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Leitura de textos literários como subversão à linguagem do poder* * Este manuscrito teve como fonte de financiamento a Bolsa Funcap (Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

Literary text reading like subversion of the language of power

La lectura de textos literarios como subversión al lenguaje del poder

Resumo

Este ensaio propõe apontamentos sobre as especificidades da leitura de textos literários como experiência potencialmente formadora de novos sentidos para o leitor e subversiva à linguagem do poder, com seus discursos normatizados e normatizadores do cotidiano. Foi realizada uma revisão narrativa de literatura sobre a temática, e dividiu-se este texto em quatro eixos centrais: o primeiro, em que se apresenta algumas concepções sobre literatura, texto literário e leitura literária; o segundo, em que se discorre sobre a leitura individual e de escuta, partindo do pressuposto de que tal modalidade possibilita ao leitor uma experiência criativa e crítica a partir da produção de sentidos derivada do encontro com o texto. Este ponto encontra-se intimamente relacionado ao terceiro, a leitura literária como experiência; e por fim, apresentam-se interpretações sobre a leitura literária como experiência de subversão à palavra de ordem e à linguagem do poder. Tal diálogo nos levou a concluir que a leitura literária pode representar uma resistência às naturalizações do instituído cotidiano, uma vez que ela se revela como um âmbito de produção de singularidades, instigando no leitor a interrogação sobre o mundo concreto ao seu redor e seus discursos hegemônicos.

Palavras-chave:
experiência; leitura; texto literário; subversão; linguagem do poder

Abstract

This essay proposes notes on the specificities of reading literary texts as an experience, potentially forming new meanings for the reader, and subversive to the language of power, with its normative and normative discourses of daily life. To this end we conducted a narrative literature review on the subject, and divided this text into four central axes: in the first, we present some conceptions about literature, literary text and literary reading; in the second, we discuss about individual and listening reading, assuming that such modality allows the reader a creative and critical experience from the production of meanings derived from the encounter with the text. This point is closely related to the third, literary reading as an experience; and finally, we present interpretations about literary reading as an experience of subversion of the watchword and the language of power. This dialogue led us to conclude that literary reading may represent a resistance to the naturalizations of the daily institute, because it reveals itself as a scope for the production of singularities, prompting the reader to question the concrete world around him and his hegemonic discourses.

Keywords:
experience; lecture; literary text; subversion; language of power

Resumen

Este ensayo propone notas sobre las especificidades de la lectura de textos literarios como una experiencia que potencialmente forma nuevos significados para el lector y que es subversiva al lenguaje del poder, un lenguage con discursos normalizados y normalizadores de la vida cotidiana. Se realizó una revisión de la literatura narrativa sobre el tema, y ​​este texto se dividió en cuatro ejes centrales: el primero, en el que se presentan algunas concepciones sobre la literatura, el texto literario y la lectura literaria; el segundo, en que se discute la lectura y la escucha individual, a partir de la suposición de que esta modalidad permite al lector una experiencia creativa y crítica a partir de la producción de significados derivados de su encuentro con el texto. Este punto está muy relacionado con el tercero, la lectura literaria como experiencia; y finalmente, las interpretaciones de la lectura literaria se presentan como una experiencia de subversión a la orden y al lenguaje del poder. Este diálogo nos llevó a concluir que la lectura literaria puede representar una resistencia a las naturalizaciones en el cotidiano, pues se revela como un ámbito de producción de singularidades, e instiga al lector a cuestionar el mundo concreto que le rodea y sus discursos hegemónicos.

Palabras clave:
experiencia; lectura; texto literario; subversión; lenguaje del poder

Deixa-me dizer-te, meu caro, pode bem acontecer que vás através da vida

sem saber que debaixo do teu nariz existe um livro no qual a tua vida é

descrita em todo o detalhe. Aquilo do qual nunca te deste conta antes,

vais relembrando aos poucos, assim que comeces a ler esse livro, e

encontras e descobres. Alguns livros tu lês e lês e não lhes consegues

encontrar qualquer sentido ou lógica, por mais que tentes. […] Mas esse

livro que talvez esteja logo debaixo do teu nariz, tu lês e sentes-te como

se tivesses sido tu próprio a escrevê-lo, tal como - como é que hei-de

dizer? - tal como se tivesses tomado posse do teu próprio coração […].

(Fiódor Dostoiévski, Gente pobre, 2009DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Gente pobre. São Paulo: Editora 34 , 2009.)

Introdução

O presente ensaio propõe algumas reflexões teóricas sobre a leitura de textos literários como experiência potencialmente mobilizadora de novos sentidos para a pessoa que lê, e que também contribui para a assim chamada “subversão à linguagem do poder”, dado o seu caráter subjetivo, contra-hegemônico. Para esse objetivo, procedeu-se a uma revisão narrativa de literatura sobre o tema, o que permitiu dividir este texto em quatro momentos. No primeiro, apresentam-se algumas noções sobre conceitos relacionados à literatura, texto literário e leitura literária - pontos centrais no texto, tomando como inspiração escritos de autores como Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.), Candido et al. (2005CANDIDO, Antônio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio; GOMES, Paulo. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva , 2005.), Blanchot (1987BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.) e Almeida (2009ALMEIDA, Leonardo Pinto de. Escrita e leitura: a produção de subjetividade na experiência literária. Curitiba: Juruá, 2009., 2014ALMEIDA, Leonardo Pinto de. A experiência total da leitura literária. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 66, n. 2, p. 143-158, 2014. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-52672014000200011&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 13 abr. 2020.
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), entre outros. No momento seguinte, apresentam-se duas modalidades de leitura de textos literários: individual e de escuta, conforme nos propõe Larrosa (2003LARROSA, Jorge. La experiencia de la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2003.). No terceiro momento, relacionam-se tais modalidades ao conceito de experiência, partindo do pressuposto de que ambas possibilitam ao leitor uma experiência criativa e crítica a partir do diálogo entre as estruturas oferecidas pelo texto e suas vivências particulares, oportunizando a transformação do sujeito que lê. Realiza-se uma revisão teórica que toma como enfoque os escritos de Larrosa (2002LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002. https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000100003
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, 2014LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.) sobre a experiência e sobre a experiência da leitura, além de autores como Zilberman (2008ZILBERMAN, Regina. Recepção e leitura no horizonte da literatura. Alea: Estudos Neolatinos, v. 10, n. 1, p. 85-97, 2008. https://doi.org/10.1590/S1517-106X2008000100006
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).

O último momento do texto visa a interpretar essas possibilidades de leitura de textos literários vividas como experiência de subversão à linguagem do poder - uma experiência de contra-hegemonia, portanto. É o que se discute a partir de escritos de Freire (2003FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2003., 2015FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.), Freire e Macedo (1990)FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1990., Almeida (2009ALMEIDA, Leonardo Pinto de. Escrita e leitura: a produção de subjetividade na experiência literária. Curitiba: Juruá, 2009., 2014ALMEIDA, Leonardo Pinto de. A experiência total da leitura literária. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 66, n. 2, p. 143-158, 2014. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-52672014000200011&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 13 abr. 2020.
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), Deleuze e Guattari (1995DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Postulados da linguística. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. (Org.). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34 , 1995. v. 2, p. 11-59.), Hall (2016HALL, Stuart. Cultural studies: a theoretical history. Durham: Duke University Press, 2016.) e Ordine (2015ORDINE, Nuccio. La utilidad de lo inútil. Barcelona: Acantilado, 2015.).

Ponto de partida: literatura, texto literário e leitura

Sabe-se que o termo “literatura” pode se referir a toda e qualquer forma de texto construído e apresentado por meio de signos amplamente compartilhados em uma determinada comunidade. A partir dessa definição, escritos de toda ordem - reportagens midiáticas, artigos científicos, propagandas impressas, escritos pessoais e outras produções textuais - podem ser considerados literatura, uma vez que são redigidos em uma linguagem compartilhada por autor e leitor (ainda que sejam a mesma pessoa) e implicam, intrinsicamente, o registro ou a transmissão de um determinado conteúdo (BENJAMIN, 1994BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.; CANDIDO et al., 2005CANDIDO, Antônio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio; GOMES, Paulo. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva , 2005.).

O significado de “texto literário” abordado neste ensaio, no entanto, se insere em um âmbito mais restrito, conhecido usualmente como “belas letras”. Segundo Candido et al. (2005CANDIDO, Antônio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio; GOMES, Paulo. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva , 2005.), este tipo de texto encerra um caráter ficcional ou atinge um elevado nível estético a partir do qual se transforma em arte e pode contatar a dimensão subjetiva-afetiva do leitor. Com base nestes dois critérios não-excludentes, romances, memórias, poemas, biografias, ensaios, contos, relatos de viagem, crônicas e reportagens - dentre outros gêneros - poderão ser considerados literatura e proporcionar, assim, uma experiência de leitura marcada por variadas e possíveis construções de sentido (CABRAL, 2006CABRAL, Maria. Encontros que nos movem: a leitura como experiência inventiva. 2006. Tese (Doutorado em Psicologia) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: Disponível em: http://objdig.ufrj.br/30/teses/MariaDoCarmoCarvalhoCabral.pdf . Acesso em: 23. abr. 2020.
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; KRAMER, 2000KRAMER, Sonia. Leitura e escrita como experiência: seu papel na formação de sujeitos sociais. Presença pedagógica, Belo Horizonte, v. 6, n. 31, p. 17-27, 2000.).

Outros autores corroboram a definição de texto literário com base nestes dois critérios, estético e ficcional. Vargas (1997VARGAS, Suzana. Leitura: uma aprendizagem de prazer. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.), por exemplo, afirma que um texto adquire caráter literário quando oferece ao leitor pontos de vista ambivalentes, contraditórios, que encerrem muito mais um escrutínio da imperfeição do mundo do que uma verdade incontestável - ou seja, quando se aproxima de um objetivo estético, figurativo. Ainda segundo a autora, é literário também o texto que convida o leitor a viver e pensar uma ficção que, longe de se afastar do mundo real, o interpreta, desfigurando-o para que a própria realidade possa ser internalizada ou discutida (VARGAS, 1997VARGAS, Suzana. Leitura: uma aprendizagem de prazer. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.).

Dependendo da sua condição social, psicológica e até mesmo física, leitores e leitoras podem ter entre si experiências distintas ao ler um mesmo texto literário. Isso implica dizer que, embora o texto seja o mesmo - um determinado livro de poemas, por exemplo -, a maneira como ele é interpretado e experimentado depende necessariamente (mas não exclusivamente) da história pessoal de cada pessoa que o lê - que aspectos chamam mais a sua atenção no texto e como tais aspectos dialogam com a condição específica de cada um, sua visão de mundo e seu posicionamento acerca de questões que o rodeiam (FREIRE, 2008FREIRE, José Célio. Literatura e psicologia: a constituição subjetiva por meio da leitura como experiência. Arquivos Brasileiros de Psicologia , v. 60, n. 2, p. 2-9, 2008. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672008000200002 . Acesso: 13 abr. 2020.
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; KRAMER, 2000KRAMER, Sonia. Leitura e escrita como experiência: seu papel na formação de sujeitos sociais. Presença pedagógica, Belo Horizonte, v. 6, n. 31, p. 17-27, 2000.).

Autores como Almeida (2009ALMEIDA, Leonardo Pinto de. Escrita e leitura: a produção de subjetividade na experiência literária. Curitiba: Juruá, 2009., 2014ALMEIDA, Leonardo Pinto de. A experiência total da leitura literária. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 66, n. 2, p. 143-158, 2014. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-52672014000200011&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 13 abr. 2020.
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), Cabral (2006CABRAL, Maria. Encontros que nos movem: a leitura como experiência inventiva. 2006. Tese (Doutorado em Psicologia) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: Disponível em: http://objdig.ufrj.br/30/teses/MariaDoCarmoCarvalhoCabral.pdf . Acesso em: 23. abr. 2020.
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) e Candido et al. (2005CANDIDO, Antônio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio; GOMES, Paulo. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva , 2005.) afirmam a leitura de textos literários como atividade dinâmica e interativa, capaz de fornecer a quem lê a oportunidade de ressignificar memórias e projetar expectativas, conferindo-lhes novas orientações para que a elaboração de sentidos para a vida seja possível. Assim também diz Larrosa (2002LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002. https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000100003
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, 2003LARROSA, Jorge. La experiencia de la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2003.), que afirma que a leitura de textos literários pode ser uma experiência transformadora, capaz de fomentar em leitores e leitoras um processo de acolhimento dos conteúdos oferecidos pelo texto e, assim, fornecer-lhes bases para enxergar e refletir sobre a sua própria condição no mundo.

Se a atividade de leitura de textos literários é um encontro potencialmente desencadeador de experiências nas quais a pessoa que lê constrói sentidos, afeta-se e transforma sua compreensão do mundo, tal atividade pode ser encarada como um exercício intelectual que forja parte do mundo subjetivo do leitor a partir dos temas que o texto literário propõe (FREIRE, 2008FREIRE, José Célio. Literatura e psicologia: a constituição subjetiva por meio da leitura como experiência. Arquivos Brasileiros de Psicologia , v. 60, n. 2, p. 2-9, 2008. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672008000200002 . Acesso: 13 abr. 2020.
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). Isto porque o texto literário pode engendrar o afastamento reflexivo e o desprendimento de si, que o levam a colocar em suspenso (ou em xeque) suas próprias convicções e seus hábitos relacionados à maneira com que se porta no ambiente em que vive (ALMEIDA, 2009ALMEIDA, Leonardo Pinto de. Escrita e leitura: a produção de subjetividade na experiência literária. Curitiba: Juruá, 2009.). Cabe notar, neste ponto, que um texto literário não pode ser considerado desencadeador de uma leitura de escuta a priori, porque essa possibilidade de leitura como experiência depende exclusivamente da abertura a que leitores e leitoras se permitem no encontro com o texto, e não da qualidade do texto em si.

Já no que compete à noção de leitura, Freire (2003FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2003.) e Freire e Macedo (1990)FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1990. compreendem-na como atividade criadora e crítica, correspondendo a um ato político de ação consciente que engendra novas práticas e novos discursos, o que foge da definição de leitura como simples processamento cognitivo de interpretação de sinais gráficos. Neste caso, na leitura, existe um movimento dinâmico entre quem lê e o mundo, pelo qual o primeiro pode conferir sentido ao segundo. E essa produção de sentido só é possível quando se transcende o ato concreto de ler (a simples decodificação dos sinais linguísticos e a interpretação literal do escrito) e se passa a perceber o texto como dialógico às suas próprias vivências e experiências, do qual se pode extrair sabedoria para uma ação política transformadora de si e do entorno (FREIRE, 2003FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2003.; FREIRE; MACEDO, 1990FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1990.).

Uma primeira aproximação ao tema da leitura revela que há numerosas teorias e definições sobre este conceito, sobre o que representa o ato de ler e sobre como a leitura pode ser compreendida como um processo cognitivo, social e afetivo particular aos seres humanos. O que precisamente define uma atividade como leitura? Quais são os atributos cognitivos, sociais e experienciais envolvidos nessa atividade? Que efeitos a leitura produz na pessoa que lê? São algumas das perguntas recorrentes nesse campo de investigação. Neste momento, interessa situar o conceito geral de leitura.

Afirmar que a leitura seja apenas a visualização de sinais gráficos e a consequente transformação cognitiva desses sinais nos seus respectivos conceitos já não basta; resumi-la a essa noção simplista seria ignorar as possibilidades subjetivas complexas que ela proporciona (CABRAL, 2006CABRAL, Maria. Encontros que nos movem: a leitura como experiência inventiva. 2006. Tese (Doutorado em Psicologia) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: Disponível em: http://objdig.ufrj.br/30/teses/MariaDoCarmoCarvalhoCabral.pdf . Acesso em: 23. abr. 2020.
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). Toda leitura é, pelo menos, o contato sensorial imediato com um texto (no caso de surdos e surdas, esse contato não é visual, mas tátil) e a sua decodificação em conteúdos compartilhados pela comunidade verbal da qual fazem parte autor/autora e leitor/leitora. Esse componente sensorial e cognitivo da leitura já lança a pessoa que lê em uma atividade interpretativa intrínseca ao ato, ainda que superficial (LENCASTRE, 2003LENCASTRE, Leonor. Leitura: a compreensão de textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.). Ou seja: por mais que o sujeito não tenha a leitura como prática frequente em seu cotidiano e por mais que ignore as consequências da leitura em seu próprio campo experiencial, ela gera, intrinsecamente, efeitos diversos em sua percepção e representação da realidade - e considerar este aspecto da leitura significa retirar dela um suposto caráter de atividade passiva, puramente física (ALMEIDA, 2014ALMEIDA, Leonardo Pinto de. A experiência total da leitura literária. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 66, n. 2, p. 143-158, 2014. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-52672014000200011&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 13 abr. 2020.
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).

Há cada vez mais evidências de que, durante a leitura, o texto representa apenas uma de várias fontes de informação para quem lê (LENCASTRE, 2003LENCASTRE, Leonor. Leitura: a compreensão de textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.). Pode-se dizer, grosso modo, que o texto escrito equivale a um gatilho que dispara uma rede de conteúdos relacionados e independentes, alguns suscitados pelo contato direto de quem lê com o material inédito do texto, outros emergentes da relação desse material com o mundo afetivo-subjetivo do leitor. Ao processar mentalmente um texto, interpretando-o, a pessoa que lê opera com o reconhecimento de estruturas simbólicas nas quais as proposições textuais se organizam em módulos de conhecimento já existentes na memória - e é por isso que, neste caso, o conteúdo memorialístico do leitor ou da leitora tem importância fundamental no processamento do texto (BOSI, 2003BOSI, Ecléa. Tempo vivo da memória. São Paulo: Ateliê, 2003.; LENCASTRE, 2003LENCASTRE, Leonor. Leitura: a compreensão de textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.). Isso é especialmente claro em casos de leitura de textos literários: ao ler uma frase como “A casa era pequena, verde e avarandada”, quem lê criará uma imagem mental desta casa - ainda que não necessariamente nítida -, lançando mão de ideias, projeções e memórias acerca de casas que ele já viu, conhece ou concebe, e essas evocações pessoais influenciarão de maneira inequívoca a sua apreensão do conteúdo lido (BOSI, 2003BOSI, Ecléa. Tempo vivo da memória. São Paulo: Ateliê, 2003.).

Tomando este direcionamento, pode-se dizer que a leitura de um texto literário se diferencia das leituras dos demais tipos de texto por não possuir como objetivo último a assimilação de uma informação dada e, sim, por perseguir esta experiência de criação (e recriação) de sentido mediatizada pelo encontro entre leitor e texto (BLANCHOT, 1987BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.). Nesta perspectiva, Almeida (2014ALMEIDA, Leonardo Pinto de. A experiência total da leitura literária. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 66, n. 2, p. 143-158, 2014. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-52672014000200011&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 13 abr. 2020.
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) se refere à leitura literária como uma experiência total, ou seja, uma atividade centrada em si mesma cuja finalidade não é senão a própria experiência e as possíveis ressonâncias dela na subjetividade daquele que a pratica. O texto literário, por sua vez, não possui a finalidade de transmitir verdades cristalizadas, mas, antes, constitui um campo de relativismo em que deixa acontecer o próprio sentido em seu seio (ALMEIDA, 2009ALMEIDA, Leonardo Pinto de. Escrita e leitura: a produção de subjetividade na experiência literária. Curitiba: Juruá, 2009.), o que é possível através da experiência vivida pelo leitor.

É ainda comumente atribuída à leitura literária - e à literatura, de modo mais amplo - a capacidade de transgredir o instituído cotidiano e dissolver, ainda que por um breve instante, a homogeneidade das palavras de ordem que circulam no dia a dia, a hegemonia dos discursos responsáveis por criar e manter hábitos estereotipados, condutas e modos de pensamento impostos (ALMEIDA, 2014ALMEIDA, Leonardo Pinto de. A experiência total da leitura literária. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 66, n. 2, p. 143-158, 2014. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-52672014000200011&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 13 abr. 2020.
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; DELEUZE, 1997DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.; DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Postulados da linguística. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. (Org.). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34 , 1995. v. 2, p. 11-59.; FOUCAULT, 2001FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: MOTTA, Manuel Barros da (Org.). Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. Coleção Ditos & Escritos, v. 3, p. 264-298. ). Essa capacidade seria fruto da dimensão criativa e crítica da literatura e da leitura literária, que sustentam uma posição oposta ao desejo de verdade e controle; ao contrário, apropriam-se precisamente dos dogmas e dos juízos instituídos para suscitar uma reflexão sobre a existência (ALMEIDA, 2014ALMEIDA, Leonardo Pinto de. A experiência total da leitura literária. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 66, n. 2, p. 143-158, 2014. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-52672014000200011&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 13 abr. 2020.
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).

A leitura literária individual e de escuta

Os estudos históricos de Chartier (2001CHARTIER, Roger. Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001., 2003CHARTIER, Roger. Formas e sentido: cultura escrita, entre distinção e apropriação. Campinas: Mercado de Letras, 2003.) são muito esclarecedores para que se compreenda as diversas modalidades de leitura historicamente elaboradas e determinadas nas sociedades humanas, detendo-se no fato de que as definições de leitura são bastante variadas, impossibilitando a compreensão universal desta atividade a partir de um único ponto de vista. As maneiras pessoais de ler, os protocolos de leitura implícitos no texto (de modo particular) e na sociedade (de modo geral), o acesso aos textos e os dispositivos materiais disponíveis são alguns dos elementos que possibilitam uma ampla diversidade de práticas e processos de leitura, levando-se em conta, ainda, que cada leitor e grupo de leitores possuem seus próprios costumes, objetivos e razões para ler (CHARTIER, 2001CHARTIER, Roger. Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.).

Cabral (2006CABRAL, Maria. Encontros que nos movem: a leitura como experiência inventiva. 2006. Tese (Doutorado em Psicologia) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: Disponível em: http://objdig.ufrj.br/30/teses/MariaDoCarmoCarvalhoCabral.pdf . Acesso em: 23. abr. 2020.
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), retomando os estudos de Chartier (2003CHARTIER, Roger. Formas e sentido: cultura escrita, entre distinção e apropriação. Campinas: Mercado de Letras, 2003.), situa a leitura literária individual e silenciosa como uma modalidade que se tornou comum após a popularização do livro em seu formato costurado e portátil, tornando-se um companheiro acessível para todos os momentos e estabelecendo uma relação de proximidade afetiva com o leitor.

Também nesta perspectiva da leitura enquanto relação com o mundo e produtora de sentidos, Larrosa (2003LARROSA, Jorge. La experiencia de la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2003.) define a leitura de escuta, reflexiva por definição. Segundo o autor, é na modalidade de leitura de escuta que a pessoa que lê pode estabelecer um tipo especial de relação consigo a partir dos temas que o texto literário propõe; nesta intimidade, a solidão permite uma entrega profunda ao texto, cujos efeitos advindos de sua fruição podem desestabilizar a ordem do mundo do leitor ou da leitora, gerando reflexões potencialmente transformadoras.

Na leitura literária individual e de escuta, a leitura é reflexiva, uma espécie de modo particular de se viver a experiência da solidão (LARROSA, 2003LARROSA, Jorge. La experiencia de la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2003.). Ela é caracterizada por uma interrupção no fluxo da vida cotidiana, um ínterim suspenso em que é possível “ruminar” as ideias apresentadas pelo texto e fruí-las no silêncio necessário à elaboração de novos sentidos. Nesta modalidade de leitura, o silêncio da solidão detém o tempo veloz do mundo cotidiano que anula as possibilidades de reflexão a partir de uma incursão exploratória no plano dos sentidos (CABRAL, 2006CABRAL, Maria. Encontros que nos movem: a leitura como experiência inventiva. 2006. Tese (Doutorado em Psicologia) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: Disponível em: http://objdig.ufrj.br/30/teses/MariaDoCarmoCarvalhoCabral.pdf . Acesso em: 23. abr. 2020.
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; LARROSA, 2003LARROSA, Jorge. La experiencia de la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2003.). Essa incursão, que visa ao acolhimento das propostas de reflexão oferecidas pelo texto, pode encadear na pessoa que lê uma abstração do mundo que lhe permite emprestar novos sentidos ao entorno e a si mesma.

Não se configurando obrigatória nem compulsória, a modalidade de leitura literária individual e de escuta diz respeito estritamente à qualidade da relação da pessoa que lê com o texto e, particularmente, como esse texto a afeta pessoalmente. Neste tipo de leitura, pode-se dizer que leitores acolhem a possibilidade de tecer relações entre o texto, suas vivências passadas, seus conhecimentos e representações sobre si mesmos e as experiências proporcionadas pela leitura (CABRAL, 2006CABRAL, Maria. Encontros que nos movem: a leitura como experiência inventiva. 2006. Tese (Doutorado em Psicologia) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: Disponível em: http://objdig.ufrj.br/30/teses/MariaDoCarmoCarvalhoCabral.pdf . Acesso em: 23. abr. 2020.
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). Ou seja, diferentemente da leitura de apropriação informacional, em que a pessoa que lê se dedica a dominar o conteúdo que leu, a leitura de escuta é reflexiva e pode promover uma perturbação na sua identidade, que permite que o texto literário reverbere, afete e transforme, em um encontro de sentidos (LARROSA, 2003LARROSA, Jorge. La experiencia de la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2003.). Neste caso, a leitura não possui outra finalidade a não ser a experiência da própria leitura e a sua possibilidade de proporcionar mudanças no campo subjetivo (CABRAL, 2006CABRAL, Maria. Encontros que nos movem: a leitura como experiência inventiva. 2006. Tese (Doutorado em Psicologia) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: Disponível em: http://objdig.ufrj.br/30/teses/MariaDoCarmoCarvalhoCabral.pdf . Acesso em: 23. abr. 2020.
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).

Neste tipo de leitura, portanto, há o exercício da capacidade de livrar-se de preconceitos e de expectativas, e de acolher atentamente os conteúdos suscitados pelo texto, fazendo-os ressonarem em seu mundo interior a partir de suas próprias vivências e experiências. E é precisamente por essa capacidade introspectiva que Larrosa (2003LARROSA, Jorge. La experiencia de la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2003.) deu a tal modalidade de leitura o qualificativo de escuta, pois nela a pessoa que lê se dedica atentamente a receber o conteúdo do texto, sendo a “escuta” aqui interpretada com base no seu significado de compreensão empática.

É interessante considerar que a leitura literária individual e de escuta, tal como está sendo abordada aqui, se relaciona à prática da “leitura de fruição”. Segundo Barthes (2002BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2002.), a leitura de fruição - que depende mais da abertura do leitor e menos da qualidade do texto em si, tal como na leitura de escuta - é uma leitura que desestrutura e desconforta, pois questiona as convicções e as estabilidades da pessoa que lê, afetando-a em seus preconceitos. Ela difere, portanto, da leitura de prazer, que mantém o leitor ou a leitora em uma posição confortável e segura, não oferecendo riscos à integridade de suas crenças (BARTHES, 2002BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2002.). Em geral, são leituras que se abrem para a proposta de alteridade, posicionando a pessoa que lê em pontos de vista que ela usualmente não tomaria para si. Neste processo, é viável e possível a transformação a partir da leitura, entendendo-a como uma experiência.

A leitura literária como experiência

Para discorrer sobre a leitura literária como uma experiência centrada em si mesma, é preciso definir, em primeiro lugar, o que se entende por experiência. Segundo Larrosa (2014LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014., p. 10), a experiência

[…] é algo que nos acontece e que às vezes treme, ou vibra, algo que nos faz pensar, algo que nos faz sofrer ou gozar, algo que luta pela expressão, e que as vezes, algumas vezes, quando cai em mãos de alguém capaz de dar forma a esse tremor, então, somente então, se converte em canto.

Ou, como diz Heidegger (2003HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003., p, 121), filósofo que Larrosa toma como inspiração para tratar do conceito em questão: “Fazer uma experiência com algo, seja com uma coisa, com um ser humano, com um deus, significa que esse algo nos atropela, nos vem ao encontro, nos chega até nós, nos avassala e nos transforma”.

Larrosa (2014LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.), ao tratar deste conceito, vai primeiramente em busca de suas diferentes raízes, e parte de suas significações. Experiri, palavra em latim que remete a “provar” ou “experimentar”, afirma a condição de que a experiência ocorre apenas quando há um encontro com algo que se prova ou experimenta - ou seja, uma abertura ao novo. O radical periri, por sua vez, remete à ideia de perigo, ou risco, sendo encontrado também em periculum. Já a raiz indo-europeia, per, relaciona-se à noção de travessia, viagem ou passagem. Portanto, a experiência convocaria o lançar-se do sujeito a uma série de provações, “degustações” ou experimentações que incluiriam o perigo de ser confrontado com realidades e verdades diferentes das suas, explorando um mundo incerto e desconhecido a partir do qual ele pode construir uma sabedoria para si a partir deste contato com o inédito (LARROSA, 2002LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002. https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000100003
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, 2003LARROSA, Jorge. La experiencia de la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2003.).

Nesse sentido, o sujeito aberto à experiência é o sujeito que “se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando no encontro sua oportunidade, sua ocasião para transformar-se” (LARROSA, 2002LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002. https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000100003
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, p. 25). Muito mais do que o acúmulo de informações ou atividades, o sujeito da experiência busca a potência transformadora daquilo que chega a ele, estando atento, assim, ao modo como a vida ao redor interfere em seu mundo subjetivo.

Afirmar a leitura literária como uma experiência implica considerá-la como possuidora de um potencial transformador que não é facilmente encontrado nos demais tipos de leitura, como na leitura de aquisição de informação, por exemplo (CABRAL, 2006CABRAL, Maria. Encontros que nos movem: a leitura como experiência inventiva. 2006. Tese (Doutorado em Psicologia) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: Disponível em: http://objdig.ufrj.br/30/teses/MariaDoCarmoCarvalhoCabral.pdf . Acesso em: 23. abr. 2020.
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). A leitura literária pressupõe precisamente o que a experiência, enquanto conceito, convoca: a possibilidade de fazer com que o sujeito se interrogue e interrogue o mundo, estranhando-se e estranhando-o, não dissociando o significado e o sentido do texto com o sentimento perturbador que ele pode provocar (ALMEIDA, 2014ALMEIDA, Leonardo Pinto de. A experiência total da leitura literária. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 66, n. 2, p. 143-158, 2014. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-52672014000200011&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 13 abr. 2020.
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; FREIRE, 2008FREIRE, José Célio. Literatura e psicologia: a constituição subjetiva por meio da leitura como experiência. Arquivos Brasileiros de Psicologia , v. 60, n. 2, p. 2-9, 2008. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672008000200002 . Acesso: 13 abr. 2020.
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).

Assim, o leitor assume a posição de sujeito da experiência, tal como o define Larrosa (2002LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002. https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000100003
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): algo como um território de transição, um receptáculo sensível que produz afetos e inscreve novas marcas a partir do que lhe toca, deixando vestígios do vivido e assumindo alguns de seus efeitos. O sujeito leitor, portanto, sai modificado de sua leitura - ou, antes, de sua exposição ao texto - porque o contato com o texto literário é justamente o campo onde ocorrem estas experiências transformadoras. Em outras palavras, a exposição ao texto não é somente em relação a este, mas sim e também uma exposição a si próprio, em que o sujeito metaforicamente de algum modo se despe diante de si e se olha, se observa, se toca, sentindo cada parte de si, cada pedaço de seu corpo em contato com o mundo, possibilitando-lhe desconstruções e reconstruções de olhares, formas e percepções, aqui também em sentido metafórico.

E tais experiências são possíveis porque, nesta perspectiva, o texto literário é visto como um convite para que leitores vivenciem uma experiência de alteridade, de “colocar-se como outro”, sendo-lhe apresentadas várias verdades que ele experimenta sob os pontos de vista representados pelos personagens ou pelo narrador (ALMEIDA, 2009ALMEIDA, Leonardo Pinto de. Escrita e leitura: a produção de subjetividade na experiência literária. Curitiba: Juruá, 2009.).

Portanto, quando se leva o que se sentiu e produziu no momento da leitura para além da atividade concreta da leitura - pensando criticamente sua própria vida, sua história e seu ambiente, e consciente de que pode continuá-los ou mudá-los, fazendo com que o sentido do texto ressoe em suas ações -, aí a leitura se torna uma experiência transformadora (KRAMER, 2000KRAMER, Sonia. Leitura e escrita como experiência: seu papel na formação de sujeitos sociais. Presença pedagógica, Belo Horizonte, v. 6, n. 31, p. 17-27, 2000.). E se trata de uma transformação porque, pela experiência, o leitor entra em contato com o inédito proposto pelo texto, podendo extrair deste alguma sabedoria - alguma nova maneira de perceber-se e perceber o redor. Assim, a leitura literária afirma sua riqueza no próprio exercício de expor-se ao contato com o texto, se submeter à sua potência criativa, e fazê-lo suscitar forças ativas e reativas que marcam o campo experiencial da leitura; assim, o leitor ou a leitora se deixam afetar pela proposta desordenadora do texto (ALMEIDA, 2014ALMEIDA, Leonardo Pinto de. A experiência total da leitura literária. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 66, n. 2, p. 143-158, 2014. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-52672014000200011&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 13 abr. 2020.
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; CANDIDO, 1999CANDIDO, Antônio. A literatura e a formação do homem. Remate de males - Revista do Departamento de Teoria Literária da USP, São Paulo, n. esp., p. 81-89, 1999.; BENJAMIN, 1994BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.; LARROSA, 2002LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002. https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000100003
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; PIEGAY-GROS, 2002PIEGAY-GROS, Nathalie. Le lecteur, textes choisis & présentés. Paris: G. F. Flammarion, 2002.). É a leitura como produtora de desterritorialização, conceito convocado de Deleuze e Guattari (2012DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Ano Zero: Rostidade. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. (Org.). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia . São Paulo: Editora 34 , 2012. v. 3, p. 35-68.): o abandono de um território subjetivo para a busca de outro. É como se o sujeito, nessa experiência, deixasse o chão em que pisa, constituído pelas crenças e olhares que o sustentam, e fosse em busca de outras possibilidades de fixar seus pés subjetivos, um chão outro, nessa que é uma busca a partir de um caminho desconhecido. Nesse processo, o olhar da pessoa que lê sobre si e sobre o mundo se modifica, e agora ela vai em busca de outras possibilidades de perceber a si e ao mundo, possibilidades estas que serão elaboradas em contato com o texto literário.

Vale ressaltar que, conforme considera Bloom (2000BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.), o autor ou a autora de um texto literário não escreve com a certeza determinante de que seu texto irá operar no leitor uma experiência transformadora; ele escreve para convidá-lo a assumir uma perspectiva não habitualmente assumida no dia a dia, para convidá-lo a “provar” sensações e pensamentos diferentes dos usuais. De acordo com o teórico citado, não compete a um texto literário assumir para si a pretensa responsabilidade de proporcionar uma experiência de leitura literária, uma vez que tal experiência depende, como dito anteriormente, do sujeito leitor enquanto sujeito da experiência - um sujeito proativo e ao mesmo tempo passivo, aberto às oportunidades daquilo que chega do texto como potência, como oportunidade para se construir novos sentidos sobre o vivido. Mais do que do texto literário em si, portanto, a leitura como experiência depende da qualidade da relação estabelecida entre leitores e texto - da abertura ao que o texto convoca e de como esse texto produz afetos (AZEVEDO, 2004AZEVEDO, Ricardo. Formação de leitores e razões para a Literatura. In: SOUZA, Renata Junqueira de (Org.). Caminhos para a formação do leitor. São Paulo: DCL, 2004. p. 38-47.). Afinal, para viver uma experiência é necessário abertura, passividade - não no sentido de inércia, como muitas vezes costuma-se compreender, mas no sentido de apaixonamento, de pathos, que diz da possibilidade de leitores reconhecerem que são atravessados por forças diversas dos campos simbólico e afetivo (LARROSA, 2002LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002. https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000100003
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).

Nesse sentido, é importante destacar também que a leitura literária apresenta-se aqui isenta de qualquer função pedagógica prática, pois a sua principal proposta não estaria relacionada com o objetivo de formar a pessoa que lê ou aprimorar a sua bagagem intelectual e cultural, instruindo-a; estaria, sim, relacionada, em primeiro lugar, com a possibilidade de fazer os temas propostos no texto literário ressoarem a partir das vivências - sem que esse ressoar esteja impregnado pelo objetivo de proporcionar uma formação no sentido didático ou normativo do termo (BLOOM, 2000BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.). Afinal, cada leitor e leitora pode experimentar um texto literário de forma distinta, singular, o que tem a ver diretamente com a relação pessoal que se estabelece com o texto - e que, principalmente, pode ou não transformar, sem que isto atente para um objetivo educativo. Neste caso, o texto literário nunca se torna desatualizado ou obsoleto - e a leitura nunca poderá ser considerada equivocada ou insuficiente -, diferentemente de um texto com uma proposta informativa, que pode ser aperfeiçoado e que está sempre ocupado com a instrução do ser humano (AZEVEDO, 2004AZEVEDO, Ricardo. Formação de leitores e razões para a Literatura. In: SOUZA, Renata Junqueira de (Org.). Caminhos para a formação do leitor. São Paulo: DCL, 2004. p. 38-47.).

Em “Receita para me lerem” - uma das crônicas mais categóricas sobre leitura literária como experiência -, o escritor Antonio Lobo Antunes (2011ANTUNES, Antonio Lobo. Receita para me lerem. In: ______. As coisas da vida: 60 crônicas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2011. p. 51-53., p. 51) afirma que, ao iniciar a leitura de um texto literário, a pessoa que lê “tem de renunciar à sua própria chave, àquela que todos temos para abrir a vida, a nossa e a alheia, e utilizar a chave que o texto oferece”. Ou seja, tem de deixar-se tocar pelo que há de inaudito no texto, sendo afetado justamente pelo convite implícito ao exercício de experimentar convicções, opiniões e hábitos diferentes dos seus, saindo da chamada “zona de conforto” que priva da possibilidade de transformar concepções de mundo. E se a pessoa que lê vive esta experiência durante o processo da leitura, não é graças ao texto, unicamente, nem graças apenas a um insight exclusivo do leitor ou da leitora, mas ao diálogo entre ambos - aquele que lê tendo percebido o quanto os temas abordados no segundo lhe dizem respeito, intrinsecamente (ANTUNES, 2011ANTUNES, Antonio Lobo. Receita para me lerem. In: ______. As coisas da vida: 60 crônicas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2011. p. 51-53.). A transformação da pessoa, neste caso, se dá posteriormente à leitura, como efeito possível e não como objetivo primordial.

Zilberman (2008ZILBERMAN, Regina. Recepção e leitura no horizonte da literatura. Alea: Estudos Neolatinos, v. 10, n. 1, p. 85-97, 2008. https://doi.org/10.1590/S1517-106X2008000100006
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) sublinha o caráter potencialmente emancipatório desta transformação, uma vez que a leitura literária pode colaborar para que a pessoa reveja, desconstrua ou considere suas próprias limitações e os constrangimentos de sua vida prática, alcançando um reconhecimento de si como sujeito passível de mudança. Este processo reflete a pessoa que lê como sujeito aberto à possibilidade de transformação, o que destaca o caráter emancipatório da leitura como experiência. Neste caso, enquanto emancipação potencial, para além do âmbito individual, quem lê também pode revisar, descontruir ou considerar criticamente os constrangimentos de sua vida decorrentes da rigidez dos discursos normatizadores do cotidiano, levando em consideração que a literatura é justamente uma possibilidade de subversão a esses discursos (DELEUZE, 1997DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.).

Leitura literária como subversão à linguagem do poder

Com base na noção de literatura como matéria que não serve à utilidade do instituído cotidiano (ORDINE, 2015ORDINE, Nuccio. La utilidad de lo inútil. Barcelona: Acantilado, 2015.), sendo, portanto, um instrumento de linguagem que passa ao largo do discurso pragmático, do trabalho e da lógica do saber didático (BLANCHOT, 1987BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.), compreende-se o exercício de escrita e leitura literária como forma de resistência aos estereótipos, às naturalizações e às funcionalidades que caracterizam os discursos normatizadores correntes, ou seja, como resistência à linguagem do poder. De acordo com Almeida (2008ALMEIDA, Leonardo Pinto de. Literatura e subjetividade: reflexões sobre a linguagem e o exercício da liberdade. Artigo apresentado no IV Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (ENECULT), Salvador, BA. 2008. Disponível em: Disponível em: http://www.cult.ufba.br/enecult2008/14418.pdf . Acesso em: 15 abr. 2020.
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), tal resistência reside no fato de que a literatura pode subverter a chamada linguagem do poder, definida pelas convicções, pelos hábitos e estereótipos que contribuem para o desencadeamento de condutas e pensamentos impostos, contrários à gratuidade e à aparente inutilidade da experiência de leitura literária, também transmitidas a partir da palavra na linguagem.

E uma vez que se sabe que a linguagem é constituída a partir da transmissão de palavras (DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Postulados da linguística. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. (Org.). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34 , 1995. v. 2, p. 11-59.), o caso da linguagem do poder apresenta a transmissão da palavra para além da própria palavra com seus fonemas, grafemas, códigos ou informações, visto que a palavra é também atravessada pelo poder e, por assim o ser, passa a ser dotada de um discurso indireto, nesse caso um discurso hegemônico. É o que se concebe, segundo Deleuze e Guattari (1995DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Postulados da linguística. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. (Org.). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34 , 1995. v. 2, p. 11-59., p. 16), como “palavra de ordem”, que se concretiza na transmissão “do que é necessário pensar, reter e esperar” do mundo, engendrada em uma linguagem repetitiva e estereotipada que determina as convicções e os hábitos dos sujeitos na sociedade, visto que a linguagem, além de ser cultural, possibilita a transmissão e contribui para a internalização de uma cultura (GRAMSCI, 1978GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.).

Tem-se, assim, que a linguagem que se apresenta como de viés supostamente informativo e formativo visa na verdade ao estabelecimento de padrões, ordens e constâncias, suscitando comportamentos previsíveis e regulados pelos diversos dispositivos de poder perpetrados na cultura, o que nos permite interpretar que a linguagem do poder sustenta-se a partir da reprodução de discursos hegemônicos em uma cultura, os quais atravessam todas as classes ou até mesmo a sociedade como um todo, e cujos interesses não são outros que não atender a um grupo específico (HALL, 2016HALL, Stuart. Cultural studies: a theoretical history. Durham: Duke University Press, 2016.). Esses discursos dominam ideologicamente, e inclusive vão se inserindo nos poros da consciência prática, na maioria das vezes a partir de sutilezas, sem que sequer se perceba (HALL, 2016HALL, Stuart. Cultural studies: a theoretical history. Durham: Duke University Press, 2016.).

Neste contexto, a subversão que a literatura e a leitura literária podem representar deriva do entendimento de que a pessoa que lê se dedica à leitura literária não objetivando dominar as informações contidas no texto, apropriando-se integralmente de seu conteúdo e interpretando-o a partir dos estereótipos engendrados pela palavra de ordem e transmitidos pela linguagem do poder. Isto porque, segundo Almeida (2009ALMEIDA, Leonardo Pinto de. Escrita e leitura: a produção de subjetividade na experiência literária. Curitiba: Juruá, 2009.), a experiência de leitura de textos literários constitui um âmbito para a produção de singularidades, uma vez que não exige respostas, nem leva a verdades, não encarando o leitor ou a leitora como sujeito que deve responder ao texto munido de preconceitos.

Assim, a leitura literária sustenta uma experiência que se propõe contrária ao intuito de gerar verdades, perseguindo, pelo contrário, a abertura ao desconhecido e ao perturbador que podem transformar o sujeito a partir da relação que este tece entre suas próprias vivências e os temas abordados no texto literário. A leitura literária se configura, portanto, como uma atividade que se propõe a instigar a interrogação sobre si, o mundo concreto, os juízos e os instrumentos dogmáticos que caracterizam a linguagem do poder (ALMEIDA, 2009ALMEIDA, Leonardo Pinto de. Escrita e leitura: a produção de subjetividade na experiência literária. Curitiba: Juruá, 2009.), com seus discursos e práticas hegemônicas. É nesta leitura que o sujeito, em contato com as ideias sugeridas pelo texto, vislumbra a possibilidade de afrouxar a rigidez do pensamento estereotipado, “proporcionando [esta leitura] novos modos de pensar e de existir, subvertendo o estado de coisas e provocando deste modo micro-revoluções que podem se alastrar por toda a sociedade” (ALMEIDA, 2009ALMEIDA, Leonardo Pinto de. Escrita e leitura: a produção de subjetividade na experiência literária. Curitiba: Juruá, 2009., p. 7), ou seja, provocando microrresistências a discursos dominantes, a partir de uma subversão à palavra de ordem, que também possibilita uma subversão à linguagem do poder.

Ainda de acordo com o autor, a leitura literária se mostra como uma atividade - ou, antes, um espaço de vivência - que propicia o exercício da liberdade, deste ato subversivo, dado que a literatura coloca em xeque justamente a linguagem normativa e os padrões sociais que regem a vida compartilhada em sociedade. É no acolher para si a alteridade manifesta nos questionamentos do texto, no ser atravessado pelas perturbações por ele provocadas, que a pessoa que lê se vê em condições de romper com os “automatismos linguageiros” cotidianos (ALMEIDA, 2014ALMEIDA, Leonardo Pinto de. A experiência total da leitura literária. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 66, n. 2, p. 143-158, 2014. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-52672014000200011&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 13 abr. 2020.
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, p. 150) relacionados a tudo o que pode anular ou obstruir uma experiência. A subversão daí derivada ocorre na tensão que leitor ou leitora percebem entre a liberdade da experiência e tais automatismos, e a possibilidade de transformação a partir da consciência dessa tensão.

A característica subversiva da leitura literária pode ser ilustrada pelos variados exemplos de proibição de livros em certos regimes totalitários ao longo da História. Tais regimes encaram a literatura e a leitura como inimigos da norma imposta justamente porque, ao questionarem os valores padrões (a linguagem de poder vigente), os textos literários possibilitam a transformação de convicções e pensamentos enregelados, tanto no nível pessoal como no coletivo, incorrendo na dimensão da leitura como ato político de ação consciente que pode dar início a novas práticas e novos discursos.

Paulo Freire também ajudou a definir claramente as diferenças essenciais entre a abordagem utilitarista (funcionalista) da leitura e a sua compreensão como atividade capaz de produzir subjetividade e desencadear experiências de transformação política que perturbam a linguagem de ordem (FREIRE, 2003FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2003.; FREIRE; MACEDO, 1990FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1990.), aqui incluída a leitura literária. Suas críticas à abordagem utilitarista da leitura se voltam para a habilidade mecânica e de caráter tecnicista que ela convoca, sacrificando uma análise crítica da norma social e política vigente - e servindo, portanto, aos detentores do poder. Segundo Freire e Macedo (1990)FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1990., a alfabetização baseada na leitura utilitarista é comumente defendida como uma maneira de conferir acesso ao trabalho e, consecutivamente, aumento nos níveis de produtividade; no entanto, mascara a alienação da pessoa que não vê o texto como possibilidade de diálogo e (re)construção de sentidos, mas como fonte de informações distantes de sua experiência no mundo e que devem ser assimiladas da maneira mais literal possível, contribuindo assim para a internalização dos discursos hegemônicos e para a manutenção da palavra de ordem.

Embora as considerações de Freire sobre a leitura se voltem em larga medida para o processo de alfabetização, elas podem ser aplicadas ao caráter emancipatório da experiência da leitura literária individual e de escuta. Pois, de acordo com o autor, a leitura pode constituir um processo que leva o sujeito à autocrítica sobre o caráter histórico e social de suas próprias experiências no mundo (FREIRE, 2003FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2003.; FREIRE; MACEDO, 1990FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1990.), o que é aplicável à leitura literária como experiência, tal como abordada aqui. A leitura, nesse sentido, possibilita questionar a natureza política do convencional, do instituído, contribuindo para que o leitor ou a leitora saiam de uma posição de passividade e se tornem cada vez mais agentes de si, de sua história, da História e do mundo.

Considerações finais

A leitura de textos literários como experiência pode vir a ocorrer quando a pessoa que lê se propõe a elaborar um diálogo entre suas vivências pessoais, as estruturas oferecidas pelo texto (seu tema, sua narrativa e suas proposições) e as reflexões potencialmente produtoras de sentido derivadas deste encontro. Afetando leitores e convidando-os a considerarem sua posição na realidade pelo exercício de pôr em xeque preconceitos e expectativas (dado que encerra o encontro com o inesperado, o desconhecido e o controverso), a leitura literária carrega consigo a possibilidade de transformação, na medida em que leva as pessoas a interrogarem a si e ao mundo, estranhando-o e estranhando-se. Neste processo de assumir - ainda que provisoriamente - outras posições e outras perspectivas, leitores e leitoras vivenciam uma experiência de alteridade durante a leitura, experimentando pontos de vista diferentes dos que usualmente convocam em seu cotidiano.

A experiência da leitura literária individual e de escuta, aqui abordada, corresponde ao ato de ler como a possibilidade de uma experiência - individual, porque solitária; e de escuta, porque aberta à possibilidade de se acolher o oferecido pelo texto e, a partir dele, refletir sobre a própria condição de sujeito, deixando-se florescer no controverso. Tal modalidade de leitura se diferencia, portanto, da leitura de caráter exclusivamente informativo, que tem o objetivo de dominar e assimilar o conteúdo do texto, reduzindo as múltiplas possibilidades de interpretação e deixando pouco ou nenhum espaço para que leitores sejam confrontados com reflexões subjetivamente desestruturantes ou desterritorializantes. É por essa razão que a experiência da leitura literária não pode ser considerada formativa, no sentido de promover uma educação formal para o sujeito, pois seu escopo não coincide com o objetivo sistemático de (in)formar ou aprimorar uma bagagem intelectual ou cultural.

Entendidas como subversão à palavra de ordem (aos discursos normatizadores que determinam modos de pensar e agir estereotipados), a literatura e a leitura literária podem representar uma resistência às naturalizações do instituído cotidiano, uma vez que, a partir da gratuidade da experiência e seu potencial transformador, a leitura literária se revela como um âmbito de produção de singularidades, instigando a interrogação sobre o mundo ao seu redor e sobre os instrumentos dogmáticos que integram esses discursos normativos, os discursos hegemônicos - dando subsídios, assim, para o questionamento acerca da rigidez dos padrões sociais que regem a vida em sociedade.

É nesse entendimento que a leitura literária se mostra como uma possibilidade de se exercer a liberdade de pensamento interrogador e transformador, portanto subversivo, quando de fato questiona a natureza política do convencional, perpetrada pela linguagem do poder com sua palavra de ordem e suas hegemonias.

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    » https://doi.org/10.1590/S1517-106X2008000100006
  • *
    Este manuscrito teve como fonte de financiamento a Bolsa Funcap (Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2020
  • Revisado
    25 Abr 2022
  • Revisado
    02 Jul 2022
  • Aceito
    05 Ago 2022
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