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Pesquisa qualitativa e desenvolvimento humano: aspectos históricos e tendências atuais

Qualitative inquiry and human development: historical aspects and contemporary trends

Resumos

Este trabalho constitui uma revisão da construção histórica da psicologia do desenvolvimento até chegar à epistemologia qualitativa, para verificar a relação historicamente constituída entre princípios epistemológicos e orientação metodológica. Discute-se o papel da entrevista narrativa na pesquisa qualitativa do desenvolvimento e apresenta-se um trecho de uma entrevista de pesquisa, a fim de expressar uma linha de análise do desenvolvimento por meio da interpretação de pequenas estórias. A epistemologia qualitativa resgatou a dimensão cultural nas pesquisas psicológicas, valorizando a mediação semiótica na construção do conhecimento e considerando as práticas discursivas como importantes ferramentas de interpretação dos fenômenos subjetivos.

psicologia do desenvolvimento; pesquisa qualitativa; entrevista narrativa; análise de pequenas histórias


This paper reviews the historical construction of developmental psychology up to the moment when a qualitative epistemology re-emerged and discusses the historical links between epistemological principles and methodological guidelines. The role of narrative interviews, taking a qualitative approach in human development, is discussed and an excerpt from a research interview is presented to exemplify the analytical possibilities of the method designated as interpretation of small stories. The qualitative epistemology re-introduced culture in psychological research, emphasizing the role of semiotic mediation in knowledge construction processes and acknowledging discursive practices as important tools to interpreting subjective phenomena.

developmental psychology; qualitative research; narrative interviews; small stories analysis


Pesquisa qualitativa e desenvolvimento humano: aspectos históricos e tendências atuais

Qualitative inquiry and human development: historical aspects and contemporary trends

Tatiana Yokoy de SouzaI; Angela Maria Cristina Uchoa de Abreu BrancoII; Maria Claudia Santos Lopes de OliveiraIII

IPsicóloga Escolar da Fundação Universidade de Brasília. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). Endereço: Universidade de Brasília, Faculdade da Ceilândia. Centro de Ensino 04- Guariroba - Ceilândia. CEP.: 72220-220 - Brasilia, DF - Brasil E-mail: tatiana.yokoy@gmail.com

IIPsicóloga. Doutora em Psicologia (Psicologia Experimental) pela Universidade de São Paulo (1989). Professora Associada da Universidade de Brasília, e coordenadora do Laboratório de Microgênese nas Interações Sociais. E-mail: ambranco@terra.com.br

IIIPsicóloga. Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2000). Professora adjunta da Universidade de Brasília. E-mail: mcsloliveira@terra.com.br

RESUMO

Este trabalho constitui uma revisão da construção histórica da psicologia do desenvolvimento até chegar à epistemologia qualitativa, para verificar a relação historicamente constituída entre princípios epistemológicos e orientação metodológica. Discute-se o papel da entrevista narrativa na pesquisa qualitativa do desenvolvimento e apresenta-se um trecho de uma entrevista de pesquisa, a fim de expressar uma linha de análise do desenvolvimento por meio da interpretação de pequenas estórias. A epistemologia qualitativa resgatou a dimensão cultural nas pesquisas psicológicas, valorizando a mediação semiótica na construção do conhecimento e considerando as práticas discursivas como importantes ferramentas de interpretação dos fenômenos subjetivos.

Palavras-chave: psicologia do desenvolvimento; pesquisa qualitativa; entrevista narrativa; análise de pequenas histórias.

ABSTRACT

This paper reviews the historical construction of developmental psychology up to the moment when a qualitative epistemology re-emerged and discusses the historical links between epistemological principles and methodological guidelines. The role of narrative interviews, taking a qualitative approach in human development, is discussed and an excerpt from a research interview is presented to exemplify the analytical possibilities of the method designated as interpretation of small stories. The qualitative epistemology re-introduced culture in psychological research, emphasizing the role of semiotic mediation in knowledge construction processes and acknowledging discursive practices as important tools to interpreting subjective phenomena.

Keywords: developmental psychology; qualitative research; narrative interviews; small stories analysis.

O estudo do desenvolvimento humano historicamente tem utilizado modelos que não contemplam a natureza relacional do desenvolvimento. Segundo Gergen (2001), a tradição moderna dentro da psicologia se calca no conhecimento individual, vê o mundo material como ordenado e a linguagem como ente portador da verdade. Nesse sentido, Valsiner (1989) assinala a descontextualização do fenômeno do desenvolvimento, que tem prevalecido em estudos desenvolvidos tanto sob um enquadre intra-individual, quanto nos de corte inter-individual. O primeiro enquadre, tipicamente representado pelas teorias da personalidade, desconsidera a multilinearidade e a contradição como características do desenvolvimento e, geralmente, se fundamenta em explicações tautológicas. Já o segundo deixa de fora da análise do desenvolvimento a generatividade e a criatividade.

Este autor sugere que os enquadres ecológico-individual e sociológico-individual se constituem em perspectivas mais adequadas para o estudo do desenvolvimento humano, pois situam os fenômenos do desenvolvimento em seus contextos culturais e enfatizam os mediadores sociais na constituição da subjetividade. De acordo com a sua análise, historicamente, a biologia e a psicologia foram utilizadas como discursos legitimadores das normas de comportamento condizentes com valores de classe média, contribuindo com as estratégias de manutenção do status quo social.

O objetivo deste estudo é identificar, no delineamento histórico do campo da psicologia do desenvolvimento até chegar à epistemologia qualitativa, como foi sendo construída a correspondência entre as perspectivas preponderantes no campo e os métodos de investigação do desenvolvimento humano. Além disso, são realizadas reflexões sobre os parâmetros de qualidade na pesquisa qualitativa. Na parte final do artigo, discute-se o papel da entrevista narrativa na pesquisa qualitativa do desenvolvimento e apresenta-se o extrato de uma entrevista de pesquisa, que expressa uma possibilidade de análise do desenvolvimento por meio da interpretação de narrativas de pequenas estórias.

ZEITGEIST E A QUESTÃO DO MÉTODO NA PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

Eisner (2003) analisa as várias orientações metodológicas presentes na história da ciência psicológica, enquanto Mey (2000) e Fogel (2000) abordam especificamente a análise da construção histórica da psicologia do desenvolvimento. Considerando este conjunto de trabalhos, podemos agrupar as orientações metodológicas da psicologia do desenvolvimento em três fases.

Na primeira fase, entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX, é possível identificar alguns teóricos que adotam uma psicologia do desenvolvimento qualitativa, como Preyer, Stern, Hope-Graff, Buehler, Bernfeld, Baldwin, Piaget, Vygotsky e Werner (MEY, 2000). Embora marcada pelo pensamento universalizante, bem como por explicações limitadas muitas vezes aos processos de maturação, nesta fase existia a ênfase nas relações e na complexidade, sendo habitual o uso de observações detalhadas, diários e entrevistas clínicas. A entrevista piagetiana, por exemplo, pode ser considerada aqui como precursora da entrevista narrativa atual, tendo em vista que se desenvolvia a partir de uma primeira pergunta pré-definida e se desenrolava com perguntas construídas ao longo do processo de interação (MEY, 2000).

A segunda fase é marcada por uma virada metodológica, tanto no nível epistemológico, quanto no nível dos procedimentos. No nível epistemológico, torna-se hegemônica a orientação individualista e os modelos de pesquisa baseados na predição feita a partir de produtos. No nível dos métodos, somente são considerados científicos aqueles que se baseiam na mensuração de fenômenos diretamente observáveis. Assim, o aspecto qualitativo da investigação passa a ser considerado como apenas exploratório, uma etapa preliminar à construção do conhecimento científico propriamente dito. Alguns representantes desse momento, segundo Eisner (2003), são a psicofísica alemã, o positivismo lógico, o operacionismo e o comportamentalismo americano. Watson e Skinner são exemplos de cientistas que fizeram parte dessa virada metodológica.

Essa fase estende-se ao longo do século XX, sobrevivendo às grandes guerras mundiais e consolidando-se graças à competição da guerra fria. O zeitgeist entre e pós-guerras contribuiu para a perda da visão holística e processual do fenômeno psicológico, fortalecendo um modelo de ciência positivista calcado em tecnologias de mensuração e classificação. Neste contexto, em que a psicologia priorizou o desenvolvimento de técnicas para mensurar e predizer o desempenho humano, ajudando a estender a racionalidade instrumental derivada da guerra ao mundo do trabalho e da escola, os processos complexos do desenvolvimento humano perderam o interesse.

A terceira fase é localizada historicamente no fim de século XX, aproximadamente a partir de 1970, sob a marcante influência inicial da perspectiva do ciclo de vida de Baltes (1979) e da perspectiva ecológica de Bronfenbrenner (1977, 1989). Os aspectos qualitativos são redescobertos, expressando o interesse crescente nos fenômenos do dia-a-dia, na relatividade e na ecologia, por meio do pensamento sistêmico e holístico. O estudo do desenvolvimento passa a contemplar modelos não-reducionistas e orientações relacionais, considerando-o com base na contextualização histórica, social e cultural e sendo mediado pelos instrumentos materiais e simbólicos da cultura.

Lyra e Moura (2000) destacam nessa fase o interesse em compreender o papel desempenhado pelo significado e pela interpretação nos processos de desenvolvimento. Fogel (2000) cita como focos de interesses de pesquisa do desenvolvimento humano, nessa fase, os eventos discursivos co-construídos, históricos e culturalmente mediados, a emergência, o indeterminismo e a pesquisa do processo. Retomam-se os estudos de caso, a análise microgenética e o foco no particular. A interpretação do pesquisador no processo de construção de informação de pesquisa não somente volta à cena, como se converte em instrumento privilegiado dentro da ciência. Novos termos técnicos são empregados nos relatos de pesquisa, a fim de dar conta dessa "segunda revolução cognitiva" (BRUNER, 1997), entre os quais: narrativa, discurso, turnos de fala e diálogo.

Gergen (2001) caracteriza a ciência do desenvolvimento pós-moderna por oposição aos pressupostos da modernidade, tais como a razão individual, a neutralidade do pesquisador e a visão da linguagem como retrato fiel de um mundo objetivo. A ciência pós-moderna volta-se ao cotidiano e concebe a linguagem como relacional e constituída na cultura, por meio das interações. Além disso, tanto a realidade como o conhecimento são entendidos como construções sociais, que expressam a visão de mundo do pesquisador.

Apesar dos avanços, Mey (2000) assinala que a recente redescoberta dos aspectos qualitativos no que se refere à pesquisa do desenvolvimento humano resultou em pálidas mudanças metodológicas. Muitas das pesquisas que se denominam qualitativas continuam a ter um delineamento marcado pela lógica quantitativa, em especial para se adequar aos critérios hegemônicos de avaliação da qualidade da pesquisa.

Nas primeiras décadas do século XX, de acordo com Lyra e Moura (2000), o estudo do desenvolvimento psicológico tinha como foco o estudo das habilidades e capacidades características dos diferentes estágios do desenvolvimento, respondendo aos interesses de classificação humana. Esta tendência orientou a primeira e a segunda fase do desenvolvimento da ciência psicológica. Em raras vezes, o desenvolvimento humano era abordado como um processo de mudança ao longo do tempo, considerando o caráter irreversível deste sobre os processos investigados.

Neste trabalho, apoiamo-nos na perspectiva co-construtivista de Branco e Valsiner (1997), que concebe o desenvolvimento como caracterizado pela multilinearidade, com potencialidades para muitas trajetórias de vida. A pessoa em desenvolvimento vive reorganizações estruturais que, por sua vez, reestruturam as relações pessoa-mundo e pessoa-pessoa, conduzindo a novas reorganizações subjetivas e sociais.

DESENVOLVIMENTO COMO PROCESSO DINÂMICO: A MUDANÇA COMO OBJETO DE PESQUISA

O desenvolvimento tem sido tradicionalmente visto como unilinear, o desdobramento normativo de programações genéticas que assumem a forma de estágios ao longo das interações entre maturação e aspectos ambientais específicos. Via de regra, concede-se mais ênfase ao produto do que ao processo desenvolvimental (VALSINER, 1989).

O conceito de desenvolvimento varia entre os autores; porém, algumas idéias centrais são destacadas por diversos deles. Branco e Rocha (1998) consideram como idéias centrais à compreensão do desenvolvimento: sua natureza processual; sua organização como sistema aberto, que se transforma estrutural e funcionalmente na contínua interação com o contexto, ao mesmo tempo em que é marcado por mudanças relativamente duradouras; e sua interdependência das dimensões da cultura (coletivo) e da subjetividade (individual).

Kindermann e Valsiner (1989) ressaltam, igualmente, a inclusão da cultura na compreensão do desenvolvimento humano, caracterizado: (1) pela relativa plasticidade e diversidade; (2) pela transformação de sistemas abertos e de seus contextos, por meio de processos multilineares; e (3) por consistir em um processo dialético entre o organismo em desenvolvimento e condições ambientais, ambos experimentando transformações estruturais e funcionais. Valsiner (1989) afirma que o desenvolvimento deve ser associado à irreversibilidade do tempo, sendo um processo marcado pela multiplicidade finita de produtos possíveis, em que a produção da novidade e a integração hierárquica dos níveis de organização se constituem mutuamente.

Sendo assim, a decisão da metodologia mais adequada ao estudo do desenvolvimento deve partir de como este é definido. Trata-se de um desafio epistemológico abordar a reorganização constante de estruturas qualitativas ao longo do tempo irreversível. Concordamos com Lyra e Moura (2000) que a perspectiva positivista tradicional não dá conta do fenômeno do desenvolvimento, pois se apóia em uma lógica linear e estática. Para se estudar o desenvolvimento é necessário contemplar tanto o processo de mudança, como os resultados deste processo.

Nesse novo zeitgeist científico gerado a partir da terceira fase citada anteriormente, busca-se resgatar a dimensão cultural nas pesquisas psicológicas por meio da mediação semiótica entre valores, crenças e os processos de construção do conhecimento. Assim, as pesquisas em desenvolvimento exigem do pesquisador um olhar sistêmico e ecológico (VALSINER, 1989), bem como a ressignificação dos estágios de desenvolvimento a partir da inclusão das diferentes temporalidades nas análises (LYRA; MOURA, 2000).

RESSIGNIFICANDO OS "DADOS": O PROCESSO COMO OBJETO DE ANÁLISE NA EPISTEMOLOGIA QUALITATIVA

A psicologia se apóia em epistemologias que permanecem implícitas nas pesquisas, entre as quais o operacionismo, o representacionismo, a perspectiva realista e a perspectiva construcionista (BRANCO; ROCHA, 1998). A hegemonia do pensamento racionalista conduz a pressupostos epistemológicos que têm claras implicações nos instrumentos de construção de dados. A crença na neutralidade da ciência, a supervalorização das técnicas de pesquisa, bem como o menosprezo pela interpretação e pelos questionamentos filosóficos, são alguns desses pressupostos. Da mesma forma, o pouco interesse pelo contexto e pela subjetividade na construção de conhecimentos são aspectos que continuam a ter grande peso na formação profissional do psicólogo, tendo em vista a hegemonia do positivismo em certos setores da academia (MADUREIRA; BRANCO, 2001).

A despeito de seu caráter hegemônico, entretanto, os pressupostos epistemológicos positivistas têm sido objeto de críticas severas. González Rey (1997), por exemplo, problematiza o divórcio entre teoria e empiria, por compreender a pesquisa empírica como momento de construção de teoria (e não apenas de sua confirmação). O autor critica o termo "coleta de dados", que pressupõe a existência de dados como entidades objetivas e independentes no mundo, reafirmando a relação isomórfica entre fenômeno e dados empíricos (MADUREIRA; BRANCO, 2001).

Valsiner (1997) também contradiz severamente o endeusamento dos dados. Para ele, dados de pesquisa são construções semióticas situadas em contextos históricos específicos; não são entidades reificadas que falam por si mesmas. Kindermann e Valsiner (1989) advogam o termo "construção" de dados para destacar tanto o papel ativo do pesquisador nesse processo quanto a relação constitutiva entre o fenômeno investigado e os pressupostos teóricos do pesquisador, sejam implícitos ou explícitos.

Nesse contexto, a metodologia deixa de ser vista como uma caixa de ferramentas para a solução de problemas de pesquisa e passa a ser concebida como um processo cíclico e dinâmico (BRANCO; VALSINER, 1997; MADUREIRA; BRANCO, 2001). A metodologia caracteriza-se como um ciclo de fases inter-relacionadas e indissociáveis da teoria, ao longo do processo de construção de conhecimento. O desenho do ciclo metodológico considera: a visão de mundo dos pesquisadores; a teoria; o fenômeno a ser estudado; a unidade dialética entre os métodos empregados e os dados construídos; e, finalmente, aponta o papel da experiência intuitiva do pesquisador quando este atua nos diferentes níveis ou momentos do ciclo metodológico que caracterizam determinada pesquisa. Assim sendo, a produção empírica e a teórica são mutuamente dependentes, fazem parte da mesma unidade e podem gerar reformulações, ao longo do estudo.

O que mais importa diante de um problema de pesquisa, portanto, é a adequação do método ao fenômeno investigado, às questões formuladas e aos objetivos da pesquisa (CAMIC; RHODES; YARDLEY, 2003; KINDERMANN; VALSINER, 1989). As tensões entre pesquisa qualitativa e quantitativa discutidas por diversos autores consistem, assim, em uma falsa dicotomia que minimiza a complexidade dessa relação (MARECEK, 2003). Essa simplificação freqüentemente resulta em mitos, como aquele que concebe a abordagem qualitativa como fase exploratória, uma etapa prévia ao estudo principal; este, sim, seria rigoroso por ser de caráter quantitativo.

AVALIANDO A QUALIDADE DA PESQUISA

Segundo Denzin e Lincoln (1998), porém, a resistência às pesquisas qualitativas é de natureza política e não epistemológica. Ocorre porque o enfoque qualitativo representa a crítica necessária ao projeto positivista, sendo interpretada como uma afronta ao que é legitimado socialmente como sendo a única opção para a busca da verdade, na concepção hegemônica de ciência no campo da Psicologia. Apesar da diversidade necessária e inerente à epistemologia qualitativa (DENZIN; LINCOLN, 1998), alguns pressupostos centrais serão aqui destacados pela estreita interface que apresentam com questões da pesquisa do desenvolvimento humano. Estes preceitos foram sistematizados por nós com base nos argumentos de diversos autores que vêm pensando a epistemologia qualitativa: Camic, Rhodes e Yardley (2003), Creswell (1998), Denzin e Lincoln (1998), Gaskins, Miller e Corsaro (1992), González Rey (1997), Lyra e Moura (2000), Madureira e Branco (2001) e Marecek (2003). São eles:

(1) A produção de conhecimento é um ato ético e político que enfoca a relação ciência-política-poder, sendo, portanto, contextualizada, interativa e interpretativa;

(2) O conhecimento é construído a partir das perspectivas e dos significados negociados entre os participantes de comunidades discursivas, considerando-se a construção de significados um processo coletivo, individual, ativo, afetivo e mediado pelos sistemas semióticos;

(3) A realidade social e a realidade subjetiva são abordadas em suas complexidades e dinamismos sistêmicos, com destaque para o papel da cultura no desenvolvimento humano. A cultura é enfocada não como variável ou como fonte de erro, mas como cenário e instrumento que constitui os sujeitos em processo de desenvolvimento;

(4) A pesquisa é vista como processo que exige múltiplos níveis de análise, ao colocar em interação diversos aspectos dos participantes, como suas histórias pessoais, biografias, gênero, classe social e etnia;

(5) A crença na competência interpretativa do pesquisador alia-se à sua condição de sujeito situado em classe social e cultura particulares, que se constitui ao mesmo tempo como participante da pesquisa e encarregado da construção de dados;

(6) Os participantes são concebidos sujeitos intencionais, interativos e que co-constroem significados. Na pesquisa, sujeitos e pesquisadores afetam-se mutuamente e alteram suas construções, comportamentos e percepções com base nas interações estabelecidas;

(7) Os resultados das pesquisas são parte de um processo cultural de produção de conhecimento; não são produtos em si mesmos. Os relatos de pesquisa são caracterizados pelo uso de linguagem expressiva e persuasiva;

(8) Especial atenção é dada às particularidades, aos casos singulares. Os estudos de casos buscam fazer o link entre as vidas individuais e a história social. É a partir do estudo aprofundado dos processos que regularidades significativas poderão ser inferidas e se inscrever no âmbito da teoria científica.

Diversos autores consideram necessário o desenvolvimento de critérios de avaliação das pesquisas qualitativas. Gaskell e Bauer (2002) acreditam que a explicitação desses critérios pode contribuir para orientar as discussões entre pares, colaborando no treinamento de novos pesquisadores e para a progressiva legitimação da pesquisa qualitativa. Nesse aspecto, três posicionamentos predominantes são identificados pelos autores entre os pesquisadores de orientação qualitativa. O primeiro posicionamento projeta critérios tais como representatividade, fidedignidade e validade, extraídos da tradição quantitativa, ao contexto da pesquisa qualitativa. O segundo rejeita a predição e o controle como critérios, uma vez que o princípio do determinismo universal é ultrapassado pelo paradigma qualitativo, que advoga a complexidade e o caráter sistêmico do conhecimento científico (GONZÁLEZ REY, 1997; VALSINER, 1997). Por fim, o terceiro posicionamento defende o desenvolvimento de critérios próprios da tradição qualitativa na avaliação da qualidade da pesquisa.

A definição de critérios de qualidade a serem adotados na pesquisa qualitativa se destaca nas contribuições de vários autores, como dito anteriormente (CAMIC; RHODES; YARDLEY, 2003; CHEN; PEARCE, 1995; DENZIN; LINCOLN, 1998; GASKELL; BAUER, 2002). Dentre eles destacamos: autenticidade; credibilidade; validação comunicativa; fidelidade; utilidade; relevância; inteligibilidade; plausibilidade das explicações; probabilidade; documentação e descrição detalhada; articulação entre dados de várias origens; expertise e engajamento do pesquisador no contexto cultural da pesquisa; e coerência com os pressupostos qualitativos.

A orientação por critérios de qualidade requer do pesquisador que se orienta por abordagens qualitativas a familiaridade com o contexto teórico, histórico, sociocultural e interpessoal da sua pesquisa. A "validade cultural" (GASKINS; MILLER; CORSARO, 1992) é um importante aspecto da qualidade da pesquisa qualitativa. O bom relato qualitativo sempre explicita as concepções do pesquisador, gerando reflexões e críticas sobre os resultados, de modo a abrir novas zonas de sentido (GONZÁLEZ REY, 1997). Seguindo-se os princípios da epistemologia qualitativa, a pesquisa torna-se iterativa, num intenso ir e vir entre questão investigada, literatura revisada e construção de dados e interpretações.

Em nosso trabalho, temos utilizado entrevistas semi-estruturadas, narrativas e autobiográficas, como parte importante do ciclo metodológico. Assim, dedicaremos a seção seguinte para discutir este tópico.

A ENTREVISTA NA PESQUISA QUALITATIVA

A entrevista tem sido historicamente considerada um recurso secundário nas pesquisas de psicologia que seguem pressupostos positivistas. Respostas a entrevistas apresentam grande variabilidade potencial e o peso atribuído à interpretação na análise de entrevistas leva à preferência por questões de respostas fechadas, previamente definidas e passíveis de categorização e análise objetiva, nas pesquisas orientadas pelo modelo mais tradicional (MADUREIRA; BRANCO, 2001). Neste modelo, a entrevista é uma troca verbal controlada, na qual cada participante possui um papel distinto: o entrevistado é uma fonte de informação que deve responder de modo objetivo para facilitar a categorização das respostas e a generalização dos resultados; já o entrevistador dirige o processo e formula perguntas de modo padronizado, além de ser responsável pelo registro e pela análise da informação. (FRASER; GONDIM, 2004; LOPES DE OLIVEIRA; BARCINSKI, 2006).

Os pressupostos dessa abordagem nomotética/quantitativa das entrevistas, entretanto, têm implicações sobre os processos interativos que se estabelecem entre entrevistado e entrevistador (FRASER; GONDIM, 2004), com sérias conseqüências para a qualidade das informações produzidas. As entrevistas fechadas, tradicionalmente usadas em pesquisas de corte quantitativo, criam um contexto artificial, caracterizado pelo pouco espaço reservado para a fala mais livre do entrevistado (FRASER; GONDIM, 2004; LOPES DE OLIVEIRA; BARCINSKI, 2006). Esta orientação prejudica a emergência de importantes e/ou novas informações sobre a questão investigada. O tratamento do material muitas vezes restringe-se à análise temática ou de conteúdo, com codificação e categorização de respostas. Para fins de análise estatística, ainda, restringe-se as opções de resposta consideradas, tendo em conta as questões de pesquisa que foram previamente definidas.

Já na pesquisa qualitativa, a entrevista em profundidade, seja ela aberta ou semi-estruturada, possui papel privilegiado na construção de conhecimentos. Madureira e Branco (2001) entendem o momento da entrevista como um espaço interativo, dialógico, permeado de significados co-construídos, nos quais os papéis de entrevistador e entrevistado são flexíveis e a qualidade do vínculo entre os dois é de fundamental importância. A entrevista conduzida sob o enfoque dialógico é significada como uma interação intencional (LOPES DE OLIVEIRA; BARCINSKI, 2006). Nela é compartilhada a construção dos significados, convertendo-se em contexto de transformação dos sujeitos (CISNEROS-PUEBLA; FAUX; MEY, 2004).

Também Gaskell (2002, p. 73-74) considera a entrevista como "uma interação, uma troca de idéias e de significados, em que várias realidades e percepções são exploradas e desenvolvidas, [ou ainda, como] uma tarefa comum, uma partilha e uma negociação de realidades". A entrevista em profundidade explora a percepção e os sentidos de si elaborados pelo sujeito, considerando que o participante tem a oportunidade de reconstruir seu passado na própria dinâmica da interação da entrevista.

Além de compartilhar os pressupostos da epistemologia qualitativa, anteriormente apresentados neste artigo, a abordagem idiográfica/qualitativa das entrevistas tem como princípios: a centralidade da narrativa na organização do pensamento e da identidade humana; a relação entre desenvolvimento humano e interação narrativa; e a construção de significados sobre a realidade à medida que os eventos são costurados em histórias (FRASER; GONDIM, 2004; LOPES DE OLIVEIRA; BARCINSKI, 2006; MURRAY, 2003).

Na situação particular de construção dos dados, esses pressupostos implicam em encorajar a liberdade e espontaneidade do entrevistado para construir seu discurso e apresentar seu ponto de vista, o que torna os significados compartilhados mais representativos. As questões de entrevista, orientadas pelos objetivos e o enquadre interpretativo do pesquisador, podem ser modificadas ao longo da interação, com a inclusão ou supressão de tópicos e questões, conforme o desenvolvimento deste processo (BRANCO; VALSINER, 1997). Tudo isso se reflete em roteiros mais flexíveis, onde o entrevistado tem papel ativo na construção da interpretação das informações e o entrevistador torna-se menos diretivo, podendo oferecer empatia e apoio, o que torna o diálogo mais aberto, e favorece a emergência de novos aspectos significativos.

A entrevista qualitativa visa a compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações em relação aos comportamentos das pessoas em contexto socioculturais específicos. Em virtude desta característica, ela se torna útil na compreensão dos pontos de vista particulares dos entrevistados e de grupos sociais (GASKELL, 2002).

É importante salientar que o caráter aberto da estrutura da entrevista narrativa em profundidade não dispensa o pesquisador da preocupação com a qualidade do processo, que deve procurar se orientar pelos critérios de avaliação anteriormente mencionados. Além disso, Flick (2002) destaca: o treinamento do entrevistador; a realização prévia e a análise detalhada de entrevistas-piloto; o cuidado com o registro, a documentação e a transcrição detalhada da entrevista e do contexto da narração; além da introdução de um passo de validação comunicativa, envolvendo os participantes na interpretação de informações.

CO-CONSTRUINDO A SUBJETIVIDADE NO CONTEXTO DA ENTREVISTA

As reflexões sobre o desenvolvimento humano e a entrevista na pesquisa qualitativa encontram-se profundamente relacionadas ao estudo dos processos de desenvolvimento do self. Esta compreensão demanda um enfoque qualitativo, no qual a entrevista é um instrumento fundamental porque combina aspectos da história de vida com o relato de experiências subjetivas situadas em contextos sócio-histórico-culturais específicos (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002).

A entrevista é um espaço dialógico de interação social, no qual as identidades do(s) participante(s) e do pesquisador são continuamente negociadas e co-construídas (LOPES DE OLIVEIRA; BARCINSKI, 2006; BRANCO, 2006). Este processo de negociação é marcado por um movimento constante de aproximações e distanciamento entre os sujeitos em interação, com base em critérios como gênero, classe social, etnia e inserção institucional, bem como aspectos motivacionais observados em nível micro, como empatia ou desinteresse, por exemplo. Flick (2002) propõe que a entrevista narrativa, não-estruturada e em profundidade, é um diálogo aberto desenvolvido a partir de uma instrução geradora de narrativas. Riessman (1993) considera a entrevista como contexto facilitador do diálogo, que usa questões abertas e, dessa forma, favorece que os sujeitos construam nas respostas seu próprio texto.

ANÁLISE DE PEQUENAS ESTÓRIAS NA CONSTITUIÇÃO DO SELF

A fertilidade da entrevista na construção de informações sobre os processos de desenvolvimento humano tem sido objeto constante de interesse das autoras (BRANCO; MADUREIRA, 2004; LOPES DE OLIVEIRA; YOKOY, 2006). Neste trabalho, será ilustrada a análise narrativa de pequenas estórias, realizada em um projeto de pesquisa que investigou o desenvolvimento do self no contexto do cumprimento de medidas socioeducativas, conduzido pela primeira autora sob a supervisão da terceira. O foco da investigação foi analisar como o self se apresenta, no momento da entrevista e de forma prospectiva, nos significados, valores e crenças atribuídos às medidas socioeducativas, à violência e à exclusão social. O momento da entrevista é compreendido e construído pelos atores sociais envolvidos e reconhece-se que as ações do sujeito e do pesquisador são direcionadas por suas subjetividades e pelas singularidades desse contexto e dessa interação específica.

O ponto de partida teórico-metodológico fundamentou-se nas abordagens sociocultural, sociogenética, dialógica e narrativista sobre o self e a identidade, tendo como eixo os trabalhos de Bakhtin (1997, 2002), Bamberg (1997, 2004, 2006), Chandler (2000), Hermans (2001) e Linnel (2000). Entendemos o self como complexo, heterogêneo e estruturado de forma narrativa, em que existem posições dominantes e outras subordinadas, a depender da temporalidade e da situação (HERMANS, 1996). A noção de um self de base narrativa enfatiza seu caráter contextual, relacional e dinâmico, enxergando na linguagem e nas relações sociais os meios para a subjetivação e a produção de significados sobre si e sobre o mundo (BRUNER, 1998).

Sendo nosso foco a investigação dos processos de formação e transformação do self, um dos níveis de abordagem do material da entrevista envolveu a análise microgenética dos posicionamentos do self na forma de pequenas histórias (BAMBERG, 2006). A análise de pequenas histórias diverge da tradicional análise de longas narrativas que caracteriza, por exemplo, as entrevistas autobiográficas do tipo história de vida. Enquanto a perspectiva da história de vida situa o entrevistado diante da necessidade de organizar discursivamente longos intervalos temporais, as pequenas histórias expressam sínteses vivenciais representativas das posições identitárias do entrevistado, intersubjetivamente negociadas em diferentes contextos sociais, num momento particular.

As pequenas histórias narram eventos cotidianos, situações significativas do passado, que se caracterizam para o narrador como marcos temporais de transições subjetivas, ao mesmo tempo em que expressam projetos identitários dos participantes, na relação com a pessoa do entrevistador. As pequenas histórias se apresentam tanto na forma de breves narrações, fluidas e transitórias, como de narrações que sintetizam projetos identitários mais permanentes e que os sujeitos tentam enfaticamente sustentar por meio de diferentes estratégias discursivas ao longo da entrevista.

O foco nas pequenas histórias baseia-se na orientação que considera a narrativa como co-construída por múltiplos participantes e contextualizada na situação concreta. As pequenas histórias comportam contradições e conflitos de mensagens. Por essa razão, estão abertas tanto na temporalidade como na causalidade. Ao mesmo tempo, ao assumir a posição de narrador do evento vivido, o sujeito necessita assumir uma posição de alteridade em relação à própria experiência.

Da mesma forma, a narrativa tem caráter metacognitivo e auto-epistêmico. A análise de pequenas histórias aborda os processos envolvidos no narrar como eventos interativos, que levam em conta quem fala o quê para quem. Ao invés de focalizar no produto da narrativa, em busca de um curso de vida coerente ou de significados únicos para os eventos, tal análise privilegia os processos discursivos como dispositivos relacionais, que promovem a constituição de si e do outro na comunicação.

A seguir, apresentamos a análise de uma pequena história, extraída de uma entrevista autobiográfica conduzida pela primeira autora ao investigar os diferentes posicionamentos de self no processo de construção da identidade de Renato (nome fictício), adolescente que cumpria medida socioeducativa de semiliberdade em Brasília. A entrevista foi conduzida a partir de um número reduzido de perguntas. Buscou-se propiciar a emergência de narrativas sobre eventos de vida considerados relevantes pelo adolescente, que adquiriam sentido no espaço dialógico construído por Renato e Tatiana (entrevistadora). Ressalta-se aqui que a realização da entrevista foi precedida pelo estabelecimento de um bom vínculo com o grupo de adolescentes, construído ao longo de meses de observações etnográficas na instituição. Um indício foi a mudança observada na forma de tratamento dirigido à entrevistadora; de "dona" ou "madame", Renato passou com o tempo a tratá-la como "véi".

Para efeitos de apresentação, os diversos posicionamentos de self identificados a partir dos relatos de Renato são caracterizados como personagens. Tais posicionamentos expressam a pluralidade e polifonia de sua identidade, no momento em que ele se apresenta à entrevistadora como um adulto responsável e regenerado. A análise considera: (a) recursos léxicos e discursivos do texto da narrativa, que são tratados como elementos retóricos; e (b) efeitos subjetivos e intersubjetivos que o curso da narrativa gera sobre os sujeitos em interação e sobre o pesquisador, no contexto da interpretação das informações.

Renato é um rapaz branco de 17 anos que vive há sete meses em uma casa de semiliberdade numa das cidades do DF, para cumprimento de medida socioeducativa. Nos fins de semana, ele é autorizado a ficar na casa da sua família, que acabara de mudar de cidade a fim de protegê-lo de grupos rivais. A narrativa da entrevista teve como tema a rivalidade nos espaços públicos. A mudança de cidade, na sua perspectiva, marcou a mudança de seu comportamento, ele tornou-se mais caseiro, alguém "que nem pisa na rua".

Esse trecho de entrevista gera fértil análise, sendo possível desmembrá-la em, no mínimo, dois níveis: (1) vozes em diálogo e (2) expressão narrativa da identidade. O primeiro nível, que não será aqui abordado, enfatiza as diferentes vozes trazidas por Renato nesta pequena história, tais como as vozes dos seus rivais e sua própria voz em interação com eles. No presente trabalho, a pequena história selecionada será abordada desde o segundo nível de análise.

Nota-se que a pequena história selecionada se apresenta de forma não-linear. Entretanto, diversos elementos narrativos nos informam sobre os processos identitários em curso. Identificam-se pelo menos quatro posicionamentos de self, que apresentamos aqui na forma de personagens arquetípicos: 'o bom menino', "o guerreiro da rua", "o filho perfeito" e "o homem reformado". Estes posicionamentos indicam a natureza polifônica e processual das identidades, construídas por meio de negociação de alternativas identitárias em diferentes esferas da vida, assim como na situação de entrevista.

O BOM MENINO

O bom menino aparece como aquele que fica em casa, no mundo privado e protegido, e que não age, apenas reage às ofensas que terceiros dirigem a ele. No caso de Renato, isto aparece na linha 16 (l. 16), quando ele fala "rapaz, eu sou é de boa, vocês é que tão caçando encrenca"; na l. 11, com "eu curtindo som lá em casa" e na l. 14, "eu peguei, parei pra não levar confusão lá pra frente de casa". Sua autodescrição indica responsabilidade, reflexão e automonitoramento do comportamento, tal como em l. 14, "eu peguei, parei", bem como explora a capacidade de resolver conflitos por meio do diálogo, no "trocar idéia", expressão que aparece nas linhas 15 e 26.

Da mesma forma, Renato negocia com a entrevistadora a imagem de "bom menino" ao qualificar os rivais, por oposição, como "bicho" (l. 7), "cara" (l. 10), "otário" (l. 12) e "malandrão" (l. 12), enquanto ele próprio se refere (ou é referido) como "novato" (l. 15), "de boa" (l. 16) e "moleque" (l. 26). Renato se apresenta como alguém inocente e pueril, em oposição à imagem depreciativa que expressa de seus rivais ao longo da interação de entrevista.

O GUERREIRO DA RUA

É alguém potencialmente perigoso, cujo passado no mundo da rua impõe medo às pessoas, em especial, pelo fato de andar constantemente armado. Nessa oferta identitária, Renato se posiciona como alguém ameaçador. Descreve a ocasião em que o membro de grupo rival arrefece as ameaças e diz a seus pares para deixá-lo em paz, depois de uma simples conversa, em que Renato consegue acuá-lo (l. 25-27). Sua narrativa explora as idéias de andar armado nas linhas 7, 24 e 28. Reitera que sua periculosidade é mal dimensionada pelos rivais, tal como em "não sabe com quem vocês tão mexendo também" (l. 17). A repetição insistente da "vontade de matar" em diferentes jogos de linguagem (linhas 20-22 e l. 28) é também um recurso retórico que sustenta esta posição identitária. Numa forma identitária híbrida, que guarda elementos do "bom menino" e do "guerreiro da rua", Renato se posiciona também como um bom bandido, que prefere conversar a brigar (destaque para os enunciados entre as linhas 15-17).

O FILHO PERFECTO

A identidade de filho perfeito envolve permanecer dentro do espaço privado da casa, ajudando a mamãe, não envolvendo seus familiares nos seus problemas e rivalidades da rua. Envolve também reconhecer nos pais um interdito às práticas infracionais. Renato se apresenta como alguém que não permite bagunça perto da casa da sua família, nos enunciados "eu peguei, parei, pra não levar confusão lá pra frente de casa" (l. 14), "minha mãe e meu pai tava lá na frente de casa" (l. 22) e "olhava pra trás, via minha mãe" (l. 28). Renato declara que ajuda sua mãe em tarefas domésticas na l. 13 ("eu fui na padaria comprar um pão pra minha mãe"). Sua narrativa explora a auto-imagem de quem fica dentro de casa e não na rua, imagem coerente com a visão tradicional de como um bom filho deve se comportar: "eu curtindo som lá em casa" (l. 11) e "aí eu já peguei e entrei pra dentro logo" (l. 29). O filho perfeito é o que permanece no território do privado, enquanto o bandido é o "guerreiro da rua".

O HOMEM REFORMADO

O homem reformado é um adulto recuperado, que incorpora ao seu comportamento as expectativas institucionais. Renato aciona alguns dos discursos institucionais característicos da casa de semiliberdade em que ele vive, ao descrever sua tomada de decisão de abandonar o mundo da rua. Ele parece incorporar expectativas da equipe técnica responsável pelo acompanhamento da medida e que interfere no processo de sua pela liberdade: "nem tenho mais vontade de ficar na rua" (l. 4), "só um rolezinho mermo, de vez em quando" (l. 3), "eu nem queria sair na rua não" (l. 7) e "eu curtindo som lá em casa" (l. 11). Renato parece identificar a entrevistadora com a equipe técnica, ao enfatizar a posição de alguém "recuperado", caseiro, "de boa". Como parte dessa transição, Renato agora tem uma esposa para tomar conta ("a minha mulher", l. 3), não deseja incomodar a família e é um homem responsável, lembrando sempre que entrará na maioridade penal em breve.

Esses quatro personagens se interpenetram, de modo que aspectos identitários de uns afetam os demais, como é o caso da fusão bom menino/guerreiro da rua/bom bandido. Os posicionamentos são sinais do processo complexo e dinâmico de construção de self, que encontra na narrativa um amálgama, como ocorre na interação da entrevista.

As aproximações de entrevistado e entrevistadora se apóiam em similaridades e diferenças entre os dois. Renato posiciona Tatiana como uma pessoa jovem como ele e se identifica com essa imagem, conforme evidenciado no vocativo "véi", que torna as relações entre os dois mais horizontais, dissimulando a diferença de gênero. Em outro momento, Renato a posiciona como psicóloga, a quem se atribui o papel de escuta de suas experiências de recuperação. O coda de Renato sintetiza o processo subjetivo em curso, expresso nas metáforas sair da rua/ficar em casa: "Aí eu já peguei e entrei pra dentro logo, né" (l. 29).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os métodos qualitativos se revelam como particularmente importantes para a análise dos processos de desenvolvimento humano. Entretanto, critérios de qualidade precisam ser utilizados para a avaliação das pesquisas. Neste trabalho destacamos a entrevista como fundamental instrumento de construção de informações na pesquisa qualitativa, a partir da reflexão sobre a relação entre pressupostos epistemológicos e suas implicações metodológicas. Ademais, ilustramos a sua utilização com uma breve análise de pequenas histórias referentes à co-construção do self de um adolescente em contexto específico de uma casa de semiliberdade. Consideramos a análise microgenética da dinâmica dos processos identitários como uma perspectiva interessante, pois esta é sensível ao contexto cultural em que a interação narrativa se situa e à dinâmica dos processos de subjetivação.

Como limites da abordagem das pequenas histórias, entretanto, podemos citar a dificuldade (mas não impossibilidade) em articular o micro contexto da narrativa com o evento narrado e a totalidade psíquica do narrador na linha do tempo; articulação necessária face a complexidade dos processos de desenvolvimento do self. Além disso, é sempre preciso cuidado para não se reduzir a subjetividade a um texto, sendo importante integrar na análise aspectos motivacionais, afetivos e metacomunicativos associados às interações interpessoais e intrapessoais que estão na base dos processos de desenvolvimento humano.

Recebido em: outubro de 2006

Aceito em: agosto de 2008

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2008

Histórico

  • Aceito
    Ago 2008
  • Recebido
    Out 2006
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