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Mente e Awareness nos Tantras Indianos: fundamentos da Meditação, do Hatha Yoga e do Ayurveda

Mind and Awareness in Indian Tantras: foundations for Meditation, Hatha Yoga and Ayurveda

Resumo

Apesar da crítica à concepção cartesiana do ser humano, faltam modelos teórico-conceituais que superaram suas limitações, a despeito do destaque dado à integralidade no Brasil. A base filosófica que fundamenta as abordagens dominantes é implícita, até nos modelos orientais importados como nas medicinas tradicionais e Práticas Integrativas Complementares (PICs) que, a partir de 2006, são promovidas no SUS pela Política Nacional das Práticas Integrativas Complementares e portarias. Descontextualizadas, as adaptações e criações de novas modalidades de PICs orientais se desfiguram a partir de interesses comerciais e desconhecimento de seu histórico. A integralidade é perdida, pois a PIC é fragmentada e isolada no modelo biomédico mecanicista e biologicista. Este artigo objetiva apresentar as premissas filosóficas indianas dos tantras em seu contexto histórico, como fundamento para o Ayurveda, e as práticas contemplativas que visam o desenvolvimento espiritual. Sua breve contextualização baseia-se nas análises acadêmicas de textos históricos em sânscrito, como também de autores e mestres de tradições espirituais asiáticos e ocidentais. Os conceitos de mente, corpo, awareness e energia integram esta abordagem não dual, onde predomina a imanência. Revelam uma compreensão da natureza humana integrada com o universo de modo complexo e dinâmico, desenvolvida e pesquisada ao longo de milhares de anos.

Palavras-chave:
Tantra; meditação; ioga; mente; Ayurveda

Abstract

Despite the widespread critique of the hegemonic Cartesian view of human nature, no alternatives adequately surpass its limitations in the field of health. The philosophical base which informs these western dominant approaches is implicit, even when eastern health practices are imported. These have been acknowledged and promoted in the public healthcare system in Brazil since the 2006 health policy and later government decrees. Adaptations and western creations based on eastern practices are severed from their original tenets, fueled by commercialism and ignorance of its history. In the process, its integrative approach is lost, as the complementary health practice is used in psychology or in the mechanical and biologizing biomedical model. This article thus presents the philosophical Indian tenets of the Tantras in their historical context, as a foundation for Ayurveda and the contemplative practices aimed at spiritual development. Its brief and necessarily incomplete contextualization is based on academic analysis of historical sanskrit texts by scholars, Indian, American and Tibetan authors and teachers of lineage traditions. The concepts of mind, body, awareness and energy compose this nondual approach to human nature integrated with the universe in a complex and dynamic way, developed and researched throughout thousands of years.

Keywords:
Tantra; meditation; yoga; mind; Ayurveda

A própria psicanálise e as linhas de pensamento a que deu origem - certamente um desenvolvimento distintamente ocidental - são apenas tentativas principiantes comparadas ao que é uma arte imemorial no Oriente.Carl Jung (1933JUNG, Carl. Modern man in search of a soul. Oxford, England: Harcourt, Brace, 1933., p. 216)

Introdução

A biomedicina teve um papel preponderante ao estabelecer no pensamento hegemônico ocidental noções sobre a natureza humana, saúde, patologia, corpo e mente, a partir do dualismo cartesiano. As críticas ao reducionismo e simplificação deste pensamento geraram interesse pela perspectiva da integralidade que, inclusive, tornou-se um dos princípios do SUS (Sistema Único de Saúde).Tendo em vista os limites teóricos do pensamento ocidental em suas concepções sobre a integralidade, as dificuldades de cura das doenças crônicas pela biomedicina, seu alto custo financeiro e a iatrogenia médica (ILLICH, 1975ILLICH, Ivan. Medical Nemesis: the expropriation of health. London, Calder & Boyars, 1975.), que hoje é a terceira causa de morte nos Estados Unidos (MAKARY; DANIEL, 2016Makary, Martin; DANIEL, Michael. Medical error: the third leading cause of death in the US. British Medical Journal. 2016. Disponível em: https://www.bmj.com/content/353/bmj.i2139 . Acesso em: 12 jun. 2017.
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), há um interesse crescente nas Medicinas Tradicionais (MTs) e Práticas Integrativas Complementares (PICs) que se legitimaram a partir do incentivo da Organização Mundial da Saúde (OMS) nos anos 70; e do Ministério da Saúde no Brasil, por meio da Política Nacional das Práticas Integrativas Complementares (PNPICs) de 2006 (AMADO et al., 2018AMADO, Daniel et al. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde 10 anos: avanços e perspectivas. Journal of Management and Primary Health Care, v. 8, n. 2, p. 290-308, ago. 2018. https://doi.org/10.14295/jmphc.v8i2.537
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), que desde então ampliou as práticas para 29 MTs e PICs (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 702, de 21 de março de 2018. Altera a Portaria de Consolidação nº 2/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir novas práticas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares - PNPIC. 2018. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2018/prt0702_22_03_2018.html . Acesso em: 20 set. 2018.
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), incluindo o Ayurveda, a meditação e a ioga.

Em contraste com a biomedicina, as MTs e PICs apresentam uma filosofia, cosmologia, ontologia e epistemologia explícitas subjacentes às propostas de práticas de saúde em que o corpo, mente e ambiente são concebidos de forma integrativa. Como saberes e práticas contra-hegemônicos, ainda encontram resistência no Brasil nas instituições de ensino, pesquisa e de saúde reconhecidas. Assim, sua oferta prolifera em outros espaços, onde por vezes são altamente comercializadas (PHILP, 2009PHILP, John. Yoga, Inc.: a journey through the big business of yoga. Toronto: Viking Canada, 2009.). Como no Brasil a PNPIC não inclui nenhum sistema de cura ou PIC com origem explícita no país, a maioria das PICs, legitimada na PNPIC para oferta pelo SUS, é importada. Na importação de outros saberes e práticas, o pensamento ocidental hegemônico se apropria destes, adaptando-os à sua visão. Isto é, a abordagem ocidental simplificadora e reducionista traduz-se na substituição de tratamentos medicamentosos, invasivos e iatrogênicos pelas PICs, visando meramente à eliminação de sintomas, descartando-se o bebê com a água do banho. Destacadas do pensamento que lhes deu origem, as adaptações e criações de novas modalidades de PICs orientais também se desfiguram a partir de interesses comerciais e desconhecimento do seu histórico (SINGLETON, 2010SINGLETON, Mark. Yoga body: the origins of modern posture practice. Oxford University Press, 2010.; ALTER, 2004ALTER, Joseph. Yoga in modern India: the body between science and philosophy. Princeton: Princeton University Press, 2004.; PHILP, 2009). Neste processo, a integralidade é perdida, pois a PIC é usada pela psicologia ou dentro do modelo biomédico mecanicista e biologicista de forma fragmentada, distorcida e limitada.

Deste modo, este artigo objetiva apresentar as premissas filosóficas e psicológicas indianas dos tantras em seu contexto histórico, como fundamento para o Ayurveda e as práticas contemplativas - Hatha Yoga e meditação -, desenvolvidas com o intuito do mais elevado desenvolvimento físico, psicológico e espiritual. Trata-se de um exemplo de integralidade elaborado em saber milenar contra-hegemônico desconhecido da psicologia, apesar de algumas PICs serem utilizadas nesta área. A breve síntese apresentada baseia-se nas análises acadêmicas de escrituras em sânscrito, como também de autores e mestres americanos, indianos e tibetanos reconhecidos na área.

Como base para a medicina tradicional Ayurveda1 1 Traduzido como Ciência da Vida, abrange o conhecimento e sabedoria vinculados à saúde há mais de 5000 anos na Índia. e as PICs a ela associadas, a meditação e o Hatha Yoga, os conceitos de mente, corpo, espírito, awareness e energia integram esta abordagem não dual, onde predomina a imanência. Tal corpo teórico é um exemplo de uma compreensão da natureza humana e planetária integrada, complexa e dinâmica, desenvolvida e pesquisada ao longo de milhares de anos. Ilustra a necessária reorganização do processo do conhecimento que a virada paradigmática da integralidade requer (Morin, 1982MORIN, Edgar. Le systeme, paradigme ou theorie? In: MORIN, Edgar. Science avec conscience. Paris: Fayard, 1982. p. 172-189. ).

O resgate do arcabouço teórico e histórico contribui de inúmeras maneiras para o campo da psicologia em particular e da saúde de forma geral. Em primeiro lugar, apesar das normas ocidentais de reconhecimento autoral, no que diz respeito às tradições orientais com registros distintos dos nossos, tal prática é abandonada. Cabe dar o devido crédito a quem produziu o conhecimento e as práticas que importamos. É importante destacar o desrespeito da academia ocidental para com as ciências orientais e saberes tradicionais, revelando uma postura colonialista e imperialista inaceitável. Existem implicações éticas, políticas e até legais nas apropriações incorretas sem reconhecimento da devida autoria, e distorções indevidas nas criações alheias para benefício próprio, conforme destacado nas críticas e análises (SINGLETON, 2010SINGLETON, Mark. Yoga body: the origins of modern posture practice. Oxford University Press, 2010.; ALTER, 2004ALTER, Joseph. Yoga in modern India: the body between science and philosophy. Princeton: Princeton University Press, 2004.; PHILP, 2009PHILP, John. Yoga, Inc.: a journey through the big business of yoga. Toronto: Viking Canada, 2009.) deste processo cultural, econômico e político complexo de comercialização de saberes indianos, iniciado na própria Índia para consumo ocidental (ALTER, 2004, FEURSTEIN, 2013FEUERSTEIN, Georg. The psychology of yoga: integrating eastern and western approaches for understanding the mind. Boston: Shambala, 2013.). No entanto, o foco aqui é lembrar e contribuir para o cuidado com a contextualização histórica e com a autoria, cada vez que divulgamos e ensinamos as MTs e PICs.

Em segundo lugar, o saber que subjaz a prática é tão importante quanto esta. No entanto, as práticas são implementadas em instituições e consultórios sem o conhecimento de seus fundamentos. Na psicologia, a Terapia Cognitiva Comportamental (TCC), a Terapia Cognitiva baseada em Mindfulness (MBCT) e a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) adotam práticas da ioga, descontextualizadas, sem referenciar a origem destes saberes. Defende-se aqui que as bases filosóficas possibilitam vislumbrar o potencial completo do sistema e, ao mesmo tempo, melhor implementar e adaptar o que for pertinente de acordo com a realidade local.

Em terceiro lugar, a questão orientadora da filosofia indiana diz respeito àquilo que constitui o ser humano, em uma compreensão da mente nos seus diversos níveis incluindo o Self Supremo, que se encontra além do supernatural e do indivíduo. A filosofia e a psicologia indianas da mente oferecem uma perspectiva complexa e sofisticada, desenvolvida ao longo de milhares de anos e ignorada na área. Em contraste, no Ocidente, o materialismo unidimensional reducionista concebe a mente como epifenômeno do cérebro e sistema nervoso (FEURSTEIN, 2013FEUERSTEIN, Georg. The psychology of yoga: integrating eastern and western approaches for understanding the mind. Boston: Shambala, 2013.).

Em quarto lugar, a antropologia aponta como o olhar sobre o outro nos permite a elaboração de uma crítica cultural a nosso respeito (MARCUS; FISHER, 1986MARCUS, George; FISCHER, Michael M. J. Anthropology as cultural critique: an experimental moment in the human sciences. Chicago: University of Chicago Press, 1986.). Este artigo e o dossiê temático onde se insere trazem o convite ao exercício da crítica cultural. Esperamos poder reavaliar nossos modelos a partir do contato com modelos tão distintos quanto os orientais.

Em quinto lugar, é necessário corrigir mitos, distorções e apropriações equivocadas dos termos em sânscrito visando à comercialização de práticas e saberes que não têm relação com sua origem histórica. Nenhuma tradição indiana foi mais incompreendida em relação à sua influência global nos movimentos espirituais ocidentais alternativos do que o Tantra, que no Ocidente é confundido com o neotantra moderno americano, iniciado em torno de 1905 por Pierre Bernard (WALLIS, 2012WALLIS, Christopher. Tantra Illuminated: the philosophy, history and practice of a timeless tradition. Woodlands, Texas: Anusara Press, 2012.). Mas tal fenômeno também se estende à ioga e à meditação.

O Tantra foi uma tradição e movimento espiritual indiano, articulado com escrituras nomeadas tantras, que influenciou a maior parte das religiões asiáticas com origem no Shaivismo, tendo se disseminado na Índia pelo Leste e Sudeste Asiático, incluindo a Indonésia (WALLIS, 2012WALLIS, Christopher. Tantra Illuminated: the philosophy, history and practice of a timeless tradition. Woodlands, Texas: Anusara Press, 2012.). Defende que o propósito da vida humana é desenvolver uma consciência elevada por meio de práticas contemplativas, do cultivo à saúde e o respeito à natureza sagrada da vida cotidiana (FRAWLEY, 1997FRAWLEY, David. Ayurveda and the mind: the healing of consciousness. Twin Lakes, Wisconsin: Lotus, 1997.). Sua singularidade reside no fato de que percebe tudo como sagrado, afirmando a vida, integrando-se ao cotidiano, focando na imanência (WALLIS, 2012) e promovendo a inclusão social. Aceitava a iniciação de praticantes das quatro castas, possibilitando a integração de comunidades agricultoras (Sanderson, 2010SANDERSON, Sanderson. The Śaiva Age: the rise and dominance of śaivism during the early medieval period. In: EINOO, Shingo (Org.). Genesis and Development of Tantrism. Tokyo: Institute of Oriental Culture, University of Tokyo Institute of Oriental Culture Special Series, 2009. n. 23, p. 41-350.). Elementos desta tradição sobreviveram, mas sem o seu contexto original, em virtude da invasão muçulmana em 1300, que levou à perda da base institucional do Tantra shaivista e budista (WALLIS, 2012).

Uma vez que tudo é uma manifestação do divino, a meta da prática é poder ter esta experiência do divino em todas as coisas e seres. Assim, distingue-se do asceticismo, da renúncia, da dualidade e da polarização entre o sagrado e o profano, do corpo e do espírito. Na perspectiva tântrica não há defeitos ou distorções a serem corrigidos, mas condicionamentos a serem dissolvidos para revelar a essência que reside em cada ser. Os aparentes obstáculos são matéria-prima energética essencial e tornam-se nosso professor (Chodron, 1994CHODRON, Pema. Start where you are: a guide to compassionate living. Boston: Shamabala, 1994.). Adota uma visão empírica e pragmática centrada na unicidade de cada pessoa, que deve conhecer sua filosofia, experimentar seus métodos e avaliar se tem validade para si (Trungpa, 1973/2011), adotando entre as possibilidades de caminhos e práticas as que têm resultado e afinidade.

O artigo traz uma breve contextualização histórica do Tantra, do seu arcabouço teórico e de práticas associadas, tais como meditação, Hatha Yoga e a ciência da vida e da consciência denominada Ayurveda. Apesar das modificações que sofreram ao longo do tempo, tais práticas encontram fundamentos na tradição tântrica clássica. Trata-se de uma breve introdução a um campo complexo e extenso, do “ponto de vista dos nativos” (GEERTZ, 1974GEERTZ, Clifford. From the native’s point of view: on the nature of anthropological understanding. Bulletin of the American Academy of Arts and Sciences, v. 28, n. 1, p. 26-45, Oct. 1974. http://doi.org/10.2307/3822971
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), neste caso os autores reconhecidos na área, sem o espaço para análise crítica e aprofundada. Defende-se aqui que o Tantra forma uma base conceitual complexa que articula diversos níveis de análise, da célula ao universo, exemplificando o conceito de integralidade, em que os preceitos filosóficos encontram respaldo nas práticas identificadas nos textos clássicos sobre Hatha Yoga, meditação e o Ayurveda.

O legado tântrico

Tantra é um termo em sânscrito que significa teoria, doutrina ou livro; é geralmente usado para designar livros de escrituras que surgiram na Índia em torno do século 6 d.C. Cada Tantra apresentava um sistema relativamente completo de prática espiritual (WALLIS, 2012WALLIS, Christopher. Tantra Illuminated: the philosophy, history and practice of a timeless tradition. Woodlands, Texas: Anusara Press, 2012.). Com origem no norte da Índia, trata-se de um movimento espiritual, estético, filosófico e religioso que afetou todas as tradições indianas de algum modo, não vinculado a uma religião específica, mas formando a base de diversas tradições na Índia pós-védica (Goodall; Sanderson; Isaacson, 2015GOODALL, Dominic; SANDERSON, Alexis; ISAACSON, Harunaga. The Niśva satattvasaṃhita: the earliest surviving Śaiva Tantra. Pondicherry, India: Institut Français de Pondichéry, 2015.), tais como o Shaivismo de Caxemira (o primeiro), o Budismo Vajrayna e Dzogchen, Vaishnavismo, Jainismo, o Taoísmo chinês e o Bonn tibetano. Traços marcantes associados ao Budismo tibetano, como mantras, mandalas, mudrās, iniciação, ioga das deidades, guru-yoga e outros, têm sua origem no movimento pan Indiano tântrico, e não no Budismo (WALLIS, 2012).

Sabemos que a tradição oral dos Rishis, os que tinham visão, era bem anterior a qualquer registro escrito. O primeiro texto explicitamente tântrico data de 500-550 d.C. (WALLIS, 2012WALLIS, Christopher. Tantra Illuminated: the philosophy, history and practice of a timeless tradition. Woodlands, Texas: Anusara Press, 2012.). O Tantra clássico foi o pico do movimento (800-1200 d.C.), se diferenciando do Tantra hindu posterior. Com o Império Gupta (meados do século 3 até 590 d.C.) em declínio e uma insegurança generalizada, o Tantra oferecia o poder de controle e determinação do seu estado interno, independentemente de suas circunstâncias externas (Sanderson, 2009SANDERSON, Sanderson. The Śaiva Age: the rise and dominance of śaivism during the early medieval period. In: EINOO, Shingo (Org.). Genesis and Development of Tantrism. Tokyo: Institute of Oriental Culture, University of Tokyo Institute of Oriental Culture Special Series, 2009. n. 23, p. 41-350.). Culminando entre os séculos 9 e 12, o Shaiva Tantra é um movimento espiritual com ênfase na experiência direta do divino, com aspectos imanentes e transcendentes, baseado na consciência pura e na energia, organizado a partir de uma comunidade espiritual igualitária e da iniciação na relação guru discípulo (WALLIS, 2012). O aspecto transcendente do divino diz respeito à transcendência de todas as qualidades e limitações, além dos sentidos, da fala e da mente. A imanência é aquilo que é perceptível pelos sentidos e mente. São dois aspectos interdependentes da realidade que se expressam de forma criativa, dinâmica, corporificada e extrovertida. O equilíbrio harmônico entre estas duas dimensões da realidade, entre a expansão e a contração, é necessário para a realização espiritual mais elevada. Destaca-se que os tântricos almejam um awareness mais amplo da totalidade do Ser no momento presente e como este se manifesta em cada ser senciente ou forma, e não estados mais elevados de consciência (WALLIS, 2012). Sem tradução no português, o termo awareness usualmente se refere ao estado ou habilidade de perceber, sentir, estar consciente de eventos, objetos ou padrões sensoriais. No Tantra, busca-se um awareness que traz a liberação de nossos condicionamentos. Assim, é definido como

[…] um estado de ser no qual o indivíduo reside numa experiência não-preferencial, passiva e sem esforço, podendo ser contínua ou não contínua, dependendo do nível de treinamento da pessoa. Pode ser expressa como uma experiência total de corpo, energia (fala) e mente, bem como uma expressão do não-dualismo de um indivíduo (DHARMA BODHI, 2011BODHI, Dharma. Psicoterapia Tantrika (Sauhu): uma completa mudança de paradigma no bem-estar e na saúde mental-emocional. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL CONSCIÊNCIA, MENTE E CORPO: PERSPECTIVAS ORIENTAIS E OCIDENTAIS, 1, 2011, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. p. 1-9.).

Visando acessar e assimilar a energia divina em todas as coisas, para alcançar tanto o sucesso mundano quanto a liberação espiritual, este sistema espiritual se baseava em quatro dimensões: sua base filosófica, a meditação, a ioga do corpo sutil e o cultivo estético dos sentidos. Sua premissa básica é que o mundo é percebido por meio dos sentidos e que o mundo objetivo é uma projeção da nossa subjetividade (Feuerstein, 2008FEUERSTEIN, Georg. The yoga tradition: its history, literature, philosophy and practice. Chino Vally, Arizona: Hohm Press, 2008.). O ser humano é concebido como um microcosmo que reflete e dá continuidade ao macrocosmo, como este também se manifesta no microcosmo do corpo humano. Seu princípio é “como acima, também abaixo”. Assim, o alinhamento e harmonia entre o indivíduo e o seu entorno, sem rupturas e distinções, promove a saúde. O bem-estar individual e o comunitário são interdependentes (SVOBODA, 1996SVOBODA, Robert. Ayurveda: life, health and longevity. Albuquerque, New Mexico: The Ayurvedic Press, 1996.). O todo, a Consciência, é maior que a soma de suas partes (Feuerstein, 2008). A base não dualista do Tantra reside na visão de que o “tudo que existe ou já existiu é uma única consciência infinita, divina, livre e estática que se projeta… na aparente diversidade de sujeitos e objetos” (WALLIS, 2012WALLIS, Christopher. Tantra Illuminated: the philosophy, history and practice of a timeless tradition. Woodlands, Texas: Anusara Press, 2012., p. 54). Tal perspectiva confere sentido e presença até às ações mais simples.

Nesta visão não dualista, todos os seres sencientes (que possuem a habilidade de sentir, perceber ou estar consciente ou vivenciar a subjetividade) e coisas são manifestações diferenciadas da mesma consciência divina, integrando um vasto campo energético. No Tantra, a consciência divina é nomeada usando diversos termos em sânscrito, traduzidos como Potência, Coração, Essência, Vibração, Potencial Absoluto, Totalidade, Fusão Íntima, Palavra, Onda, Poder Supremo, O Feroz, Experiência. Algumas manifestações são capazes de refletir sobre si ou sobre outras manifestações da consciência em relação a si. Consequentemente, o encontro entre seres sencientes traz a oportunidade de reconhecimento de si no outro e do outro em si, e de reflexão sobre a sua natureza total, levando a uma expansão de sua identidade até a inclusão de todas as coisas e seres em si e de si nos objetos e seres, identificado como sabedoria. Tem o potencial de trazer o reconhecimento de que, artificialmente, nos limitamos a construtos mentais, que definem a nós e ao outro como separados, por exemplo (WALLIS, 2012WALLIS, Christopher. Tantra Illuminated: the philosophy, history and practice of a timeless tradition. Woodlands, Texas: Anusara Press, 2012.).

A identificação dos sujeitos que se percebem separados, com suas representações limitadas, leva ao sofrimento. A identificação com as cognições limitadas é denominada de ignorância. O sofrimento é oriundo da ignorância revelada nas narrativas que criamos a respeito da dor, dos julgamentos, da aversão e do apego. Calcada no awareness e na equanimidade (constância e neutralidade de temperamento ou ânimo independentemente da circunstância), a sabedoria traz o reconhecimento de que a verdadeira identidade é a da divindade mais elevada, o Todo em cada parte (WALLIS, 2012WALLIS, Christopher. Tantra Illuminated: the philosophy, history and practice of a timeless tradition. Woodlands, Texas: Anusara Press, 2012.). Assim, as práticas tântricas visam desenvolver o awareness e a equanimidade. A qualidade do nosso awareness é fruto de tudo o que fazemos (FRAWLEY, 1997FRAWLEY, David. Ayurveda and the mind: the healing of consciousness. Twin Lakes, Wisconsin: Lotus, 1997.).

Na contramão do asceticismo, da rejeição da dimensão externa em favorecimento da interna, do material pelo espiritual e da alegria e do desejo como constituintes do mal, o Tantra não concebe a esfera mundana e a existência material como obstáculos. Tudo o que encontramos na vida são ferramentas e professores para a perfeição (Chodron, 1994CHODRON, Pema. Start where you are: a guide to compassionate living. Boston: Shamabala, 1994.). Aquilo que derruba você é também o que levanta (Krishnananda, 2004KRISHNANANDA, Swami. Introduction: Tantra Sadhana. In: SIVANANDA, Swami. Tantra Yoga, Nada Yoga and Kriya Yoga. Uttaranchal, India: The Divine Life Society, 2004. p. vii-xi.). Trata-se de uma nova atitude perante o corpo e a existência material, como moradia e manifestação da Essência. A Consciência Pura é, assim, um evento corporal total (Feuerstein, 2008FEUERSTEIN, Georg. The yoga tradition: its history, literature, philosophy and practice. Chino Vally, Arizona: Hohm Press, 2008.).

O Tantra concebe o self como constituído por cinco camadas: o corpo físico, o corpo energético (mente/coração), o prana (força vital), a vacuidade transcendente e o awareness consciente (Essência). Cada camada é permeada pelas que se encontram abaixo dela. Tal modelo revela a primazia do corpo/mente/energia e como são vivenciados simultaneamente. Alguns textos incluem uma sexta camada referente aos seus pertences, a manifestação material de si, que é estudada no Vastu, a ciência indiana do espaço natural e construído (WALLIS, 2012WALLIS, Christopher. Tantra Illuminated: the philosophy, history and practice of a timeless tradition. Woodlands, Texas: Anusara Press, 2012.).

Na perspectiva do Tantra, o sofrimento se dá quando não percebemos todo o nosso ser e a hierarquia subjacente a estas cinco camadas. Limitamo-nos, por exemplo, à identificação com as camadas mais externas, como nossos bens materiais e nosso corpo físico. Na filosofia tântrica, o coração e a mente se referem à mesma coisa, uma vez que os pensamentos e as emoções são vibrações mentais em polos opostos de um contínuo, onde o primeiro tem um componente linguístico acentuado, e o segundo tem um componente afetivo mais desenvolvido. A identificação com o corpo energético se expressa por meio de avaliações de nossos estados mentais e emocionais. A identificação mental é a mais forte, para a maioria das pessoas. Já na camada da força vital, a individualidade é mais facilmente superada, já que é compartilhada com outros seres. Prana é fundamental para ligar o corpo à mente. O penúltimo nível, a vacuidade, diz respeito à quietude absoluta. É, simultaneamente, a imanência e a transcendência, a experiência na qual é impossível a objetificação (WALLIS, 2012WALLIS, Christopher. Tantra Illuminated: the philosophy, history and practice of a timeless tradition. Woodlands, Texas: Anusara Press, 2012.).

A filosofia e a cosmologia tântricas englobam um sistema de 36 tattvas (níveis ou princípios de realidade, aquilo que identifica a experiência da realidade). Os primeiros cinco tattvas são os elementos da natureza: terra, água, fogo, ar e espaço (WALLIS, 2012WALLIS, Christopher. Tantra Illuminated: the philosophy, history and practice of a timeless tradition. Woodlands, Texas: Anusara Press, 2012.). Os cinco elementos compõem tudo no mundo e na nossa experiência, sendo, portanto conceitos básicos para a compreensão do corpo/mente/espírito (SVOBODA, 1996SVOBODA, Robert. Ayurveda: life, health and longevity. Albuquerque, New Mexico: The Ayurvedic Press, 1996.).Os cinco tattvas seguintes são elementos sutis referentes aos sentidos (odor, sabor, aparência, tato, vibração). Em seguida, o sistema inclui cinco tattvas referentes às funções humanas em relação ao ambiente (evacuação, reprodução, locomoção, manipulação, fala), seguidos de cinco capacidades sensoriais (cheirar, saborear, ver, tocar e ouvir). Subindo na escala, os tattvas são mais sutis e referem-se à mente, ao ego e à capacidade de discernimento localizada no corpo todo, a materialidade secundária (o universo físico da matéria e energia), a “alma” individual (o Self, testemunho, o sujeito que conhece, a consciência pura). Em seguida, encontramos os cinco véus: o poder limitado da ação, do conhecimento, o desejo, o tempo e a causalidade. Por fim, temos o poder divino de manifestação e diferenciação, o universo puro, a sabedoria pura, a divindade pessoal, a força de vontade divina, a energia espiritual e seu poder transformador, o benevolente (aquilo em que o todo se encontra, o espaço acolhedor); e, no nível mais elevado, o coração, que simultaneamente transcende e supera todas as coisas (WALLIS, 2012). O Ayurveda, ramo do Tantra dedicado à ciência da vida, também concebe o coração, entendido como o centro de conhecimento profundo interno (e não o órgão) como centro da consciência, permeando toda a nossa atividade mental, sem nenhuma localização física (FRAWLEY, 1997FRAWLEY, David. Ayurveda and the mind: the healing of consciousness. Twin Lakes, Wisconsin: Lotus, 1997.).

Saberes e Práticas: Ayurveda, Meditação e Hatha Yoga

Diante de tal modelo de corpo/mente/espírito, o cuidado e a disciplina da manifestação material da existência humana são centrais para os tântricos. Assim, a manutenção da saúde é um imperativo espiritual e social, uma vez que cada indivíduo impacta o universo (SVOBODA, 1996SVOBODA, Robert. Ayurveda: life, health and longevity. Albuquerque, New Mexico: The Ayurvedic Press, 1996.). Ademais, o Charaka Samita (texto ayurvédico em sânscrito da Índia antiga), que restou junto com o Suśruta-saṃhitā, apresenta a saúde como fundamento supremo da virtude, da prosperidade e da alegria. No Ayurveda, a saúde decorre do uso correto dos sentidos no contato com o mundo (SVOBODA, 1996). Cuidar da saúde é requisito e prática espiritual.

O corpo é a forma bruta da mente, um mecanismo mental, um órgão e um instrumento da percepção e expressão que facilita a experiência da mente (FRAWLEY, 1997FRAWLEY, David. Ayurveda and the mind: the healing of consciousness. Twin Lakes, Wisconsin: Lotus, 1997.). No Tantra, a mente é concebida como objeto, uma estrutura material, conjunto de energias (SARASWATI, 1984SARASWATI, Satyananda. Kundalini Tantra. Munger, India: Bihar School of Yoga, 1984.) e condições. A mente também é ferramenta que usamos para coletar informações sobre o mundo e por meio do qual o awareness opera. Nos pertence, mas não é quem somos. Move-se seguindo nossa atenção e awareness (SVOBODA, 1996SVOBODA, Robert. Ayurveda: life, health and longevity. Albuquerque, New Mexico: The Ayurvedic Press, 1996.). Não é inerentemente aware, inteligente ou iluminada. Usualmente, desconhecemos a natureza da mente, nem sabemos usá-la em seus estados (desperto, sono ou sonho), o que leva à ignorância de si. A mente divide-se em três camadas: a interna (consciência profunda), a externa (sensação e emoção) e a intermediária (inteligência) que medeia as primeiras duas. A mente tem relação com o corpo físico sem localização definida. A cabeça é o centro da mente, que opera os sentidos e tem direção externa. O coração é visto como o centro da mente interna que supera os sentidos (SVOBODA, 1996). A mente é o instrumento principal ao qual recorremos para tudo o que fazemos, deixando-nos dominar, estabelecendo quem somos e o que fazemos. Tal concepção e uso equivocado da mente é um problema primário que cria outros problemas secundários, como explicações para a vida que criamos a partir de projeções internas, gerando sofrimento. O autoconhecimento requer ultrapassar a mente e liberar-nos de seus envolvimentos. Seu uso correto resolve problemas e leva ao nosso potencial máximo de realização (FRAWLEY, 1997). O awareness verdadeiro é consciência pura que ultrapassou o campo mental (FRAWLEY, 1997FRAWLEY, David. Ayurveda and the mind: the healing of consciousness. Twin Lakes, Wisconsin: Lotus, 1997.).

Como sistema filosófico ligado às ciências irmãs do Ayurveda e hatha yoga, o Tantra se originou a partir da observação dos princípios da natureza e da experimentação, visando ao desenvolvimento de práticas e tecnologias de controle da energia, do corpo e da mente. Visando à união suprema com a Consciência, trata-se do método mais direto de controle da energia (Lad, 2002LAD, Vasant. Ayurveda: the science of self-healing. Delhi: Mitilal Banrasiass Publishers, 2002.). Nossos condicionamentos nos levam a reagir de forma habitual e fixa. Nossa consciência é limitada à atividade superficial do cérebro. Assim, precisamos mudar a mente para mudar nossas respostas (SARASWATI, S., 2005SARASWATI, Satyananda. Meditations from the Tantras. Bihar, India: Yoga Publications Trust, 2005.). Este treinamento mental se dá com a manipulação das forças e sistemas no corpo físico (SARASWATI, S., 2005), por exemplo, pelo Hatha Yoga, prática que trabalha o prana para transcender o self e realizar o Self (Feuerstein, 2008FEUERSTEIN, Georg. The yoga tradition: its history, literature, philosophy and practice. Chino Vally, Arizona: Hohm Press, 2008.). O self diz respeito a três níveis: o externo, definido de acordo com a nossa identidade física; o interno, que se refere à subjetividade pura; e ainda o Self, que diz respeito ao Supremo, à Essência Natural, à alma, a consciência que transcende identidades, corpos e imagens (SVOBODA, 1996SVOBODA, Robert. Ayurveda: life, health and longevity. Albuquerque, New Mexico: The Ayurvedic Press, 1996.). Ioga significa a união do prana e da mente com o Self (Muktibodhananda; SARASWATI, S.; SVĀTMĀRĀMA, 1985).

Enquanto energia universal e vital, o prana é condensado no corpo sutil, movendo-se por canais energéticos (nadis), que não têm estrutura física, mas estão ligados a vasos sanguíneos, nervos e órgãos (Saraswati, S., 1996SARASWATI, Satyananda. Kundalini Tantra . Bihar, Índia: Bihar School of Yoga, 1996.). Há escrituras de ioga que identificam 72.000 e outros 300.000 nadis (Feuerstein, 2008FEUERSTEIN, Georg. The yoga tradition: its history, literature, philosophy and practice. Chino Vally, Arizona: Hohm Press, 2008.). Ida (canal direito), pingala (canal esquerdo) e sushumna (canal central) são os principais. As práticas de ioga promovem o equilíbrio das qualidades masculinas e femininas referentes ao lado direito e esquerdo do corpo e do cérebro (Saraswati, N., 2002). Na ciência ocidental, a natureza humana dual é reconhecida do ponto de vista psicofisiológico na estrutura física do cérebro (2 hemisférios) e sistema nervoso. No Hatha Yoga, esta compreensão da natureza humana é integrativa, abrangendo diversas práticas que, além de promover a saúde física e mental, culminam para os que assim desejarem, em estados mais elevados de consciência.

O termo ioga diz respeito a um sistema de práticas psicofísicas, com ênfase na meditação, com o intuito de disciplinar e integrar corpo, mente e energia para alcançar o estado de awareness e experiência não dual. O Hatha Yogae a meditação visam desenvolver todas as nossas faculdades mentais (como atenção e awareness) e físicas, que são sujeitas a prana (energia vital que controla o corpo sensorial) e chitta (energia mental) de modo que estejam, na maioria, sintonizadas. A mente concentrada e forte tem influência na saúde, força de vontade, caráter, capacidade de implementar decisões e toda a vida humana (SARASWATI, N., 1993SARASWATI, Niranjanananda. Dharana Darshan: yogic, tantric and upanishadic practices of concentration and visualization. Bihar, India: Yoga Publications Trust , 1993.). A meta da meditação e da ioga é elevar o awareness para um nível em que cessa a experiência do movimento da consciência e energia, trazendo uma visão mais ampla e elevada da vida, denominada prajna (sabedoria). A alteração no nosso estado de consciência é possível alterando o nível do prana, de modo a estabilizar e concentrar a mente. Com o despertar do prana, a liberação da energia leva à expansão da consciência e a estados de superconsciência (SARASWATI, N., 2002SARASWATI, Niranjanananda. Prana Pranayama Prana Vidya. Bihar, India: Yoga Publications Trust , 2002.). “A ciência da meditação transcende a totalidade da experiência humana” (SARASWATI, N., 1993SARASWATI, Niranjanananda. Dharana Darshan: yogic, tantric and upanishadic practices of concentration and visualization. Bihar, India: Yoga Publications Trust , 1993., p. 15). Almeja-se atingir satya, a verdade absoluta, a consciência pura, que significa tornar-se um com a realidade (SARASWATI, N., 1993).

Tal ioga começou na época de Buda (563-483 a. C.). Após dez séculos, o movimento tântrico o incorporou, expandiu e o aprofundou. O Hatha Yogatem vínculo com o mais conhecido sábio Shaiva Tantra, Matsyendra (WALLIS, 2012WALLIS, Christopher. Tantra Illuminated: the philosophy, history and practice of a timeless tradition. Woodlands, Texas: Anusara Press, 2012.). A noção de que a ioga surgiu ou é vinculada com a tradição pré-tântrica do Patanjali Yoga sutra é falsa, pois tal texto não oferece instruções de práticas, como o Hatha Yoga Pradipika (Muktibodhananda; SARASWATI, S.; SVĀTMĀRĀMA, 1985), escritura tântrica. Os sutras de Patanjali também foram incorporados e ampliados pelos tântricos (WALLIS, 2012).

O Hatha Yogainclui diversos tipos de práticas de ioga, como asana (posturas físicas), pranayama (exercícios respiratórios), trataka (métodos de concentração), ioga nidra (relaxamento profundo), kriya ioga (ioga da prática). As descrições destas precederam os Upanishads e os Yoga Sutras em centenas de anos nos tantras antigos (SARASWATI, S., 2005SARASWATI, Satyananda. Meditations from the Tantras. Bihar, India: Yoga Publications Trust, 2005.). Tais práticas abrem os nadis (canais) e movimentam a energia que, quando estagna, causa doenças. O controle da respiração, elemento central do Hatha Yoga, é a forma mais imediata de atuar no prana (Feuerstein, 2008FEUERSTEIN, Georg. The yoga tradition: its history, literature, philosophy and practice. Chino Vally, Arizona: Hohm Press, 2008.). Assim, é uma prática que promove a saúde e trata a doença (Lad, 2002LAD, Vasant. Ayurveda: the science of self-healing. Delhi: Mitilal Banrasiass Publishers, 2002.). São práticas que acalmam a mente, desenvolvendo o awareness de sua natureza interior e sua expressão. Levam à experiência, ao estado meditativo e à realização em todas as dimensões do ser humano, além da harmonia entre o ser interior e seu entorno (SARASWATI, S., 2005). Pelo Hatha Yoga, inicia-se um processo corporal de transformação do prana e forças mentais em que os elementos físicos do corpo são transformados em elementos não físicos e vice-versa, como preparação para a meditação (Muktibodhananda; SARASWATI, S.; SVĀTMĀRĀMA, 1985). Assim, o saber e as práticas tântricas identificaram o que a física só reconheceu muito depois: que a matéria é energia.

A meditação aqui é entendida como o conjunto de práticas que desencadeiam um processo pelo qual conhecemos e testemunhamos as funções da mente, ao repousar nossa atenção em uma âncora que, frequentemente, é a respiração, com o corpo em movimento ou sentado. A chave para tal compreensão é a aceitação sem julgamento do que surge, a observação sem apego aos pensamentos, emoções e sensações que emergem e a experiência da mente com a perspectiva de observador. Envolve sentar consigo, entrar em contato com sua situação atual, e o estado cru e bruto da sua mente, observando-a e aprendendo como processamos pensamentos e emoções. Isto permite ver com clareza quem somos e como são as situações do cotidiano, de modo a conseguirmos nos relacionar plenamente com ambos (TRUNGPA, 1973/2011TRUNGPA, Chogyam. Cutting through spiritual materialism (1973). Boston: Shambhala Publications , 2011.).

Não se almeja o êxtase espiritual, a serenidade, nem se tornar uma pessoa melhor. Nem se praticam a meditação e o ioga com metas. Assim, não há esforço, nem meta ou expectativas. Não há tentativa de acalmar a mente ou lutar contra suas tendências, mas testemunhá-la. “Trata-se apenas de criar um espaço onde expomos e desfazemos nossos jogos neuróticos, as narrativas que nos enganam, nossos medos escondidos e esperanças” (TRUNGPA, 2002TRUNGPA, Chogyam. The myth of freedom and the way of meditation. Boston: Shambhala Publications , 2002.). O foco da prática é no processo e não no resultado desta, princípio que orienta todas as dimensões da vida.

Não se nega, reprime, julga ou rejeita o que emerge nas práticas, pois é contraproducente. A relação obsessiva com ou a tentativa de aquietar a corrente de pensamentos ou qualquer atenção dada a estes alimenta-os de energia e poder. A meditação nos coloca na posição de observadores, de onde vemos que pensar é um simples fenômeno mental, desconectado da verdadeira realidade do mundo (Trungpa, 2002TRUNGPA, Chogyam. The myth of freedom and the way of meditation. Boston: Shambhala Publications , 2002.). O awareness não deve ser fabricado, mas surge na pausa, no espaço criado por meio desta prática (Trungpa, 1995TRUNGPA, Chogyam. The path is the goal: a basic handbook of buddhist meditation. Boston: Shambhala Publications, 1995.).

O ser humano se percebe como observador, e como objeto da percepção, também faz parte do campo da saúde, de acordo com a escritura clássica de Ayurveda, Charaka Saṃhitā. Como ciência da vida e da consciência que abrange a ciência, filosofia, religião e a sabedoria dos rishis (os que tinham visão), o Ayurveda foi elaborado com base na observação e experimentação referente às tendências da natureza; e como a energia cósmica, se manifesta nos seres vivos e objetos (SVOBODA, 1996SVOBODA, Robert. Ayurveda: life, health and longevity. Albuquerque, New Mexico: The Ayurvedic Press, 1996.; VARIER, 2005VARIER, N. V. Krishnankutty. History of Ayurveda Malappuram. Kerala, India: Arya Vaidya Sala, Kottakkal, 2005.). Apesar de a maior parte dos autores identificar o primeiro registro do Ayurvedanos Vedas (LAD, 2002LAD, Vasant. Ayurveda: the science of self-healing. Delhi: Mitilal Banrasiass Publishers, 2002.), a literatura mais antiga do mundo, há mais de 5.000 anos, esta perspectiva é questionada por Varier (2005VARIER, N. V. Krishnankutty. History of Ayurveda Malappuram. Kerala, India: Arya Vaidya Sala, Kottakkal, 2005.) que aponta que os Vedas não mencionam o Ayurveda. Como o Tantra, a origem desta ciência é muito anterior ao registro escrito, e Varier (2005) aponta evidências arqueológicas da civilização hindu anterior que exerceu influência na civilização védica dos arianos.

Como ciência da vida e da consciência, o Ayurveda contempla as diversas dimensões da realidade, do bruto ao sutil, do material ao espiritual e do universo aos dhatus (tecidos do corpo humano). Uma vez que o ser humano é um microcosmo da natureza, os cinco elementos listados acima, entre os 36 tattvas, existem em toda matéria e formam a base para a compreensão ayurvédica da vida e do planeta. A partir de princípios básicos que governam a vida terrena, o Ayurveda oferece orientações para o cotidiano, que incluem dietas, rotinas saudáveis, práticas tradicionais (como ioga e meditação) e disciplinas que conduzem a estados internos de awareness para todas as dimensões da vida, de acordo com os ciclos diários, sazonais e anuais da natureza, como também o ciclo da vida humana, as fases da lua, o fluxo da energia solar, o movimento dos planetas (que são intimamente relacionados com os órgãos e tecidos), além da constituição de cada pessoa. Tal constituição é baseada nos cinco elementos e nas suas qualidades físicas e sutis. Apesar de identificar uma tipologia de constituições, nomeadas de doshas, cada indivíduo é uma manifestação singular da Consciência Pura com um funcionamento particular, considerado por meio da indagação básica ayurvédica: para quem e quando? Contendo o universo em si e sendo parte integrada dele, a harmonia e a sintonia com seus movimentos e tendências são vitais para a saúde individual e coletiva. Daí a importância da rotina, nomeada de dinacarya, que mantém a regularidade da vida encontrada na natureza.

Na visão de que toda a jornada da vida é sagrada (LAD, 2002LAD, Vasant. Ayurveda: the science of self-healing. Delhi: Mitilal Banrasiass Publishers, 2002.), o Ayurveda trabalha em quatro níveis: o tratamento da doença, a promoção da saúde, a exaltação da vida (vitalidade e longevidade) e o desenvolvimento de awareness. A ausência de awareness e a compreensão do nosso propósito de vida são compreendidos como a origem de todos os nossos problemas (FRAWLEY 1996). Assim, os seres humanos podem compreender o potencial do corpo e da mente e suas necessidades, tendo o poder de cura e recuperação da saúde, tornando-se sujeitos de suas vidas.

Conclusão

Argumentou-se aqui a necessidade de resgatar a visão de mundo, a perspectiva histórica, filosófica e teórica subjacente às PICs e à prática da meditação e Hatha Yoga, inerente às medicinas tradicionais como o Ayurveda, que hoje se difundem no Ocidente com o cuidado de reconhecer e identificar aqueles que desenvolveram tais saberes e estabelecer com eles um diálogo contínuo. Ao contrário do que vemos no Ocidente, o modelo apresentado tem clareza na sua concepção de saúde, natureza humana e a dinâmica daquilo que a constitui, podendo oferecer aos profissionais e pesquisadores no campo da saúde no Ocidente, ferramentas ricas para se trabalhar com a perspectiva da integralidade e da complexidade. Não se trata de defender a validade ou superioridade de uma tradição indiana sobre outra, mas de resgatar um pouco desta parte da história, desconhecida da maioria que estuda o Hatha Yoga, a meditação e o Ayurveda, bem como daqueles que usam práticas meditativas e de ioga como parte de métodos terapêuticos ocidentais e corrigir distorções oriundas pelo movimento Neotantra Ocidental e a ioga postural comercial. A contribuição preenche esta lacuna, além de apontar novas possibilidades nas discussões teóricas e embasar adaptações locais do que importamos de uma cultura tão distinta da nossa e que oferecemos em contextos e com objetivos tão distantes dos originais.

A integralidade do Tantra e Ayurveda e suas práticas perpassa um sistema complexo de pensamento e práticas desenvolvidas ao longo de milênios. Contempla a vida em todas as suas dimensões, identificando como o microcosmo reflete e responde ao macrocosmo. Oferece teorias e conceitos sofisticados para a psicologia e ciências da saúde, permitindo um diálogo profícuo do ponto de vista teórico, com o potencial de contribuir para uma crítica cultural dos nossos próprios modelos e o avanço destes. Ademais, parte de uma base filosófica da saúde e propósito de vida tão fundamental para a psicologia. Espera-se que este artigo contribua e incentive este diálogo interparadigmático, interdisciplinar e intercontinental em momento tão propício, quando o Conselho Federal de Pesquisa se volta para as PICs.

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  • 1
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2018
  • Revisado
    12 Dez 2018
  • Revisado
    07 Abr 2019
  • Aceito
    02 Jun 2019
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