RESUMO
O artigo trata do reconhecimento antipredicativo proposto por Vladimir Safatle em O circuito dos afetos (2015). Para ilustrar esse processo, partimos da análise de Michel de Certeau, em A fábula mística (2015), da história de inversão liminar da figura paterna do abade Pitéroum diante da monja Salê, alguém “sem nome” e trabalhadora da cozinha de um mosteiro de 400 irmãs que a menosprezam. A loucura simulada de Salê sinaliza a impropriedade de si como chave de um reconhecimento distinto daquele contratual e vinculado a uma lógica burguesa de produção capitalista. Num segundo momento do texto, a impropriedade de si na multidão transcende a marca identitária de diferença por um corpo público e comum, associado ao proletariado como síntese conceitual da escória social de loucos, vagabundos, boêmios etc.
Palavras-chaves:
reconhecimento; impropriedade; Certeau; Safatle
ABSTRACT
The article deal with the anti-predicative recognition proposed by Vladimir Safatle in O circuito dos afetos (2015). To illustrate this process, we start from Michel de Certeau’s analysis, in A fábula mística (2015), of the storie of liminal inversion of the father figure of the abbot Pitéroum before the nun Salê, someone “without a name” and a worker in the kitchen of a monastery of 400 sisters who look down on her. Salê’s simulated madness signals the impropriety of oneself as the key to a recognition distinct from that of the contract and linked to a bourgeois logic of capitalist production. In a second moment of the text, the impropriety of oneself in the crowd transcends the identity mark of difference through a public and common body, associated with the proletariat as a conceptual synthesis of the social scum of madmen, vagabonds, bohemians, etc.
Keywords:
recognition; impropriety; Certeau; Safatle
1 Introdução
O artigo trata do reconhecimento antipredicativo proposto por Vladimir Safatle em O circuito dos afetos (2015). Para ilustrar esse processo, partimos da análise de Michel de Certeau, em A fábula mística (2015), da história de inversão liminar da figura paterna do abade Pitéroum diante da monja Salê, alguém “sem nome” e trabalhadora da cozinha de um mosteiro de 400 irmãs que a menosprezam. A loucura simulada de Salê sinaliza a impropriedade de si como chave de um reconhecimento distinto daquele contratual e vinculado a uma lógica burguesa de produção capitalista. Num segundo momento do texto, a impropriedade de si na multidão transcende a marca identitária de diferença por um corpo público e comum, associado ao proletariado como síntese conceitual da escória social de loucos, vagabundos, boêmios etc.
2 A subjetividade como impropriedade de si: a loucura
A História lausíaca, de Palladios, escrita entre 419-420, é uma das principais fontes do monaquismo antigo. Nessa obra se narra o seguinte acontecimento na vida da monja egípcia chamada Salê (de salos em grego, idiota):
Nesse mosteiro houve uma virgem que simulava a loucura e o demônio. As outras ficaram com nojo dela, tanto que ninguém comia com ela, o que ela tinha julgado preferível. Errando através da cozinha, ela fazia qualquer serviço. Era, como se diz, a esponja do mosteiro. De fato, ela cumpria o que está escrito: “Se alguém tem o propósito de ser sábio entre nós nesta vida, que ele se torne louco para tornar-se sábio”. Ela tinha amarrado um pano em volta de sua cabeça - todas as outras raspadas e usam capuzes -, e é com essa postura que ela fazia o serviço. Das 400 [irmãs], nenhuma jamais a viu mastigar alguma coisa durante os anos de sua vida; jamais ela se sentou à mesa; jamais ela repartiu o pão com as outras. Ela se contentava das migalhas de mesa que ela limpava e da água das panelas que ela areava, sem fazer injúria a ninguém, sem resmungar, sem falar de modo nenhum, ainda que atingida por golpes, injuriada, carregada de maldições e tratada com desgosto. Eis que um anjo se apresentou ao santo homem Pitéroum, anacoreta que tinha feito suas provas e residia no [Monte] Porfirita. Ele lhe diz: Por que tu tens boa opinião de ti, por causa de tua vida religiosa e do lugar onde moras? Queres ver uma mulher mais religiosa que ti? Vai ao mosteiro das mulheres Tabennesiotas e lá tu encontrarás uma com uma faixa na cabeça. Ela é melhor que ti. Às voltas com essa multidão, ela jamais afastou seu coração de Deus, enquanto tu, que moras aqui, em pensamento vagabundeias pelas cidades.” Ele que jamais tinha saído, partiu para lá. Pede aos superiores que entre no mosteiro das mulheres. Como era ilustre e já velho, eles não hesitaram em deixá-lo entrar. Uma vez dentro, ele pede que veja todas. Mas ela não se mostrava. Ao fim, ele lhes disse: “Tragam-me todas. Falta uma”. Elas lhe dizem: “Temos uma idiota (salê) dentro, na cozinha” - é assim que chamamos as doentes. Ele lhes diz: “Façam-na vir também, para que eu a veja”. Elas foram chamá-la. Ela se recusa, talvez porque se dava conta do que acontecia, ou até porque ela tinha tido essa revelação. Elas a arrastam à força e lhe dizem: “O santo homem Pitéroum quer vê-la”. Ele tinha muita fama. Quando ela chegou, ele viu o trapo em sua cabeça e, caindo aos seus pés, disse-lhe: “Abençoa-me [Mãe (Amma)]”. Como ele, ela caiu também aos seus pés dizendo: “Abençoa-me tu, senhor (kurie)”. Ei-las todas fora de si. Elas dizem ao santo homem: “Pai (Abba), não entenda como injúria: é uma idiota (salê)”. Pitéroum disse a todas: “Vocês é que são idiotas (salai), porque ela é para mim e para vocês nossa mãe (Ammas) - chamam-se assim os guias espirituais - e eu rezo para achar-me digno dela no dia do julgamento”. A essas palavras, elas caíram aos pés do monge, confessando todos os tipos de coisas: uma tinha jogado nela a água da cozinha, a outra a tinha enchido de murros, a outra tinha inchado seu nariz... Enfim, elas todas tinham muitas injúrias a confessar. Tendo rezado por elas, ele foi embora. Alguns dias depois, não podendo suportar a estima e a admiração de suas irmãs, abatida com suas desculpas, ela saiu do mosteiro. Para onde ela foi, onde ela se enterrou, como ela acabou, ninguém o soube. (Palladios, in: Certeau, 2015 , p. 51-52)
O relato termina começa e termina com saídas: “Começando com a primeira saída de Pitéroum (‘ele jamais tinha saído’), elas terminam com a saída definitiva da louca (‘ela foi embora’, para sempre).” (Certeau, 2015, p. 54). Essa saída de Salê do mosteiro, porém, é fidelidade a uma condição de errante. Entre errâncias sem fim, exercita-se ou se pratica uma ascese. Uma ascese por contínuas entradas e saídas de espaços comuns - como a cozinha e outros lugares de serviço - como não-lugares de propriedade:
(...) o comum não é característica do próprio, mas do impróprio ou, mais drasticamente, do outro; de um esvaziamento - parcial ou integral - da propriedade em seu negativo; de uma desapropriação que investe e descentra o sujeito proprietário, forçando-o a sair de si mesmo. ( Safatle, 2015 , p. 386)
Caso haja alguma característica do estilo simulado de loucura da monja Salê, esse seu traço seria a sua pujante estranheza graças à sua condição imprópria e comum, acompanha-lhe seu não-reconhecimento comunitário como desdobramento de sua indeterminação: fora dos lugares instituídos e privilegiados de “sabedoria”:
É em termos de fronteiras a manter ou a ultrapassar, isto é, em termos de excesso que o relato da História lausíaca parece procurar o ponto onde entrar e sair se identificam - onde adiantar em sabedoria e perder sentido coincide[m-se]. O indicativo dado desde o início com a citação de São Paulo precisa o programa do texto: “Tornar-se louco para tornar-se sábio” (1 Cor 3, 18). ( Certeau, 2015 , p. 55).
Esse ultrapassamento, como excesso e movimento de saída, transversaliza o relato da monja Salê. Com esse excesso, ela subverte “uma normalização das condutas e dos métodos” (Certeau, 2015, p. 320). Eis a sua hubris. No entanto, tal excesso fecunda e faz circular a cadeia de significantes; circularidade dinamizada por uma inversão liminar.
No relato, o Pai se ajoelha diante da monja, extraindo-a do indeterminável “para que ela esteja no lugar do pai.” (Certeau, 2015, p. 57) Ou seja, alguém de “grande renome” - que habita no valor simbólico de um monte sagrado - e alguém “sem nome, a idiota” - que fica na cozinha, num esquecer-se performativamente como perda de si, de sua identidade, em seu desejo e sentido existencial. Salê “se ausenta de todo contrato senão este, imediato, de uma relação de si consigo sob a modalidade do indeterminado (sem objeto), do “sem-fundo” (Gruntlôs), do “sem nome” (Namelôs), isto é, do desconhecido. (Certeau, 2015, p. 275, grifo do autor)
Na inversão da cadeia de significantes, uma louca “sem nome” se transmuta em “mãe espiritual” (Certeau, 2015, p. 59), revelando à comunidade conventual de 400 irmãs a “loucura interior de ‘todas’” (Certeau, 2015, p. 58). Assim, a idiota repete o monge, que lhe solicita: “Abençoa-me [Mãe (Amma)]”. E a monja “repete” o gesto do monge e as suas palavras: “Abençoa-me tu, senhor (kurie)”. (Palladios, in:Certeau, 2015, p. 52) Constata-se, ao ecoar o monge, a idiota não chamar o monge de “pai” (abbas) e sim, ambiguamente, de “senhor”. Essa alteração significa que, ao usar o termo “Senhor”, Salê “não se dirige a ele [Pitéroum], mas ao Outro” (Certeau, 2015, p. 58, grifo do autor).
No relato da monja Salê, o uso de “Senhor” exige um algo a mais - um excesso; uma hubris - das irmãs para diante da imagem simbólica de “pai”. Esse pai representa a totalidade identitária e a bênção do pai reforça a ordem simbólica da representação. No entanto, não interessa a Salê reparar ou substituir essa representação simbólica de “paternidade”. Nela, encontra-se a falta e incompletude da representação negativa pela carência constitutiva de sua nominação imprópria da idiota. Salê, portanto, opera pela falta a irreparável substituição simbólica, no caso das irmãs, da figura do pai.
Por conseguinte, o monge “vai continuar no seu ministério, censurar, falar, abençoar, retomar seu posto.” Ela, porém, “fica no outro, no infinito de uma abjeção sem linguagem” (Certeau, 2015, p. 57), numa crítica ao recorte clerical das instituições simbólicas de significação. Salê não preenche a “falta em ser” ou definir o Outro - “Com “ela” não há nada a dizer nem a fazer” (Certeau, 2015, p. 60); em outras palavras: “a sabedoria é sempre ‘não isso’.” (Certeau, 2015, p. 60) O “não isso” sinaliza a recusa da monja em assumir o caráter simbólico-institucional do “homem”, cuja virilidade tem o poder de abençoar “a exterioridade divina sobre a exterioridade dos fiéis.” (Certeau, 2015, p. 57) Entremeado pelos polos do excesso e do nada, o desejo nunca se esgota em algo. Certeau escreve de uma “paixão do desligamento”, que, desde o absoluto, “reitera em cada etapa o gesto que diz: ‘não é isso’, ‘não é isso’, sem fim” (Certeau, 2015, p. 469). O que falta à monja mobiliza seu desejo - na condição de não simbolizável; por não ser, por exemplo, “isso”: “converter-se em santa” (Certeau, 2015, p. 59). A idiota é o “outro”
É místico aquele ou aquela que não pode parar de andar e que, com a certeza do que lhe falta, sabe de cada lugar e de cada objeto que não é isso, que não se pode residir aqui nem se contentar com isso. O desejo cria um excesso. Ele excede, passa e perde os lugares. Ele faz ir mais longe, alhures. Ele não mora em parte alguma. ( Certeau, 2015 , p. 481-482, grifo do autor)
Logo, a monja Salê é “mística” por não se estabelecer em um lugar para fazer de sua errância um deslocamento de significantes. No (não)lugar de um espaço vazio transcorre a “interioridade” de um modo “místico” de uso performático que “introduz no espírito e na linguagem uma vacância dos conteúdos determinados.” (Certeau, 2015, p. 276). A “perda do gozo” ou “falta em ser” abre a linguagem à pluralidade de significantes. O Outro como “tesouro de significantes” (Lacan, 1960, p. 820) abriga a palavra na independência da linguagem perante o condicionamento das falas institucionais. Para romper com esse condicionamento é indispensável acolher o Outro como demanda significante emergente, infinita e absoluta; enquanto “a falha de todos os signos” (Certeau, 2015, p. 254).
A monja Salê canaliza, então, o nome de um Outro no “puro movimento de deixar um sistema de lugares para um “não sei o quê”, o gesto solitário de sair.” (Certeau, 2015, p. 472-473) Diante do feitiço da ausência desse Outro surge a negatividade do “não sei o quê” como interpelação. A frase “un no sé qué que quedan balbuciendo” (Ch B 1, 7), de São João da Cruz (1988), sinaliza um tipo de transformação experiencial que não é facilmente decodificável: “alguma coisa que não forma palavra, mas que é desvio e distração em relação ao diálogo. Talvez ela [a monja Salê] seja realmente “louca” porque está aí perdida no Outro. (Certeau, 2015, p. 58). Diante do abismo experiencial do absoluto, Santa Teresa d’Ávila (2018) perde suas referências: “Não sabe então a alma o que fazer: se fala, se fica em silêncio, se ri, se chora.” (Livro da Vida 20, 1), deixando-a em “glorioso desatino” ou “celestial loucura”.
Essa negatividade, contudo, não consiste num “processo psicológico” mas se desdobra do “êxtase no qual a existência se funda como ‘coragem’ ética relativa a esse mundo ‘intolerável’” (Certeau e Mireille, 2002, p. 167). Por conseguinte, há “uma reviravolta por assim dizer carnavalesca que coloca o baixo no mais alto.” (Certeau, 2015, p. 53). Por isso, numa “configuração carnavalesca” (Certeau, 2015, p. 100), o “poder do fraco” ou o enfraquecimento das estruturas fortes de poder por uma ação anti-status ou antiestrutural, a exemplo da liminaridade carnavalesca. A antiestrutura seria uma carnavalização como transformação de papéis sociais, insinuando “em toda parte o lapso, a desmedida, a inversão.” (Certeau, 2015, p. 91)
Assim, enfeitiçada pelo segredo do Outro (Certeau, 2015, p. 64), paradoxalmente, o outro da multidão se converte em “metáfora social do Real” (Certeau, 2015, p. 453). A multidão se torna o “lugar paradoxal do absoluto” (Certeau, 2015, p. 72); pois, a falta da idiota “permite à multidão toda uma circulação de bens e de palavras.” (Certeau, 2015, p. 64). Sem mosteiro ou palácio, transmitindo a indeterminação e loucura como resto do Real, Salê não participa “da circulação do significante” (Certeau, 2015, p. 59).
Por se situar fora do discurso institucional - restrita à animalidade e à abjeção -, a monja Salê se situa no não-lugar da multidão, isto é: fora da cela monástica ou do palácio patriarcal. Ela se alheia da rede simbólica de poder clerical, os litterati; no entanto, sua “foraclusão” renova simbolicamente instituições “esquecidas” da alteridade, oferecendo-as:
um espaço de linguagem ao saber dos outros (isto é, à sua loucura) e para marcar seus efeitos de alteração nos lugares privilegiados do sentido (o patriarcado, o mosteiro). Essa seria sua tarefa “teológica”: traçar nas instituições simbólicas uma alteridade já conhecida pela multidão e que elas sempre “esquecem”. ( Certeau, 2015 , p. 66)
A loucura de Salê transformar a linguagem do saber por meio de significantes excessivos, estranhos e flutuantes calcados na experiência do absoluto. Ser excluída da institucionalidade, situando-se num “fundo insensato e material, sem definição simbólica” (Certeau, 2015, p. 64). Essa condição de “exílio semântico” (Certeau, 2015, p. 228) faz o “sujeito” dessubstantivado se colocar no:
lugar de um indizível. É linguagem que visa a uma não linguagem. Nesse sentido, também ele “desarranja o léxico.” Em um mundo supostamente completamente escrito e falado, lexicalizável portanto, ele abre o vazio de um inominável, ele aponta uma ausência de correspondência entre as coisas e as palavras. ( Certeau, 2015 , p. 229)
O saber lexicalizado pelas instituições de sentido esquecem a “experiência” fundante e originária, exigindo-lhes assumir uma noite de “significação” a partir da ausência do Outro em sua estranheza e “audácia inventiva” (Certeau, 2015, p. 228) que transforma o próprio instituído pelo impróprio.
3 O social como impropriedade de si: o proletariado e a multidão
Contra identidades fechadas em si, a monja Salê faz aflorar uma indeterminação pela sedução pelo absoluto; do mesmo modo, o proletariado indetermina uma ideia de “povo”:
É possível dizer, inclusive, que “proletariado” é a nomeação política da força social de desdiferenciação identitária cujo reconhecimento pode desarticular por completo sociedades organizadas a partir da hipóstase das relações gerais de propriedade. Por essa razão, o proletariado não pode ser imediatamente confundido com a categoria de povo. Falta-lhe a tendência imanente à configuração identitária e limitadora que define um povo. O proletariado funciona muito mais como uma espécie de antipovo, se pensarmos no sentido da potência sempre vigilante do que permanece a lembrar a provisoriedade das identidades, Estados e nações, assim como da pulsação constante de integração do que se afirma inicialmente como exceção não contada. ( Safatle, 2015 , p. 172)
O proletariado não atende às normatividades e nem se associa à ideia de “povo” do Estado-nação. Talvez fosse melhor usar o termo “multidão” para evocar um sentido múltiplo de proletariado como “antisujeito político” ou do “sujeito como vazio” (Balibar, in:Safatle, 2015, p. 172). O proletariado não tem identidade ou status, operando, à semelhança da monja Salê, uma inversão liminar e antiestrutural enquanto “negatividade improdutiva” (Safatle, 2015, p. 170). Marx incentiva uma “ética do trabalho” (Safatle, 2015, p. 129); por isso, ao abolir as classes sociais pela indeterminação de se “pescar, pastorear e criticar” (Safatle, 2015, p. 171), o proletariado traria uma “perda total da humanidade” (Marx, 2005, p. 156). Comandantes revolucionários exigem o cumprimento de regras, disciplinas e pontualidades, o que torna perigosa a escória social de prostitutas, bêbados, jogadores, desocupados etc.:
Roués decadentes com meios de subsistência duvidosos e de origem duvidosa, rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram ladeados por vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários, escravos fugidos das galeras, gatunos, trapaceiros, lazzaroni, batedores de carteira, prestidigitadores, jogadores, maquereux, donos de bordel, carregadores, literatos, tocadores de realejo, trapaceiros, amoladores de tesouras, funileiros, mendigos, em suma, toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de um la do para outro, que os franceses denominam la bohème. ( Marx, 2011 , p. 91).
Benjamin, porém, relê positivamente a crítica de Marx aos boêmios como “conspiradores profissionais” e uma classe de indesejáveis. Os boêmios seriam conspiradores profissionais porque ficam alheios à lógica burguesa do trabalho. Benjamin, em sua obra Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo, cita Marx no início do texto acerca de Paris do Segundo Império; na seção “A Boêmia”:
Com o desenvolvimento das conspirações proletárias surgiu a necessidade da divisão do trabalho; os membros se dividiram em conspiradores casuais ou de ocasião, isto é, operários que só exerciam a conspiração a par de suas outras ocupações e que, só com a ordem do chefe, frequentavam os encontros e ficavam de prontidão para comparecer ao ponto de reunião, e em conspiradores profissionais, que dedicavam todo o seu serviço à conspiração, vivendo dela... As condições de vida desta classe condicionam de antemão todo o seu caráter... Sua existência oscilante e, nos pormenores, mas dependente do acaso que da própria atividade, sua vida desregrada, cujas únicas estações fixas são as tavernas dos negociantes de vinho - os locais de encontro dos conspiradores -, suas relações inevitáveis com toda a sorte de gente equívoca, colocam-nos naquela esfera de vida que, em Paris, é chamada boêmia. (Marx, in: Benjamin, 1989 , p. 9-10)
Paulo Niccoli Ramirez explica a potencialidade dessa conspiração proletária como “desvio diante da monotonia do trabalho produtivo e burocrático que tanto sustenta a vida burguesa racionalmente organizada em torno da atividade lucrativa” (Ramirez, 2010, p. 244-245). O conjunto da escória social se sintetiza no trapeiro, que é “a figura mais provocadora da miséria humana. Lumpenproletário num duplo sentido: vestindo trapos e ocupado de trapos.” (Benjamin, 2006, p. 395) Ao se valorizar o recolhimento do resto rejeitado pela sociedade burguesa como lixo, Benjamin inverte liminarmente a ordem própria do sistema produtivo na mesma linha dos relatos de loucura simulada. Ora, o “lixo” - a cozinha conventual da monja Salê - é não só um “lugar da loucura” (Certeau, 2015, p. 71 n. 31) mas dos demais lugares da escória social.
A “multidão sem nome” é “originária” antecede quaisquer determinações identitárias por desorganizar normatividades e se abrir à multiplicidade de um corpo comum e desviante à subjetividade econômica do indivíduo burguês, reduzindo-se a “selvagem”; a alguém colonizado ou deficiente mental:
(...) ele erige a silhueta do desejo selvagem, alternativamente cruel e sedutor, que vem das florestas frequentar os mercados e os lares, lá onde a burguesia principiante aprende a ascese de uma racionalidade produtiva. O homem ou a mulher selvagem introduz no simbólico o que a cidade exorciza, no momento em que os carnavais excluídos das cidades como muito dispendiosos se transforma em sabás noturnos de bruxos e de bruxas. Não é surpreendente que os discursos místicos dos desejos insensatos, rejeitados pela razão de Estado que serve como modelo a tantas instituições, façam igualmente retorno sob a figura do selvagem. Sob essa forma, ele aparece - ele não pode aparecer - senão como vencido. Mas esse vencido fala do que não se pode esquecer. ( Certeau, 2015 , p. 322)
Assim, como o selvagem ameaça à “racionalidade produtiva” da burguesia, o vagabundo - um “profeta de uma mensagem para a qual não há mais lugar.” (Certeau, 2015, p. 320) - se perde por suas ruas e seus becos com a companhia de anti-heróis: pobre, idiota, iletrado, mulher etc., que são:
como a multidão, destinados às tarefas servis, a uma atividade disseminada e a uma ausência de identidade. Por sua relação corporal com a multidão sem nome, essas testemunhas fugazes se tornam os indícios enigmáticos da sedução que a multidão (diabólica e sem forma) exerce sobre as formas simbólicas da sabedoria. Da mesma forma, em sua derrisória “idiotice”, eles assustam o sábio, enquanto eles divertem o público. ( Certeau, 2015 , p. 73)
O elemento de intersecção a tantos grupos desprivilegiados é a salutar indeterminação de um “igualitarismo radical” de lutas “investidas de um significado que transcende sua própria particularidade”. (Lacan, in:Safatle, 2015, p. 35) A multidão é o outro, o não-lugar e o “resto” de um “corpo público” não determinado por “identidades particulares”:
É um corpo público: qualquer um, qualquer coisa, todos e cada um, em relação às identidades particulares que se distinguem desse fundo indeterminado. É um corpo originário que figura como começo indefinido em relação aos efeitos que produzem o poder e o querer de “sair dele”. ( Certeau, 2015 , p. 73, grifo do autor)
Nesse corpo indefinido, os “loucos da cidade” se isolam como “corpo público” que hospeda “a loucura da multidão” (Certeau, 2015, p. 72). A energia da multidão opera uma inversão liminar como no relato da monja Salê, mas, agora, no tocante à “compacidade e unicidade do indivíduo habitualmente suposto ‘responsável’ por ser ‘ascético’” (Certeau, 2015, p. 72). A multidão não assume o horizonte restritivo de uma autonomia da vontade como domínio de algo próprio de si. Em analogia ao fetichismo da mercadoria, a autonomia se torna um fetiche do sujeito numa “assunção consciente da vontade e aceitação voluntária de pactos, acordos e contratos.” (Safatle, 2015, p. 189) Uma determinação substantiva da subjetividade autônoma funciona como objeto de propriedade que “produz valor” e circula contratualmente. No entanto, o “eu” da monja Salê foge de uma circulação prévia de sentidos perante um Real não simbolizável, precipitando-se no abismo desconhecido para onde ela desapareceu como consta no fim de seu relato: “não podendo suportar a estima e a admiração de suas irmãs, abatida com suas desculpas, ela saiu do mosteiro. Para onde ela foi, onde ela se enterrou, se enterrou, como ela acabou, ninguém o soube.” (Palladios, in:Certeau, 2015, p. 51-52) O corpo de Salé não é mercadoria, mas corpo público.
No corpo público enquanto “não lugar absoluto e absolvido da diferença.” (Certeau, 2015, p. 68), mesmo a diferença entre “homem” e “mulher” se relativiza: “Todos travestidos, homens ou mulheres, sábios ou loucos, máscaras e derrisões de identidades, desaparecem em um entre-dois público e comum.” (Certeau, 2015, p. 67). Certeau ilustra essa condição de “entre-dois público e comum” pela inversão de gênero expressa por um aforisma do Evangelho de Tomé: “Que o macho não seja macho e que a mulher não seja mulher” (Certeau, 2015, p. 67). Assim, Pelágia e Marina dos séculos IV-VI se travestiam de homem com a pretensão de “abolir a diferença e de transpor a lógica binária de ‘um ou outro’” (Certeau, 2015, p. 67) para instaurar o “um e outro” (Certeau, 2015, p. 68). Certeau cita ainda Evagro: “eles querem ser homens com os homens e mulheres com as mulheres, e participar de um e de outro sexo sem ser eles mesmos de nenhum.” (Evagro, in:Certeau, 2015, p. 68)
No abismo da multidão “as diferenças se apagam” (Certeau, 2015, p. 68), o que faz o corpo público inverter triplamente uma apropriação identitária de si da individualidade:
1. O masculino e o feminino (não identificáveis na diferença sexual); 2. A oralidade-furo (alimentação, latrinas etc.) e o lixo-disseminação (cozinha, banhos etc.) que são correlativas com a gênese e com a perda dos corpos; 3. Enfim, a ascese, encargo do outro pelo corpo. Essas três modalizações conduzem ao absoluto de uma vida “comum”. Isto é, ao gesto de “perder-se na multidão”. ( Certeau, 2015 , p. 70)
Em sintonia com essa tripla inversão, Badiou nos ajuda no esclarecimento dessa “indiferença” operada pela multidão:
somente é possível transcender as diferenças se a benevolência em relação aos costumes e às opiniões apresentar-se como uma indiferença tolerante às diferenças, a qual tem como prova material apenas poder e saber autopraticar as diferenças (Badiou, in: Safatle, 2015 , p. 183).
Por isso, a proposta safatleana de reconhecimento não-predicativo não se pauta por “determinações por propriedades”: “Por querer criticar a hipóstase de determinações por propriedades, devemos afirmar que a verdade que nega a identidade não pode ser a diferença, mas a indiferença com sua capacidade antipredicativa, com sua despossessão generalizada de si.” (Safatle, 2015, p. 14) O encontro com o Outro nos surpreende por nos despossuir do que nos é próprio desde algo que nos move de fora mas que também “reside em nós” (Safatle, 2015, p. 73). O desamparo como despossessão pelo Outro é assim definido por Safatle:
Capacidade de se deixar causar por aquilo que despossui o Outro. No desamparo, deixo-me afetar por algo que me move como uma força heterônoma e que, ao mesmo tempo, é profundamente desprovido de lugar no Outro, algo que desampara o Outro. Assim, sou causa de minha própria transformação ao me implicar com algo que, ao mesmo tempo, me é heterônomo, mas me é interno sem me ser exatamente próprio. ( Safatle, 2015 , p. 19)
O desamparo rompe com os predicados identitários do reconhecimento liberal por uma construção político-social por “vínculos por despossessão e por absorção de contingências.” (Safatle, 2015, p. 12). circunscrito normativamente para nomear atributos individualizantes e subjacentes ao conceito de “pessoa” pressupõe uma normatividade identitária de propriedades de si de viés contratual como “forma do indivíduo” (Safatle, 2015, p. 156). A indeterminação impropriável como condição inexaurível do humano repensa a “forma do indivíduo” subjacentes às políticas identitárias de reconhecimento, cuja normatividade gera um laço social com o risco de naturalização de “princípios cooperativos” (Safatle, 2015, p. 145), naturalização ancorada numa lógica de autonomia, ou seja: num “sistema individual de interesses e dos predicados que comporiam a particularidade de minha pessoa.” (Safatle, 2015, p. 71)
Com a contribuição de psicologias do desenvolvimento, como a de Axel Honneth (2003), essa forma do indivíduo se conjuga com a construção de regras sociais de culpabilização e perfazimento identitário na economia psíquica, que “toma a forma do objeto” (Safatle, 2015, p. 152). A “economia libidinal das sociedades capitalista” (Safatle, 2015, p. 178) consiste numa “demanda de amor e reconhecimento (...) a sustentar minha adesão muda a tais dinâmicas repressivas.” (Safatle, 2015, p. 119) Assim, caberá ao Estado uma regulação de formas disciplinadoras da vida:
A estrutura do direito determina as formas possíveis que a vida pode assumir, os arranjos que as singularidades podem criar. Elas fazem das formas de vida aquilo que previamente tem o molde da previsão legal. Tal processo não se restringe à mutação do ordenamento jurídico, mas fortalece institucionalmente o enquadramento da produção da diferença no interior de um campo cultural no qual a exploração capitalista pode se colocar como gestão da economia libidinal. Pois a sensibilização jurídica em relação à diferença é sempre acompanhada de um processo de nomeação das formas sociais do desejo. Essa nomeação pode fornecer visibilidade a grupos vulneráveis à violência social, por um lado, mas, por outro, ela é feita a partir de uma gramática das identidades já em circulação. Gramática que pode aceitar toda e qualquer identidade, desde que ela encontre um lugar dentro de um campo geral de regulação social das diferenças. Nesse sentido, há uma estratégia política importante que passa pela desativação dos nomes. ( Safatle, 2015 , p. 178)
A “regulação social das diferenças” é o maior risco de um reconhecimento identitário de formas de vida por dispositivos de determinação formal em que a nomeação dessas formas de vida se dão positivamente a modo de propriedade. Tal normatividade dispõe as fronteiras de uma nomeação das formas possíveis do desejo, determinando e pré-definindo subjetividades autônomas pelo reforço moralizante de um comportamento produtivo, submetendo o gozo a um imperativo superegoico e adverso à impredicabilidade do “gozo espontâneo da vida” (Safatle, 2015, p. 120). Gozo que se dá apenas como desperdício, no resto, a romper com o “cálculo utilitário do usufruto” (Safatle, 2015, p. 202). O gozo é inútil, pois a “pulsão” é pré-pessoal e se organiza “sem nome”, isto é, como “subjetivação acéfala, uma subjetivação sem sujeito” (Lacan, in:Safatle, 2015, p. 148). Assim, ao:
pôr em risco a tecitura normativa hegemônica ao se constituir enquanto um desvio, um dissidente, um diferente. Essa liberdade de se constituir se faz em relação às normas já estabelecidas e pressupõe uma operação crítica que coloca não apenas o quadro normativo em risco, mas sobretudo, a si mesmo. ( Aggio, 2022 , p. 8)
Logo, para interromper “a narrativa autoconsciente sobre nós mesmos que procuramos fornecer, em um modo que muda nossa própria noção como autônomos e providos de controle” (Safatle, 2015, p. 72), importaria uma indeterminação da anomia. Há, então, um tipo de trabalho necessário, “uma espécie de ascese crítica de si” (Safatle, 2015, p. 11), como “a produção do impróprio, como há um estranhamento que não é simplesmente alienação, mas abertura ao que não se dispõe diante de mim como aquilo que se submete a meu tempo, meu espaço, minha forma, minhas relações de causalidade.” (Safatle, 2015, p. 118)
Negar essa tarefa de se estranhar é nos dominar como propriedade e como mercadoria. Esse movimento de saída, êxtase, transversaliza o relato da monja Salê, a idiota, com a loucura e a hubris, numa ótica plural de “excesso”. A loucura, como a paradoxal equação de vazio/nada e excesso/vertigem, expressa um “desejo do outro” que fica num “além” diante de um universo dialogante e supera até mesmo o contrato da linguagem. Para a monja Salê “nenhum contrato, mesmo que fosse o primeiro e último de todos, o da linguagem, é por ela honrado.” (Certeau, 2015, p. 60). Assim, sem esperar retribuição ou mútua equivalência protocontratual, tamanha incomensurabilidade se equipara à morte de Salê diante de um “contrato social entre mercadorias” (Safatle, 2015, p. 193) de um corpo impróprio e indeterminado: “Subtrações em abismo. Rede em que se multiplica o que desaparece.” (Certeau, 2015, p. 368) Assim Certeau finaliza sua análise do relato da monja Salê com o seguinte parágrafo:
O leitor, seduzido por esse “nada”, tornar-se-á louco, por sua vez, ou então, voltado para ele, procurará, se é possível, esquecer o que lhe é retirado? Por não estar jamais aí onde se poderia dizer (que ela estava), a louca falsificou o contrato que a instituição garante e que protege contra a “vertigem” de não saber “em que me agarrar no desejo do outro, no que eu sou para ele.” Finalmente, nenhum contrato, mesmo que fosse o primeiro e último de todos, o da linguagem, é por ela honrado. Repetindo nossas palavras e nossas histórias, ela insinua aí sua mentira. Talvez, enquanto o sym-bolos é ficção produtora de união, ela é, então dia-bolos, dissuasão do simbólico pelo inominável dessa coisa. ( Certeau, 2015 , p. 60)
Para além da linguagem e de toda a significação dita do “possível”, enfim, a condição conventual de Salê é “diabólica”; daí o “não lugar da louca” (Certeau, 2015, p. 59) como esvaziamento de toda determinação pela potência do afeto do desamparo. Afinal, a impropriedade de si que nos perpassa e nos torna estranhos a nós mesmos enquanto “afeto de relação do sujeito a si.” (Safatle, 2015, p. 128) Assim, o nexo entre desamparo e liberdade se vinculam entre si no combate aos limites identitários do “modelo de unidade próprio a um Eu” (Safatle, 2015, p. 158)
Referências:
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AGGIO, J. O. 2022. Práticas críticas de si: Foucault e Butler.Veritas (Porto Alegre), 67(1): e41911. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/veritas/article/view/41911/27406 Acesso em: 21nov2023.
» https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/veritas/article/view/41911/27406 - BENJAMIN, W. 1989. Paris do Segundo Império. In: Obras Escolhidas III São Paulo, Brasiliense.
- BENJAMIN, W. 2006. Passagens Belo Horizonte/São Paulo, Ed.UFMG/Imprensa Oficial.
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CERTEAU, M.; MIREILLE, C. 2002. Entretien, mystique et psychanalyse. Espaces Temps, Paris, (80-81): p. 156-175. Disponível em: http://www.persee.fr/doc/espat_0339-3267_2002_num_80_1_4209 Acesso em: 10 set 2023.
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- RAMIREZ, P. N. 2010. A Revolução Vagabunda: Baudelaire, Walter Benjamin e o fim da história. Ponto-e-vírgula, 8: p. 242-260.
- SAFATLE, V. 2015. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify.
- TERESA D’ÁVILA, S. 2018. Obras completas São Paulo: Paulinas.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Jan 2025 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
17 Fev 2024 -
Aceito
26 Ago 2024