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Escrita ensaística: fragmentos menores

Writing essays: minor fragments

Resumos

Neste ensaio propomos problematizar a escrita institucionalizada a partir de um conjunto de normas, do controle e imposição de certas palavras, da reprodução do já instituído. Na contramão desta lógica, procuramos outros atalhos, desvios e possibilidades de empreender uma escrita desgrudada das representações e de palavras de ordem, ensaiando outras maneiras de pensar e escrever, produzindo novos sentidos a existência. Para tecer os fios desta escrita escolhemos como intercessores alguns conceitos de Michel Foucault e Gilles Deleuze. Buscamos assim, pensar na produção de novos modos de subjetivação a partir da escrita menor, destituindo o reinado da palavra enquanto vontade de verdade.

escrita; subjetividade; filosofia da diferença


In this essay, we aim at problematizing the institutionalized writing by considering a set of norms, the control and imposition of certain words, and the reproduction of what has been instituted. Contrarily to this logic, we have searched for new shortcuts, pathways and possibilities of carrying out writing as something unattached to order words and representations, by experimenting other ways of thinking and writing, thus producing new meanings of existence. In order to weave the threads of this essay, we have chosen some concepts by Michel Foucault and Gilles Deleuze as intercessory means. We have aimed at thinking about the production of new ways of subjectivation from a minor writing, by displacing the words from their position of will of truth.

writing; subjectivity; Philosophy of difference


Escrita ensaística: fragmentos menores

Writing essays: minor fragments

Fabiane Olegario; Angelica Vier Munhoz

Centro Universitario Univates, Lajeado, RS, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Centro Universitário Univates, Fuvates. Avenida: AvelinoTallini – Universitário. CEP: 95900-000. Lajeado, RS – Brasil. E-mail: fabijj10@yahoo.com.br, angelicavmunhoz@gmail.com

RESUMO

Neste ensaio propomos problematizar a escrita institucionalizada a partir de um conjunto de normas, do controle e imposição de certas palavras, da reprodução do já instituído. Na contramão desta lógica, procuramos outros atalhos, desvios e possibilidades de empreender uma escrita desgrudada das representações e de palavras de ordem, ensaiando outras maneiras de pensar e escrever, produzindo novos sentidos a existência. Para tecer os fios desta escrita escolhemos como intercessores alguns conceitos de Michel Foucault e Gilles Deleuze. Buscamos assim, pensar na produção de novos modos de subjetivação a partir da escrita menor, destituindo o reinado da palavra enquanto vontade de verdade.

Palavras-chave: escrita; subjetividade; filosofia da diferença.

ABSTRACT

In this essay, we aim at problematizing the institutionalized writing by considering a set of norms, the control and imposition of certain words, and the reproduction of what has been instituted. Contrarily to this logic, we have searched for new shortcuts, pathways and possibilities of carrying out writing as something unattached to order words and representations, by experimenting other ways of thinking and writing, thus producing new meanings of existence. In order to weave the threads of this essay, we have chosen some concepts by Michel Foucault and Gilles Deleuze as intercessory means. We have aimed at thinking about the production of new ways of subjectivation from a minor writing, by displacing the words from their position of will of truth.

Keywords: writing; subjectivity; Philosophy of difference.

Talvez seja orgulho querer escrever, você às vezes, não sente que é? A gente deveria se contentar em ver, às vezes.

(Clarice Lispector)

A partir dos estudos de Larrosa (2004), compreendemos o ensaio como um modo experimental do pensamento, uma escrita como linguagem voltada a problematizar a si mesmo. Assim, essa escrita ensaística propõe algumas ferramentas conceituais para pensar as experiências de escrita e problematizar a escrita estratificada.

Uma escrita que possa subverter o que chamamos de linguagem-raiz inserida no modelo arborescente,1 1 "Os sistemas arborescentes são sistemas hierárquicos que comportam centros de significância e de subjetivação, autômatos centrais como memórias organizadas." (Deleuze; Guattari, 1995, p.28). (que fixa as palavras nas coisas ao grudar identidade aos objetos). Neste sentido, trazemos as palavras de Mosé a fim de mostrar como entendemos a questão: "nomear é impor identidade ao múltiplo, ao móvel, é forjar uma unidade que a pluralidade de coisas não representa" (MOSÉ, 2005, p. 72). Assim, aquilo que nomeamos e identificamos ganha imobilidade, pois nos povoa de imagens arborescentes. Tais imagens remetem à metáfora clássica da árvore que tem como características pontos fixos de onde surgem galhos ligados a um centro. Essa lógica arborescente e dual influenciou a formação do pensamento ocidental em tal medida em que é difícil pensar fora dela.

A palavra também tomou o rumo da racionalidade lógica cartesiana, pois o sujeito pensa, portanto, logo existe. Poderia este sujeito sentir, portanto, logo existir? Chorar ou amar e logo existir? Acompanhando o pensamento de Mosé (2005), nos interessa nestas primeiras palavras dar ênfase à linguagem como produto da necessidade, da vontade de verdade que nos atravessa enquanto sujeitos constituídos pela história, e, contudo, apontar a predominância da verdade sobre a ilusão, a fantasia e a criação.

Nietzsche nos brinda com um pensamento implicado nas reflexões relacionadas à vida. Os aforismos nietzschianos rompem com a formatação do pensamento baseado na lógica universalizante produzindo seus efeitos nos modos de escrever. Como uma escrita inacabada, os aforismos dispõem o pensamento à decifração de sentidos múltiplos, cujo ponto de partida é sempre um devir.

Na esteira de Nietzsche, queremos compor outros modos de olhar para o familiar, instaurando a dúvida na certeza, suspendendo os ditos acerca da escrita, minando e recusando a verdade da linguagem que trata de impor os sentidos únicos que, reproduzidos pelo padrão de modelagem do pensamento, produzem escritas que se inserem na formatação do idêntico. Importa-nos sublinhar que não se trata de oposições binárias, com características bem definidas, de um lado a escrita fixa, que obedece ao padrão, em contraposição às experiências e subversões da escrita.

Todavia, partimos com o olhar atento às classificações, representações e dualismos. Entendemos a necessidade de problematizar a vontade de verdade2 2 A vontade de verdade para Foucault apóia-se sobre os suportes institucionais (práticas pedagógicas, sistemas de edição, bibliotecas), exerce uma espécie de pressão ou coerção sobre os outros discursos. (CASTRO, 2009). que carrega a escrita arranhada pelas garras do juízo de valor que impõe as noções de "ou isto ou aquilo", "é isto", "é assim", as quais objetivam revelar uma essência na descoberta de uma origem que compreenderia possuir os critérios da certeza.

O que pretendemos pontuar, portanto, se traduz na ausência de interesse em substituir uma forma por outra, até porque a forma é necessária à possibilidade de criação. Abandonar as marcas que nos constituem, mesmo que por alguns instantes, permitir que outras forças venham a nos compor, desfazendo o "eu" soberano e detentor da verdade que nos habita, tomando a escrita como devires crianceiros3 3 Sandra Corazza (2003; 2004) é a criadora dessa expressão, bem como: meninar; crianceirar e outras. A autora se refere a uma força, a um situar-se intensivo no mundo, um sair do "seu" lugar e situar-se em outros lugares, desconhecidos e inesperados. e velocidades arteiras que permitem deslizar pelas bordas, sacudir as interpretações fixas e as significações "duras".

Importa olhar diferente, ensaiando outras maneiras de olhar a escrita. Desta forma, apontamos para a necessidade de problematizar a escrita centrada na representação do já dado, visto que é no seu interior que buscamos a imersão de outros modos de subjetivação, a partir das experiências de escrita. Contudo, é importante registrar que "a subjetividade não é algo abstrato, trata-se da vida, mas precisamente das formas de vida" (PELBART, 2000, p. 37).

Para extrair elementos que componham outras paisagens, desviando o olhar acostumado a ver com as mesmas lentes, buscamos alguns conceitos que funcionam como intercessores.4 4 Os "intercessores" é um conceito criado por Gilles Deleuze (1992). Segundo o filósofo sem os intercessores não existiria obra. Os intercessores podem ser pessoas, coisas, plantas e animais, fictícios ou reais, animados ou inanimados. São encontros que fazem com que o pensamento saia de sua imobilidade. Desse modo, Deleuze ressalta que é preciso fabricá-los. Assim, encontramos pontos convergentes com o pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari, dos quais destacamos o uso do termo menor. O conceito "menor" criado por Deleuze e Guattari (1977) se refere à literatura de Franz Kafka (1883-1924), no sentido que "uma literatura menor não é de uma figura menor, mas, antes, a que uma minoria faz em uma língua maior. No entanto, a primeira característica é, de qualquer modo, que a língua aí é modificada por um forte coeficiente de desterritorialização" (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 25). Gostaríamos de frisar que o conceito de menor não está em uma posição de polaridades, tampouco vislumbra o sentido diminutivo que sugere a palavra no seu entendimento e significado representacional. Os menores são pensados como um modo de subversão, de resistência e de luta ao modelo arborescente, "o menor como aquele que está abaixo da palavra de ordem, como aquele que escapa a lei, ao significado" (ZORDAN, 2004, p. 85).

Desta maneira, a escrita menor desfaz o sujeito a cada traçado, proporcionando uma nova dança do pensamento: "nesta aventura encarna-se um sujeito, sempre outro: escrever é traçar, é devir sempre outro. Escrever é esculpir com palavras a matéria-prima [...] escrever é fazer letra para a música do tempo" (ROLNIK, 1993, p. 246). Talvez por meio da escrita possamos criar práticas de liberdade, sendas possíveis de uma vida como obra de arte, esfarelando a verdade da linguagem-raiz.

Convém ressaltar que as distinções entre maioria e minoria, referidas por Deleuze (1992), não estão relacionadas a quantidades numéricas, pois uma minoria pode ser mais numerosa que a maioria. A minoria é devir e não entende a língua da ordem, do regramento, e isto implica em desconhecer os modelos. As minorias se alojam na linha do devir, sempre inacabado e incompleto. Os devires se produzem em terras menores, nunca em reinos majoritários, inclusive, tratam de escrita, pois toda a escrita é inseparável do devir. Devir como capacidade de estratégias de resistência. Ainda com Deleuze, "ao escrevermos estamos em um devir-mulher,5 5 Deleuze e Guattari (1977) entendem que o devir só existe nos modos minoritários, neste sentido desconsideram que haja possibilidades de pensar o devir-homem, visto que a identidade homem é majoritária por excelência. num devir-animal ou vegetal, num devir-molécula, até num devir-imperceptível" (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 11). Devir corresponde ao informe, à matéria relacionada à escrita para um povo por vir.

Assim, a maioria se apresenta como um modelo que procura se impor como norma, enquanto a minoria é antes um processo, um devir-outro, uma ruptura com o mesmo e uma abertura para o novo enquanto processo de criação.

O devir carrega uma dimensão política de vida, estabelece conexões com a produção da expressão ética. De fato, a educação maior não apresenta devires na sua composição, pois é majoritária, e supõe um estado de dominação e o "discurso educacional é o juízo de Deus. É o discurso da condenação e da negação. É o discurso da indicação do reto caminho" (CORAZZA, 2004, p. 128). Entretanto, ainda que seja majoritária, o devir lhe é possível, pois, "no coração de uma árvore, no oco de uma raiz ou na axila de um galho, um novo rizoma pode se formar" (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 24).

O rizoma, composto de linhas e traçados, não tem início ou fim, a sua força está no meio – lugar de ebulição, de invenção, de diferenciação.

Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza. [...] Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 32)

Ressaltamos assim, que este estudo não pretende substituir um juízo pelo outro: não se trata de assinalar, afirmar ou manter as formas binárias, polares e dualistas de pensar, e tampouco se trata de permanecer onde estamos, visto que o que interessa é "estarmos atentos ao desconhecido que bate à porta" (DELEUZE, 1996, p. 94). Portanto, seguindo as indicações de Corazza (2004, p. 129), "resolvemos tomar um desvio, um atalho, um jardim que se bifurca, pra ver no que ia dar. Só pelo agridoce prazer da experimentação, do inesperado e do imprevisível. Já estávamos prá lá de cheios da mesmice e do mesmo".

ESCRITA ENTRELAÇADA EM LINHAS

Os estudos pós-estruturalistas procuram de certo modo, buscar algumas saídas e não soluções, privilegiando as perguntas e não as respostas. Em Foucault (1988), entendemos que as relações de poder são instáveis e mutáveis, "reclamam a cada instante, abrem a possibilidade de uma resistência" (FOUCAULT apud CASTRO, 2009, p.387).

Isso significa que, nas relações de poder, há necessariamente possibilidade de resistência, pois se não houvesse possibilidade de resistência – de resistência violenta, de fuga, de subterfúgios de estratégias que invertam a situação - não haveria de forma alguma relações de poder. (FOUCAULT, 2004, p. 277)

Encontramos a partir da possibilidade de resistência uma chance, ou então, uma saída, um pouco de possível, novas composições de forças potentes de fluxos, as quais nos indicam possibilidades de experimentação de novos estilos de vida, configurando-se em uma questão de existência, que se encontra pulsando na tensão de uma ética que nos incita a experimentar e uma ética que nos convoca à prudência, para "construir um eu fora dos modelos e dos códigos impostos" (ARAÚJO, 2008, p. 179).

Foucault (1984) problematiza as formas de pensar homogêneas, pois "existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, são indispensáveis para continuar a olhar ou a refletir" (FOUCAULT, 1984, p.15), sendo que as práticas de resistência nos possibilitam a "recusar o que somos" e consequentemente a "promover novas formas de subjetividade" (FOUCAULT, 1995, p. 271).

No que tange às formas de subjetivação em relação à escrita, encontramos nos últimos escritos de Foucault uma força potente para continuar a pensar no conceito de subjetivação, que nos interessa para continuar a tecer os fios deste ensaio. Interessante perceber que o filósofo não altera a problemática do seu trabalho - no domínio do ser-consigo6 6 Estamos nos referindo ao terceiro domínio da obra foucaultiana que trata da constituição do sujeito consigo próprio (ser-consigo) ou de como nos constituímos enquanto sujeitos de conhecimento. (FOUCAULT, 1985; 1988). - mas há um deslocamento de perspectiva em relação à subjetivação do sujeito. Em outras palavras, produz um novo significado para os modos de subjetivação, isto é, trata da possibilidade de constituir-se eticamente a existência, no sentido de inventar outros modos de conduzir a própria vida, destituindo o reinado da palavra enquanto vontade de certeza e de verdade.

Quais são nossos modos de existência, nossas possibilidades de vida, ou nossos processos de subjetivação? Será que temos maneiras de constituirmos. Como si, e, como diria Nietzsche, maneira suficientemente artista, para além do saber e poder? (DELEUZE, 1992, p. 124)

Perseguir o pensamento de Foucault sobre os modos de subjetivação, que "não se referem mais a prática coercitiva, mas a uma prática de autoformação do sujeito", (FOUCAULT, 2004, p.265) não é tarefa fácil, visto que supõe o enfraquecimento da forma dominante, o esfacelamento do sujeito, a crítica à verdade e o elogio à invenção, inaugurando novas maneiras de viver compondo com as forças ativas7 7 Utilizamos o conceito nietzschiano que trata das forças, pois para o filósofo a força é uma ação e uma força sempre se relaciona com outra força. Podemos agir sobre a força com uma vontade ativa ou reativa (escrava ou nobre). Quando agimos com uma força ativa afirmamos a vida, ao contrário da força reativa que despontencializa e empobrece a vida. novos estilos de vida, selados fundamentalmente através de um compromisso ético-imanente com a vida e com a escrita. Em outras palavras, operar em fluxos adquirindo velocidades produzidas pelas "unidades complexas: em que um passo para a vida, um passo para o pensamento, contudo, os modos de vida inspiram novas maneiras de pensar. Os modos de pensar criam maneiras de viver" (DELEUZE, 1994, p. 17-18).

Nessa perspectiva de entendimento que se inscreve a partir da reunião de heterogêneos, aproximamos as escritas menores ao conceito de linha de fuga, criado pelos filósofos Deleuze e Guattari (1977). A perspectiva filosófica deleuziana não entende a fuga como fugir de algo, mas a interpreta como uma saída, ou melhor, uma possibilidade de reinventar as resistências no âmbito micropolítico. Neste sentido, sublinham que "o problema de modo algum é ser livre, mas encontrar uma saída, ou então, uma entrada, ou então um lado, um corredor, uma adjacência, etc". (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 14), e mais adiante: "a possibilidade de uma saída para escapar disto, uma linha de fuga". (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 20).

Parafraseando Corazza (2004), a política deleuziana aposta nos movimentos moleculares das linhas de fuga como forma de resistência e criação, sendo que nem mesmo estas linhas escapam do processo segmentarizado duro ou molar, pois não há um mundo das formas duras e um mundo do devir, mas "diferentes estados das linhas, diferentes tipos de linhas, cuja intricação constitui o mapa remanejável de uma vida" (ZOURABICHVILLI, 2004, p. 62).

Deleuze e Guattari (1996) afirmam que somos feitos de linhas e consideram a existência de três linhas, apontando para cada uma delas as seguintes características: "linha de segmentaridade dura ou linha molar", em que tudo aparece contável e previsível, a qual se desenvolve por meio de segmentos, etapas pelas quais passamos ao longo da vida, de modo a garantir a estabilidade da identidade e funcionalidade de cada instituição ou grupo; "linha de segmentação maleável ou linha molecular" atua nas bordas, sendo percorrida por zonas flexíveis, imóveis e é arrastada por micromovimentos, produzindo algumas fissuras e posturas que atravessam os grupos e as instituições molares; "linha de fuga", na qual não há formas, sendo constituída por uma linha de ruptura e criação.

Assim, as linhas de fuga não nos colocam em fuga, mas nos indicam uma saída, sendo que "o grande erro, o único erro, seria acreditar que uma linha de fuga consiste em fugir da vida; a fuga para o imaginário ou para a arte. Fugir, porém, ao contrário, é produzir algo real, criar uma vida, encontrar uma arma" (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 62).

Nesse sentido, apontamos o interesse nos conceitos anteriores, pois, a linha de fuga nos permite reconfigurar a cena, instalando outros movimentos, estabelecendo novos arranjos, ritmos e melodias às linhas duras que compõem a cada um de nós, permitindo a mistura de heterogêneos, embriagando cada palavra, provocando o riso e a dança marginal, que ao nascer ateou fogo no modelo, "como um desejo de distanciar-se de si mesmo e empreender um esforço de pensar diferente do que se pensa" (FISCHER, 2001, p. 214). Entendemos que as distinções entre as linhas são oportunas para problematizar as relações de verdade, poder e saber que se alastram em cada traçado da escrita.

Neste sentido, o menor encontra sua linha de fuga, movimento que não cessa de buscar o molecular, entendido como instância do nomadismo, pois, segundo Deleuze e Parnet (1998, p. 49), "fugir é traçar linhas". As linhas de fuga são os movimentos criados pelas minorias, em que inauguram outra política de vida, escapando dos movimentos de ordem, encontrando um espaço da resistência e da experiência, renunciando às formas de sujeição que impõe determinado modelo de escrita.

Entendemos que os conceitos sobre os quais tratamos até aqui, quando remexidos e revirados, são ferramentas para pensar as experiências de escrita, de uso e entendimento menor. Podemos então pensar na afirmativa deleuziana em que tudo escapa, vazando o sistema educacional de segmento molar, abrindo as brechas, fazendo escorrer o fluxo da diferença, provocando novas fissuras e rachaduras no pensamento da representação, no interesse de afirmar a variação e os fluxos que carregam aquilo que ainda derrama, grita e geme através das linhas que pululam a invenção de si.

PERCURSOS MENORES

Trata-se não de pensar a língua maior em contraposição à língua menor, no sentido de opostos binários; e muito menos de apontar o melhor ou o pior uso, "não por que o minoritário seja o justo, o bom, o correto. O devir minoritário é desejável simplesmente porque é o minoritário que, correndo por fora, ainda é molecular, ainda é pura fluidez e flexibilidade". (CORAZZA, 2004, p. 152-153)

Ao mesmo tempo em que identificamos e nomeamos a língua maior, relacionando os usos da língua menor, salta a diferença que se encontra no entremeio destas funções, portanto a língua menor não está em posição inferior ou abaixo de uma língua maior; tampouco em uma relação binária, dicotômica sob o jugo de valores. Desse modo, sentimos a necessidade de tomar emprestadas as palavras de Deleuze e Parnet (1998, p. 29):

Os dualismos não se referem mais às unidades, e sim a escolhas sucessivas: você é branco ou negro, um homem ou uma mulher, um rico ou um pobre, etc? Você fica com a metade esquerda ou com a metade direta? Há sempre uma máquina binária que preside as distribuições dos papéis e que faz com que todas as respostas devam passar por questões pré-formadas, já que as questões são calculadas sobre supostas prováveis segundo as significações dominantes.

A partir das contribuições de Deleuze e Guattari (1995) percebemos a necessidade da apreensão dos regimes da língua maior para pôr em fuga a língua menor, haja vista que o problema não é a distinção entre uma língua maior e uma língua menor, mas de um devir. A vontade de criação na escrita se intensifica ao extrair da língua maior os seus usos e funções menores. Dito de outro modo trata-se, de uma minorização da língua maior. Portanto, não interessa à língua menor seguir modelos e tampouco propor caminhos e soluções, porém o que a mobiliza potencializando seus fluxos são os atos de singularização que se inscrevem na produção de conexões sempre novas e inventivas.

Ao sair de casa e suspender as aprendizagens (aquelas que nos impedem de pensar), é preciso ter coragem para enfrentar os riscos. A escrita e o pensamento são da ordem do devir, que está sempre em contraposição à imitação, à reprodução, à identificação. É nesse sentido que escrever é tornar-se diferente do que se é, produzir novos efeitos e outras sensações que desestabilizam a cognição, dando vazão à experiência. A experiência se opõe a paralisia da criação, as opiniões generalizantes, à escrita alinhada e obediente. Nesse contexto, pensar é a própria potência da experiência.

O pensamento é o movimento de sua própria intensidade, enquanto efetua-se em si mesmo. É o próprio sentido, nada está fora dele e não há maneira de pensar que não seja a realização de uma experiência, o puro ato do acontecimento (MUNHOZ, 2011, p. 26)

O menor opera dentro do maior, produzindo buracos e novas trincheiras, fazendo fugir o homogêneo e a representação. Andarilho, nômade, que durante o trajeto "solta o ar fresco das outras possibilidades, potencializando aquilo que aumenta as forças da afirmação" (SILVA, 2004, p. 22).

Enfim, buscamos experimentar um pensamento que é imanente à vida, cujas forças nos impulsionam a viver em meios rizomáticos, escapando das formas totalizantes, estendendo e expandindo a potência e a alegria que encontra nos interstícios de recriação de si, a desconstrução das formas dominantes de escrita. Esse pensamento que se afirma enquanto prática imanente decorre das experiências vividas em sua singularidade.

NOTAS

Recebido em: 01 de março de 2012

Aceito em: 23 de janeiro de 2013

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  • FOUCAULT, M. Sobre a genealogia da ética: uma revisão de trabalho. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. (Org.). Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 253 -278.
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  • ZOURABICHVILLI, F. O vocabulário de Deleuze Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004.
  • 1
    "Os sistemas arborescentes são sistemas hierárquicos que comportam centros de significância e de subjetivação, autômatos centrais como memórias organizadas." (Deleuze; Guattari, 1995, p.28).
  • 2
    A vontade de verdade para Foucault apóia-se sobre os suportes institucionais (práticas pedagógicas, sistemas de edição, bibliotecas), exerce uma espécie de pressão ou coerção sobre os outros discursos. (CASTRO, 2009).
  • 3
    Sandra Corazza (2003; 2004) é a criadora dessa expressão, bem como: meninar; crianceirar e outras. A autora se refere a uma força, a um situar-se intensivo no mundo, um sair do "seu" lugar e situar-se em outros lugares, desconhecidos e inesperados.
  • 4
    Os "intercessores" é um conceito criado por Gilles Deleuze (1992). Segundo o filósofo sem os intercessores não existiria obra. Os intercessores podem ser pessoas, coisas, plantas e animais, fictícios ou reais, animados ou inanimados. São encontros que fazem com que o pensamento saia de sua imobilidade. Desse modo, Deleuze ressalta que é preciso fabricá-los.
  • 5
    Deleuze e Guattari (1977) entendem que o devir só existe nos modos minoritários, neste sentido desconsideram que haja possibilidades de pensar o devir-homem, visto que a identidade homem é majoritária por excelência.
  • 6
    Estamos nos referindo ao terceiro domínio da obra foucaultiana que trata da constituição do sujeito consigo próprio (ser-consigo) ou de como nos constituímos enquanto sujeitos de conhecimento. (FOUCAULT, 1985; 1988).
  • 7
    Utilizamos o conceito nietzschiano que trata das forças, pois para o filósofo a força é uma ação e uma força sempre se relaciona com outra força. Podemos agir sobre a força com uma vontade ativa ou reativa (escrava ou nobre). Quando agimos com uma força ativa afirmamos a vida, ao contrário da força reativa que despontencializa e empobrece a vida.
  • Endereço para correspondência:

    Centro Universitário Univates, Fuvates.
    Avenida: AvelinoTallini – Universitário.
    CEP: 95900-000. Lajeado, RS – Brasil.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Abr 2014

    Histórico

    • Aceito
      23 Jan 2013
    • Recebido
      01 Mar 2012
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