RESUMO
O artigo faz uma análise crítica da leitura Adorno sobre a concepção de liberdade prática de Kant, tendo como escopo principal investigar o conceito-chave de ‘adendo’, proposto na terceira parte da Dialética negativa, Modelo Liberdade. Iniciamos com a apresentação de alguns aspectos centrais na concepção adorniana quanto à liberdade humana, encaminhando a argumentação para defendermos a hipótese de certa artificialidade no conceito de adendo, tendo em vista o modo um tanto antinômico e genérico com que Adorno trata a relação dos planos do pensamento (consciência, linguagem, cultura) e da natureza (corpo, fisiologia, impulsos naturais).
Palavras-chaves:
Theodor Adorno; Immanuel Kant; adendo; liberdade
ABSTRACT
The article undertakes a critical analysis of Adorno’s interpretation of Kant’s conception of practical freedom, with the primary aim of investigating the key concept of ‘addendum’ proposed in the third part of Negative Dialectics, Model Freedom. We commence by presenting some central aspects of Adorno’s conception of human freedom, thereby directing the argumentation towards defending the hypothesis of a certain artificiality inherent in the concept of an addendum. This consideration arises from the somewhat antinomian and generic manner in which Adorno addresses the relationship between the realms of thought (consciousness, language, culture) and nature (body, physiology, natural impulses).
Keywords:
Theodor Adorno; Immanuel Kant; addendum; freedom
1 Considerações iniciais
Um aspecto fundamental da filosofia de Adorno consiste em seu esforço dialético de pensar o quanto a realidade é constituída pela interdependência de princípios, forças e valores substancialmente contraditórios. Ao mesmo tempo em que tais contradições são vividas como infortúnio, dor e sofrimento, tal como o distanciamento radical entre a universalidade social onipotente e a individualidade impotente, importa ressaltar uma marca registrada da dialética negativa de Adorno, tal como explicitado por Martin Jay (1984, p.87), “Adorno insistiu nas perigosas implicações ideológicas de superar, no âmbito do pensamento, aquilo que permanece dividido na realidade, isto é, o antagonismo entre o universal e o particular” . Para Adorno, encontrar uma formulação capaz de mediar e tendencialmente resolver as contradições é muito menos relevante - e filosoficamente menos substantivo - que caminhar dialeticamente no sentido inverso, ou seja, acentuá-las. Tal como diz J. M. Bernstein (2001, p. 256), “os extremos, Adorno afirma consistentemente, a elaboração exagerada de um problema, são mais fiéis às nossas dificuldades do que aquilo que finge que esses problemas possam ser resolvidos ou superados por um mero ato teórico imediato”. Pode-se atestar esse princípio geral em toda a obra de Adorno, referido a objetos bastante concretos, como em sua Teoria estética, em que se lê que, na relação tensa entre os polos da construção - um fator de unidade e compreensibilidade para a obra - e da expressão - conectada à multiplicidade mimética -, as grandes obras de arte tenderam para um dos dois extremos, sem procurar uma conciliação entre eles (Adorno, 1997a, p.72). Embora tal postura teórica, tanto na estética quanto em inúmeros outros âmbitos, seja interessante e contribua decisivamente para a compreensão filosófica da realidade, não pode ser tomada como válida abstratamente, sem considerar o que está em jogo em cada caso, pois senão o pensamento acaba realizando, de algum modo, o que Adorno recusava programaticamente à dialética, mas reconhecia como existindo na filosofia hegeliana, ou seja, a imposição de princípios contraditórios abstratos ao objeto:
O pensamento dialético não deve, tal como seus adversários lhe imputam, construir contradições a partir de cima e prosseguir através de sua resolução, embora a lógica de Hegel algumas vezes proceda dessa forma. Em vez disso, ela deve perseguir a inadequação entre pensamento e coisa, experimentá-la na coisa. ( Adorno, 1997 c, p.156)
Precisamente a insistência nesse princípio dialético explica o quanto Adorno, ao ler criticamente a teoria da liberdade moral em Kant, enfatiza a dimensão antinômica existente entre o caráter inteligível e a realidade empírica. Adorno parece se interessar aqui muito menos pela psicologia transcendental de Kant que pela tensão entre o âmbito inteligível e o sensível, entre noumeno e fenômeno. Em toda a “Metacrítica da razão prática”, por exemplo, aborda-se muito pouco a diferença entre o interesse puro e patológico, o conceito de dever, a dimensão sintética dos juízos morais, a diferença entre as três formulações do imperativo categórico etc. - elementos indicativos, de alguma forma, da mediação empírica entre aqueles polos.
Em nosso comentário, procuraremos mostrar que esse procedimento dialético de Adorno se liga ao que consideramos conceitualmente frágil em sua crítica à liberdade moral de Kant.1 Em termos gerais, nossa ideia é que Adorno ficou refém dos termos em que Kant colocou o problema tanto da liberdade quanto de sua negação, e os princípios que ele mobiliza em sua crítica refletem, curiosamente, algo da deficiência do próprio sistema kantiano.
Na primeira seção da “Metacrítica da razão prática”, vemos Adorno mobilizar o princípio dialético de conceber a liberdade em função da diferença polarizada entre ela e a não-liberdade, ao mesmo tempo em que se dedica a mostrar seu entrelaçamento vertiginoso. Os dois primeiros ensaios, “Pseudo-problemas” e “Interesse na liberdade cindido”, abordam o apelo que a ideia de liberdade possui, considerando-o em sua emergência histórica contraditória, ambígua. Os dois ensaios seguintes, “Liberdade, determinismo, identidade” e “Liberdade e sociedade organizada”, abordam um dos aspectos levantados nos dois primeiros, enfatizando o quanto a ideia de liberdade é potencialmente absorvida e negada pela unidade social. Essa temática se contrapõe à abordada nos outros três ensaios dessa primeira seção: “O impulso anterior ao eu”, “Experimenta crucis” e “O adendo”, que focalizam o oposto da unificação social, a saber, a multiplicidade não totalmente dominada da “natureza interna”.
Nosso comentário seguirá, então, essa divisão presente na primeira seção da “Meta-crítica da razão prática”.
2 A ambiguidade do interesse pela liberdade
Na era moderna, a liberdade surge como um problema, uma questão levantada sobre o pertencimento do indivíduo a um contexto macro-social. Seu caráter problemático, entretanto, colocou-se precisamente como resposta a afirmativas apoiadas em certezas absolutas, e, na medida em que o indivíduo precisou confrontar-se com a determinação de tradições arcaicas, profundas e misteriosas, a liberdade foi por assim dizer impelida a uma região nebulosa do pensamento, algo a ser decifrado, sem uma resolução inequívoca. Era preciso fazer frente a princípios cuja abstração arcaica era impossível de se combater. A antinomia da liberdade em Kant pretende situar o problema exatamente nesse plano, em que à esfera transcendente é reservado um modo de acesso pelo pensamento substancialmente distinto do empregado para a realidade empírica, plano de realização dos atos supostamente livres. É em virtude da tentativa de negar a ilusão de um fundamento ontológico e metafísico para a liberdade, concebido por meio de um sumo bem objetivamente cognoscível, que essa mesma liberdade será retirada do âmbito empírico. Esse deslocamento e sua consequente polarização (liberdade numênica versus necessidade fenomênica) refletem-se na própria concepção da vontade, que, sendo livre, deverá ser a unidade de todos os impulsos que levarão ao agir moral, mas cujo princípio último reside fora desse plano empírico. Nesse sentido, a liberdade associa-se intimamente à identidade do sujeito como tendo uma consciência capaz de mover a si mesmo a partir de um princípio unitário.
Ora, diz Adorno, esse descolamento radical de um sujeito unitário para além da multiplicidade é ilusório, pelo motivo de que toda a unidade conseguida pelo sujeito provém da sedimentação de normas, princípios, conceitos e valores socialmente assimilados. Diante da impossibilidade de encontrar em si mesmo uma realidade positivamente verificável de liberdade, a ideia de uma vontade pura é um substituto precário, sem substância, para a negação dialeticamente concreta do estado de não-liberdade. Essa característica, entretanto, possui uma motivação histórico-filosófica precisa. Sendo um tema significativo na filosofia moderna, ela demonstra o quanto a burguesia atribuiu aos filósofos a tarefa de conciliar uma liberdade abstrata, ideativa, para o indivíduo e sua inexistência na realidade social. O indivíduo não apenas pode, mas deve se pensar como substancialmente livre, porém sua liberdade concreta precisa ser evitada ao máximo. Essa polarização se verificou claramente no âmbito das práticas conceituais-cognitivas, de modo que a filosofia, esvaziando-se de conteúdos concretos da realidade vivida, passou a ser uma espécie de coletânea de visões de mundo permeadas por afirmações empíricas precárias, ao passo que às ciências restou a tarefa de descrever as regularidades necessárias e intransponíveis no âmbito empírico. Quando estas se dedicam a falar sobre a liberdade, a reflexão fica relegada às contingências das preferências individuais, tanto em termos emotivos quanto de filiação política, misturando dados empíricos insuficientes com generalidades dogmáticas, quando então a liberdade aparece como algo arcaico, ultrapassado, pois carece de base epistemológica precisa. Não deixa de ser irônico, diz Adorno, que a liberdade pareça envelhecer - como problema teórico e princípio regulador da ação - muito antes de se ver realizada suficientemente.
Se essa caracterização do papel da filosofia é verdadeira, e nos parece ser o caso, então mais à frente procuraremos mostrar que ela vale em certa medida para a própria filosofia de Adorno, por procurar dizer do processo de mediação entre o âmbito da liberdade e o da realidade empírica através do que J. M. Bernstein (2001, p.258) chama de uma “antropologia especulativa ruim”, uma vez que não coloca em jogo “um arsenal muito mais complexo de mecanismos e conceitos psicológicos do que o utilizado por Adorno aqui: identificação, projeção, idealização, introjeção e outros similares”.
3 A produção e absorção social da liberdade
Nos dois ensaios seguintes, vemos Adorno colocar os princípios de sua concepção de liberdade, em que ela e sua contraparte, a não liberdade, mesclam-se e fortalecem a continuidade da violência social, não deixando transparecer à consciência ingênua o quanto uma existe em função da outra. Em sua argumentação, Adorno mobiliza fundamentalmente cinco fontes de não-liberdade: 1. pertencimento à sociedade, 2. assimilação monadológica desse universal societário, 3. pertencimento à natureza externa, 4. vinculação ao corpo e 5. unidade psíquica. A cada um corresponderá uma forma de imagem de liberdade aparente e ao mesmo tempo historicamente real. (Nesse texto, abordaremos mais propriamente as questões teóricas suscitadas pelos itens 1, 2 e 5.)
Como vimos, a gênese histórica do conceito de liberdade se associa ao desejo de afirmar e negar a realidade da liberdade ao mesmo tempo. A contradição de uma sociedade que atribui uma liberdade recusada por ela mesma em termos concretos é encoberta ardilosamente por meio de negações antinômicas, polarizando o debate entre uma verificação positivista de reações reflexas, desejo, apetites e inclinações, por um lado, e um substrato ontológico, inteligível, noumênico, da liberdade, por outro. Em vez dessa polarização, seria necessário perceber o quanto o sujeito somente se forma mediante o que ele mesmo não é, o não-eu, por um processo de auto-alienação constitutiva. No entanto, o que eleva o sujeito acima do puro reflexo, o eu, é também fonte de distanciamento em relação a si próprio, embora Adorno se mostre em dúvida quanto ao que isso seja propriamente. Esse processo de surgimento da unidade subjetiva é de crucial importância, pois não existe liberdade sem a unidade da vontade, e esta não é pensável sem a unidade da consciência. Nesse passo Kant e Adorno estão juntos, mas Adorno enfatiza a contraparte dessa ideia, ressaltando que não existe consciência sem vontade, pois qualquer pensamento é uma forma de ação, e por isso mesmo pressupõe um ímpeto volitivo. Nossa abordagem, ao final, procurará mostrar certa insuficiência no modo como Adorno concebe esse ímpeto volitivo interno da vontade que nutre a atividade consciente.
Se o indivíduo percebe a sociedade como entrave à afirmação livre de si, por outro lado, Adorno insiste em que toda a cultura sempre foi uma promessa de liberdade, tal como já falado claramente na Dialética do esclarecimento. Ao mesmo tempo, porém, em que garante certa autonomia frente aos poderes naturais, a sociedade cobra um aprisionamento aos princípios de organização da unidade coletiva. Nessa relação polarizada entre liberdade e sua ausência, as teses de que “a vontade é livre” e “a vontade não é livre” se transformaram em uma antinomia pelo princípio já referido de a burguesia fomentar a crença nos indivíduos de eles serem livres, mesmo não o sendo na realidade concreta. A tese de os seres humanos serem livres - em um sentido absoluto - é narcisista, por demais egocêntrica, fruto do cultivo do “valor para a própria pessoa”, tal como Kant diz ser um elemento em jogo na ação moral livre de todo interesse. Como contraparte a esse narcisismo, tem-se a consciência culpada devido a uma responsabilidade por um estado de coisas perante o qual os indivíduos não têm poder real. - Mais à frente, Adorno (1997c, p.247) falará de outra fonte desse caráter antinômico: “a fundamentação da tese da terceira antinomia, a da espontaneidade absoluta da causa, secularização do ato divino e livre de criação, é de tipo cartesiano; ela deve valer a fim de satisfazer ao método”. Sem dúvida essa origem religiosa da antinomia kantiana se liga à dimensão metodológica, mas sua força de conformação histórica da experiência é tão significativa, em termos filosóficos, quanto a dinâmica capitalista.
Para Adorno, a liberdade, tanto como conceito quanto como realidade, é um produto histórico, tal como é também o indivíduo que reflete sobre si mesmo, herdeiro do movimento de individualização própria do capitalismo. Embora isso nos pareça de fato verdadeiro, Bernstein (2001, p.257, nota) não deixa de ter razão ao indicar que a reflexão ética aristotélica (sobre atos voluntários e involuntários e suas exigências de que a ética somente diz respeito a ações que não sofrem coerção, em que o indivíduo pode escolher) já mostra que, pelo menos como conceito, a liberdade não é uma invenção absoluta da modernidade. Após repetir uma ideia afirmada em Zur Lehre von Geschichte und Freiheit de que o ruim não é que os homens sejam maus, mas sim que ainda não há uma realidade em que os homens não precisem ser maus, Adorno (1997c, p.218) diz que “a sociedade determina [bestimmt] os indivíduos, mesmo segundo sua gênese imanente, para serem aquilo que eles são; a liberdade ou a não-liberdade deles não é algo primário, tal como ela aparece sob o véu do principium individuationis”. Em Zur Lehre von Geschichte und Freiheit [“Para a doutrina da história e da liberdade”], Adorno (2006, p.226) diz de forma igualmente explícita: “o progresso intrínseco ao mundo (innerweltlich) tem seu momento mítico no fato de que ele, tal como Hegel e Marx reconheceram, decorre por sobre as cabeças dos sujeitos e os forma segundo sua imagem fiel [Ebenbild]”. No texto “Die revidierte Psychoanalyse” (“A psicanálise revisada”), Adorno dirá que não somente o indivíduo, mas a própria categoria da individualidade é um produto social (Adorno, 2015, p.52). Nesse cenário de uma aparente determinação total do particular pelo universal, Adorno diz que por vezes o indivíduo se contrapõe à sociedade ao perseguir interesses próprios através da própria razão, mas mesmo aí ele gosta de enfatizar que o interesse individual ainda leva a “insígnia” da universalidade (1997c, p.218-9).
Que o indivíduo seja marcado essencialmente pelos conceitos, valores e princípios sociais é inegável. Em termos críticos, porém, é de se perguntar em que âmbito e abrangência essa “universalidade” social é concebida: se no plano de uma civilização ou sociedade em geral, se relativa a uma cultura específica, a um país etc.2 Adorno não se dedica a especificar essa força de determinação do indivíduo pelo universal, que permanece em sua figuração filosófica por assim dizer “flutuante”, sem descer ao âmbito mais descritivo das vicissitudes históricas do modo como a dimensão supra-individual (ou seja, social, familiar, estatal etc.) se atualiza e se efetiva. Cobrar essa especificação social (ou sociológica) não nos parece de forma alguma inapropriado como leitura dos textos do filósofo, em virtude do fato de ser essa também sua postura crítica para com os representantes da Aufklärung exercida na trama argumentativa da Dialética do esclarecimento. Se, tal como é um dos conceitos-guia do sentido emancipatório da dialética negativa e da teoria estética adornianas fazer justiça ao particular [dem Besonderen Gerechtigkeit widerfahren], cremos que se deva pensar de forma análoga relativo ao próprio universal, no sentido de lhe dar uma determinidade tal que nem o sobrecarregue de uma extensão de significados virtualmente infinita, nem o torne imune às críticas pontuais em seu alegado poder de determinação do particular “segundo sua gênese imanente”. Assim, a generalidade com que Adorno coloca o universal em relação ao particular, aliada à sua insistência no processo de determinação deste por aquele, torna difícil perceber em que consiste propriamente algo que é tão evidente quanto a influência do universal sobre particular: o fato de os indivíduos assimilarem a universalidade que os forma de modos infinitamente variáveis. Segundo pensamos, a diferença entre o indivíduo e a sociedade não deve ser pensada apenas no modo como estes agem concretamente para se contraporem à opressão social (nas palavras de Adorno, “perseguir seus próprios interesses”), mas sim pelo modo como a universalidade social é digerida, metabolizada, assimilada, pelos indivíduos em seu processo de individuação, de tal forma que não se possa dizer propriamente de uma Ebenbild [imagem ou retrato fiel] do universal nos particulares, mas sim de uma complexa trama de influências e vias de assimilação intimamente conectadas com o modo como os indivíduos devolvem para si e para a sociedade a influência que recebem. Se é verdade que todos os conceitos que usamos para pensar, os paradigmas que temos para nossos sentimentos e valores em que se baseiam nossos desejos são sociais, não menos verdadeiro é que nossa apropriação de cada um desses elementos constitui nossa individualidade propriamente dita. Ora, se Adorno quer ultrapassar Hegel - posto que este absorve todo o particular no movimento universal do Espírito absoluto -, então ele deveria tomar como um problema filosófico de crucial relevância investigar essa densidade singular das vias mediante as quais os indivíduos transformam, refratam e devolvem tudo o que recebem do plano social.
4 A liberdade anterior à liberdade
Até agora, a reflexão de Adorno se coloca no plano da realidade social que entrelaça o indivíduo e a coletividade. Os três últimos ensaios dessa primeira seção focalizam um substrato anterior a esse âmbito, tanto de um ponto de vista lógico quanto cronológico. Dessa perspectiva, somente se pode verdadeiramente apreender o conceito de liberdade por meio do resgate de impulsos naturais dispersos, arcaicos, anteriores à unidade do eu. Tendo este se formado, sua unidade tende a tornar irreconhecível esse substrato mimético disperso, que no estado de uma sociedade totalmente socializada, aparece como uma natureza mutilada, como nas neuroses obsessivas. Estas últimas mostram ao sujeito que ele, internamente, não é livre, tornando problemática a visão cômoda de a liberdade residir apenas no entrave externo às ações no plano social. Nesse sentido, as neuroses contêm um conteúdo de verdade, mas referente a uma natureza já violentada pela cultura, e não a uma natureza primeira.
Tal ideia de um resgate de uma natureza corpórea difusa - ou uma mímesis arcaica - aparece em outros momentos da obra de Adorno, como nas Minima moralia, em que a utopia se conecta a essa suposta naturalidade primeira: “somente quem fosse capaz de determinar a utopia no prazer somático cego, que não possui nenhuma intenção e satisfaz a todas, seria capaz de uma ideia de verdade robusta” (Adorno, 1997b, §37, p.68). Uma vez que estamos comentando uma parte do texto Dialética negativa de forte inspiração psicanalítica, com referência explícita às neuroses obsessivas, e ainda se falará da teoria do recalque em Freud, é especialmente relevante esclarecer essa suposta ligação com algo anterior ao próprio eu, dado que este, uma vez instituído através de uma complexa teia de desejos inconscientes, parece ser uma mediação intransponível em relação a qualquer possibilidade de prazer, tal como vemos na leitura de Jean Laplanche acerca do significado das fantasias inconscientes como mediação para toda forma de gozo (Laplanche, 1988).
Joel Whitebook (2009, p.37), ao comentar esse contexto argumentativo da Dialética negativa, nos fornece três exemplos de uma suposta experiência com impulsos somáticos anteriores ao eu, ao mesmo tempo em que lhe faz uma ressalva: “... a jouissance do orgasmo, o arrebatamento religioso ou o Liebestod de Isolde podem todos dissolver a unificação compulsiva do eu e nos libertar das exigências coercivas da identidade. No entanto, essas libertações da identidade compulsiva são transitórias; elas não podem fornecer uma solução duradoura”. Restringindo-nos apenas aos dois primeiros exemplos, que nos parecem mais apropriados, é inegável que tanto o gozo sexual quanto o êxtase religioso possuem uma dimensão somática bastante forte, expressiva. O grande problema consiste em ser muito difícil imaginar qualquer um deles sem a mediação de fantasias sexuais no primeiro caso, e de um forte vínculo a um imaginário religioso plenamente constituído, no segundo. É evidente que a corporeidade é abalada (uma expressão do próprio Freud), como resultado da mobilização de fantasias vinculadas a nossa dimensão somática. Esta última, obviamente, está em jogo, mas não é disso que se trata, e sim de uma natureza difusa, supostamente não mutilada, anterior à própria constituição do eu (e toda a trama de elementos linguísticos, simbólicos, morais etc. que o forma). Ora, tanto o orgasmo sexual quanto a euforia religiosa podem ser experimentados largamente como uma experiência neurótica, viciada, compulsiva, e, seguindo a concepção de Jean Laplanche, na verdade todo gozo contém a mesma estrutura de retorno ao núcleo traumático de constituição do próprio eu que as neuroses.
Para enfrentar as dificuldades de definir teoricamente algo supostamente resgatável como imediato e anterior ao eu, Adorno introduz um conceito central na dialética entre liberdade e não-liberdade: o adendo (das Hinzutretende)3. Trata-se de uma resposta crítica à extrema abstração operada por Kant, que concebe a razão se auto-determinando através de uma vontade pura, cujo único móbil é o próprio princípio racional em sua coerência. Uma vontade, assim concebida, seria uma terra de ninguém, para a qual não se concebe um modo efetivo de ação concretamente estabelecida. “A lógica é uma prática que se fecha a si mesma. O comportamento contemplativo, o correlato subjetivo da lógica, é o comportamento que nada deseja” (Adorno, 1997c, p.229).
Em contraste com esse fechamento monadológico, um impulso deve ser pensado como rudimento de uma fase em que o corpóreo e o mental ainda não se diferenciavam, sendo ele, portanto, ao mesmo tempo somático e intramental. Esse impulso por assim dizer rompe o que Adorno chama, estranhamente, de conexões causais, de causalidade natural. (Isso nos parece estranho, em função de que dizer que os fenômenos no âmbito da consciência obedecem a relações de causalidade natural ressoam de forma extremamente forte a própria posição kantiana.) A ideia de que esse impulso se adiciona ao âmbito da consciência, sem ser apenas somático, provém da necessidade de resposta à extrema abstração kantiana: ele é adicionado porque, na verdade, foi subtraído (na teoria). Essa ideia de uma adição que existe em função de uma subtração admite várias leituras. Timo Jutten, por exemplo, diz: “Adorno faz referência ao adendo com o intuito de explicar o fato de que nossa compreensão consciente e conceitual de um desejo, por exemplo, não esgota o que esse desejo é, porque, como um desejo sensível, ele também é uma reação corporal e, portanto, ‘transcende a consciência’ (1997c, p.228/229)” (Jutten 2010, p.10). Essa interpretação confere mais especificidade à ideia de Adorno, mas ao preço de enfraquecê-la em demasia, pois para Adorno o adendo não é apenas um resíduo somático não passível de ser assimilado conscientemente no instante atual, mas sim um impulso capaz de fornecer uma imagem dialética do que seja a espontaneidade, o impulso subjetivo, que não se esgota na consciência, mas também não é apenas corporal, sendo então capaz de fazer com que a liberdade alcance a realidade. Bernstein (2001, p.256), por sua vez, é mais enfático do que Jutten, quando diz: “O adendo é, e somente é, a figura de algo que não seria nem mental, conforme concebido atualmente, nem natural, conforme concebido atualmente. Sua validade é negativa; não é nada mais do que uma excrescência da vontade pura”. Essa ênfase no caráter meramente figurativo, quase metafórico, retira muito importância filosófica e psicanalítica tanto do próprio adendo quanto da crítica à articulação conceitual kantiana proposta por Adorno.
Para além das divergências interpretativas, o texto adorniano mostra com clareza que seu autor necessita de um princípio motor suficientemente forte para gerar uma ação, mas sem se esgotar nas determinações da pura imanência da consciência, nem ser apenas natureza, e nesse último caso nem uma natureza que ele chama de cega (o que talvez possamos interpretar como não sendo capaz de influenciar a consciência, ou de ser trazida ao plano da subjetividade), nem uma natureza reprimida. Trata-se, por hipótese, de um princípio motor suficientemente forte para gerar uma ação, mas cuja dinâmica não se explique nem pelas conexões lógicas do pensamento, nem pelas conexões somáticas, biológicas. Para dizer de um tal princípio, no entanto, o que Adorno faz é apelar para uma espécie de indiferenciação arcaica (entre natureza e cultura) que supostamente ainda sobreviva, mesmo que de modo frágil, no complexo motivacional humano.4 De um ponto de vista crítico, vemos uma diferença essencial entre: (1) dizer da existência de um impulso com uma lógica própria, que possua uma dinâmica interna anterior âmbito linguístico, de consciência e cultural, e que esteja além do âmbito do somático, biológico; e (2) afirmar que um impulso não se esgota em nenhum dos dois âmbitos porque é um misto de ambos, como uma recordação de quando eles supostamente não se separavam. A primeira opção nos parece melhor, bastante afim à ideia de os conteúdos inconscientes - formados a partir de uma relação fantasística apoiada no modo como o sujeito constitui o seu eu na primeira infância - possuírem uma lógica desiderativa anterior a toda forma de assimilação do âmbito linguístico, simbólico, cultural, mas ao mesmo tempo não regida pelas leis biológicas, propriamente instintivas. Entretanto, não é essa a perspectiva de Adorno, pois, embora ele insista nessa dimensão arcaica indiferenciada entre o somático e o mental/psíquico, o peso conferido por ele ao corporal é bem maior, além de não fazer menção alguma a algo que é caro à teoria psicanalítica: a lógica de estruturação individualizada dos conteúdos inconscientes, que determina em larga medida a diferenciação entre os sujeitos. Tais conteúdos, não sendo pensados através de uma concepção que os singularize de pessoa a pessoa (de acordo suas histórias de vida), não se mostram elementos favorecedores para se realizar, no âmbito da teoria filosófica, a “justiça ao particular” incessantemente afirmada por Adorno, pois seu delineamento permanece genérico, situado no plano universal-conceitual-filosófico. Por outro lado, mesmo tomando essa singularização como de crucial importância, a argumentação adorniana não deve em hipótese alguma ser simplesmente descartada, pois sua ênfase na dimensão intermediária do “adendo” é deveras progressista e indica uma via de reflexão muito profícua.5 A junção das facetas válida e questionável (segundo nossa perspectiva) da concepção adorniana justifica afirmarmos a exigência de uma outra solução para o problema do impulso ao agir. - Não é o caso, agora, de contrapormos uma outra teoria à de Adorno - pois isso demandaria um volume excessivo de elementos conceituais para as dimensões desse artigo -, mas sim, como estratégia argumentativa, mostrar que nas próprias formulações da Dialética negativa emerge a exigência de uma outra solução.
Embora a formulação de Bernstein acerca do caráter meramente residual do adendo não concorde com a intenção de Adorno, parece-nos que, por outro lado, fornece uma formulação adequada de algo a ser visto mais de perto. Essa ideia de um impulso que se adiciona aos dois âmbitos somático e mental tem muito de seu sentido atrelado ao fato de Adorno ter de responder a Kant, e, nesse sentido, somos instigados a pensar que se trata de algo artificial. Adorno talvez tenha sido levado a essa formulação em virtude do fato de conceber de forma por demais literal o destacamento do âmbito mental, de consciência, lógico, em relação à natureza. A separação do primeiro em relação à segunda é tomada de tal forma que a repressão e domínio do plano somático/biológico, mesmo que feitos em função do impulso de auto-conservação, significam uma formalização excessiva do pensamento, como se o espírito não exprimisse, nesse mesmo movimento repressivo, um desejo, um prazer, uma vontade que responde a um princípio desiderativo profundamente próximo a essa mesma natureza supostamente reprimida. É como se Adorno tomasse de forma literal o que é delineado como abstração na teoria, para depois dizer de um adendo que existe, sempre existiu, mas foi esquecido. Em seu livro inteiramente dedicado ao conceito de natureza em Adorno, Deborah Cook, apesar de salientar várias vezes a necessidade de rememoração da natureza no sujeito - tal como diz a famosa frase presente na Dialética do esclarecimento (Adorno e Horkheimer, 1997, p.58) -, exprime de forma clara essa percepção literal da abstração do espírito perante a natureza: “Em nossas incessantes tentativas de dominar a natureza, transformamos a natureza em algo a ser controlado e manipulado exclusivamente para nosso próprio benefício, reduzindo-a aos nossos conceitos sobre ela no nível teórico e equiparando-a ao seu valor de troca no mercado capitalista” (Cook, 2011, p.16).
Na Dialética do esclarecimento, no excurso II, “Juliette, ou Moral e esclarecimento”, quando nos é falado sobre a negação abstrata dos sentimentos, a formalização da razão - especialmente ilustrada pela filosofia de Kant - é o suporte sólido de todo o argumento subsequente nesta parte do livro. O esforço de toda a crítica de Adorno e Horkheimer é denunciar, expor como o Iluminismo segue um fluxo substancialmente reificado, desvinculado de qualquer vestígio de conteúdo humano, mesmo do desejo ideológico de dominação ou de qualquer outro. Inúmeras expressões atestam inequivocamente essa ideia; vejamos algumas delas: “A razão é o órgão do cálculo, do planejamento, ela é neutra em relação aos fins, seu elemento é a coordenação” (Adorno e Horkheimer, 1997, p.107); “ela se tornou uma finalidade sem fim... É o planejamento considerado em si mesmo” (Adorno e Horkheimer, 1997, p.108), “razão pura tornou-se irrazão, um procedimento sem erro e sem conteúdo” (Adorno e Horkheimer, 1997, p.110); “imerso nos meios dominantes de produção, o esclarecimento que se esforça para minar a ordem que se tornou repressora se dissolve” (Adorno e Horkheimer, 1997, p.113), “a formalização da razão é apenas uma expressão dos meios de produção industriais. (...) A dominação sobrevive como um fim em si mesmo, na forma de violência econômica.” (Adorno e Horkheimer, 1997, p.124); “(...) O colosso a-consciente [bewußtlose] do real, o capitalismo desprovido de subjetividade, exerce cegamente a dominação (...)” (Adorno e Horkheimer, 1997, p.134).
É como se o impulso de auto-conservação, mesmo sendo dito de natureza, fosse tão abstrato, limitado a um princípio vazio, que não conta propriamente como expressão de natureza em sentido próprio. Assim, a separação do espírito em relação à natureza acaba sendo mais real que simplesmente a expressão de uma teoria formalizada da liberdade, como é o caso em Kant. Desse modo, compreende-se por que Adorno, mesmo dizendo explicitamente que: “não apenas a razão desenvolveu-se geneticamente a partir da energia pulsional como sua diferenciação: sem algum querer, que se manifesta no arbítrio de cada ato de pensamento e que no entanto fornece o fundamento para sua diferenciação perante os momentos passivos, ‘receptivos’, do sujeito, não existiria nenhum pensamento segundo seu sentido próprio” (Adorno, 1997c, p.229), mesmo assim ele ainda precise dizer de um adendo volitivo para que o âmbito da consciência se transmute em ação efetivamente. Ora, se realmente todo ato de pensamento é movido por ímpeto de vontade, se esta é derivada do complexo de pulsões, e se é preciso conceber um princípio dinâmico para o que transparece na consciência (mas que seja de tal forma não redutível ao âmbito puramente somático, e que tenha também força suficiente para impelir à ação), então este princípio já deveria ser buscado, por assim dizer, internamente à própria vontade (e não como um “adendo”), de tal forma que esta vontade seja uma espécie de expressão ulterior, por assim dizer tardia, de um princípio motor inconsciente, cuja lógica seja anterior a esse resultado final consciente. Esse princípio motor inconsciente diríamos ser a origem de todos os desejos que impulsionam o agir, o sentimento e tudo que ocorre na esfera do pensamento.
Uma das consequências desse posicionamento teórico que propomos é que, se o espírito realmente deve ser concebido, já num primeiro momento em relação a uma suposta natureza reprimida, ele mesmo como expressão dessa natureza, então não se trata propriamente de uma “repressão da natureza para fins de autopreservação”, mas sim de impulsos desiderativos que conflitam entre si, sendo ambos expressão de desejos e prazeres (não necessariamente conscientes) anteriores à constituição do próprio eu. Assim, não está em jogo o exercício de uma força unitária abstrata (do eu) sobre uma multiplicidade indeterminada da natureza. Se, como Adorno diz e seus comentadores não se cansam de reafirmar, é preciso nos lembrarmos da natureza no sujeito, nós diríamos que isso precisa ser feito já ao se pensar que a suposta repressão da natureza interna também é uma forma de expressão de um prazer, de um desejo cuja lógica nos soa incompreensível. Assim procedendo, a figura teórica de um “adendo” perde boa parte de sua razão de ser, pois não faz muito sentido que algo se acrescente quando, na verdade, nunca deixou de existir como realidade íntima, interna e inconsciente no fundamento mais profundo de nossos ímpetos volitivos.
Por fim, cabe fazermos dois apontamentos. O primeiro é uma comparação entre a figura adorniana do adendo e o conceito de pulsão, tal como delineado Freud em seu famoso texto “Pulsões e destinos pulsionais”. Ambos se assemelham por se situarem em um espaço intermediário entre o âmbito consciente e o corpóreo. O adendo, como vimos, é tomado por Adorno como resquício de uma mescla arcaica e indiferenciada entre natureza e espírito, enquanto Freud (1999b, p.214) toma o ímpeto pulsional como “um conceito-limite entre o psíquico e o somático”. Enquanto, porém, o adendo não recebe uma especificação de seus elementos constituintes, nem da dinâmica histórica de sua gênese, a pulsão é concebida por Freud como tendo fonte (os complexos somáticos excitatórios), objeto (aquilo a que a pulsão se dirige para obter satisfação), a pressão [Drang] (a dimensão propriamente estimulante, incitadora, na relação com o objeto) e a meta [Ziel] (a satisfação ou apaziguamento da pressão) (Freud, 1999b, p.214ss.), e tem seu surgimento delineado na história de constituição psíquica individual, ou seja, na travessia dos contatos e trocas corporais com a mãe, o pai e o meio ambiente na primeira infância (Freud, 1999a).
O segundo apontamento diz respeito à crítica de Bernstein à “antropologia especulativa ruim” de Adorno. Ela nos parece válida ao se dirigir ao caráter generalizante com que o filósofo acolhe a teoria psicanalítica, pois os conceitos de inconsciente, pulsão, eu, isso e supereu etc. são inseridos em uma visão por demais desconectada das vicissitudes de constituição do psiquismo, adquirindo de fato um caráter “especulativo”. Por outro lado, o comentador descura da lógica e sentido do procedimento de Adorno, qual seja, fazer uma crítica à dominação de um indivíduo submetido a mecanismos totalitários e totalizantes, que em grande medida absorvem seus conflitos em uma posição resignada, conformista, e terminam por impedir a vivência de sua própria “vida psicológica”:
A psicologia não é nenhuma reserva do particular protegido do universal. Quanto mais crescem os antagonismos sociais, mais evidentemente perde sentido o conceito individualista e totalmente liberal da psicologia. O mundo pré-burguês ainda não conhece a psicologia, e o totalmente socializado, não mais. ( Adorno, 2015 , p.123)
Referências
- ADORNO, Th. W. 1997a. Ästhetische Theorie In: Gesammelte Schriften, vol. 7. Frankfurt a. M.: Suhrkamp.
- ADORNO, Th. W. 2015. Ensaios de psicologia social e psicanálise Tradução de Verlaine Freitas. São Paulo: Editora UNESP.
- ADORNO, Th. W. 1997b. Minima Moralia In: Gesammelte Schriften, vol. 4. Frankfurt a. M.: Suhrkamp .
- ADORNO, Th. W. 1997c. Negative Dialektik In: Gesammelte Schriften, vol. 6. Frankfurt a. M.: Suhrkamp .
- ADORNO, Th. W. 2018. “Ideia de história natural”. In: Primeiros escritos filosóficos Tradução de Verlaine Freitas. São Paulo: Editora UNESP , p. 457-484.
- ADORNO, Th. W. 2006. Zur Lehre von Geschichte und Freiheit Frankfurt a. M.: Suhrkamp , 2006.
- ADORNO Th.W.; HORKHEIMER, M. 1997. Dialektik der Aufklärung Philosophische Fragmente Gesammelte Schriften, vol. 3. Frankfurt a. M.: Suhrkamp .
- BERNSTEIN, J. M. Adorno. Disenchantment and Ethics Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
- COOK, Deborah. Adorno on nature Durham: Acumen, 2011.
- FREUD, S. 1999a. “Drei Abhandlungen über Sexualtheorie”. In: Gesammelte Werke, vol.X. Frankfurt a. M.: Fischer, p. 27-145.
- FREUD, S. 1999b. “Triebe und Triebschisale”. In: Gesammelte Werke, vol.X. Frankfurt a. M.: Fischer , p.209-232.
- JAY, M. 1984. Adorno Cambridge: Harvard University Press.
- JUTTEN, T. 2010. “Adorno on Kant, Freedom and Determinism”. European Journal of Philosophy Malden, p. 1-27.
- LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. 1988. Fantasia originária, fantasias das origens, origens da fantasia Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
- WHITEBOOK, J. Der gefesselte Odysseus. Studien zur Kritischen Theorie und Psychoanalyse Frankfurt a. M.: Campus Verlag, 2009.
-
1
Essa crítica ao procedimento dialético adorniano, porém, pode ser mais própria- e extensamente vista quando se analisa uma porção ulterior dessa parte da Dialética negativa, que não focalizamos nesse texto devido à sua limitação como artigo.
-
2
Estamos considerando que o “universal” referido por Adorno não significa apenas a generalidade gramatical dos conceitos (sua infinidade de referências objetais possíveis), pois é evidente que estes não determinam, por si mesmos, o modo como uma sociedade e seus indivíduos os empregarão. Dentro de uma sociedade regida pela mesma estrutura linguística obviamente há infinitas formas diferentes de concepção de mundo.
-
3
O termo “das Hinzutretende” é uma substantivação da forma gerundiva do verbo “hinzutreten”, que significa juntar-se a alguém ou ir a algum lugar (para fazer algo ou estar presente), tendo a conotação de acréscimo ou suplemento, tal como o verbo “hinzukommen”, tomado como seu sinônimo. A tradução de Marco Antonio Casanova, pela editora Zahar, optou por “o suplementar”; a de E. B. Ashton, da editora Routledge, optou por “the addendum”; a de José Maria Ripalda, da editora Taurus, por “lo adicional”; e a de Sergio Ramírez, da editora Akal, por “lo añadido”. Seguimos a opção de Ashton, “adendo”, que mantém a forma gerundiva (“-ndum”, “-ndo”), bem como utiliza a partícula “ad-”, correspondente a “hinzu” em alemão, que denota acréscimo.
-
4
Nesse momento, é necessário atentar para o fato de que, embora Adorno se refira à natureza, tanto externa quanto interna, como objeto de domínio e fonte de impulsos de ação, não haveria para ele uma natureza absolutamente primeira, totalmente contraposta ao espírito. Em suas “Teses sobre a necessidade”, esse entrelaçamento do social e do natural é afirmado logo no início: “A necessidade é uma categoria social. A natureza, a “pulsão”, está contida nela” (Adorno, 2015, p.229). A ideia de uma história natural, apresentada por Adorno em sua palestra homônima, é talvez o índice mais claro do fato de a natureza ser sempre tomada por ele como ligada a certa historicidade, sendo, por assim dizer, sempre uma natureza segunda, mediada pela cultura, pelos conceitos, pelas formas de pensamento em geral: “A própria natureza é transitória, mas, assim, abriga em si o momento da história. Sempre que o histórico se manifesta, ele é remetido ao natural que nele se desvanece. Inversamente, sempre que a ‘segunda natureza’ aparece — quando aquele mundo da convenção se chega a nós —, ela é decifrada na medida em que se torna claro que seu significado é precisamente sua transitoriedade” (Adorno, 2018, p.475).
-
5
Essas considerações nos permitem concluir que Adorno não tomava o inconsciente com a mesma carga de individualização que Freud, embora concorde com a ênfase do psicanalista na busca pela histórica individual de formação do psiquismo; ambos os aspectos são contemplados nessa passagem: “Segundo a forma, os processos individuais harmonizam-se extremamente bem com o movimento social universal. Em relação a isso, deve-se pensar tanto na constituição pré-individual e indiferenciada do inconsciente de cada um, tal como Freud descreveu, quanto no fato de que são bastante típicos os conflitos que o indivíduo experimenta nas fases iniciais decisivas de seu desenvolvimento, como os que ocorrem entre ele e as agências sociais, tal como a família. Isso foi demonstrado por Freud no modelo do Édipo. Não se deve hipostasiar, de fato, nenhuma consciência ou inconsciente coletivos; além disso, os conflitos se desenrolam por assim dizer sem janelas nos indivíduos e devem ser deduzidos nominalisticamente de sua economia pulsional individual - mas eles possuem forma idêntica em inumeráveis indivíduos” (Adorno, 2015, p.128-9). Por outro lado, ao criticar a sociologização apressada da psicanálise por parte dos revisionistas, particularmente na leitura de Karen Horney, Adorno defende a insistência de Freud em um núcleo inconsciente refratário à colonização total pela sociedade. Esse cerne pré-social implicaria na impossibilidade de uma dominação plena, absoluta, dos indivíduos, representando uma espécie de ponto de ancoragem para a crítica do mundo totalmente socializado, administrado: “É uma convicção fundamental de Horney que o caráter não seja determinado tanto por conflitos sexuais quanto pela pressão da cultura. O que ela oferece como unificação dos determinantes da cultura e da psicologia individual perpetua sua separação, enquanto a psicanálise radical, ao se dirigir à libido como algo pré-social, alcança tanto filogenética quanto ontogeneticamente aqueles pontos em que o princípio social da dominação coincide com o psicológico da repressão pulsional” (Adorno, 2015, p.52-3).
Editado por
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Jan 2025 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
04 Out 2023 -
Aceito
06 Jun 2024