente exibidos. As notícias de destaque são veiculadas várias vezes nos telejornais nos diferentes horários, dia após dia, até serem substituídas por outras. Assim também ocorre com alguns dramas que se repetem nas telenovelas. Cada programa acontece costumeiramente no mesmo horário e busca encontrar em frente à televisão determinado tipo de público. Por exemplo, na televisão aberta, programas infantis passam preferencialmente durante o dia e raramente durante a noite, pois, há o preceito de que crianças dormem cedo. Já programas destinados ao público masculino costumam ocupar as telas por volta do meio-dia e à noite, tendo em vista a noção de que homens trabalham e não assistem televisão em horário comercial. Desse modo, a programação da televisão e também a da vida de cada um vai sendo construída, marcada pela métrica do tempo. Tal prática não só divide o tempo, mas também justapõe nossos comportamentos e hábitos em coordenadas de frações de hora.

Além de normalizar condutas, a disciplina modela e aprimora os corpos. A garantia de um produto final passa pelo controle do processo, ao mesmo tempo massificado, pois é comum a todos que se encontram no mesmo perfil (seja pela idade, gênero ou grau de instrução por exemplo), mas também visa ao indivíduo, pois marca como cada um está em relação à norma. Segundo Foucault (2009b, p. 171), mediante as disciplinas aparece o poder da norma, que atua como uma infrapenalidade, quadriculando um "espaço deixado vazio pelas leis", que num mesmo movimento qualifica e reprime um conjunto de comportamentos que outrora escapava aos sistemas de castigos. É com base na norma, na produção do normal, que se dá a "liberação epistemológica para as ciências do indivíduo" (FOUCAULT, 2009b, p. 182).

O segundo dispositivo do poder disciplinar abordado por Foucault (2009b) é a arte da distribuição no espaço. A arquitetura dos prédios, as disposições dos corpos nos lugares e descrições espaciais rechearam os estudos do autor. Isso porque o poder é material, as técnicas são concretas, por exemplo, as localizações funcionais são estratégias que colocam cada indivíduo no seu lugar, de modo a saber onde encontrá-lo, vigiando o comportamento de cada um para apreciá-lo e sancioná-lo.

Como evidenciado, o disciplinamento por meio da disposição individual dos corpos no espaço ainda é frequente e muitas vezes enunciado na mídia. O jornal eletrônico G1 (2009, online ) noticia: "Obesos enfrentam dificuldades para viajar de ônibus, avião e metrô". Esta reportagem continua com frases de impacto: "Metrô de SP vai implantar assentos especiais para gordinhos"; "Advogado lembra que obesos têm direito a lugar preferencial"; "Os gordinhos já podem respirar aliviados: até o fim de junho, cada trem do Metrô de São Paulo terá duas cadeiras especiais para obesos. A novidade deve aliviar um pouco os problemas dessa parcela da população, que enfrenta problemas nos meios de transporte". "'Ninguém é gordo porque quer, os obesos merecem nosso respeito', lembrou o advogado. 'O direito é adquirido. Os gordos unidos jamais serão vencidos', disse Fábio". Esses diferentes excertos do texto jornalístico nos revelam o quanto a arquitetura dos espaços mobiliza diferentes estratégias de poder. Em função da construção de bancos e catracas se levantam questionamentos acerca de direitos, de diagnósticos médicos (obeso) e de movimentos sociais identitários (gordos unidos jamais serão vencidos), inserindo-os no âmbito de pertinência de uma parcela da população.

Como mostram essas discussões, o exercício de poder atua nos corpos em estratégias disciplinares, mas não unicamente nelas. Outras formas de se exercer poder aparecem na produção dos corpos, utilizando técnicas e produzindo novas tecnologias que constituem o que Foucault chama de biopoder: "As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois polos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida" (FOUCAULT, 2009a, p. 152).

Neste tópico, discutimos mais detidamente o primeiro polo ao qual se referiu o autor: "as disciplinas do corpo". A seguir, abordaremos o segundo: "as regulações da população".

CORPO, POPULAÇÃO E GOVERNO

Ao buscar fazer uma análise privilegiando a dimensão temporal da obra de Foucault, Maia (1995) identifica uma mudança com a publicação de "História da sexualidade I: a vontade de saber". Nas palavras de Foucault (2009a, p. 10), no início deste livro, o corpo, a partir do século XVII, na Europa, passa a ser dito como reprimido: "O decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções".

No entanto, no decorrer da obra, Foucault (2009a) afirma que a hipótese da repressão da sexualidade e do corpo não lhe satisfaz. Assim, o autor se opõe ao discurso que identifica o poder à repressão e à sexualidade e o corpo como objeto dessa repressão. Dedica-se a estudar a positividade do poder, isto é, como foram construídos discursos que falam do seu próprio silêncio, que mesmo quando associam sexo ao pecado, quando impedem o falar de sexo livremente, produziram em nosso mundo ocidental a Scientia Sexualis. Em resumo, aponta "de que maneira o poder penetra e controla o prazer cotidiano" (FOUCAULT, 2009a, p. 18), e dedica-se a descrever diferentes formas de exercício de poder. Desse modo, o filósofo trabalha menos com a hipótese repressiva do que com o regime de discursividade no qual o sexo é inserido a partir do século XVII.

A primeira técnica de exercício de poder apresentada por Foucault (2009a) em "História da sexualidade I: a vontade de saber" é a pastoral católica que, por meio da confissão, impõe regras meticulosas de exame de si. Esse exame exige que se fale do sexo, do pecado, enfim, de si. Assim, o sentido produzido não é apenas o da repressão, mas o relato minucioso e o cuidado para que nada seja omitido. Confessar ao padre, ao psicólogo, ao psiquiatra, para que o outro descubra a verdade naquele que confessa e encerre sua sexualidade na égide da normalidade ou da perversão. Segundo Foucault (2009a, p. 67), "[...] a confissão passou a ser, no Ocidente, uma das técnicas mais valorizadas de produzir a verdade. Desde então nos tornamos uma sociedade singularmente confessanda".

Ao apresentar o poder pastoral para discutir a sexualidade, o autor utiliza várias vezes o vocábulo corpo. Nesse contexto, seu uso é acompanhado de palavras como espírito e alma e essa proximidade aparece para que ambos possam ser apresentados como distintos:

Um discurso obediente e atento deve, portanto, seguir, segundo todos os seus desvios, a linha de junção do corpo e da alma: ele revela, sob a superfície dos pecados, a nervura ininterrupta da carne. [...] É aí, talvez, que pela primeira vez se impõe, sob a forma de uma constrição geral, essa injunção tão peculiar ao Ocidente moderno. Não falo da obrigação de confessar as infrações às leis do sexo, como exigia a penitência tradicional; porém, da tarefa quase infinita, de dizer, de se dizer a si mesmo, e de dizer a outrem, o mais freqüentemente possível, tudo o que possa se relacionar com os jogos dos prazeres, sensações e pensamentos inumeráveis que através da alma e do corpo tenham alguma afinidade com o sexo (FOUCAULT, 2009a, p. 26, grifo nosso).

Como se vê, instrumentos da moral cristã dedicavam-se à economia dos prazeres individuais. Por volta do século XVIII, na Europa, Foucault (2009a) afirma que começa a aparecer uma nova técnica de produção de corpos, o con-trole da sexualidade passa a ser assunto de interesse público, estando para além da moral cristã, do poder pastoral. Emerge uma discursividade que se pretende menos moral e mais científica sobre o sexo:

Levar "em conta" o sexo, formular sobre ele um discurso que não seja unicamente o da moral, mas da racionalidade, eis uma necessidade suficientemente nova para, no início, surpreender-se consigo mesma e procurar desculpar-se (FOUCAULT, 2009a, p. 30).

A partir daí, a sexualidade é ocupada por um discurso segundo o qual esta não deve ser julgada, mas administrada: "No século XVIII o sexo se torna questão de 'polícia'" (FOUCAULT, 2009a, p 31). Questões de polícia nascem ao lado de outras questões, como o surgimento de governos que cuidam dos sujeitos do povo. Porém, suas políticas extrapolam, são mais endereçadas a um corpo que não diz respeito simplesmente ao sujeito e sim a sua espécie, a toda população. O corpo passa a ser marcado por estatísticas de natalidade, de morbidade, de fecundidade, expectativas de vida, estado de saúde, incidências de doenças, formas de alimentação e de habitat (FOUCAULT, 2009a).

Antes de morrer, em 1984, Foucault conseguiu publicar três volumes da História da sexualidade. A nosso ver, o autor, para além da sexualidade, ou melhor, pela via da sexualidade, estava interessado em estudar os modos como se estabelecem governos da vida. Em um curso sobre A governamentalidade, argumenta que o problema do governo aparece no século XVI na convergência de dois momentos (instauração dos grandes Estados territoriais e a dispersão religiosa), cuja intensidade particular se deu nesse século, que se coloca "o problema de como ser governado, por quem, até que ponto, com qual objetivo, com que método etc." (FOUCAULT, 2008b, p. 278).

Toda uma rede de saber-poder que avança no sentido do corpo-espécie dentre os quais podem se destacar: estatística, controle de natalidade, epidemiologia e medicina sanitarista.

Mediante a análise de alguns dispositivos de segurança, o autor procura investigar a emergência do problema da população e sua conexão com a arte de governar, tentando fazer um inventário da relação de segurança, população e governo. O governo do corpo acontece em relação à população e à segurança para evitar riscos de doenças, de prejuízos e aumentar a produtividade.

Atualmente pesquisas ligadas ao governo do corpo-espécie e ao controle da vida são amplamente divulgadas na mídia. A importância do uso da camisinha para o controle de natalidade e prevenção das DSTs (doenças sexualmente transmissíveis), sobretudo na população juvenil, a perigosa associação entre bebida alcoólica e direção na campanha da "lei seca", ou de estratégias de combate à dengue denotam convergência entre o discurso científico e o midiático como estratégia de governamentalidade. Cada vez mais surgem leis restritivas ao uso do cigarro. Spink (2009) escreveu um artigo sobre uma dessas leis ( 14.805/08 ) que passou a vigorar em 2008 no Estado de São Paulo. Além de leis, práticas cotidianas, como a de famílias que condenam o fumo em nome da saúde do fumante e também da segurança dos fumantes passivos, tornam-se comuns. O cheiro do cigarro passou a ser considerado desagradável, os protagonistas dos filmes de Hollywood já não portam carteiras de cigarro e isqueiros. Nas embalagens de cigarros são exibidas imagens de corpos doentes e alertas de que crianças aprendem a fumar vendo os adultos fumando. São ainda criadas relações entre cigarro e sexo, nas quais o Ministério da Saúde adverte: "O uso deste produto diminui, dificulta ou impede a ereção". O ato de fumar torna-se um problema não apenas de quem fuma e sim da população; desse modo, deve ser gerido por todos e todas. Outrora, o discurso midiático e o discurso científico encontravam-se em campos diversos, pois o fumo era estimulado em filmes e publicidades e, ao mesmo tempo, era considerado maléfico à saúde e proibido para crianças e adolescentes. Atualmente, há uma apropriação do discurso científico pela mídia, como corrobora a ideia presente em outro trabalho:

A nossa hipótese consiste em pensar que a intensa circulação de discursos presentes na televisão, tanto de ordem exterior (discurso jurídico, político, psicológico, científico, higiênicoassistencialista dentre outros), quanto aqueles engendrados em seu fazer diário (discurso jornalístico, publicitário, teledramatúrgico etc.) acaba por configurá-la como um campo discursivo de grande alcance, responsável por modos de ver, pensar e sentir o mundo, constituindo como modo de subjetivação privilegiado na contemporaneidade (MIRANDA, 2009, p. 169).

Assim, para Foucault (2008b), a governamentalidade é uma forma específica e complexa de poder que tem por alvo a população, utilizando-se do saber da economia política, da estatística e de dispositivos de segurança, que acabaram por constituir aparelhos específicos de governo do Estado moderno, apoiado numa cientificidade e muitas vezes tratado, amplificado, transformado em discurso midiático.

PRÁTICAS DE SI: ENTRELAÇAMENTO DE DISCURSOS CIENTÍFICOS E MIDIÁTICOS

No livro "História da sexualidade III: o cuidado de si", Foucault (2007) inicia falando de um texto de Artemidoro sobre a interpretação dos sonhos. Essa interpretação é apresentada como uma prática de vida que deve acontecer no decurso cotidiano, realizado não só por "profissionais das imagens da noite" (FOUCAULT, 2007, p.14), mas também pelo próprio sonhador. Os sonhos eram entendidos como uma possível previsão do futuro, mas sua interpretação se dava não para que o futuro pudesse ser modificado, porquanto isso era considerado impossível, mas para que os sujeitos suportassem mais facilmente seu sofrimento quando a profecia se realizasse. Foucault recorre a esse texto do século II d.c. para iniciar uma narração histórica do processo do voltar-se para si mesmo, da produção das práticas de si. Assim, conforme se percebe, a ação da interpretação do sonho acontece para que os sujeitos olhem para si, cuidem de si.2 2 Segundo Castro (2009, p. 93), o cuidado de si, "do governo de si mesmo por si mesmo, na sua articulação com as relações com os outros" possui em Foucault três momentos fundamentais: o momento socrático (século V a.c.), marcado pela relação cuidado e conhecimento; a idade de ouro da cultura do cuidado de si (séculos I e II) com a extensão à vida adulta e não apenas à adolescência e à finalidade, pois tem menos a pólis como fim último, e mais a relação consigo mesmo; e a passagem do ascetismo pagão ao ascetismo cristão (séculos IV-V) quando ocorreu a integração das práticas de si ao poder pastoral.

Nessa incursão histórica, Foucault (2007, p. 233) discute sobre a moral grega na Antiguidade clássica para falar das suas reverberações nas práticas atuais de existência:

Platão, Isócrates, Aristóteles, cada um à sua maneira e por razões diversas, recomendavam pelo menos algumas formas de fidelidade conjugal. [...] E de certa forma, a austeridade sexual, que se encontra nos filósofos dos primeiros séculos de nossa era se enraíza nessa tradição antiga, pelo menos na medida em que ela anuncia uma moral futura.

Como o autor nos mostra, na Grécia antiga e, podemos dizer, até hoje, as questões morais incidem significativamente sobre o cuidado do corpo, da saúde, o casamento, o amor e as relações extraconjugais. Àquela época, as práticas de si, os preceitos morais produziam uma necessidade da abstinência para conservação de valores espirituais de purificação. No entanto, há uma diferença fundamental entre a moral grega e a nossa: os gregos desconheciam a norma e as sanções da norma, as prescrições eram facultativas, cidadãos livres podiam ou não segui-las, fazendo das suas existências uma obra estética, ancorada no cuidado de si. Foucault (2007, p. 235) pontua que esta abstinência tem mudado, sendo cada vez menos endereçada a finalidades espirituais e cada vez mais ligada à noção da imperfeição humana, passível de queda, de acabar, morrer, realizar ações maléficas ao próprio corpo, à própria vida:

Assim, no refinamento das artes de viver e o cuidado de si, esboçam-se alguns preceitos que parecem bem próximos daqueles cujas formulações serão encontradas nas morais ulteriores. [...] Essas morais definirão outras modalidades da relação consigo: uma caracterização da substância ética a partir da finitude, da queda e do mal; um modo de sujeição na forma da obediência a uma lei geral que é ao mesmo tempo vontade de um deus pessoal; um tipo de trabalho sobre si que implica decifração da alma e hermenêutica purificadora dos desejos; um modo de realização ética que tende a renúncia a si. [...] uma ética profundamente remanejada de uma outra maneira de constituir-se a si mesmo enquanto sujeito moral de suas próprias condutas sexuais.

Atualmente, é comum ver pessoas das mais diversas faixas etárias modificando seus hábitos e práticas cotidianas no tocante a exercícios físicos, alimentação e práticas sexuais para evitar doenças, para alcançar longevidade etc.

Segundo destaca Fischer (1996), num estudo sobre adolescência e mídia, a relação consigo é importante no processo de construção do sujeito adolescente, pois nesta relação se institui um sujeito que se reconhece em suas ações e essas devem trazer-lhe aprendizagem, aperfeiçoamento e construção de valores. Os exercícios de produção do sujeito encontram-se marcados pelos discursos científicos, geralmente de grande circulação, sustentando políticas públicas de saúde, educação e assistência, ocupando lugar de "verdade", substituindo com sucesso o pecado pela doença e a morte. Assim, o modelo de saúde proposto nos saberes biomédicos acaba sendo referência para a relação do sujeito consigo mesmo, como nos afirma Foucault (2007, p. 106):

A medicina não era, a esse título, simplesmente concebida como uma técnica de intervenção que, em caso de doença, empregaria remédios e operações. Ela também devia, sob a forma de um corpus de saber e de regras, definir uma maneira de viver, um modo de relação refletida consigo, com o próprio corpo, com o alimento, com a vigília e com o sono, com as diferentes atividades e com o meio. A medicina teria a propor, sob a forma de um regime, uma estrutura voluntária e racional de conduta.

Além dos discursos científicos, ou melhor, ao lado desses, Fischer (2002) acrescenta que a mídia ocupa um espaço significativo em relação à produção e à circulação de valores, de modelos, concepções acerca de quem somos, do que devemos fazer com o nosso corpo, qual deve ser nossa alimentação diária, propondo fazermos mudanças nas atitudes e nos nossos modos de viver, atuando como um dispositivo pedagógico na contemporaneidade. Assim, a mídia se configura como um espaço que opera na produção de subjetividades em nosso cotidiano, na medida em que produz saberes voltados para educar e para formar corpos e subjetividades. Reitera a mencionada autora:

A mídia é um lugar privilegiado de criação, reforço e circulação de sentidos, que operam na formação de identidades individuais e sociais, bem como na produção social de inclusões, exclusões e diferenças – temas fundamentais hoje nos mais diversos campos das ciências humanas. [...] A mídia não apenas veicula, mas também constrói discursos e produz significados, identidades e sujeitos (FISCHER, 2001b, p. 588).

A respeito dos discursos veiculados e produzidos na mídia que colaboram na produção de sujeitos, existem programas de televisão voltados para o público adolescente, como o Altas Horas, produzido e transmitido pela emissora de televisão Rede Globo. Esse, em um dos seus quadros, convida uma sexóloga para esclarecer dúvidas da plateia sobre sexo e informar sobre DSTs. Na mídia, o sujeito é chamado a se confessar. A confissão – já descrita como mecanismo privilegiado do dispositivo da sexualidade – é amplificada agora no espaço público da mídia. A profissional, então, prescreve condutas, incita reflexões, produzindo um sujeito adolescente que fala sobre sexo, aprende alguns comportamentos recomendáveis e, ao mesmo tempo, é convidado a refletir sobre outros.

Dessa forma, a televisão não precisa apenas de espectadores e espectadoras, mas também de expectadores e expectadoras, ou seja, não basta assistir aos programas, é necessário esperar, ter expectativas sobre o que irá aparecer e sobre em que aquilo que aparece pode mudar seu modo de viver, a ponto de passar a consumi-lo. Nesse sentido, os programas televisivos se destinam a um público, um recorte de uma massa, mas também a cada um especificamente, para atuar na produção dos modos de vida de todos e de cada um.

É importante salientar o seguinte: os discursos midiáticos e científicos, frequentemente, aparecem articulados. Por exemplo, as disposições dos programas televisivos na programação da emissora (em que horário cada programa acontece, a qual público o programa se destina) e a produção de campanhas publicitárias se ancoram em resultados de pesquisas feitas com caminhos metodológicos similares aos descritos em investigações científicas. Além disso, na mídia circulam saberes científicos, resultados de pesquisas realizadas por laboratórios, pareceres de especialistas etc. Ao mesmo tempo, existem pesquisas científicas cujo objetivo é analisar determinados programas televisivos, matérias de jornais, entre outros. É preciso considerar ainda que o processo de produção da ciência não se encontra neutro e indiferente à mídia, hoje presente em quase todos os lugares da vida urbana. Assim, os discursos científicos e midiáticos se relacionam de modo direto e indireto.

Neste entrecruzamento, o discurso científico ganha destaque ao ser desterritorializado de uma linguagem técnica e reterritorializado em sons e imagens, em uma linguagem que se pretende de maior abrangência. Brugge (2010, p. 145) chama a atenção para o "caráter cientificista do discurso midiático e o caráter midiático do discurso da ciência". Dessa forma, o campo da subjetivação, da relação que o sujeito tem consigo torna-se mediado por estes discursos atualmente, ajudando-o a conduzir-se a si mesmo.

Corpo-indivíduo e corpo-espécie: tematizados, descritos, normalizados, interpretados, analisados, prescritos, incitados no entrecruzamento discursivo ciência e mídia. No entanto, conforme visto no início deste trabalho, o corpo recortado não é inerte, ele produz resistência. O/a telespectador/a, diante de todos os tensionamentos presentes em seu cotidiano, vai construindo uma relação consigo, uma dobra, que refuta, recebe, torce e distorce as informações numa curva única e diversa: a da sua subjetivação.

NOTAS

Recebido em: fevereiro de 2010

Aceito em: novembro de 2010

  • BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
  • BRUGGE, U. L. Corpo, mídia e educação: uma arquegenealogia da produção imagético-discursiva dos corpos femininos contemporâneos. 2010. 150f. Dissertação (Mestrado em Educação Brasileira)Faculdade de Educação, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010.
  • CASTRO, E. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos temas, conceitos e autores. Tradução: Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
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  • FISCHER, R. Mídia e educação da mulher: uma discussão teórica sobre modos de enunciar o feminino na TV. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 2, p. 586-599, 2ş semestre de 2001b. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/ref/v9n2/8642.pdf>. Acesso em: 23 out. 2009.
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  • FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1996.
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  • FOUCAULT, M. A ordem do discurso Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. 17. ed. São Paulo: Loyola, 2008a.
  • FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Tradução e organização: Roberto Machado. 26. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008b.
  • FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. Tradução: Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 19. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2009a. v. 1.
  • FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 36. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009b.
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  • VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
  • 1
    A noção de ser humano como sujeito da razão sofre impacto, séculos mais tarde, com o surgimento da psicanálise. Propositora do rompimento da noção dual de corpo
    versus espírito e de racionalidade
    versus irracionalidade, a psicanálise acaba por redimensionar a noção de sujeito, como aponta Joel Birman (2000, p. 21): "A rigor, não existe o sujeito e seu corpo, numa dualidade e polaridade insuperáveis, mas um corpo-sujeito propriamente dito".
  • 2
    Segundo Castro (2009, p. 93), o cuidado de si, "do governo de si mesmo por si mesmo, na sua articulação com as relações com os outros" possui em Foucault três momentos fundamentais: o momento socrático (século V a.c.), marcado pela relação cuidado e conhecimento; a idade de ouro da cultura do cuidado de si (séculos I e II) com a extensão à vida adulta e não apenas à adolescência e à finalidade, pois tem menos a pólis como fim último, e mais a relação consigo mesmo; e a passagem do ascetismo pagão ao ascetismo cristão (séculos IV-V) quando ocorreu a integração das práticas de si ao poder pastoral.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Recebido
      Fev 2010
    • Aceito
      Out 2010
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