Resumos
Este artigo versa sobre uma pesquisa realizada em uma antiga fábrica da área da metalurgia a qual se tornou cooperativa após sua falência. Hoje, esta possui 200 cooperativados, a maioria funcionários da antiga fábrica./ Traçou-se aqui uma problematização da autogestão no cotidiano do empreendimento, dialogando-se sobre as implicações destas práticas na contemporaneidade. Através de um trabalho de campo, em que se compuseram registros com entrevistas e observações, traçamos uma cartografia dos fluxos do local. Percebemos o quanto os instrumentos ordenadores dos corpos e gestos haviam-se flexibilizado, sem que com isso se obtivesse um deslocamento do modus operandi fabril em sua cisão vertical entre gestão e execução. Pudemos compreender a autogestão enquanto "Fenômeno Fronteiriço" entre a lógica do Capital e a do Bem-Estar-Social e questionar seus diferentes pontos de captura e deslocamento entre estes sistemas. Por fim, contextualizamos as práticas e o conceito de autogestão no contemporâneo com suas relações flexíveis.
cooperativismo; autogestão; trabalho; sociedade de controle; resistência
This paper discusses a research at an old factory of the metallurgy field that became a cooperative after it has crashed. Questions and problems about self-management are brought to be debated, including its implications. Trough field work we composed registers with interviews and observations and traced cartography of the flows of the cooperative. We perceived that the instruments that ordered bodies and gestures had been made less hard but the way of work of the factory still there. Using this we could understand self-management as a "Boundary Phenomenon" between the capitalist logic and the welfare-state logic, exploring the capturing points and the disjointing points between those systems.
cooperativism; self-management; work; control societies; resistance
Estriagem e alisamento: usinando uma autogestão na fábrica
Framing and smoothing: building a self-management in the factory
Luis Artur CostaI; Anderson Rodrigues BarbieriII; Cleci MaraschinIII; Jaqueline TittoniIV
IPsicólogo, mestre em Psicologia Social pelo Departamento de Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, integrante do grupo de pesquisa Modos de Trabalhar, Modos de Subjetivar sob coordenação da profa. Tânia M. Galli. Rua Cel. Paulino Teixeira, 315/202, Bairro Rio Branco, CEP 90420-160, Porto Alegre, Brasil. E-mail: lartur@cpovo.net
IIPsicólogo clínico da Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS. Rua Plácido de Castro, 141, Bairro Azenha, CEP 90650-070, Porto Alegre, Brasil. E-mail: andersonrb@gmail.com
IIIPsicóloga, doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, docente do PPG em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Rua Ramiro Barcelos, 2.600, sala 201, Bairro Santana, 90100-550
IVPsicóloga, doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tendo cursado seu pós-doutorado na Universidade Autônoma de Barcelona, além de ser docente do PPG em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Rua Ramiro Barcelos 2600, sala 201, Bairro Santana, 90100-550
RESUMO
Este artigo versa sobre uma pesquisa realizada em uma antiga fábrica da área da metalurgia a qual se tornou cooperativa após sua falência. Hoje, esta possui 200 cooperativados, a maioria funcionários da antiga fábrica./ Traçou-se aqui uma problematização da autogestão no cotidiano do empreendimento, dialogando-se sobre as implicações destas práticas na contemporaneidade. Através de um trabalho de campo, em que se compuseram registros com entrevistas e observações, traçamos uma cartografia dos fluxos do local. Percebemos o quanto os instrumentos ordenadores dos corpos e gestos haviam-se flexibilizado, sem que com isso se obtivesse um deslocamento do modus operandi fabril em sua cisão vertical entre gestão e execução. Pudemos compreender a autogestão enquanto "Fenômeno Fronteiriço" entre a lógica do Capital e a do Bem-Estar-Social e questionar seus diferentes pontos de captura e deslocamento entre estes sistemas. Por fim, contextualizamos as práticas e o conceito de autogestão no contemporâneo com suas relações flexíveis.
Palavras-chaves: cooperativismo; autogestão; trabalho; sociedade de controle; resistência.
ABSTRACT
This paper discusses a research at an old factory of the metallurgy field that became a cooperative after it has crashed. Questions and problems about self-management are brought to be debated, including its implications. Trough field work we composed registers with interviews and observations and traced cartography of the flows of the cooperative. We perceived that the instruments that ordered bodies and gestures had been made less hard but the way of work of the factory still there. Using this we could understand self-management as a "Boundary Phenomenon" between the capitalist logic and the welfare-state logic, exploring the capturing points and the disjointing points between those systems.
Keywords: cooperativism; self-management; work; control societies; resistance.
Há algumas décadas vivemos uma mudança que se caracteriza, entre diversos fatores, por abertura de mercados; privatização do patrimônio estatal; e, por fim, flexibilização e precarização das relações trabalhistas (VERARDO, 2004). Empresas e indústrias passam por uma severa crise, com diversas falências (SINGER, 2000). Parte da mão-de-obra ociosa foi logo absorvida por um crescimento no setor terciário, que rapidamente se esgotou. Com isto, os níveis de desemprego alcançaram índices preocupantes, o trabalho com carteira assinada se rarefez, e uma crescente informalização das relações de trabalho somou-se à flexibilização das leis trabalhistas. Sem a proteção do Estado surge a necessidade da invenção de novas formas de organização civil para garantir a subsistência e o bem-estar. Algumas alternativas locais têm sido criadas, muitas denominando-se como autogestionadas: cooperativas e associações de produção, serviços, crédito (LISBOA, 2003).
Intenta-se aqui traçar uma cartografia sobre uma destas experiências com o intuito de problematizar a autogestão em suas microrrelações, questionando suas implicações na contemporaneidade. Onde as diversas lógicas que se encontram nos empreendimentos autogestionados efetuam contato, capturam-se umas às outras?
Este estudo realizou-se em uma antiga fábrica a qual se tornou cooperativa após sua falência em meados do ano 2000. Neste trabalho, usaremos o nome fictício "Metalcoop" para nos referirmos a ela. A Metalcoop passou de 1.200 funcionários para 200, na sua maioria, antigos contratados, grande parte homens e mulheres com mais de 40 anos. Permaneceram as benfeitorias e o maquinário, divididos em dois galpões paralelos (onde se alocam setores como Direção, Usinagem, Estamparia, Montagem) e outro mais afastado e de estrutura diversa onde se encontra a fundição.
MÉTODO
Durante um ano e meio convivemos entre os espaços da fábrica na busca de acoplar-nos nas fissuras do movimento fabril, nas brechas do tempo de produção e no intervalo da relutância de falar de alguns trabalhadores. Utilizamo-nos de diversas estratégias para gerar encontros e produzir escutas: o olhar em busca de outro olhar que servisse como convite; a busca de vizinhança no refeitório; jogar bocha nos intervalos; compartilhar os momentos de cigarro; ajudar em tarefas mais simples (experimentando a repetição na pele); falar sobre clima, angústias da vida e do cotidiano. Usando destas e de outras estratégias, escutamos as muitas vozes cooperativadas e os ruídos das máquinas em suas disposições acopladas aos sujeitos.
No decorrer destes encontros formávamos mais do que uma entrevista semi-estruturada: formávamos redes que delimitavam os vários temas sobre os quais conversamos durante todo o período. Estes encontros eram registrados e através destes e das observações que lhes escapavam, efetuou-se uma compreensão possível sobre as dinâmicas dos fluxos do local. Fluxos, pois, dissolvemos as individualidades em processos impessoais, mas singulares, de relações de ações sobre ações, tracejando uma carta do encontro entre os movimentos destes com o nosso andar pela fábrica. Operamos sobre estes com conceitos como relações de poder-saber, técnicas de si e governabilidade, visibilizando as ações de uns sobre as ações de outros, demarcando acoplamentos, intersecções, interceptações, dissoluções, alterações de rumo, resistências e opressões, mesmo que oscilantes e temporárias (FOUCAULT, 1999a).
RESULTADOS
A máquina fabril acopla gestos operários e equipamentos como um instrumento de produção, constituindo um modo de relação estritamente formalizado para tal fim, buscando a máxima eficiência. "Entre os vários métodos e instrumentos utilizados em cada operação, há sempre método mais rápido e instrumento melhor que os demais" (TAYLOR, 1957, p. 33). O homem capturado pela lógica dessas engrenagens vê a sua subjetividade reduzida a números e marcações. "O trabalhador é fixado não por uma coerção externa, mas pelo encadeamento das operações técnicas [...]" (CASTEL, 2003, p. 426).
A máquina se sustenta expandindo sua lógica, e esta racionalização gera diversos instrumentos para identificação da população economicamente ativa, para dar cabo do trabalho intermitente, possibilitando um planejamento e controle das relações econômicas. Na busca de um acoplamento coeso entre trabalhador e trabalho, cria-se o mecanismo da relação salarial, isto é, uma constância na troca entre capital e força de trabalho, o que é somado, ainda por cima, a uma série de sustentações que proporcionam segurança ao trabalhador e ao mercado: os direitos do trabalhador. A relação salarial, então, modula o cotidiano do trabalhador, sua vida, consumo, lazer (CASTEL 2003).
Isto nos remete à "disciplina" e a sua rede capilarizada de coações que se instalam no corpo, no gestual, erigindo o esquadro do hábito, o automatismo (FOUCAULT, 2000). A antiga fábrica tem muitas coisas em comum com tal lógica, pois:
[...] importa estabelecer as presenças e ausências; saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo [...] (FOUCAULT, 2000, p. 123).
Antes da falência na Metalcoop, cada movimento era vigiado. Existiam regras de locomoção: era preciso justificar por que se abandonava o posto e por quanto tempo, regras de comportamento penduradas nas paredes dos galpões: "proibido jogar, brincar, correr, tratar de assuntos particulares". Para a comunicação era preciso usar formulários. Por exemplo, era preciso fazer um comunicado escrito para poder se locomover de seu setor para qualquer outro ponto da fábrica indicando horário de saída e de retorno. Os supervisores observavam o cumprimento das regras, tendo o seu trabalho facilitado pelo espaço quadriculado da Metalcoop - máquinas e homens dispostos em filas e colunas. Passeando-se pelos corredores era possível facilmente vigiar e avaliar o trabalho de cada um.
A atual Metalcoop existe no espaço da antiga fábrica, suas fileiras de máquinas e esteiras ainda estão por lá, mas o que sustentava a ordem disciplinar se modificou, a formalização dos instrumentos para disciplinar os movimentos de corpos, gestos e informação se desviaram da formalização presente na máquina fabril antes descrita. Os mecanismos para a comunicação limitam-se hoje à assembléia, aos quadros de aviso e aos boatos. A assembléia é um instrumento "padrão" em cooperativas, servindo para trocas de informações, votações e debates que irão ajudar a definir as ações futuras da organização (JESUS; TIRIBA, 2003). No entanto, sua implementação na Metalcoop apresenta determinadas peculiaridades: nestas assembléias os fluxos informativos vertem aos borbotões por parte da diretoria até os demais cooperativados, na forma de gráficos e tabelas com a prestação das contas. Tal ação massiva toma conta do instrumento assembléia, apresentando-se enquanto estratégia para assegurar a transparência das ações da diretoria. No entanto, não possibilita a compreensão dos balanços por parte dos cooperativados: "Ir nas assembléias pra que? [sic], chega tudo pronto!". Este excesso de informações dificulta a reação ao que é dito. Com o transbordar da capacidade de assimilação do sujeito, impede-se que ele possa se apropriar do saber exposto, que está sempre a esvair-se de seus sentidos.
Evidentemente, os microfluxos contrários à ação massiva da direção existem, mas logo são abafados por sua incapacidade de obter coesão suficiente no grupo para fazer frente às táticas de anulação dos mesmos pela direção. Não passam de iniciativas individuais que, mesmo representando um anseio geral, não recebem apoio de outras vozes: "Há muita desunião entre os trabalhadores. Quando alguém fala algo na assembléia, fala sozinho, pois ninguém dá apoio", "preferem rir de ti do que te ajudar". Tal inconsistência se coaduna com as táticas de silenciamento vindas da direção, as quais findam por individualizar e invalidar as questões levantadas: "a porta da rua é a serventia da casa, quem não está satisfeito que saia", "se tu sai, tem mais 10 querendo entra" - são um apelo à autodemissão daqueles que se contrapõem ou se mostram insatisfeitos e uma demonstração da inalterabilidade das decisões da direção. Soma-se a isso a tática da ridicularizarão pura e simples da pessoa que reclama, auxiliada pelo já mencionado "riso geral": "ir na assembléia para que?! Para ser humilhada?". O abafamento dos ruídos destes micro-fluxos díspares é mantido pelo estrondo terrorífico da direção e pelo silêncio e risos dos demais cooperativados. Não há agenciamentos de aliança nesta máquina fabril pós-fábrica: o ruído não faz barulho.
A esta organização da assembléia acopla-se o boato. É através dos boatos que os trabalhadores da Metalcoop mantêm-se (des)informados sobre a situação da cooperativa e seu futuro. "A gente fica sabendo das coisas por boatos". Uma pessoa vai passando para a outra certa informação sem origem e a altera. Através desse processo em que cada receptor é também emissor-criador da mensagem, os boatos acabam por não ter autor. O boato não dá qualquer possibilidade de confrontação aberta, não gera um debate entre direção e trabalhadores nem gera uma possibilidade de debate entre os próprios trabalhadores sobre o seu papel dentro da cooperativa. Muitos dos boatos que ouvimos tendem a incriminar a direção: "o pessoal da direção estava muito feliz, só podem estar recebendo", "os diretores devem estar roubando", etc. Mas estas falas não provocam deslocamento. Os boatos acabam ajudando a manter as coisas do jeito que estão, justificando a não-comunicação entre as partes: apenas o ruído que afasta as partes de um encontro é permitido.
Quanto aos antigos mecanismos que controlavam a locomoção, também foram eles modificados. Hoje o espaço continua a definir a função, porém o trabalhador não está confinado a um só espaço. Os trabalhadores possuem flexibilidade em sua movimentação pelo espaço-função, permanecendo em constante realocação não pré-planejada, mas sim, agenciada segundo as demandas contingenciais. Algumas das realocações são executadas pelos próprios cooperados do chão de fábrica que se organizam individualmente ou em grupos nos deslocamentos. Por exemplo, os grupos buscam agenciar novos membros quando a demanda parece demasiada para a quantidade de trabalhadores que estão tentando supri-la; ou alocam-se individualmente ao seu bel prazer evitando funções de que desgostem; ou até criando novas funções antes não existentes. Se no espaço concreto das edificações e das máquinas encontramos uma clara diagramação funcional, este é habitado em uma constante (des)construção dos lócus: "o que tiver para fazer eu faço. Quando tem coisa pra pintar, eu pinto. Quando tem chapa pra estampa, eu estampo. Depende".
Somente quando se trata dos cooperativados da direção, vemos a geração de uma interioridade intrínseca, em que função e sujeito se tornam uma só identidade, como peças de xadrez (DELEUZE; GUATTARI, 1997), possibilitando a afirmação de si enquanto uma unidade produtora diferenciada. Os peões movimentam-se em um espaço de esquadrinhamento poroso, ou seja, ainda esquadrinhado, mas com poros diluindo a rigidez das fronteiras, permitindo, quando não exigindo, a passagem dos corpos de um lócus a outro, e atribuindo-lhes uma função a cada contexto em que se implicam. Suas identidades-função, antes fortemente construídas em uma interioridade apropriada de si a partir de uma tecnologia-de-si (FOUCAULT, 1999b), hoje se abriram para uma multideterminação fugaz, diretamente dependente das demandas de produção, sempre momentâneas.
Por outro lado, na Direção, contidos em lócus fixos, muitas vezes privados (salas), tais cooperativados têm a oportunidade de permanecer construindo uma diferenciação perante os demais por uma categoria "sua" ou de poucos, privada, semelhante ou idêntica àquela da época em que trabalhava segundo o modelo fabril clássico. Estes não são forçados pela flexibilização das novas relações de trabalho lá vigentes a abnegar-se do "poder" (autoridade) de poder (possibilidade) afirmar "eu sou X", equivalente a "eu faço y", sendo tal identidade elemento-chave para compreender o que esta pessoa faz-de-si. Muitos cooperativados reclamam da impossibilidade de refazerem tal sentença como antes, marcam com sua voz a nostalgia de um diagrama de poder-saber duro que se imbricava com o individuo, sustentando um modo de ser fabril, o qual já não é. Sobre trabalhar em várias funções, respondem, "eu não gosto não, é muito chato ter que ficar mudando de função. Eu gosto é de ficar aqui fazendo aqui meu trabalhinho que já sei bem, daí o tempo passa rápido, se vou fazer outro o tempo demora a passar e dá sono"; "o pessoal não gosta de sair da fundição e ir lá pra cima, mesmo assim quando o pessoal liga nós vamo lá. Mas ninguém gosta de ir pra lá. Lá em cima o trabalho é muito leve e dá sono. O pessoal tá acostumado a trabalhar pesado".
Logo ficou visível a importância do antigo modelo nas vidas, na intimidade, dos trabalhadores da fábrica. Visibiliza-se esta sustentação de uma subjetivação fabril a partir do uso do conceito foucaultiano de "técnica de si", pois só existe criatividade se associada à resistência e não é o caso.
Foucault (1999b, p. 445) faz uma divisão entre quatro "tipos" de práticas, as quais não podem ser vistas enquanto seccionadas, pois sempre agem em conjunto, mas podem sofrer tal divisão a partir de um critério de "razão prática": as técnicas de produção, que modificam os objetos; as de sistemas de signos, que nos permitem agenciar significações a partir dos mesmos; as de poder, que agenciam a conduta dos sujeitos a partir de uma rede de ações sobre ações; e, por fim, as técnicas de si. Estas podem ser mais bem explicitadas por uma citação do próprio autor:
[...] técnicas de si, es decir, por los procedimientos, existentes sin duda en cualquier civilización, que son propuestos o prescritos a los individuos para fijar su identidad, mantenerla o transfórmala en función de un cierto numero de fines (FOUCAULT, 1999a, p. 255).
Erigir um modo de ser a partir de um referencial ético e estético dado por um sistema qualquer, o qual aponta um ideal, um ponto de chegada ou, ao menos, uma direção para tal ápice. Um rumo a ser buscado nesta jornada do lavrar-se a si, nesta ação sobre ação de si. Outro conceito, talvez mais eficaz que o anterior, na explicitação da construção desta interioridade identitária e na sua manutenção ou mudança é o de "governamentalidade" ou "governabilidade", o qual trata da relação entre as relações de poder e as originadas pelas técnicas de si, tratando exatamente do ponto de plissagem do sujeito na malha social:
[...] "gobernamentalidad": el gobierno de si por uno mismo en su articulacion con las relaciones habidas con algún otro (autri) (según lo encontramos en la pedagogía, [...] en la prescripción de modelos de vida, etc.)." (FOUCAULT, 1999a, p. 257).
Tal perspectiva subjetiva sobre as coisas não se dá a partir de uma mera prática individual, de uma tecnologia-de-si isolada das demais relações de poder. Tampouco esta construção se dá de forma negativa em sua relação com os sistemas de poder-saber que se imbricam nas técnicas de si formando a governabilidade do sujeito. Muito pelo contrario, participam ativamente em uma construção positiva que afirma uma posição. Uma construção positiva em busca de uma "salvação" (FOUCAULT, 1999b) apresentada por um diagrama de saber-poder, apropriado pelo próprio sujeito no seu fazer-se.
Vê-se então, aqui, a importância do sistema de organização fabril para os cooperativados da Metalcoop, já que não é um mero arranjo estratégico exterior aos mesmos, mas sim um sistema com seus regimes de verdade e beleza, apropriado pelos antigos empregados na construção de uma interioridade a partir da dobra, ou seja, não uma interioridade auto-sustentada e homogênea, mas sim a construída heterogeneticamente a partir dos fluxos constituintes do que vulgarmente se chama "fora". Assim, compreende-se também o sofrimento do qual se queixam, ao verem seu antigo sólido território sustentador de uma governabilidade fabril ruir em certos pontos, dando emergência a uma paradoxalidade para a qual não encontraram resposta que acalme seu movimento: devem a um só tempo governar a si como pacíficos empregados fabris (como, por exemplo, quando não participam das decisões sobre os rumos da cooperativa) e como ativos cooperativados participantes (como no caso do seu vagar pela linha de produção e a ausência de direitos trabalhistas). Tal movimento incessante, paradoxal, finda por retirar-lhes (e dar-lhes) as âncoras com as quais erigiram seu antigo território.
Assim, foi-se a papelada formal, foi-se a segmentação que impedia a comunicação inútil (a inutilidade é o demônio da disciplina industrial), criaram-se movimentos inusitados, que não seguem um ritual já passado pela planilha de planejamento, originaram-se novos modos de comunicação caóticos em que o ruído na maioria das vezes excede a informação. Porém, lá permaneceu não somente a fábrica em si, mas sim aquilo que lhe faz fábrica: o modo de trabalhar dos antigos trabalhadores. Nestes, está ativa a cada segundo toda a história que lá viveram enquanto eram empregados, neles se atualiza um tempo intensivo, para além da divisão entre passado, presente e futuro, tempo que insere os gestos, as cores, os modos fabris em um "novo" tempo de "novas" relações.
Os mecanismos disciplinares se foram, mas algo deles ficou nas pessoas em suas relações: "a disciplina 'fabrica' indivíduos" (FOUCAULT 2000, p. 143), cria subjetividade. Os trabalhadores se apropriam do regime da fábrica em sua criação de si - a fábrica passa a fazer parte deles, de sua carne, de seus gestos, de seus pensamentos. Isto se apresenta na Metalcoop por várias facetas. A primeira de que queremos tratar é expressa como uma apreciação estética: é a admiração pela imagem da automação e pelo trabalho em linha de montagem. Ambas - automação e "linha cheia" - são manifestações de admiração por uma estética-máquina, pelo homem-robô industrial. A indústria passa a ser fonte do próprio conceito de belo. O ideal é ser parte bem definida de uma grande máquina de produção, ser ao mesmo tempo a peça da máquina e a máquina de fazer peças: "O modo como fazem as coisas aqui agora é feio, todo mundo fazendo tudo, pouca gente na linha. Eu gostava de ver aquela linha de montagem cheia de gente, cada um fazendo o seu trabalho e os produtos saindo prontos rapidinho".
Não nos admira que outra faceta seja justamente os trabalhadores não gostarem de sair de sua função habitual, ocupar outras funções, aprender novos pedaços da produção. Deixar de ser a máquina produtora de peças XYBN para ser algo mais fluido. Tendo que fazer algo que ainda não sabem, caminhar por caminhos novos.
Outra reprodução da lógica industrial na subjetividade do trabalhador é a referente aos motivos de suas lutas: exigência de direitos e não de deveres. Seguindo como se fazia na época em que a Metalcoop ainda era uma fábrica tradicional, o trabalhador reclama da ausência do fundo de garantia, do fato de ser obrigado a pagar sua previdência por inteiro, de não ter férias, de não ganhar vale-transporte e cesta básica. Poderia estar exigindo seu espaço de ação na cooperativa para daí modificar ele mesmo com seus colegas as situações indesejáveis. Poderia lutar pelo direito de possuir deveres para além do trabalho na cooperativa, lutar pela possibilidade de interferir sobre as ações da cooperativa como um todo.
Uma última faceta que gostaríamos de mencionar é a crença no modelo representativo. Em uma cooperativa a lógica democrática poderia ser participativa, não existindo delegação de poderes a figuras "especiais" às quais se submetem as responsabilidades das decisões enquanto os demais apenas lhe delegam poder, sem exercê-lo diretamente. Evidentemente, uma lógica cômoda a quem se abstém de participar. Cômoda, mas nociva, já que ao negar-se a tomar suas decisões não está apenas delegando responsabilidades, mas também a capacidade de agir sobre as ações da empresa e garantir suas posições. Como se observa na fala de um cooperativado do chão-de-fábrica: "eu acho esse negócio de cooperativa muito bom, tipo, sempre vai ter quem administra, sempre em qualquer governo tem um presidente, né? A gente trabalha aqui, faz as peças que nos pedem e eles cuidam de vender, de administrar".
A manutenção deste funcionamento que garante uma mobilidade imóvel é sustentada também em uma dinâmica de cisão e "dupla autonomia". A última consiste na posse da exclusividade sobre o planejamento por parte da Direção (que modifica peças ou produtos inteiros sem consultar os demais cooperativados), e sobre a execução da produção pelo chão-de-fábrica (que se agenciam ao seu modo para dar conta da demanda planejada). Já a cisão surge entre as autonomias e acopla os dois grupos. Essa cisão não está presente somente no duplo-isolamento chão-direção, mas também na perspectiva de um sobre o outro, a qual usualmente permeia os temas da boataria que permitem a não-confrontação das perspectivas como foi explicado acima. Ao impedir o confronto entre as diferenças, impossibilita abalos e reacomodações, como por parte do "chão" nestas duas falas que atestam o isolamento mútuo: "eles [direção] que pegam lá um grupo deles, fechado, e decidem sem vir perguntar para o pessoal que tem anos de experiência na fábrica" e "olha, pra mim não mudou nada, continua tudo a mesma coisa de sempre. Eu trabalhando aqui e 'eles' [a direção] lá". Ou ainda, pelo outro lado, quando o "chão" é desmerecido e culpabilizado como na fala de um membro da direção: "o problema é a mentalidade das pessoas, mentalidade pequena, mentalidade de funcionário".
Isso poderia fomentar uma crescente coesão interna em relação a cada um dos dois grupos, que provavelmente transbordaria em um confronto entre as partes. No entanto, não se encontra tal unidade corporativa. A direção se divide em unidades de aliança por setores ou unidades de convivência ainda menores. E quanto ao chão, ainda que se autoproclame, a todo o momento, unido, tal fala encontra-se ligada a uma prática laboral de execução coesa das funções coadunadas: "aqui [no chão] o pessoal é tudo unido, todo mundo pega junto, todo mundo sabe o seu trabalho".
A união através de "cada um sabe o seu trabalho" faz parte da consistência que a máquina fabril em seus agenciamentos produz para si, na busca de perpetuar-se, gerar uma rigidez. Sabendo-se que uma máquina não é formada por elementos, mas por outras máquinas, ou seja, agenciamentos agenciadores (GUATTARI, 2003), "cada" não se refere simplesmente a uma peça que adquire tal caráter de peça apenas em sua justaposição com as demais, mas antes a uma subjetividade que em sua produção de si, a partir de seus agenciamentos maquínicos, se faz peça. Não é o alocar-se em um diagrama de engrenagens que torna o cooperativado uma peça, mas o tornar-se engrenagem constrói este híbrido da "máquina fabril cooperativa". O que "cada um sabe" afinal? Como já fora dito antes, estes trabalhadores já se constituem segundo uma governamentalidade que vê na perspectiva progressista fabril um ideal de beleza, verdade e bondade. A beleza da linha de produção rápida e efetiva, o prazer em repetir uma mesma função, exigência de direitos e não de deveres, crença no modelo representativo, já citados, demonstram que o dito saber (episteme) fala não somente de uma técnica, mas de um ser (ontologia) fabril, de um fabricar-se fabrica.
DISCUSSÃO
As mudanças feitas na Metalcoop não bastam para criar uma ruptura com a experiência da fábrica. Como dizem Deleuze e Guattari (1997, p. 214), "os espaços lisos não são por si só libertadores. Mas é neles que a luta muda, se desloca, e que a vida reconstitui seus desafios, afronta novos obstáculos, inventa novos andamentos, modifica os adversários".
Assim, ainda que não possua as estrias que tornam o espaço planejadamente homogêneo e hierárquico, isso por si só não produz a autonomia do cooperativado. O espaço da Metalcoop é aqui compreendido como liso enquanto um espaço movente que está a provocar deslocamentos vários em seus modos de gerir-se.
Cabe então perguntar: a luta realmente mudou? Algumas lutas, sem dúvida. Mas para criar um empreendimento autogestionado não basta um estatuto de cooperativa, mas que neste processo uma nova subjetividade seja forjada. Uma subjetividade, pronta para criar novos modos de participação, outra "governabilidade". No lugar de uma simples luta de manutenção de sua condição de operário assalariado com direitos, abriu-se um "Campo Problemático" (DELEUZE, 1974) de batalha em que os cooperativados são levados a deslocarem-se entre diversas lutas sem conseguir atrelar-se ao rumo de uma. Voltar à fábrica? Criar a cooperativa, qual cooperativa? Abandonar tudo? A cooperativa tem dificuldades para ser diferente do que foi a fábrica, mesmo que fábrica não possa mais ser.
Trata-se de um "fenômeno fronteiriço" (DELEUZE; GUATTARI, 1997): situa-se enquanto espaço liso, de deslocamento, entre espaços estriados. Estes últimos poderíamos, no caso em questão, visibilizar como de um lado a lógica capitalística, a qual, ainda que apresente grande flexibilidade, possui a estria profundamente marcada da necessidade de tradução e redução de toda e qualquer relação em termos de capital (monetário, virtual, simbólico, midiático, etc.); e do outro lado as já conhecidas utopias solidárias (socialistas, comunistas, cristãs, humanistas, Estado de Bem-Estar Social) com seus preceitos predeterminados da receita de um mundo melhor estriando seu plano. Deste modo, o plano fronteiriço provocaria a "Confusão", e não a Fusão ou síntese Hegeliana, entre estes modos. Espaço paradoxal que quebra as identidades enquadradas fazendo-as transbordar o esquadro, deslocando os antes opostos, agora nem pólos: Capital e Social.
Um território liso que se interpõe, mas não necessariamente se contrapõe aos espaços estriados da lógica capitalística, o cooperativismo pode facilmente não gerar um movimento de resistência ao modo homogêneo de afirmar a vida a partir do equivalente universal do capital. Em vez de se alimentar do capital a partir do sistema de dominação econômico e transmutá-lo por um deslocamento de uso e obtenção em um instrumento a serviço de uma lógica que vise ao bem-estar de todos que se envolvem no processo (não somente os cooperativados, mas a comunidade e, idealmente, toda a sociedade), e vice-versa, o cooperativismo pode servir como instrumento de renovação das práticas capitalistas ao ser deglutido pela lógica do capital.
Tal captura pode hoje ser vista no duplo acoplamento entre autogestão e empresa: a empresa em busca da autogestão e a autogestão em busca da empresa. O primeiro movimento não se resume somente à busca de flexibilidade polivalente das células autogestoras do "toyotismo" (WOMACK; JONES; ROOS, 1992) e outros modelos administrativos contemporâneos (MORGAN, 1996), mas também se refere a pratica de transformar "empregado" em "colaborador", palavra usualmente cínica que serve de cosmético participativo e que participação se resume, no máximo, a um arremedo de pró-labore com a participação ínfima nos lucros da empresa. A política motivacional utiliza-se da sedução através de estratégias de marketing interno que tentam o funcionário a apropriar-se da empresa como se fosse um dos donos e de sua cultura na construção de si e de suas práticas. Na busca de pessoas capazes de "vestir a camisa" as empresas selecionam "personalidades" pró-ativas, empreendedoras, ou seja, que façam o que a empresa quer/necessita antes que ela peça. Ter a si como dono do empreendimento e este enquanto sua comunidade, parte integrante de sua vida não só profissional, mas social.
Se no primeiro movimento vemos como a empresa comum se apropria de estratégias autogestoras em sua organização, no segundo, vemos a possibilidade do cooperativismo acoplar-se às estratégias do capitalismo contemporâneo. Falamos aqui da flexibilização e precarização das relações de trabalho e produção. Vemos cada vez mais a substituição da condição clássica de assalariado por relações de trabalho mais flexíveis. Estes se ajustam perfeitamente às estratégias do mercado atual e a seu imperativo de dar conta de uma demanda imediata não passível de previsões a longo prazo em decorrência de suas constantes mudanças e sobressaltos. Esta constante modulação necessita de uma agilidade logística, ou seja, admite-se e demite-se em curtos prazos e sem encargos.
Se no Estado-providência clássico o indivíduo se produzia enquanto ente definido por relações de garantia-pertencimento a um coletivo abstrato, mantenedor, o qual, por tal manutenção, tornava dispensáveis as relações locais de solidariedade, hoje, em conjunto com o esvaziamento das relações para com este coletivo abstrato, vemos a construção de um trabalhador definido enquanto autônomo, (neo)liberal, de um individualismo negativo: essas prerrogativas do individualismo vão, assim, se aplicar a indivíduos que, da liberdade, conhecem sobretudo a falta de vínculos e, da autonomia, a ausência de suportes (CASTEL, 2003).
Surge então a questão de criar novos laços de solidariedade que dêem conta da ausência estatal. O cooperativismo é uma proposta de construir relações locais de solidariedade, possibilitando a mútua auto-sustentabilidade em comunidade, em redes de localidades. No entanto, o cooperativismo pode se reduzir ao agrupamento de indivíduos autônomos, ainda no sentido de sem sustentação, em prol da organização da produção. Isso pode ser visto tanto em algumas características do caso aqui estudado quanto na compreensão da lei que regulamenta o que é uma cooperativa:
Cooperativa de trabalho ou de serviços nasce da vontade de seus membros, todos autônomos e que assim continuam. As tarefas são distribuídas com igualdade de oportunidades; repartem-se os ganhos proporcionalmente ao esforço de cada um. (CARRION, 2000, p. 268).
Entendendo o autor, segundo a legislação trabalhista, por autônomo como aquele que "é independente no ajuste e na execução; [...] É o trabalhador por conta própria" (CARRION, 2000, p. 35). Tal perspectiva de uma união de autônomos aliada à precarização das relações de trabalho pode ser visibilizada em duas falas de cooperativados, a primeira vinda do "chão-de-fabrica" e a segunda da direção: "as únicas diferenças que eu vejo, é que agora a gente não tem férias, paga o INSS do próprio bolso, paga transporte e almoço, e não pode ficar doente, porque não se vai receber pelo dia, eles dizem: 'se tu fosse dona de bolicho e fechasse ele um dia, tu ia receber?'"; "A cooperativa é uma empresa normal, porque precisa competir com outras. Ele [o presidente da cooperativa] fala para o pessoal que eles são donos. Não é bem assim, deveria dizer que são sócios".
Afinal, e as novas lutas? Permanecem muitas vezes as mesmas: a do emprego contra o desemprego, entre autônomo e assalariado. Mas o plano problemático gerado pelo fenômeno fronteiriço da autogestão constitui as condições de possibilidade para que algumas novas perguntas possam ser feitas: podemos constituir uma alternativa ao emprego, em vez de somente ao desemprego? Podemos transbordar do autônomo para a autonomia aquém de retomadas da condição salarial? Enfim, há possibilidades de erigir novas subjetividades em novas relações de solidariedade?
Recebido em: junho de 2006
Aceito em: agosto de 2008
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
02 Mar 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2008
Histórico
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Aceito
Ago 2008 -
Recebido
Jun 2006