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O deslocamento do “Terceiro”: ascensão e declínio da civilização

The displacement of the “Third-party”: the rise and decline of civilization

Resumos

Este artigo tem a intenção de analisar a relação entre o processo de civilização e a existência de um representante de autoridade, que sob o ponto de vista psicanalítico é qualificado pelo constructo “Terceiro”, tendo em vista a necessidade de constrição de aspectos da conduta humana para uma vida em sociedade. Assim, desenvolve-se a hipótese de um possível deslocamento desse “Terceiro”, ou seja, aquele que introduz o simbólico e representa a Lei, ao longo dos séculos. Para tal entendimento serão explanadas algumas ideias em torno da temática durante o percurso da humanidade, considerando conceitos antropológicos, sociológicos e psicanalíticos.

civilização; Terceiro; ordem; desordem


This article intends to analyze the relation between the process of civilization and the existence of an authority representative, who under the psychoanalytic point of view is qualified by the construct “third party”, in view of the need for constricting aspects of human conduct for a social life. Thus develops the hypothesis of a possible displacement of this “third party”, the one that introduces the symbolic and represents the Law, over the centuries. For such an understanding will be explained some ideas about the matter during the course of humanity, considering concepts anthropological, sociological and psychoanalytic.

Civilization; Third-Party; Order


Entender a cultura contemporânea vigente pressupõe compreender a relação entre o homem e seu contexto na consolidação e manutenção dos processos civilizatórios, ao longo da História da humanidade. Tal compreensão só é possível se visualizarem-se as transformações que operaram no sujeito, na tentativa de progresso e/ou desenvolvimento.

O presente artigo propõe perceber como sucede a ascensão e o possível declínio da civilização, tendo em vista a relação que se faz necessária entre caos e ordem, uma vez que se pode inferir que não há lugar no mundo que seja só civilização, ou seja, a barbárie também deve fazer-se presente. Para Morin (2002)MORIN, E. O método I: a natureza da natureza. Porto Alegre: Sulina, 2002., o processo sempre parte da desintegração da ordem estabelecida, passando pela desordem e consequente iniciativa de transformação, para então chegar-se a organização do sistema, estando esses elementos numa relação dialética. Diante a questão de estabelecimento da ordem, sugerida a necessidade de constrição de conduta, a fim de civilizar uma sociedade, limitando a liberdade do ser humano em prol de uma vida coletiva. Sendo assim, a psicanálise alude à entrada de um Terceiro como indispensável. Para tanto, deve-se entender esse Terceiro como um elemento simbólico de ordem e Lei, que tem como finalidade a interdição nas relações (LEBRUN, 2008LEBRUN, J. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC, 2008.).

Na visão de Maria Rita Kehl (2002)KEHL, M. R. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002., esta Lei pressupõe uma renúncia ao gozo, que não está documentada ou apresentada por dizeres impressos, mas sim inscrita no social. A mesma consolidada a partir das formações da cultura: costumes e religiões; sendo esses elementos responsáveis por transmitir a Lei.

Neste sentido, este trabalho possui também o desígnio de hipotetizar os possíveis deslocamentos do Terceiro que são visíveis no decorrer da História. Para a construção dessa análise, emprega-se como ferramenta metodológica a revisão bibliográfica da temática civilização, perpassando conceitos da antropologia, sociologia e psicanálise.

Em um primeiro momento, será apresentada a conceituação de cultura, bem como sua relação estabelecida com a sociedade. Em seguida, uma explanação das contribuições de Sigmund Freud e de Lévi-Strauss no que diz respeito à proibição do incesto, na medida em que se acredita que tal fato contém elementos de extrema importância no entendimento do desenvolvimento cultural do homem, uma vez que permite perceber a passagem de um homem natural para um homem social, ou seja, de um Estado de Natureza para a instituição do Estado.

Em seguida, será abordada a função da religião na sociedade absolutista e o deslocamento dessa função para um novo personagem: o Estado democrático. Por fim, uma explanação da atual situação contemporânea, marcada pela (des) ordem, na qual a ciência surge como artifício do imperativo vigente do gozo absoluto (MELMAN, 2003MELMAN, C. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.), bem como peça importante do processo de dessimbolização (LEBRUN, 2008LEBRUN, J. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC, 2008.).

Cultura e sociedade

Atualmente, a conceituação de cultura é percebida como uma das tarefas pertinentes da ciência antropológica moderna. Tal fato deve-se a diversidade de abordagens teóricas a respeito da temática (LARAIA, 2009LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. 24. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009.).

A primeira referência de cultura origina-se no final do século XVIII, a partir da síntese, realizada por Edward Taylor, de dois termos: o germânico Kultur, utilizado para referir-se aos aspectos espirituais de determinada comunidade; e o francês Civilization, relacionado às realizações materiais de um povo. Destarte, formula-se um novo vocábulo: Culture, que ampliado em seu sentido, abrange o emaranhado de crenças, tradições, leis, arte, conhecimentos e demais hábitos contraídos por uma sociedade (LARAIA, 2009LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. 24. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009.).

Esse conceito permite analisar a relação, por vezes confusa, estabelecida entre cultura e sociedade. Entende-se que há um processo de reciprocidade envolvido entre ambos, ou seja, a cultura necessita da existência de sujeitos para transmiti-la, e por sua vez a sociedade se sustenta em seu aspecto cultural (KEESING, 1972KEESING, F. Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1972.).

Cultura é a trama de sentido em cujos termos os seres humanos interpretam sua experiência e orientam sua ação; estrutura social é a forma que toma a ação, a rede efetivamente existente de relações sociais. Cultura e estrutura social são, pois abstrações diferentes dos mesmos fenômenos (GEERTZ apud KESSING, 1972KEESING, F. Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1972., p. 66).

Edgar Morin (1998)MORIN, E. O método IV: as idéias. Porto Alegre: Sulina, 1998. corrobora com a analogia existente entre cultura e sociedade, afirmando que essas “encontram-se em relação geradora mútua, e, nesta relação, não esqueçamos as interações entre indivíduos, que são eles próprios portadores/transmissores de cultura; estas interações regeneram a sociedade, a qual regenera a cultura” (MORIN, 1998MORIN, E. O método IV: as idéias. Porto Alegre: Sulina, 1998., p. 17). Desta forma, tais interações podem ser compreendidas como processos civilizatórios.

Freud (1996bFREUD, S. O mal estar na civilização (1930). In: SALOMÃO, J. (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996b. v. XXI, p. 67-150, Edição Standard Brasileira.[1930]) enuncia seu desprezo em diferenciar cultura e civilização, pois acredita que ambas não são independentes, visto que dizem respeito à capacidade de controlar a natureza e os regulamentos necessários para ajuste das relações entre os homens. Para ele, a construção da cultura/civilização se dá a partir do abandono dos instintos humanos: a sexualidade e a agressividade. Isto é, renúncia ou repressão das satisfações primitivas constitui pré-requisito para a vida em sociedade.

Da natureza à civilização: do incesto ao Estado

O Mal Estar da Civilização considerada a obra mais antropológica e pertinente de Sigmund Freud, sugere civilização como sendo “a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais” (FREUD, 1996bFREUD, S. O mal estar na civilização (1930). In: SALOMÃO, J. (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996b. v. XXI, p. 67-150, Edição Standard Brasileira.[1930], p. 96). Então, cabe aqui destacar o caráter normativo que instaura a civilização. Isto é, “em toda parte onde se manifesta uma regra podemos ter certeza de estar numa etapa da cultura” (LÉVI-STRAUSS, 1982LÉVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis, RJ: Vozes, 1982., p. 47).

Ao assinar a obra Totem e tabu (FREUD, 1996aFREUD, S. Totem e Tabu (1913). In: SALOMÃO, J. (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996a. v. XIII, p. 11-125, Edição Standard Brasileira.[1913]), o autor fundamenta sua teoria acerca do social. Tal obra aborda o mito da horda primitiva e o assassinato de um pai por seus filhos. Os mesmos tomados por um sentimento de culpa, resultante de tempos de barbárie, criam uma representação de lei em referência ao “nome do pai”: o totem. “A partir do momento em que a função paterna é reconhecida, os filhos são oprimidos. Eles estão numa posição de dependência, presos entre o desejo e a identificação” (ENRÍQUEZ, 1990ENRÍQUEZ, E. Da horda ao Estado: Psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro J. Zahar, 1990., p.31). O sistema totêmico, objetivando a preservação de seu clã, tem como característica o tabu da exogamia, na qual “o mais distante grau de parentesco é encarado como impedimento absoluto para as relações sexuais” (FREUD, 1996FREUD, S. Totem e Tabu (1913). In: SALOMÃO, J. (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996a. v. XIII, p. 11-125, Edição Standard Brasileira.[1913], p. 25).

Desta forma, percebe-se o tabu como o mais antigo código de leis (FREUD, 1996aFREUD, S. Totem e Tabu (1913). In: SALOMÃO, J. (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996a. v. XIII, p. 11-125, Edição Standard Brasileira.[1913]), e a proibição do incesto como primeira lei instituinte de uma civilização, por permitir a construção da vida em sociedade, bem como de uma nova ética, de elementos morais e de julgamento para aqueles que não a cumprem (PONTES, 2004PONTES, A. M. O Tabu do incesto e os olhares de Freud e Levi-Strauss. Trilhas, Belém, ano 4, n. 1, p. 7-14, jul. 2004.).

As ideias de Freud (1996aFREUD, S. Totem e Tabu (1913). In: SALOMÃO, J. (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996a. v. XIII, p. 11-125, Edição Standard Brasileira.[1913]) acerca da renúncia ao instinto como elemento civilizatório perpassa as teorias de Lévi-Strauss (1982)LÉVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis, RJ: Vozes, 1982. no que concerne a proibição do incesto.

Estabaleçamos, pois, que tudo quanto é universal no homem depende da ordem da natureza e se caracteriza pela espontaneidade, e que tudo quanto está ligado a uma norma pertence a cultura e apresenta os atributos do relativo e do particular. Encontramo-nos assim em face de um fato, ou antes de um conjunto de fatos, que não está longe, à luz das definições precedentes, de aparecer como um escândalo, a saber, este conjunto complexo de crenças, costumes, estipulações, e instituições que designamos sumariamente pelo nome de proibição do incesto (LÉVI-STRAUSS, 1982LÉVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis, RJ: Vozes, 1982., p. 47).

Assim, a vida civilizada pressupõe uma redução do Princípio de prazer, à medida que a norma se relaciona com o Princípio de realidade (BAUMAN, 1998BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.). Trata-se, portanto, de um recalque do gozo individual em prol de um bem-estar do grupo, ou seja, refere-se a um fenômeno coercitivo da cultura, que “opera limitando a pulsão sexual; o que vai implicar na substituição do poder do indivíduo pelo poder do grupo, numa renúncia em favor da lei do grupo” (PAIVA, 2004PAIVA, I. P. Um diálogo sobre a cultura e a construção do homem. Holos, v. 3, n. 2, p. 18-24, dez. 2004., p. 23).

Em Leviatã (HOBBES, 2006HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado esclesiático e civil. São Paulo: Martin Claret, 2006.), afirma-se que em um Estado de Natureza, qualificado como um Estado anterior à civilização, não há reconhecimento da lei, e portanto não existe diferenciação entre os indivíduos, isto é, as relações se estabelecem de maneira horizontal. Dessa forma, o pensamento se sustentaria na ideia de que tudo pertenceria a todos e que todos teriam direito a tudo, desencadeando uma guerra.

Assim, a criação de um Estado torna-se imprescindível, pois se funda como instituição de garantia de subjetivação do homem por relacionar-se ao consentimento às regras. Este por sua vez, tem um caráter de exterioridade, visto que mesmo que os sujeitos o neguem, permanece a sua legitimidade (LEBRUN, 2008LEBRUN, J. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC, 2008.).

Perante a instauração do Estado pode-se dizer que o sujeito abdica de um poder pleno em nome de uma segurança:

Os pactos, sem a força, não passam de palavras sem substância para dar qualquer segurança a ninguém. Apesar das leis naturais – que cada um respeita quando tem vontade de respeitar e fazer isso com segurança, se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força de capacidade, como proteção contra todos os outros (HOBBES, 2006HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado esclesiático e civil. São Paulo: Martin Claret, 2006., p.127-128).

Assim, há uma necessidade de constrição da liberdade humana para ocorrer um movimento civilizatório (BAUMAN, 1998BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.). Em uma visão psicanalítica em torno desta temática de constrição, Lebrun (2008)LEBRUN, J. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC, 2008. faz referência à existência de um Terceiro, que pode ser entendido como,

o que introduz a separação; o elemento externo a uma relação, que permite a ventilação, a abertura, o que permite encontrar a boa distância e, por conseguinte, escapar do fusional; é um outro; o que permite sair da relação em espelho, do imaginário; o que cria um vinculo na relação entre dois interlocutores, o que organiza a perspectiva, o que significa o perigo, também, porque implica a perda, o que permite avançar, o que introduz o simbólico que representa a Lei (LEBRUN, 2008LEBRUN, J. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC, 2008., p. 65).

Sendo assim, permite-se hipotetizar que o Terceiro, implicado na passagem do Estado de Natureza para o Estado de Cultura, se dá por meio da figura do totem e da imposição do tabu do incesto. E que, posteriormente, este Terceiro sofrerá deslocamentos, ou seja, outra figura passará a exercer o seu papel de referência.

Do absoluto ao democrático: o caminho entre a religião e a invenção da igualdade

A História está repleta de situações em que há um Terceiro fundador, representando um lugar de referência e autoridade, seja ele chefe da horda, monarca, religioso ou Estado democrático (LEBRUN, 2008LEBRUN, J. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC, 2008.).

Durante a Idade Média, “a ideia de Estado forma um paralelo com a ideia de Deus” (KELSEN, 2000KELSEN, H. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.341), isto é, a vida cultural na Europa Ocidental era monopolizada pela Igreja, que se fazia intermediária entre Deus e a humanidade. Nesta relação, o Terceiro revela-se como lei a partir da instituição religiosa:

O poder monárquico era um poder incorporado na pessoa do príncipe. Não julguemos com isso que ele detinha todo poder. Quando o absolutismo estava no auge, a monarquia francesa não era um despotismo. Acima do príncipe havia a lei e a sabedoria divinas.Mas este parecia como um mediador entre os homens e Deus. [...] Por vezes, sujeito à lei e acima das leis, o príncipe levava nele mesmo, em seu coração, em sua voz, em seu corpo imortal, sobrenatural, ao qual estava acoplado seu corpo natural, mortal, o principio da geração e da ordem do reino (LEFORT apud LEBRUN, 2008LEBRUN, J. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC, 2008., p. 75)

Até então, a civilização orientava-se pelos princípios estipulados pela doutrina cristã, que ditava os costumes em favor da organização civil. Conforme salienta Souza (1994SOUZA, O. Limites no conflito entre religião e psicanálise. Psicanálise e ilusões contemporâneas, Porto Alegre, v. 10, p. 5-16, 1994., p. 6) “a religião [...] é, no final das contas, um mal aceitável. Serve para conter as pulsões, as quais se fossem deixadas in natura, tornariam impossível qualquer organização social”.

Porém, com o Renascimento comercial e urbano, a burguesia se consolida e revolta-se contra o regime absolutista vigente, onde sua maior manifestação se expressa através da Revolução Francesa, acelerando o processo de transição entre o absolutismo e a democracia (PAZZINATO, SENISE, 2002PAZZINATO, A. L.; SENISE, M. H. V. História moderna e contemporânea. 14. ed. São Paulo: Ática, 2002.). Destarte, pode-se inferir que a Igreja, bem como a religião, perde seu lugar como Terceiro.

A partir dos ideais de igualdade, fraternidade e liberdade apresentados na Constituição de 1793, se constitui um regime democrático, onde “se temos de ser comandados, queremos sê-lo por nós mesmos” (KELSEN, 2000KELSEN, H. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.8). Portanto, observa-se esse período a partir da,

[...] transformação e declínio do espaço e do tempo sagrados que observamos na passagem do modelo de sociedade tradicional, calcada no princípio da desigualdade dos seres humanos e entre os humanos e os divinos, para a sociedade moderna ocidental, embasada no principio da igualdade entre todos e na progressiva homogeneização das formas de vida, dos produtos, dos ideais, do cotidiano (FLEIG, 1994FLEIG, M. Subjetividade: espaço e tempos sagrados. Psicanálise e ilusões contemporâneas, Porto Alegre, v. 10, p. 17-25, 1994., p. 18).

O novo lema apresentado pela Revolução Francesa propõe a autogestão da sociedade pelos moldes da democracia. Para Kehl (2008)KEHL, M. R. Deslocamentos do feminino. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2008., o ideal moderno de liberdade, que fora transformado em direito individual, padece em virtude do desamparado e desenraizamento provocados no sujeito. Nessa lógica, o homem moderno, sujeito livre em suas escolhas, se desenvolve regido pelos princípios burgueses e como consequência “torna-se semelhante aos outros, tomado pela representação idealizada da conduta social, adotando os cânones de gozo propostos por um sistema social particular, no qual está inserido” (ENRÍQUEZ, 1990ENRÍQUEZ, E. Da horda ao Estado: Psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro J. Zahar, 1990., p.358).

Desse modo, é possível pensar o século XIX como o período de consolidação de padrões e discursos que sustentariam simbolicamente milhões de sujeitos. A modernidade, seguida da forte industrialização, da urbanização, da organização da vida pelos parâmetros burgueses, leva a uma fala massificada, como também ao advento de um novo sujeito e uma forma peculiar de sofrimento: a neurose. Por conseguinte, o sujeito moderno se vê em meio a uma conflitiva: por um lado “a liberdade individual reina soberana” (BAUMAN, 1998BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998., p. 9), há um imperativo de autonomia, caracterizado pela vontade de livre-arbítrio e autoria de seu destino; e por outro lado, se sente em dívida com uma tradição, representada por um Terceiro enfraquecido (KEHL, 2008KEHL, M. R. Deslocamentos do feminino. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2008.).

Pode-se analisar esse mal-estar como desilusão frente a um percurso histórico que decorre desde a vigência de um princípio de prazer, onde a liberdade e a individualidade eram prezadas pelos homens numa tentativa de busca de felicidade para todos os seus iguais; até a necessidade de criação de instituições de repressão e ordem, como o Direito, para um ensaio de manutenção da vida coletiva, mesmo que haja privação da liberdade individual (ENRÍQUEZ, 1990ENRÍQUEZ, E. Da horda ao Estado: Psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro J. Zahar, 1990.).

a homogeneização será mais forte, as palavras de ordem mais imperativas, a vontade de unificação do corpo social mais inquietante. Mas todos os Estados são unânimes em pedir aos indivíduos que se sintam responsáveis por seus atos e estejam prontos a pagar o preço por pertencerem a uma comunidade que, mal ou bem, se ocupa deles (ENRÍQUEZ, 1990ENRÍQUEZ, E. Da horda ao Estado: Psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro J. Zahar, 1990., p. 358).

Ao analisar tal panorama histórico percebe-se que há uma repetição da necessidade de um representante de ordem. Nas sociedades primitiva, houve a urgência da interdição em um contexto marcado por uma liberdade absoluta, a fim de assegurar a sobrevivência, bem como a vida social, através da lei do incesto. Já estruturado o Estado de Cultura, há um deslocamento do Terceiro para a dimensão religiosa. Mais tarde, com os ideais propostos pela Revolução Francesa, há novamente uma tentativa de se retomar esta liberdade plena, e assim se mostrou indispensável a legitimação de uma figura representativa de ordem, que nesse momento fora instituída pelo Estado Democrático.

Porém, acredita-se que na atualidade este novo Terceiro se mostra enfraquecido, na medida em que sua principal ferramenta mostra-se sintomática, conforme indica LEBRUN (2008LEBRUN, J. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC, 2008., p. 137) ao inferir que “o Direito hoje não se refere mais a algo que é externo [...] é sua nova modalidade de funcionamento, ele tenta mesmo retornar por sua conta, todas as opiniões diferentes”. Assim, a sociedade contemporânea, bem como o Terceiro, estão em um processo de dessimbolização, que pode ser entendido como uma tentativa de transformar o que se apresentava na ordem simbólica em real (LEBRUN, 2008LEBRUN, J. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC, 2008.).

A (des) ordem contemporânea

Pode-se sugerir que no tempo em que um Terceiro vigorava havia uma organização coletiva mais consistente, visto que era possível instaurar a perda necessária dos processos civilizatórios. Porém, a contemporaneidade desmascarou esse trabalho. O Terceiro que até então era lugar de referência e autoridade perde sua credibilidade e seu endereçamento. Uma nova ordem se instaura, onde,

Com efeito, em nossos tempos de mudança do laço social, o ar ambiente está para o igualitarismo, para a permutabilidade dos lugares, para a simetria dos estatutos, para a reciprocidade dos direitos, para a parentalidade fora da diferença dos sexos, para a guarda alternada... e, nesse contexto, em que todos os marcadores de ontem estão suspensos, encontrar sua orientação é freqüentemente difícil (LEBRUN, 2008LEBRUN, J. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC, 2008., p. 36).

O indivíduo se apresenta emancipado, livre dos enquadramentos religiosos, da sujeição à tradição, da obediência para com a autoridade; isto é, o sujeito contemporâneo “se crê pai de si mesmo” (KEHL, 2002KEHL, M. R. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002., p. 13), autor de sua vida fundado em sua liberdade, mas ao mesmo tempo vazio de substância coletiva. Há um imaginário social, onde o gozo individual é soberano, perante um Terceiro que não se realiza por não mais consentir com a nova ordem proposta, caracterizada pela predominância de relações horizontais em detrimento de uma reverência hierárquica (LEBRUN, 2008LEBRUN, J. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC, 2008.).

O que predomina hoje é a completude, a incapacidade do sujeito de lidar com o sofrimento perante o assujeitamento a regra; que vai de encontro à economia psíquica regida pelo princípio de prazer (MELMAN, 2003MELMAN, C. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.), resultando em “novos modos de alienação, orientados para o gozo e para o consumo” (KEHL, 2002KEHL, M. R. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002., p. 13).

Pode-se pensar, dessa forma, que a atualidade se qualifica através de um discurso capitalista, que troca o significante pelo objeto; sendo esse objeto carregado de gozo. E se comenta aqui do gozo como conceito lacaniano que não se refere apenas da ordem do prazer, mas vai além disso, refere-se à ordem do excessivo (SIQUEIRA, 2009SIQUEIRA, E. R. A. O estatuto contemporâneo das identificações em sujeitos com marcas e alterações corporais. 2009. Dissertação (Mestrado)__Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2009.). Nesse sentido, percebe-se que a cultura vigente difunde o direito de liberdade e satisfação absoluta, onde há um imperativo de gozar a qualquer preço (MELMAN, 2003MELMAN, C. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.).

Dufour (2007DUFOUR, D. A arte de reduzir cabeças. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2007., p. 210) propõe, a partir da nova política instaurada na contemporaneidade, o neoliberalismo, o surgimento de um novo Homem, esse “subtraído de sua faculdade de julgar e empurrado a gozar sem desejar”, caracterizando novas formas de conviver em sociedade e de formação da sua subjetividade. Refere, então, um sujeito acrítico e dessimbolizado, atravessado pela ideia de uma falsa autonomia.

Da mesma forma, hoje, as ideologias estão perdidas e não há mais uma referência (BAUMAN, 2001BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001.). A mudança se dá até mesmo nas subjetividades, que passaram a ser mais flexíveis. Segundo Bauman (2004)BAUMAN, Z. Amor líquido. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2004., o indivíduo contemporâneo vive um momento marcado pela fluidez, sentido esse que se remete ao movimento, ao esvair e ao escorrer; isto é, inconstância, flexibilidade e movimento se fazem presentes na contemporaneidade. E toda essa nova configuração emerge em prol de uma tentativa de buscar gozo, prazer em demasia.

Por conseguinte, permite-se fazer uma analogia entre Lei e ordem; e gozo e desordem, visível no mundo atual. Ainda Bauman (1998)BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. alerta que a segurança e as certezas prometidas pela modernidade, resultaram, na pós-modernidade, em ansiedades, dúvidas e inseguranças. E essa falta de garantias na contemporaneidade caminha na direção daquilo que o autor afirma ser a desordem do planeta, visto que “o que quer que venha a tomar o lugar da política dos blocos de poder assusta por sua falta de coerência e direção e também pela vastidão das possibilidades que pressagia” (BAUMAN, 1998BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998., p. 33).

Destarte, o que se percebe é um enfraquecimento do Terceiro, daquele que representa a interdição. Há, dessa forma, uma substituição da Lei pelo gozo, e como consequência apresenta-se a contemporaneidade marcada por mudanças provocadas pelo individual e não mais por preceitos estabelecidos (MELMAN, 2003MELMAN, C. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.).

Os progressos da razão e do discurso da ciência destruíram a crença na fatalidade, na vontade de Deus, na culpabilidade hereditária. Assim sendo, a responsabilidade subjetiva passou a valer para todos e cada um per si, ao contrário de como se passava nas primeiras eras onde a massa não era responsável, sendo essa uma prerrogativa dos deuses, dos heróis e dos governantes. Responsabilidade subjetiva, como sinônimo de individualismo, é portanto outro nome da democracia e um fardo bem pesado de se carregar (SIQUEIRA, 2009SIQUEIRA, E. R. A. O estatuto contemporâneo das identificações em sujeitos com marcas e alterações corporais. 2009. Dissertação (Mestrado)__Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2009.).

Então, tomada por um anseio de futuro promissor, reflexo da racionalidade, da ciência, economia e da democracia; a civilização ocidental ultrapassa a pós-modernidade e então depara-se com o sujeito contemporâneo regido por uma nova economia psíquica, que tem como base o gozar absoluto, e que se utiliza da tecnicidade do discurso científico para tal.

A ciência e o contorno do real

Atualmente, a ciência faz emergir uma nova modalidade desse imperativo de gozo absoluto, e acaba por configurar-se como a principal figurante no que diz respeito a representação do discurso social (SANADA, 2004SANADA, E. R. A ‘verdade’ da ciência a partir de uma leitura psicanalítica. Psicologia USP, São Paulo, v. 15, n. 1/2, p. 183-194, 2004.). Passa-se a admitir apenas uma autoridade que se delega carismática, e o discurso científico, enquanto modo de proporcionar uma vida regida pelo Princípio de prazer, pode ser outorgado como tal (MELMAN, 2003MELMAN, C. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.).

De encontro a esse imperativo, é passível afirmar que a ciência contemporânea trabalha na busca de contornar o real, deslocando as barreiras do impossível (VANDERMERSCH, 2004VANDERMERSCH, B. O que seria um sujeito sem pai? Há um sujeito sem pai? Revista Tempo Freudiano / Associação Lacaniana Internacional, Rio de Janeiro, n. 5, p. 123-137, ago. 2004.). Para Lebrun (2008LEBRUN, J. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC, 2008., p. 123), no mundo contemporâneo “eu interrogo o imprevisível, eu aposto e o real responde”.

Dentro deste viés, para que se pudesse admitir uma sociedade científica, apresentam-se como consequências algumas importantes transformações no viver:

O que constatamos é que o deslocamento do impossível é acompanhado, com um pouco de atraso, pelo deslocamento do interdito. Aliás, alguns dizem hoje que tudo o que é possível biologicamente será feito. Depois as leis se adaptarão aos usos... Assim, se operam transexuais para transformar seus corpos segundo seu pedido expresso, que é, muitas vezes, delírio. Em seguida, o direito é solicitado para ajustar o estado civil à nova anatomia (VANDERMERSCH, 2004VANDERMERSCH, B. O que seria um sujeito sem pai? Há um sujeito sem pai? Revista Tempo Freudiano / Associação Lacaniana Internacional, Rio de Janeiro, n. 5, p. 123-137, ago. 2004., p. 126).

Esse novo discurso, empreitado nessa busca por aquilo que encontra-se além do prazer, acha sua potência perante um Terceiro esvaído, e alia-se ao desejo emergido na sociedade contemporânea de preencher a falta à qualquer custo (LEBRUN, 2004LEBRUN, J. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.). Fala-se, pois, de uma massificação e universalização do gozar advindos de um discurso científico, que não há interditos. Conforme Untergerber (1994, p. 64): “ali onde a lei não opera pôr limites, propõem-se normas que funcionam como suplências da lei do sujeito articulado com o desejo”.

Entretanto, Freud (1996cFREUD, S. A questão de uma Weltanschauung. (1932). In: SALOMÃO, J. (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996c. v. XII, p. 193-220, Edição Standard Brasileira.[1932]), ao explanar sobre Weltanschauung, referida como uma construção intelectual de hipótese dominante utilizada para a resolução de questões da existência, já problematizava a questão científica e trazia à tona as implicações da ciência sobre o sujeito. O autor elucida, então, os traços negativos da Weltanschauung científica quando diz que “é muito pobre, sem esperança e de que ela despreza as reivindicações do intelecto humano e as necessidades da mente humana” (FREUD, 1996cFREUD, S. A questão de uma Weltanschauung. (1932). In: SALOMÃO, J. (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996c. v. XII, p. 193-220, Edição Standard Brasileira.[1932], p. 156). Morin (2011)MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 2. ed. rev. Brasília: UNESCO, 2011., também verbaliza está problemática ao afirmar que:

As democracias do século XXI serão, cada vez mais, confrontadas com o gigantesco problema decorrente do desenvolvimento da enorme máquina em que ciência, técnica e burocracia estão intimamente associadas. Esta enorme máquina não produz apenas conhecimento e elucidação, mas produz também ignorância e cegueira (MORIN, 2011MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 2. ed. rev. Brasília: UNESCO, 2011., p. 98).

Nesse contexto, o indivíduo contemporâneo não consegue perceber que o enunciado científico, proposto pela contemporaneidade, se aproxima de um discurso psicótico, pois forclui o sujeito em questão. Melman (2003)MELMAN, C. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003., ao explanar sobre esse tema, referencia o saber numerado atual, em detrimento de um alfabetizado. Ao proferir isso infere que ao ler um texto o indivíduo pode se sentir pertencente a ele, pois delega um sentido e uma interpretação. Porém, ao se deparar com um cálculo, encontrar um sentido se torna difícil. Dessa forma, o autor presume a forclusão do próprio sujeito, que acaba se submetendo a técnica, da qual se torna dependente e escravo.

Conforme Vandermersch (2004VANDERMERSCH, B. O que seria um sujeito sem pai? Há um sujeito sem pai? Revista Tempo Freudiano / Associação Lacaniana Internacional, Rio de Janeiro, n. 5, p. 123-137, ago. 2004., p. 125) “de fato, o problema maior da ciência é o lugar de referência absoluta que lhe confere a sociedade, o que tende a confundir os lugares do poder e do saber”. Nesta lógica, é importante ressaltar que a “sobrevinda do discurso da ciência subverteu a possibilidade do exercício da função paterna” (LEBRUN, 2004LEBRUN, J. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004., p. 53). Percebe-se, à vista disso, que a partir da emergência da ciência como um discurso do social foi instaurada a instabilidade no seio familiar, que até então caracterizava-se como um sistema capaz de processar a falta e promover a construção do simbólico (SIQUEIRA, 2009SIQUEIRA, E. R. A. O estatuto contemporâneo das identificações em sujeitos com marcas e alterações corporais. 2009. Dissertação (Mestrado)__Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2009.). Lebrun (2004)LEBRUN, J. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004. adverte que a pseudoautonomia provocada por uma pseudodemocracia, perceptível no discurso científico, não admite a estruturação de lugares e figuras, como por exemplo a função do Terceiro, de Lei e de ordem; e dessa forma não permite a estruturação do sujeito em si.

Ainda Lebrun (2008)LEBRUN, J. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC, 2008., refere que a perda de referências, o discurso totalizante de gozo e de tamponamento da falta, além da incapacidade do discurso científico se consolidar como substituto do Terceiro, acaba por trazer inúmeras consequências para a civilização; visto que, como nos refere Santiago (2001SANTIAGO, J. Lacan e a toxicomania: efeitos da ciência sobre o corpo. Ágora, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 23-32, jan./jun. 2001., p. 28), “a ciência não apenas torna possível o acesso ao real, mas também determina-o e transforma-o, povoando-o de certo número de objetos que antes não estavam ali, mas também sérios candidatos a se tornarem restos, resíduos, rebotalhos da civilização”.

Nesse contexto, há necessidade de uma nova ética a fim de impedir o gozo a qualquer preço, imposto pelo capitalismo científico. Cabe aqui pensar que o desenvolvimento da civilização só será possível a partir do momento que em se barra a pretensão totalizante do saber científico (VANDERMERSCH, 2004VANDERMERSCH, B. O que seria um sujeito sem pai? Há um sujeito sem pai? Revista Tempo Freudiano / Associação Lacaniana Internacional, Rio de Janeiro, n. 5, p. 123-137, ago. 2004.), bem como quando houver a instauração de um novo Terceiro.

Considerações finais

É perceptível o movimento de espiral que caracteriza a sociedade: diversas foram as vezes, no decorrer da História, que se passou de um estado de liberdade, de barbárie, de caos e de um gozo absoluto, para a instauração da ordem, a partir de uma figura representativa intitulada Terceiro. Faz-se esse movimento de desordem – ordem a todo instante, como uma crescente espiral, onde as condições do social se repetem, com apenas um presumível deslocamento de funções.

Como visto, civilizar pressupõe constringir o desejo humano. Dessa maneira, a entrada de um Terceiro, que vincula o desejo e a Lei, se mostra primordial para esse processo. E ao analisar as transformações que ocorreram ao longo dos tempos, percebe-se uma mudança na figura de ordem, ou seja, permite-se pensar em um possível deslocamento do Terceiro.

Iniciou-se o que se intitulou civilização a partir do momento em que foi instituída a proibição e a diferença dos lugares, com um corte nos desejos primitivos do indivíduo; dando passagem de um Estado de Natureza para a instauração de um Estado de Cultura. E dando um “salto” na História, compreende-se que o Regime Absolutista se serviu da Religião como o representante de ordem; e que a mesma perdeu seu status de Lei para o Estado Democrático, na modernidade, advindo do pensamento liberal da Revolução Francesa.

Entretanto, o lugar de autoridade no mundo contemporâneo já não permite mais o reconhecimento do coletivo e não mais legitima o sujeito. Como relembra Dufour (2007)DUFOUR, D. A arte de reduzir cabeças. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2007., o que constata-se atualmente é a não existência do Outro simbólico: aquele em que possa direcionar uma demanda ou expor uma objeção.

Dessa forma, pode-se pensar em uma queda das figuras terceiras, que até então se configuraram como importantes no processo civilizatório da humanidade. O que se percebe é uma necessidade de um mais-gozar, juntamente com a ausência de interditos, que acabam por caracterizar um declínio, no sentido de retrocesso, da civilização.

Vale ressaltar as afirmações de Lebrun (2004)LEBRUN, J. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004., quando o mesmo orienta a observar as consequências desse declínio da sociedade ao perder sua capacidade de simbolizar, perante esse discurso científico que não se configura como Lei e que não constringe a conduta, necessária à condição humana. Para além disso, o autor provoca um resgaste dessa Terceiridade, da legitimidade que representa uma parte importante do processo civilizatório. Sugere que alguma figura não se oprima e possa tomar o lugar da Lei, que possa ser o tabu da sociedade contemporânea, que instaure a falta, que impeça o gozo a qualquer preço, e que como consequência dê continuidade ao processo civilizatório da humanidade.

Por fim, este trabalho se constitui como uma forma de suscitar a atenção para a temática da civilização, focando naquilo que, mesmo deslocando-se de figuras e/ou representações, manteve durante o decorrer da História a humanidade coesa e em ordem. Mas acima de qualquer pretensão, finaliza-se este com o intuito de ampliar o olhar acerca dos laços sociais e processos civilizatórios da contemporaneidade; bem como possibilitar o questionamento sobre atual situação contemporânea e dessa forma, pensar em caminhos em busca do reestabelecimento da ordem.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    1 Jul 2012
  • Aceito
    25 Mar 2015
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