Open-access Identidades e diversidade social: debates sobre nação e multiculturalidade

Identities and social diversity: debates on nation and multiculturality

RESUMO

O artigo examina teorias contemporâneas que privilegiam o tema da diversidade social em relação à questão nacional. Em geral, o questionamento central dessas teorias volta-se contra suposições de homogeneidade que marcaram os arranjos sociopolíticos da modernidade, que tenderiam a gerar desigualdades e opressões a determinados grupos sociais. Para analisar as implicações de tal crítica, o artigo faz uma comparação entre conceitos e direções de duas linhagens teóricas, em particular: o comunitarismo e o multiculturalismo. O argumento desenvolvido sustenta que, embora essas teorias assumam exitosamente o desafio de apontar, desde o último quarto do século XX, para as particularidades de grupos socioculturais e para desigualdades geradas por visões nacionais tradicionais, tendem a expressar algumas tensões quando não se enfoca o caráter constituinte dos debates públicos.

Palavras-chaves:
nação; multiculturalismo; identidades

ABSTRACT

The paper examines contemporary theories that focus on the theme of social diversity in relation to the national issue. In general, the central questioning of these theories turns against assumptions of homogeneity that marked the socio-political arrangements of modernity, which tend to generate inequalities and oppressions to certain social groups. To analyze the implications of such criticism, the article makes a comparison between concepts and directions of two theoretical lineages: communitarianism and multiculturalism. Although these theories successfully assume the challenge of pointing, since the last quarter of the twentieth century, to the particularities of sociocultural groups and to inequalities generated by traditional national arrangements, they tend to incur in some problems if they do not focus on the constituent character of public debates.

Keywords:
nation; multiculturalismo; identities

1 Considerações iniciais

Teorias contemporâneas que tratam da diversidade social tendem, a princípio, a refletir perspectivas contrárias aos aspectos definidores da nação1. Isto porque a identidade nacional, além de estabelecer uma relação dos agentes com instituições políticas demarcadas territorialmente, envolve a suposição de que há crenças e valores disseminados de forma coesa em uma população. Embora as pesquisas históricas definam as nações como construções políticas modernas complexas, para seus ativistas, e para parte do imaginário social, estas representam comunidades compostas de culturas e povos demarcados com limites precisos e bem definidos. Neste sentido político específico, são tidas por fatos pré-políticos, até mesmo anteriores à constituição dos Estados aos quais se vinculam e que lhes dão unidade e suporte2.

Contra tais visões de homogeneidade e unidade, diferentes teorias multiculturalistas destacam que a identidade nacional não é primordial, ou seja, uma filiação inalterável herdada de modo similar por todos os indivíduos e que condiria com um conjunto de práticas e costumes perenes. Essas reflexões sinalizam para a heterogeneidade dos espaços nacionais, que reproduzem relações de poder e desigualdade entre diferentes grupos. Nesse sentido, a nação não seria uma substância, mas um conjunto de tendências que seguem diferentes direções, de modo que cada geração populacional tem que reconstruir sua identificação, selecionando quais características importam ou não (Parekh, 2008). Além disso, as nações dependeriam de decisões políticas que geram vantagens ou desvantagens a certos grupos sociais. Na medida em que competiriam nas nações diferentes grupos e visões de boa vida, algumas seriam selecionadas e outras excluídas, impondo-se certa visão de unidade e neutralidade que manifestam uma cultura dominante e seus consequentes benefícios parciais.

Importante notar que essas críticas contemporâneas têm relações com discussões teóricas já reconhecidas e amplamente debatidas, que também indicavam, embora enfatizem variáveis diferentes, o caráter conjuntural e não essencialista das nações: 1) como na ideia de tempo vazio e homogêneo de Benedict Anderson (2008), baseada em “horizontes sociológicos” representados por instituições e lugares reconhecidos; 2) na obra de Ernest Gellner (1993), que relaciona nação com processos de industrialização e grande aparatos educacionais que engendraram ambientes socioeconômicos estáveis; 3) na tese de Miroslav Hroch (2000) de laços culturais obscuros, não diretamente racionalizáveis, que constituem a nação como um corpo único; 4) ou na análise de Charles Tilly (1996), que relaciona a questão nacional com a concentração de meios de coerção resultantes da formação dos Estados modernos.

Todavia, o diferencial de novas teorias contemporâneas sobre a questão nacional é o enfoque mais preciso na temática política da diferença. Buscando sinalizar diversidades socioculturais internas inexoráveis, novas teorias questionam os modelos nacionais de assimilação ou cidadania que buscam, implícita ou explicitamente, apagar diferenças via direções políticas verticalizadas. Além disso, demandam que não se trate todas as pessoas e grupos - diferentes quanto ao gênero, cultura, raça, etnia, sexualidade, geração, dentre outros fatores - com os mesmos princípios e regras, o que justificaria múltiplas políticas particulares, como, por exemplo, proteção cultural a grupos, leis contra racismo e discriminações, direitos especiais de representação, poderes específicos de veto, subsídios grupais e variados modelos de ação afirmativa (Modood, 2000).

Nos limites deste artigo, propomos analisar os questionamentos desenvolvidos por duas correntes teóricas específicas, que refletem demandas políticas de grupos no contexto histórico contemporâneo: o comunitarismo e o multiculturalismo. A ideia central é, porém, destacar uma espécie de comparação individualizante, de modo a ressaltar questões e concepções vinculadas especialmente ao paradigma multiculturalista, que tem alcançado até o momento maior difusão na prática política e recepção intelectual dentre essas duas vertentes. Portanto, analisamos inicialmente o debate entre o comunitarismo e o multiculturalismo, destacando as críticas deste último a teses de unidade sociocultural expostas pelo comunitarismo. Posteriormente, apresentamos o debate mais específico de autores(as) multiculturalistas sobre a questão nacional. Selecionamos três pensadores mais divulgados da vertente: Iris Young, Bhikhu Parekh e Will Kymlicka. Além de mostrar diferenças, o objetivo desta seção é indicar como, por um lado, essas teorias questionam o arranjo nacional, mas, por outro, o supõem como ambiente possível de acomodação das diferenças. Argumentamos que tal posição concomitante de espaço de poder cultural e de luta expressa, por sua vez, tensões teóricas, pois compreende dimensões difíceis de serem articuladas, e que dizem respeito, sobretudo, a como constituir um arranjo multicultural baseado na diversidade, mas integrado. Finalmente, na última seção, notamos virtudes e possíveis limites de dimensões analíticas e normativas mais gerais das teorias contemporâneas aqui examinadas. Consideramos, fundamentalmente, que uma via teórica adequada para tratar a diferença no contexto nacional pede uma concepção dinâmica de cultura e a ênfase no caráter constituinte dos debates públicos sobre as identificações.

2 Comunitarismo, unidade nacional e a questão da diversidade

A fim de entender adequadamente o tratamento da questão nacional dado por vertentes do multiculturalismo, sobretudo para contextualizá-lo no debate das teorias políticas contemporâneas, cabe perceber as aproximações e questionamentos que fizeram em relação ao comunitarismo, corrente com a qual têm debatido há vários anos. Mais precisamente, nos parece relevante analisar como pensadores multiculturalistas incorporaram algumas críticas comunitaristas a teses individualistas e de neutralidade do liberalismo para, a partir daí, pensar a nação em bases diferentes, em que assimetrias socioculturais e a heterogeneidade são assumidas como princípios analíticos e normativos.

Em boa medida, os(as) autores(as) multiculturalistas relacionam aspectos de suas teorias a argumentos expostos no debate comunitarismo-liberalismo que marcou o campo da filosofia política nos anos 1980 (Taylor, 2000; Miller, 2005). As perspectivas multiculturalistas apropriam-se, fundamentalmente, de duas críticas comunitaristas: 1) o questionamento dos ideais de neutralidade que envolveriam os Estados nacionais; 2) a discordância em relação à categoria de sujeito da tradição liberal, que pressupõe indivíduos autossuficientes. Centrais para os argumentos multiculturalistas sobre a nação, essas duas críticas sinalizam limitações dos fundamentos morais do liberalismo ocidental, muitas vezes tidos como universais, assim como a necessidade de observar outros modos de vida e práticas sociais.

Todavia, autores(as) com perspectivas comunitaristas enfatizam a importância da unidade social. A despeito das diferenças de suas teorias, destaca-se a crítica aos pressupostos individualistas que não observariam a importância dos laços comunitários na formação identitária dos agentes. Além disso, defendem políticas de valorização das comunidades, em que a identidade nacional ocupa importante papel.

Bell (1993), por exemplo, resgata a noção de “comunidades de memória” a fim de atentar para a importância de uma história compartilhada por várias gerações e a definição um futuro coletivo. Uma suposição central é que os indivíduos se obrigam emocionalmente a manter os ideais de bem comum, unindo seus destinos a de seus antepassados e aos da nação. Bell relaciona tal ênfase à reflexividade dinâmica embasada nos valores centrais de uma sociedade. Dessa forma, a proposta normativa não seria tradicionalista, mas estaria em movimento, dependendo do reconhecimento ativo dos fatos históricos. O vínculo coletivo tornaria a nação uma identidade mais coesa do que as articuladas a princípios universais de justiça ou classes e explicaria por que revoltas políticas se desenvolvem geralmente em bases nacionais.

A importância de valores e práticas de uma sociedade se expressa também em Charles Taylor (2000), que une seu questionamento da lógica atomista liberal à ênfase na reflexão sobre o compartilhamento de valores e sobre a definição social de concepções de bem. Relacionando seu argumento ao de certa tradição cívica-humanista, Taylor nota o caráter mediado e dialógico de várias noções de boa vida, tendo a nação papel central na caracterização de uma “identidade-nós”. Nesse sentido, o próprio partilhar tem valor, o que acaba por submeter a escrutínio as relações de identidade e de comunidade e a estimular o patriotismo em diferentes sociedades. Diferente da identidade-eu, o processo de identificação requer a resposta à pergunta “de onde viemos?”, e define gostos, desejos e opiniões, tornando outros sujeitos parte da identidade individual.

De forma similar, Sandel (1982) chama atenção para o erro da tese atomista embasada na neutralidade pública que impede a percepção das fundações sociais que constituiriam a todos. Valorizando apenas condições individualistas, um dos problemas de perspectivas liberais, como a de Rawls, seria uma concepção de identidade e espaço público que exclui dimensões intersubjetivas. O autor ressalta a variedade de instituições sociais que promovem formas de fraternidade e benevolência, e cita exemplos de comunidades étnicas, nacionais, religiosas ou culturais que expressam propósitos comuns contrários à primazia da justiça e às relações de agentes isolados voltados para seus interesses próprios. As escolhas e entendimentos seriam, necessariamente, situados historicamente em comunidades políticas, o que implica concepções de bem constituídas socialmente (Walzer, 1983).

David Miller (2000) indica a identidade nacional como componente de pertencimento que deve ser destacado pelas instituições políticas e sociais de uma determinada comunidade. O autor pretende defender certa ideia de nacionalismo baseada em três princípios: a nação enquanto pertencente à identidade de alguém (uma pessoa que se afirma com base em tal nacionalidade, por exemplo); a nação enquanto comunidade ética (em que devemos mais a conterrâneos do que a membros de outras comunidades); e o preceito político da comunidade como instituição autônoma que representa a nação.

Miller argumenta que a identidade nacional opera em uma ética particularista, que entende o comprometimento moral da comunidade política a partir do pertencimento coletivo nacional. Importante ressaltar que a perspectiva não denota uma prática comum a todos os sujeitos do território, tampouco a visão de que nossos objetivos devem ser plenamente coletivos, mas sim destacar o espaço fundamental de significados compartilhados pela sociedade.

Contudo, embora se aproximem em algumas teses, o exame da questão nacional nessas reflexões comunitaristas diferencia-se substantivamente da linhagem multiculturalista, o que reflete a singularidade da última no que concerne a questão da diversidade e, por sua vez, o desafio que multiculturalistas enfrentam quando buscam articular diferença e unidade social nos ambientes nacionais. A seguir, analisamos as reflexões multiculturalistas de Bhikhu Parekh, Iris Young e Will Kymlicka, buscando mostrar formas variadas de articular diferença e unidade nacional que trazem novos elementos para o debate teórico contemporâneo, sobretudo a reflexão das possibilidades de constituição de um arranjo multicultural dialógico e integrado.

3 Multiculturalismo, política e cultura: desafios de unir diferenças e unidade

Como notado acima, abordagens multiculturalistas assumem parcialmente alguns argumentos comunitaristas, em particular as críticas a teses liberais sobre a racionalidade e individualismo, além da atenção para a constituição social dos agentes. Contudo - e o que particularmente nos interessa nos limites específicos aqui definidos -, há uma questão essencial que separa reflexões multiculturalistas das comunitaristas. Os pressupostos multiculturalistas não se coadunam com as suposições de uma identidade nacional basilar que seria explícita ou, se não manifestada abertamente, estaria dormente.

Além disso, enquanto teses comunitaristas buscam assinalar que a maioria dos cidadãos se identifica adequadamente com as práticas das comunidades e Estados-nações (Bell, 1993), teorias multiculturalistas ressaltam que as nações são constituídas em boa medida por grupos minoritários que desafiam concepções unitárias de seus arranjos socioculturais. Nesses casos, seria relevante notar os prejuízos causados quando se incorporam acriticamente alguns modelos nacionais.

Segundo teses multiculturalistas, embora não seja fácil revisar sentimentos e valores, tal direção deve permanecer aberta, pois novas experiências podem revelar que crenças muitas vezes promovem opressões (Kymlicka, 1995). Isto requereria pensar a nação em outros termos, não como espaço de compartilhamento rígido de valores sugerido em geral nas tradições liberal e comunitarista, mas como contexto de reconhecimento da diversidade, pois nenhum arranjo sociopolítico poderia se sustentar com a suposição de que todos possuem a mesma experiência e valores comuns. Young (2011) assinala que tanto o comunitarismo quanto o liberalismo negariam a diferença e buscariam transformar a pluralidade em unidade: enquanto o liberalismo supõe um eu autossuficiente que se relaciona com outros via direitos compartilhados em arranjos nacionais, o comunitarismo aposta no ideal de sociedades homogêneas em que os agentes se fundem em uma totalidade harmônica.

Portanto, autores(as) multiculturalistas ressaltam a heterogeneidade de nossas afiliações, dentre as quais a nação parece ser a mais problemática. Contudo, mesmo que a nação tenda a reproduzir imaginários de uniformidade, as teoria sugerem que ainda não haveria solução para os problemas das desigualdades e opressões sofridas por grupos minoritários fora do moderno ambiente institucional nacional, o que gera questões teóricas e normativas que passaremos a destacar a seguir.

Os trabalhos de Bhikhu Parekh (2000; 2008) são exemplares para revelar a complexidade do tratamento multiculturalista da nação. Em suas primeiras obras, o autor tende a tratar a nação como subproduto do aparato estatal e, portanto, como instância a impor uniformidade e a subordinação de outras identidades, pois o Estado moderno e a nação só fariam sentido se articulados a sociedades culturalmente homogêneas ou em vias de assim se tornarem. Segundo Parekh (2000), devido à ausência de problematização dessa tese, o Estado-nação acabaria por se tornar sinônimo de opressão e injustiça em contextos sociais multiétnicos ou multinacionais.

Em obras posteriores, porém, Parekh (2008) apresenta uma análise mais matizada da questão e concede que seria impossível, mesmo no contexto de interações globais, o abandono das filiações nacionais. Nesse sentido mais tardio, pressupõe-se que os indivíduos necessitam de uma caracterização ampla da comunidade da qual fazem parte, tendo a nação relevante papel nessas reflexões. Certas exigências deveriam, então, ser satisfeitas. Primeiramente, embora não possa ser neutra, a nação deve respeitar a diversidade cultural e étnica, assim como variadas visões de mundo. Em segundo lugar, a identidade nacional não deve ser dogmática e nem ter peso moral-político excessivo. Em terceiro lugar, as preocupações nacionais deveriam ser domésticas, com a renúncia de intenções imperialistas ou de interesses de corporações econômicas. Finalmente, o conteúdo nacional não deveria partir das elites, mas surgir de debate democrático que represente a variedade das visões e demandas de seus cidadãos.

Parekh (2008) critica os antigos modelos de assimilação que ainda vigoram em construções nacionais e que impedem contextos dialógicos. O autor assinala que esses projetos reproduzem o sentido de mão única em que os custos da integração recaem apenas a determinados grupos sociais. Consequentemente, geram injustiças, instabilidade social e contestações, que só podem ser sanadas por um processo de integração com múltiplas variáveis, em que grupos ou minorias se acomodem em alguns pontos, mas preservem suas particularidades culturais em outros.

Parekh (2008) argumenta que sociedades multiculturais necessitam de uma cultura compartilhada, embasada em esferas públicas com elevado grau de diálogo. Segundo o autor, caberia ao Estado instituir níveis progressivos de igualdade, estabelecendo condições adequadas de diálogo que respeitem a diversidade. A unidade nacional resultante não seria formal ou neutra, com a demarcação predeterminada de esferas pública e privada. Pelo contrário, seria uma unidade que se embasa na diversidade, composta de camadas de valores que se sobrepõem, refletindo tanto uma unidade dialógica acima das diferenças quanto a capacidade de viver com seus desacordos.

O projeto nacional baseado na diversidade seria viável por um “contrato moral” (Parekh, 2008) que tenderia a diminuir, a longo prazo, as diferenças. Importante notar que a ênfase de Parekh no contexto dialógico toma outra dimensão em sua obra tardia, pois a integração nacional suposta se desdobra em um sentido normativo que recupera argumentos de imparcialidade e neutralidade. Assim, entende-se que se as políticas multiculturalistas são as únicas a possibilitar a percepção - e posterior mudança - de critérios discriminatórios entre grupos que reproduzem vantagens e desvantagens, seriam apenas elas que também poderiam criar critérios políticos cegos às diferenças. Para tal fim, tais políticas devem visar a criação de laços interétnicos e estimular hábitos de confiança e cooperação. Portanto, a dimensão normativa da teoria de Parekh sugere uma identidade cívica que transcende, em grau substantivo, as diferenças, formando uma identificação nacional multicultural. Daí a tensão que se refletirá também em outros(as) autores(as): mesmo inexoravelmente heterogênea, a nação continua sendo suposta como único espaço institucional abrangente possível para a acomodação das diferenças.

Em relação a Parekh, os trabalhos de Iris Young (2010; 2011) apresentam similaridades, como a ênfase normativa no diálogo, mas algumas diferenças, sobretudo pela maior problematização da dimensão nacional na obra da autora. Young centra sua análise na questão da justiça, o que, por sua vez, define um tipo de teorização que transcende o âmbito da nação. Por conseguinte, a questão nacional deveria estar subordinada a um espaço público cosmopolita que permitisse o debate pleno de desigualdades e opressões.

Deve-se atentar, todavia, para uma mudança relevante nos trabalhos de Young. Em suas primeiras obras, a autora pouco desenvolve temáticas específicas sobre a nação e prefere destacar como parâmetro normativo um ideal de urbanidade (Young, 2011). No seu entender, tal direção poderia contrapor-se tanto ao ideal comunitarista de uniformidade quanto ao individualismo liberal. Em uma definição simples, a vida na cidade poderia ser tida por “uma forma de relações sociais que defino como a conjunção de desconhecidos” (Young, 2011, p. 237). A consequência central é que, por um lado, as interações e as instituições não se dissolveriam numa unidade. Por outro, ao contrário do que muitos críticos supõem, os sujeitos de contextos políticos multiculturalistas não se isolariam em enclaves, pois a cidade força a articulação das pessoas nos limites sobrepostos de suas fronteiras e a participação em espaços públicos.

Nesses primeiros trabalhos, Young sugere que a nação, ao contrário da urbanidade, estimularia uma “lógica da identidade” (Young, 2011, p. 97-99) limitadora, pois reduziria a complexidade dos fatos a uma unidade, classificando-os como condizentes ou não com parâmetros que inibem a participação política de grupos minoritários. De modo geral, a lógica da identidade trata os fatos e entidades como essências, em vez de processos ou relações. A consequência mais problemática para a autora, dado o pressuposto de um público homogêneo, seriam os processos de exclusão que isolam a diferença e as perspectivas minoritárias nos espaços de deliberação.

Nos seus textos mais tardios, Young (2010) passa a incorporar mais diretamente a temática nacional. Nos momentos em que concede, originalmente, certa importância positiva à nação, suas instituições aparecem vinculadas a duas funções precisas. Em primeiro lugar, a nação poderia servir para frear possível homogeneização cultural proveniente de uma governança global. Em relação ao contexto interno e local, por sua vez, a identidade nacional poderia estimular obrigações especiais de justiça entre conterrâneos.

Entretanto, para além dessas vantagens pontuais, a dimensão nacional refletiria problemas substantivos. Seguindo sua crítica anterior às lógicas da identidade, Young (2010) propõe em seus trabalhos tardios a concepção de “povos distintos” no lugar de nação, pois a seu ver tal conceito manifestaria mais adequadamente a ontologia relacional dos processos de identidade. Ao contrário de basear-se em parâmetros essencialistas que separam um “dentro” e um “fora”, a autora busca ressaltar a dimensão interativa das identificações, em que o papel do outro em suas diferenças se torna tão central quanto a afirmação das similaridades dos grupos sociais. Young nota que as relações internas e externas dos grupos e sociedades estão em constante movimento, o que as diferencia das narrativas estáticas das identidades nacionais: “conceber a diferenciação de grupos como uma função de relação, comparação e interação considera, então, sobreposição, entremeamento e interdependência entre grupos e seus membros” (Young, 2010, p. 91).

No sentido normativo, Young (2010) argumenta que a justiça não pode se basear em sentimentos de identificação ou afinidade nacional, pois pode excluir o plano exterior e grupos com os quais a maioria julga não compartilhar laços culturais. Promover a própria identidade não deveria servir para circunscrever obrigações de justiça apenas aos concidadãos, pois tal direção atentaria contra territórios multinacionais ou contra grupos que podem estar em desacordo com a uniformização projetada. Para além de sua suspeita em relação às suposições ontológicas da identidade nacional, problemático para Young seriam as consequências políticas da definição de soberania a demarcar determinado território como de jurisdição exclusiva, o que limitaria a luta contra opressões e ofuscaria conflitos territoriais. Assim, fazer justiça à diversidade requer ir além das fronteiras, construindo redes transnacionais de solidariedade que não reproduzam tradições excludentes (Young, 2010).

Os questionamentos de caráter normativo de Young se diferenciam das potencialidades dos arranjos nacionais que Parekh percebia em seus últimos trabalhos, desde que dialógicos e articulados a uma postura cosmopolita. Portanto, subsiste ao longo da obra da autora os argumentos normativos relativos à necessidade de preservação do espaço social da diversidade e a desconfiança perene dos arranjos nacionais, mesmo quando concede alguma relevância quanto ao papel da justiça nas instituições nacionais em suas obras tardias.

Outro autor importante da linhagem multiculturalista, Will Kymlicka (1995), busca recuperar a dimensão nacional em sentido singular, pois a vincula a contextos de escolhas individuais, e inclusive faz críticas ao tratamento da questão, a seu ver incipiente, em outras perspectivas multiculturalistas. A aposta normativa de Kymlicka (2010) de unir nação e multiculturalismo baseia-se na defesa de um contexto de autonomia em que os agentes possam escolher e revisar, caso achem necessário, suas identidades.

Kymlicka está distante, diferentemente de Young, da ideia de que o pertencimento nacional implica a atribuição rígida de identidades e deveres aos indivíduos. Embora reconheça a existência de contextos em que a xenofobia, exclusões, violências e expansionismo se fazem presentes, Kymlicka (1995) ressalta a experiência positiva de arranjos nacionais democráticos que respeitam a diversidade. Assim, dadas algumas condições, as nações podem ser arranjos culturais exemplares para um contexto de autonomia individual. O autor busca aliar a nação a um entendimento original de cosmopolitismo baseado nas capacidades reflexivas dos agentes, única possibilidade de se preservar a multiculturalidade das sociedades contemporâneas.

Kymlicka prefere usar o termo “Estados nacionalizantes” (Kymlicka, 2010, p. 229) a Estado-nação, dado que o primeiro sugere um processo de construção, além de refletir tanto projetos exitosos quanto territórios em que a identidade nacional é desafiada por grupos e deve ser repactuada. O autor (2011) afirma que um modelo ideal de cidadania nacional deve estar atento para certas perspectivas multiculturais de como lidar com a inclusão, e que a ideia de promover uma cidadania em comum apresenta problemas quando assume perspectivas assimiladoras e excludentes.

Porém, é preciso compreender que as demandas das minorias nacionais não visam a suspender por completo as problemáticas envolvidas com identidades hegemônicas. Na realidade, o que se oferece é uma estrutura que possa lidar com complicadores da questão, em que o elemento não é construir uma concepção de cidadania que seja calcada na defesa de uma identidade única, mas analisar a nação enquanto multinacional. Indagações acerca da legitimidade do poder dessa comunidade hegemônica sobre as minorias são o fundamento a partir do qual este arranjo multicultural deve se constituir.

A saída, que contornaria a contradição entre um “nacionalismo de Estado” e possíveis “nacionalismos de minorias” (Kymlicka, 1995, p. 189), seria a construção de um arranjo efetivamente multinacional baseado em duas direções políticas. Em primeiro lugar, dado que o problema das minorias nacionais - que, em geral, foram conquistadas no processo histórico de constituição estatal - seria incontornável, restaria a solução de arranjos federais compostos de povos com variados graus de autogoverno, de modo que grupos consigam obter, por exemplo, formas limitadas e negociadas de controle sobre língua, educação, imigração e desenvolvimento econômico. Kymlicka propaga, como uma possível solução, um “federalismo multinacional”, modelo de autonomia governamental para minorias nacionais que pode acomodar suas demandas mantendo-as dentro de um Estado mais amplo, oferecendo relação mais igualitária entre minorias e maioria, além de melhorar aspectos da participação política, de reconhecimento e das liberdades individuais. Segundo Kymlicka (1995), não haveria alternativa a não ser acomodar as minorias nacionais via graus de autodeterminação, pois a imposição de uma cultura hegemônica apenas promoveria alienação ou movimentos separatistas.

Em segundo lugar, em relação às minorias internas constituídas a partir do processo de formação nacional, como os imigrantes, o autor defende a criação de modelos de integração baseados em “culturas societais” (2010, p. 95), definidas por línguas compartilhadas e instituições legitimadas pela população. Kymlicka lança mão dessa concepção de modo a se distanciar de uma compreensão de cultura como uniformidade de valores ou estilos de vida. Toda cultura societal seria, necessariamente, pluralista e fundamentada na diversidade, com liberdades e direitos individuais garantidos, ao mesmo tempo em que manteria certa unidade linguística e institucional. Entendida de forma tênue, a difusão de uma cultura societal não implicaria imperialismo cultural ou opressões, mas satisfaria importantes metas nacionais, como inserção econômica geral e desenvolvimento de solidariedades.

O fato de ressaltar direitos poliétnicos não faz com que Kymlicka abandone a defesa de um arranjo político que, em algum grau, mantenha padrões específicos de neutralidade. Cabe notar que há aqui um sentido normativo paralelo às propostas de Parekh de um multiculturalismo que se direciona para políticas universais. Os direitos específicos de grupos gerados para acomodar as diferenças aparecem, então, como mecanismos que se somam ao quadro jurídico universal dos Estados. Além disso, tais direitos devem ser implementados apenas se notados certos fatores de dominação, particularmente se as instituições vigentes tendem a reproduzir os interesses e identidades dos grupos hegemônicos ou não possibilitam o reconhecimento de grupos minoritários (Kymlicka, 2010). Tal cuidado seria importante a fim de que os direitos de grupos específicos sejam consistentes com os requisitos de uma democracia liberal estável, incluindo uma identidade compartilhada com graus gerais de acomodação, mas também sacrifícios por parte dos indivíduos e grupos (Kymlicka, 1995).

Portanto, embora cada teoria tenha suas particularidades, o tratamento da questão nacional nas teorias multiculturalistas reflete tensões entre um sentido de acomodação e outro de manutenção das diferenças. Possíveis divergências parecem resultar, sobretudo, da combinação da política moderna de igual dignidade embasada em direitos fundamentais definidos nacionalmente com as demandas contemporâneas de defesa cultural de grupos (Taylor, 2000). Importante notar que, em boa medida, o sentido de tais tensões parece provir das tentativas de autores(as) multiculturalistas em responder aos ataques que sofreram desde a década de 1980, a saber, que suas teorias estimulariam a dissolução das sociedades ou das nações em benefício de enclaves socioculturais isolados e sem comunicação, como expresso na ideia de “sociedades-mosaico” (Benhabib, 2002). É a partir de meados dos anos 1990 que as reflexões multiculturalistas passam a articular, como visto acima, as dimensões da integração (e da nação) e das diferenças, o que gera algumas questões analíticas e normativas mais precisas que destacaremos a seguir.

4 Multiculturalismo: tensões entre diversidade e arranjos de unidade nacional

Embora as reflexões multiculturalistas incorporem do comunitarismo a crítica aos modelos de neutralidade política e autonomia individual, o multiculturalismo destaca singularmente a assimetria social dos sujeitos e diferenças inexoráveis presentes nos contextos nacionais. Assim, explicita problemas da ideia de nação em unir o sentido político de direitos comuns gerais - que perpassa as teses mais tradicionais da nação, preocupadas sobretudo com a institucionalização política em um território3 - ao tema da identidade cultural, que desde a segunda metade do século XIX passa a se tornar central nos imaginários nacionais (Breuilly, 2000; Hobsbawn, 2000).

O sentido político de construção nacional manifestado nas reflexões multiculturalistas revela um diálogo importante com preocupações similares de linhagens do liberalismo nacional, como na obra David Miller (2011), que dialoga com as percepções de Kymlicka sobre a necessidade de instituições específicas para lidar com nações multinacionais. Miller argumenta que é necessário elaborar formas de conexão entre a identidade hegemônica e as minorias, componente fundamental para sua percepção de seu nacionalismo liberal, já que sem esta característica não haveria justificativas plausíveis para que se mantenha a identidade nacional de um país. A questão é, portanto, de que forma os sujeitos devem ser compreendidos nesse contexto, e quais elementos identitários devem compor a nação. Miller (2011) concorda que não se deve apenas destacar características cívicas desse pertencimento, pois é importante estabelecer laços culturais com todos os grupos. Quando a identificação é realizada com as minorias, são necessários certos componentes que construam o grau de comprometimento para manter a coesão do Estado multinacional.

Todavia, embora haja este importante destaque da construção política nacional, com um esforço a incorporar as diferenças, alguns problemas teóricos e analíticos permanecem abertos. Perspectivas comunitaristas e multiculturalistas não resolvem de maneira unívoca tensões entre a imagem de unidade da nação e as percepções da diferença. A linhagem comunitarista não questiona pressupostos de unidade social problemáticos dos arranjos nacionais para os quais o multiculturalismo apontou. Em contrapartida, quando as teorias multiculturalistas passaram a abordar diretamente as temáticas da nação e da integração, manifestam a nosso ver duas direções teóricas: uma consistente e outra que parece imprecisa.

Primeiramente, por um lado, as teorias multiculturalistas expressam propostas analíticas fecundas que concebem as identificações nacionais de maneira plural e em movimento constante de construção, questionando visões fixas que se desdobram em “lógicas da identidade”. Assim, as nações são concebidas distantes da uniformização comumente imaginada por movimentos nacionalistas e são tidas por produtos passíveis de serem desafiados por grupos sociais, que reconstroem as relações entre Estado e sociedade civil, além de redefinirem as proclamadas fronteiras entre o público e o privado. Em geral, a meu ver de forma exitosa, essa direção analítica parece consistentemente desenvolvida nas reflexões multiculturalistas, ainda que cada uma à sua maneira. Os(as) autores(as) seguem um vasto conjunto de trabalhos que entendem a nação como uma agência histórica, como nas obras exemplares de Anderson e Gellner, embora se diferenciem destes quando questionam a imaginação de homogeneidades socioculturais. Além disso, nesta sinalização da heterogeneidade, aproximam-se de outro conjunto de teóricos (Bhabha, 2004; Chatterjee, 2004; Hall, 2000) que examinam as possíveis dimensões de poder social e violência simbólica nas formações nacionais.

Por outro lado, pode-se notar em vertentes multiculturalistas uma perspectiva normativa problemática de articulação entre identidades sociais e contextos dialógicos-deliberativos. Como notado na seção anterior, Parekh reforça ao longo de sua obra a necessidade de diálogos interculturais como mecanismos centrais da constituição de arranjos democráticos. Em sentido similar, Young (2011) ressalta o ideal da democracia deliberativa a incluir genuinamente todos os grupos potencialmente afetados por decisões políticas. Contudo, há que se notar dificuldades nesses entendimentos normativos. Interessante que elas decorrem da reprodução, conquanto distinta, de teses comunitaristas que o multiculturalismo se esforçou em questionar, particularmente noções de neutralidade política, no caso de Parekh e Young, ou que refletem ontologias individualistas, em relação a Kymlicka.

A despeito de apontar a inexorável diversidade das sociedades contemporâneas, Parekh (2008, p. 87-89) acaba por sugerir um “sistema comum de direitos e obrigações” com alguns aspectos semelhantes aos modelos de neutralidade criticados por sua teoria. Essas contradições ficam explícitas quando o autor supõe, como fundamento do debate público, um “equilíbrio imparcial” (Parekh, 2008, p. 234-238) de posições baseado na empatia e numa identificação geral. Young (2010), por sua vez, vincula sua proposta deliberativa a uma noção de objetividade que se revela também imprecisa, pois aponta para uma concepção de justiça de bases universais que contradiz certo nível de incomensurabilidade das diferenças e experiências existentes. Permanecem incongruentes as relações entre a pluralidade dos contextos sociais e os possíveis consensos constituídos nos espaços públicos. Tais tensões revelam mais uma vez as dificuldades de congregar a proposta normativa de acordos generalistas com a tese de contextos marcados pela diversidade.

Os trabalhos de Kymlicka manifestam maior ênfase normativa na autonomia e liberdade individuais, o que torna suas direções ainda mais difíceis de lidar com os contrastes entre unidade nacional e diferenças. Quando busca conciliar nacionalismo e visões cosmopolitas, Kymlicka não parece definir adequadamente as relações entre o compartilhamento de uma mesma identidade, que constitui afinal a particularidade da nação, e a questão individual. O autor (2010) incorre em uma definição imprecisa para resolver o dilema teórico entre suposições de socialização abrangente, base da unidade sociocultural, e pressupostos de agência que sinalizam certa independência dos cidadãos em relação a suas nações. Problemática seria, sobretudo, a noção de um ponto reflexivo que possibilitasse aos sujeitos a revisão de suas filiações. Quais seriam, porém, os limites das culturas societais que devem se impor, segundo o autor, sobre os indivíduos a fim de que as diferenças se acomodem? Kymlicka (1993) critica os abusos de comunitaristas no uso de noções fortes de condicionamento social sobre os agentes, mas sugere concomitantemente as teses problemáticas de que a integração ocorrerá inevitavelmente nas sociedades multiculturais e que as políticas servem a uma acomodação transitória (Kymlicka, 2010). Entretanto, frente à liberdade de agência suposta, não parece consistente prever tal direção, pois não haveria impedimentos para que indivíduos ou grupos possam desafiar a nação e defender novos arranjos políticos.

5 Considerações finais: arranjos nacionais, diferenças e a política como campo aberto de identificação

Uma saída para os dilemas analíticos ou normativos do multiculturalismo e do comunitarismo que buscamos apresentar aqui pode se situar no destaque teórico dos processos de constituição identitária que ocorrem no próprio processo político. Quando se enfoca não apenas o momento anterior, mas sobretudo os encadeamentos políticos, a dimensão sociocultural dos contextos nacionais, junto a sua diversidade, pode ser vista também como resultado da realidade política e não mero reflexo de instâncias estruturais prévias que seriam efetivamente fundamentais (Bhambra, 2007). Nesse sentido, seria central atentar para o caráter mobilizador e transformador das relações políticas, o que implica a possibilidade de reavaliações ou mudanças das identidades originais de grupos em direções variadas.

No caso singular da questão nacional, importante observar que, embora os nacionalismos frequentemente manifestem concepções estáticas de sociedade, as culturas que as embasam são tanto um constrangimento quanto construções abertas, situadas entre condicionamentos sistêmicos e processos públicos-políticos criativos. É importante notar que, historicamente, o imaginário nacional assumiu formas muito diversas, e serviu tanto a projetos autoritários quanto a programas de independência e/ou nacional-desenvolvimentistas de cunho progressista.

A nação pode ser entendida, portanto, como um significante vazio a refletir, dependendo da mobilização específica em questão, “lógicas de equivalências” (Laclau, 2011) capazes de gerar mudanças e inclusão. Nesse sentido, cabe notar os entendimentos sobre a questão nacional que ressaltam sua viável dimensão de vontade popular mobilizada politicamente, como as concepções de pensadores do século XVIII e XIX que enfatizavam as potencialidades públicas dos projetos nacionais (Breuilly, 2000; Hobsbawm, 2000; Kramer, 1997). Ainda que essa dimensão pública tenha desde o século XX se enfraquecido - que muitas vezes, pelo contrário, passaram a refletir sobretudo concepções politicamente verticalizadas -, suas potencialidades se manifestam, por exemplo, em movimentos de libertação nacional e identificações populares que se basearam em significantes abrangentes.

Cabe notar que alguns(mas) autores(as) vinculados(as) às discussões multiculturalistas já assinalam a importância desse sentido político a fim de atenuar as tensões entre unidade e diferença. Modood (2007), por exemplo, questiona a forma predeterminada de integração que várias teses multiculturalistas seguem quando sugerem um modelo social a ser seguido universalmente. A única maneira de superar os problemas de uma direção “objetiva” ou imparcial - que na verdade acabaria por transformar o multiculturalismo em um novo modelo de assimilação que tanto criticou - seria defender debates de fato abertos sobre as identidades nacionais.

A proposta de um “multiculturalismo sem cultura” de Anne Phillips (2007) segue direção similar, embasada no dinamismo político e no debate público plural. A ideia da autora é enfatizar a contextualização política dos conflitos da diferença, o que revelaria as mudanças dos grupos e identidades quando expostos às esferas públicas. Seria a inserção política - com sua lógica própria de discussão, negociação e compromissos - que impediria grupos ou indivíduos de reproduzirem identidades essencializadas e estimularia reflexões sobre valores próprios e de outros.

Portanto, seria proveitoso também entender a cultura como identidade política ativa, concebível como promotora de variadas formas de solidariedade e de significantes coletivos. Políticas multiculturalistas ou comunitaristas só fazem sentido se arranjos políticos e identitários abrangentes lhes derem suporte. Não demandamos reconhecimento de pessoas ou grupos estranhos a nós, mas àqueles com os quais nos identificamos como membros de comunidades mais amplas, como a nação (Miller, 2005). Ainda que, por um lado, frequentemente reflita construções hegemônicas que reproduzem opressões e desigualdades, como bem sinaliza o multiculturalismo, as culturas que embasam o imaginário nacional podem ser, por outro - a depender do grau de organização dos grupos e associações políticas -, locais de concepções sociais e históricas criativas, que podem ser até modernas, mas não ocidentais, ou que redefinem formas de negociação entre grupos e outras nações (Chatterjee, 1993). Parece ser importante buscar, nesses casos, manifestações das ambivalências culturais assinaladas por Bhabha (2004) entre uma narrativa pedagógica que busca encerrar os agentes em identidades estáveis e uma articulação das diferenças ou resistências que tornam instáveis a própria significação nacional.

Pensar as dimensões culturais que fundamentam as identidades nacionais em seu sentido de vitalidade política requer refletir a cultura de outra maneira, tal como exposto, por exemplo, por Fanon (1979): “a cultura foge de toda simplificação [...] ela está em oposição com o costume que é sempre uma deterioração da cultura”. Outra referência pode ser tomada de Spivak (2006), a sugerir a percepção da cultura como conjunto nem preciso nem rígido de premissas que se encontram ativas e em movimento, embora também constitua, em algum grau, um grupo de crenças organizadas. Nesses sentidos, o entendimento das dimensões culturais das nações pode tanto, algumas vezes, servir para destacar formas de violência simbólica quanto, em outras, evidenciar pontos de partida (e não de chegada) para identificações criativas e originais.

A questão fundamental, portanto, parece ser evitar a dicotomia nação vs. diferença e valorizar mecanismos de participação política - muitos dos quais sinalizados pelo multiculturalismo, como modos diversos de ação afirmativa e direitos especiais de representação - que permitam aos atores definir a direção dos arranjos políticos, de modo que estes promovam debates abertos sobre injustiças e desigualdades. Isto requer esforços em imaginar formas originais de articular identidades abrangentes e de grupos, unidade e diferença, pois o arranjo nacional, mesmo com seus problemas assinalados, anda se apresenta como local central da ação política. Se as tensões entre unidade e diferença parecem irresolúveis em um sentido objetivo, justamente porque imersas em culturas e questões socioeconômicas dinâmicas, suas articulações só podem ser concebidas em processos de mobilização política e de indução criativa.

Referências bibliográficas

  • ANDERSON, B. 2008. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo São Paulo, Companhia das Letras, 330 p.
  • BENHABIB, S. 2002. The Claims of Culture: Equality and Diversity in the Global Era Princeton, Princeton University Press, 216 p.
  • BHABHA, H. 2004. The Location of Culture London/New York, Routledge, 408 p.
  • BHAMBRA, G. 2007. Sociology and Postcolonialism: Another “Missing” Revolution?. Sociology, 41(5): p. 871-884.
  • BELL, D. 1993. Communitarianism and its Critics Oxford, Oxford University Press, 256 p.
  • BREUILLY, J. 2000. Abordagens do Nacionalismo. In: G. BALAKRISHNAN (org.) Um Mapa da Questão Nacional Rio de Janeiro, Contraponto, 336 p.
  • CHATTERJEE, P. 1993. The Nation and its Fragments. Colonial and Postcolonial Histories Princeton, Princeton University Press , 296p.
  • CHATTERJEE, P. 2004. Colonialismo, Modernidade e Política Salvador, EDUFBA, 173 p.
  • FANON, F. 1979. Os Condenados da Terra Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 376 p.
  • GELLNER, E. 1993. Nações e Nacionalismo Lisboa, Gradiva, 212 p.
  • HALL, S. 2000. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade 4ª. Ed., Rio de Janeiro, DP&A Editora, 104 p.
  • HALL, S. 2009. Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais Belo Horizonte, Editora UFMG, 434 p.
  • HOBSBAWM, E. 2000. Etnia e Nacionalismo na Europa de Hoje. In: G. BALAKRISHNAN (org.) Um Mapa da Questão Nacional Rio de Janeiro, Contraponto , 336 p.
  • HROCH, M. 2000. Do Movimento Nacional à Nação Plenamente Formada: o processo de construção nacional na Europa. In. G. BALAKRISHNAN (org.) Um Mapa da Questão Nacional Rio de Janeiro, Contraponto , p. 86-98.
  • KRAMER, L. 1997. Historical Narratives and the Meaning of Nationalism. Journal of the History of Ideas, 58(3): p. 524-545.
  • KYMLICKA, W. 1993. Some Questions about Justice and Community. In: D. BELL (org.). Communitarianism and its Critics Oxford, Oxford University Press , p. 208-221.
  • KYMLICKA, W. 1995. Multicultural Citizenship. A Liberal Theory of Minority Rights Oxford, Oxford University Press , 280p.
  • KYMLICKA, W. 2010. Politics in the Vernacular: Nationalism, Multiculturalism and Citizenship Oxford, Oxford University Press , 383 p.
  • KYMLICKA, W. 2011. Multicultural Citizenship within Multinational States. Ethnicities, 11(3): p. 281-302.
  • LACLAU, E. 2011. Emancipação e Diferença Rio de Janeiro, EdUERJ, 222 p.
  • MILLER, D. 2005. Citizenship and National Identity Cambridge, Polity Press, 216 p.
  • MILLER, D. 2011. Will Kymlicka’ multicultural citizenship within multination states: a response. Ethnicities, 11(3): p. 303-307.
  • MODOOD, T. 2007. Multiculturalism. A Civic Idea Cambridge, Polity Press , 193 p.
  • PAREKH, B. 2000. Rethinking Multiculturalism: Cultural Diversity and Political Theory Cambridge, Harvard University Press, 432 p.
  • PAREKH, B. 2008. A New Politics of Identity. Political Principles for an Interdependent World New York, Palgrave MacMillan, 317 p.
  • PHILLIPS, A. 2007. Multiculturalism without Culture Princeton, Princeton University Press , 202 p.
  • RENAN, E. 2000. ¿Qué es uma Nación?. In: Á. BRAVO (comp.) La Invención de la Nación. Lecturas de la Identidad de Herder a Homi Bhabha Buenos Aires, Ediciones Manancial, p. 53-66.
  • SANDEL, M. 1998. Liberalism and the Limits of Justice 2a. ed., Cambridge, Cambridge University Press, 231 p.
  • SMITH, A. 1991. National Identity London, Penguin Books, 227 p.
  • SMITH, A. 2009. Ethno-symbolism and Nationalism: a cultural approach Oxon/New York, Routledge, 184 p.
  • SPIVAK, G. 2006. Culture Alive. Theory, Culture & Society, 23: p. 359-360.
  • TAYLOR, C. 2000. Argumentos Filosóficos São Paulo, Edições Loyola, 311 p.
  • TILLY, C. 1996. Coerção, Capital e Estados Europeus São Paulo, EDUSP, 356 p.
  • WALZER, M. 1983. Spheres of Justice. A Defense of Pluralism and Equality Basic Books, New York, 345 p.
  • YOUNG, I. 2010. Inclusion and Democracy Oxford, Oxford University Press , 304 p.
  • YOUNG, I. 2011. Justice and the Politics of Difference Princeton/Oxford, Princeton University Press, 286 p.
  • 1
    Desde o último quarto do século XX, teorias que tratam da diversidade usam o termo multiculturalismo a fim de qualificar a realidade social contemporânea. Entretanto, tal conceito pode adquirir diferentes sentidos, pois pode se referir a um ambiente social com diversidade quanto servir para nomear políticas diferenciadas a grupos socioculturais específicos. Além disso, em perspectiva normativa, pode ser assumido por progressistas - que apostam na diversidade como meio de integração e debate de desigualdades - ou ser apontado como problema por tendências conservadoras. De modo a precisar os limites deste artigo, concebemos o multiculturalismo como conjunto singular de teorias contemporâneas que têm examinado a questão da diversidade e refletido a pertinência de políticas que tratam de desigualdades e opressões sofridas por determinados grupos sociais. Sobre a polissemia do conceito, ver Hall (2009).
  • 2
    A questão do caráter moderno ou não das nações constitui importante debate para especialistas do tema. Embora em geral se concorde com a qualidade não primordial dos arranjos nacionais, pesquisas como as de Anthony Smith têm questionado a ausência de exame sobre algumas bases sociais pré-modernas que os fundariam (Smith, 1991; 2009).
  • 3
    A análise de Renan (2000) é considerada um clássico em relação ao sentido especificamente político da nação para que chamo atenção neste ponto. Segundo Renan, a nação manifestaria a vontade política de viver conjuntamente e a visão de um passado baseado no esquecimento de questões problemáticas.

Editado por

  • Nome dos editores responsáveis pela avaliação:
    Inácio Helfer
    Luís Miguel Rechiki Meirelles

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2025
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2024
  • Aceito
    03 Set 2024
location_on
Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS Av. Unisinos, 950 - São Leopoldo - Rio Grande do Sul / Brasil , cep: 93022-750 , +55 (51) 3591-1122 - São Leopoldo - RS - Brazil
E-mail: deniscs@unisinos.br
rss_feed Stay informed of issues for this journal through your RSS reader
Accessibility / Report Error