RESUMO
A despeito das diferenças, as atuais propostas epistemicistas e semanticistas de tratamento da vaguidade e do sorites convergem em relação à tese de que não é possível conhecer casos limítrofes de vaguidade. Nós tentaremos mostrar que há boas razões para acreditarmos que isso é falso.
Palavras-chaves:
epistemicismo; semanticismo; vaguidade; sorites
ABSTRACT
Despite the differences, current epistemicist and semanticist proposals for treating vagueness and sorites converge on the thesis that it is not possible to know borderline cases of vagueness. We will try to show that there are good reasons to believe this is false.
Keywords:
epistemicism; semanticism; vagueness; sorites
1 Prelúdio
Epistemicismo e semanticismo são as principais concepções disputando o troféu de melhor tratamento da vaguidade e do seu par ubíquo, o paradoxo sorítico.1 Embora sejam adversárias no debate, as atuais representantes dessas duas concepções compartilham algumas teses bastante relevantes na discussão sobre a dupla vaguidade-sorites. Uma delas é a de que não é possível saber casos de vaguidade em que o respectivo item seja extensionalmente limítrofe (ou, então, que esteja em regiões da extensão do respectivo predicado/conceito vago cujas fronteiras sejam consideradas indistintas, difusas).2 Para todos os efeitos, assumiremos que qualquer tratamento da vaguidade terá de admitir a existência de casos-limite, limítrofes ou fronteiriços, ainda que tais tratamentos rejeitem a ideia de que sempre haveria uma unidade mínima que, ao ser adicionada ou subtraída em relação a alguma coisa, faria com que tal coisa deixasse sua categorização extensional inicial e transitasse para a contraextensão do respectivo conceito vago, ou vice-versa.3 Mas, claro, há uma diferença crucial em relação à ignorância preconizada por cada uma das concepções disputantes. Para o semanticismo, a ignorância necessária se deve à indeterminação semântica que caracterizaria essencialmente a vaguidade. Para o epistemicismo, a ignorância per se é a indeterminação que caracterizaria a vaguidade. Tais concepções também convergem quanto aos casos em que o conhecimento de proposições vagas é perfeitamente possível.4 Assim, os casos claros/definidos/determinados de riqueza monetária, por exemplo, teriam de ser cognoscíveis. Casos não-claros/indefinidos/indeterminados dessa espécie de riqueza seriam, então, incognoscíveis. Assim, para ambas as propostas, há regiões da extensão dos predicados/conceitos vagos em relação às quais é possível saber o que é o caso e regiões em relação às quais não é possível saber o que é o caso, para qualquer que seja o caso, a saber: (definidamente) rico, (definidamente) não-rico ou nem definidamente rico, nem definidamente não-rico.5 Destarte, e usando o conceito de riqueza monetária como exemplo, podemos assumir que ambos os polos da disputa em questão assumem o seguinte princípio sobre a necessária ignorância vinculada às proposições vagas:
(Princípio da ignorância em relação aos casos-limite de riqueza monetária): Se a, com n dinheiros, é um caso fronteiriço de riqueza monetária, então S não pode saber se a com n dinheiros é (definidamente) rico, (definidamente) não-rico ou nem definidamente rico, nem definidamente não-rico.6
2 O argumento da ignorância imparável
O princípio acima contempla com suficiente generalidade uma das platitudes no interior da discussão sobre a dupla vaguidade-sorites, qual seja: a de que, independentemente do tipo de razão oferecida, é impossível saber se certo caso-limite está estacionado na extensão ou na contraextensão de um conceito vago, mesmo que o agente em jogo seja linguística e cognitivamente ideal, ainda que não-onisciente.7
Além do princípio acima, outro se insinua. Supondo que o princípio acima seja verdadeiro, parece que, além de S não poder saber nada sobre a riqueza ou não de a, ele também não poderia saber se a 1 , com n - 1 dinheiros, seria (definidamente) rico, (definidamente) não-rico ou nem definidamente rico, nem definidamente não-rico. O ponto é que, se é impossível para alguém saber em que departamento extensional de um conceito vago certo item se encaixa, então também é impossível que se saiba onde se encaixam itens que lhe sejam suficientemente próximos. Em outras palavras, estamos invocando o seguinte princípio:
(Princípio da ignorância das adjacências dos casos-limite de riqueza monetária): Se S não pode saber se a com n dinheiros é (definidamente) rico, (definidamente) não-rico ou nem definidamente rico, nem definidamente não-rico, S também ignora tais coisas a respeito de a 1 com n - 1 dinheiros.
Ao combinarmos os princípios acima, podemos obter o seguinte argumento:
-
a, com n dinheiros, é um caso limítrofe de riqueza - Premissa;
-
S não pode saber se a com n dinheiros é (definidamente) rico, (definidamente) não-rico ou nem definidamente rico, nem definidamente não-rico - De 1, via Princípio da Ignorância dos Casos-limite de Riqueza Monetária;
-
S não pode saber se a 1 , com n - 1 dinheiros, é (definidamente) rico, (definidamente) não-rico ou nem definidamente rico, nem definidamente não-rico - De 2, via Princípio da Ignorância das Adjacências dos Casos-limite de Riqueza Monetária;
-
S não pode saber se a 2 , com n - 2 dinheiros, é (definidamente) rico, (definidamente) não-rico ou nem definidamente rico, nem definidamente não-rico - De 3, via Princípio da Ignorância das Adjacências dos Casos-limite de Riqueza Monetária;
Consequentemente, S não pode saber se a m , com n - n dinheiros, é (definidamente) rico, (definidamente) não-rico ou nem definidamente rico, nem definidamente não-rico.
O argumento acima - que denominaremos de “o argumento da ignorância imparável” - exibe um paradoxo. Considerando que ele se assemelha a argumentos soríticos, alguém poderia ser levado a crer que o conceito de ignorância é vago e que o argumento em questão seria o seu sorites particular. Nós não pensamos dessa maneira. O argumento da ignorância imparável é alavancado por dois princípios de ignorância relativos a proposições vagas, mas não há em suas premissas a incidência de predicados vagos. Isso posto, é clara a dificuldade que o argumento da ignorância imparável nos impõe: não sabemos a partir de onde exatamente a aplicação sucessiva do princípio da ignorância das adjacências perde a validade.8 Até sabermos tal coisa, qualquer cessação na aplicação do princípio em jogo será puramente ad hoc. De todo modo, há obviamente um ponto em que a invalidade na reaplicação do princípio tem lugar. Do contrário, não concluiríamos pelo absurdo de que não é possível saber que alguém com 0 dinheiros é (definidamente) não-rico ou, ainda pior, que não é possível saber que alguém com 0 dinheiros é (definidamente) pobre em termos monetários. Pode ser útil notar também que, em vez de as derivações do argumento acima serem obtidas por uma aplicação inicial única do princípio de ignorância acerca dos casos-limite e, depois, por suficientes aplicações sucessivas do princípio de ignorância das adjacências dos casos-limite, elas poderiam ser obtidas por meio da aplicação alternada dos dois princípios de ignorância em jogo. De toda sorte, o argumento acima oferece uma conclusão que se opõe francamente à tese, sustentada por concepções epistemicistas e semanticistas, de que os casos claros, definidos ou determinados de vaguidade são passíveis de conhecimento. Nesse pormenor, as concepções em questão estão absolutamente certas. Afinal, é bastante claro que alguém com nenhum dinheiro é, monetariamente falando, (definidamente) pobre e, por conseguinte, (definidamente) não-rico, como também é claro que é possível saber tais coisas.
3 Que armas têm as atuais propostas epistemicistas e semanticistas para lidar com o argumento da ignorância imparável?
Aparentemente, nenhuma. Se a premissa inicial for rejeitada, ter-se-á de negar que casos limítrofes de conceitos vagos possam existir. A rejeição deve pesar, então, sobre os princípios usados para derivar a conclusão infame. Se o primeiro princípio de ignorância for rejeitado, assumir-se-á que podemos saber casos fronteiriços de vaguidade. Ora, nenhuma das atuais propostas semanticistas e epistemicistas poderia assumir tal posição, sob pena de suicídio. Sendo assim, o candidato mais promissor a ser defenestrado por tais propostas é o princípio de ignorância acerca dos casos vizinhos aos limítrofes. Nesse caso, é preciso dispor de um argumento correto para a tese de que um sujeito que não sabe que a com n dinheiros é (definidamente) rico, (definidamente) não-rico ou nem definidamente rico, nem definidamente não-rico pode saber que o vizinho imediato pertence, determinativamente, a uma ou outra dessas categorias predicativas. Mas, tal argumento não parece estar à disposição de tais propostas. Para vê-lo, é importante notar que, dada a hipótese de falsidade do princípio de ignorância dos casos vizinhos aos fronteiriços, despontam três possibilidades gnosiológicas em relação ao caso de a 1 com n - 1 dinheiros, caso adjacente ao limítrofe. São elas:
-
S pode saber que a 1 com n - 1 dinheiros é (definidamente) rico;
-
S pode saber que a 1 com n - 1 dinheiros é (definidamente) não-rico;
-
S pode saber que a 1 com n - 1 dinheiros é nem definidamente rico, nem definidamente não-rico.
Para que as atuais concepções semanticistas e epistemicistas possam rejeitar corretamente o princípio da ignorância das adjacências dos casos-limite e escapar ilesas do argumento da ignorância imparável, a rejeição não pode acarretar a falsidade de todas as possibilidades acima e tem de manter intacto o princípio da ignorância dos casos-limite, sob pena de autoimplosão. Vamos mostrar que tal exigência acima não é satisfeita em relação a nenhuma das possibilidades em discussão.
Comecemos com a possibilidade (1) e com a seguinte observação: uma vez que alguém com n dinheiros é caso-limite na escala de pobreza-riqueza, mostraremos que S não pode saber que a 1 com n - 1 dinheiros é (definidamente) rico. Considerando a escala em ordem crescente e que n > n - 1, n não pode anteceder n - 1 na respectiva escala. Ora, se n - 1 determinasse a primeira posição dos (definidamente) ricos da escala, n não seria uma posição-limite na escala, dado que teria que determinar a segunda posição da respectiva partição da escala. Nesse caso, para respeitar o fato de que n > n - 1, é preciso que n - 1 marque uma posição aquém dos (definidamente) ricos da escala. Mas, sendo assim, a 1 com n - 1 dinheiros não é (definidamente) rico. Consequentemente, é impossível que S saiba que a 1 com n - 1 dinheiros é (definidamente) rico. Mas, mesmo que, per absurdum, n não determinasse o quantum monetário de alguém (definidamente) rico, o princípio de ignorância acerca dos casos-limite não seria aqui preservado. Isso por que, se fosse possível que S soubesse que a 1 com n - 1 dinheiros seria (definidamente) rico, então teria de ser possível que S soubesse que a com n dinheiros, isto é, com uma unidade monetária a mais, também o seria.9 Dessa forma, os casos limítrofes de riqueza monetária teriam de ser cognoscíveis, o que fere de morte o princípio de ignorância que a objeção sob exame deveria manter incólume.
A situação desfavorável das atuais concepções semanticistas e epistemicistas não muda em face da possibilidade (2). Em consideração dessa possibilidade, o objetor do princípio da ignorância das adjacências dos casos-limite teria que defender a ideia de que S pode saber que a 1 com n - 1 dinheiros é (definidamente) não-rico, mas não pode saber nada em termos de pobreza ou riqueza monetária sobre a com n dinheiros. Acontece que essa vedação de conhecimento sobre o caso de a com n dinheiros, além de ser puramente ad hoc, não mantém ileso o princípio de ignorância dos casos-limite. Para vê-lo, precisamos atentar para o fato de que a diferença no quantum monetário de a 1 para a é de apenas 1 unidade monetária. Bem, é usual no debate sobre a vaguidade que diferenças minimais entre os itens de uma escala de posições de medidas/quantidades relativas a um conceito vago são, aparentemente, a melhor base para a ideia de que a 1 e a seriam epistemicamente indistinguíveis em termos de suas pobrezas ou riquezas monetárias.10 Ora, se a 1 e a são epistemicamente indistinguíveis para S em termos de pobreza-riqueza monetária, eles são, ipso facto, gnosiologicamente indistinguíveis para S em relação a tais propriedades. Por conseguinte, ou S pode saber sobre ambos a respeito do assunto ou não pode saber sobre nenhum.11 No primeiro caso, o princípio de ignorância acerca dos casos contíguos aos casos-limite seria transgredido, no segundo, a possibilidade (2) seria negada. Mas, as coisas ficam ainda piores para a tese de que S pode saber que a 1 com n - 1 dinheiros é (definidamente) não-rico, mas não pode saber nada em termos de pobreza-riqueza monetária em relação a alguém com n dinheiros. Mas, além da crítica de que se trata de uma “proibição” meramente arbitrária e independentemente da discussão sobre se casos contíguos de vaguidade são, ou não, epistemicamente indistinguíveis, mostraremos que o princípio de ignorância dos casos-limite não é mantido a salvo em vista da possibilidade (2) pela objeção que estamos confrontando. Para constatá-lo, precisamos ter clareza de que, dadas as suposições da discussão acerca da possibilidade (2), há apenas duas alternativas na escala para as posições dos quanta determinadas por n e n - 1. Em ordem crescente em relação à escala, ou seja, da pobreza para a riqueza, as possibilidades são as que seguem: (I) n - 1 determina a última posição da escala dos (definidamente) não-ricos e, assim, n determina a primeira posição entre os nem (definidamente) ricos, nem (definidamente) não-ricos; (II) n - 1 determina a penúltima posição da escala dos (definidamente) não-ricos e, assim, n determina a última posição da mesma partição da escala. O ponto agora é que a alternativa (I) permitiria que S soubesse acerca de casos-limite. Afinal, se n - 1 determina a última posição da escala dos (definidamente) não-ricos, então ao saber que a 1 com n - 1 dinheiros é (definidamente) não-rico, S saberia um caso-limite de vaguidade. Isso macula o princípio que a objeção precisaria preservar. Por conseguinte, a objeção contra o princípio da ignorância das adjacências dos casos-limite fracassa perante a possibilidade (2).
A possibilidade (3), a qual apenas semanticistas poderiam sustentar com coerência12, sofre agrura idêntica à da possibilidade anterior. Para vê-lo, vamos supor que S saiba que alguém com n - 1 dinheiros é nem definidamente rico, nem definidamente não-rico. Nesse caso, haja vista as suposições assumidas aqui, um indivíduo com n dinheiros tem de ser caso-limite da escala de pobreza-riqueza monetária. Ora, se ter n dinheiros identifica o quantum monetário de um caso-limite e ter n - 1 dinheiros identifica um quantum de quem não é nem definidamente rico, nem definidamente não-rico, então, considerando a escala avançando da pobreza para a riqueza, existem apenas duas alternativas posicionais que podem acomodar as suposições em jogo: (I) n determina a última posição entre os que são nem definidamente ricos, nem definidamente não-ricos e, assim, n - 1 determina a penúltima posição da mesma partição da escala; (II) n determina a primeira posição entre os definidamente ricos da escala e, assim, n - 1 determina a última posição entre os que são nem definidamente ricos, nem definidamente não-ricos. Ora, sendo assim, a possibilidade (II) implica que a 1 com n -1 dinheiros ocupa uma posição-limite. Logo, se S pode saber que a 1 com n -1 dinheiros é nem definidamente rico, nem definidamente não-rico, S pode saber sobre um caso-limite de vaguidade, o que afronta o princípio de ignorância dos casos-limite.
Enfim, o exame da única objeção consistente com as atuais propostas semanticistas e epistemicistas ao argumento da ignorância imparável revela-se um fracasso tonitruante. Em consequência, as atuais propostas semanticistas e epistemicistas sucumbem ao argumento da ignorância imparável.
4 Considerando o que vimos até aqui, não é melhor adotar perspectivas ditas “radicais” para lidarmos com a vaguidade e o sorites?
Prima facie, parece inevitável. Afinal, se o argumento da ignorância imparável for irretorquível, somos empurrados a aceitar alguma versão semanticista radical, usualmente chamada de “incoerentismo”13, para o tratamento dos predicados/conceitos vagos. O que temos em mente aqui são abordagens como as de Dummett (1975), Unger (1979) e Priest (1998), que aceitam a validade e a correção de, pelo menos, um tipo de argumento sorítico e, dessa forma, acatam a respectiva conclusão.14 É claro que isso implica, no fim das contas, assumir que argumentos soríticos não são realmente paradoxais. Não iremos discutir aqui em minudência as propostas dos autores mencionados. Vamos apenas considerar que, segundo tais propostas, o princípio de tolerância relativo aos conceitos/predicados é universalmente verdadeiro e, por conta disso, o sorites funciona como uma prova de que os predicados/conceitos vagos são, em última análise, incoerentes. Desse modo, é admissível para tais propostas que, para qualquer número n, se a com n cabelos é cabeludo, então a 1 com n - 1 cabelos também é e, no sentido oposto, se b com n cabelos é calvo, então b 1 com n + 1 cabelos também é.15
A visão que parece sustentar a aplicação irrestrita do princípio de tolerância dos predicados vagos poderia ser expressa assim: se não for possível refutar a tese de que alguém com 1 milhão de cabelos no topo do crânio é cabeludo e alguém com 999.999 também é, então não é possível refutar a tese de que alguém com n cabelos no topo do crânio é cabeludo e alguém com n - 1 cabelos também é. E, como se pode notar, tal perspectiva sanciona o argumento da ignorância imparável. Por outro lado, ainda que adições/subtrações ínfimas (no quantum relativo ao conceito que se vincula compulsoriamente ao conceito vago) não produzam alteração no status extensional de um dado item, adições/subtrações não-ínfimas produzem. Haveria, portanto, um choque entre princípios envolvendo a atribuição de conceitos vagos, algo que parece apenas reforçar a aposta em alguma forma de incoerentismo a fim de lidar com o fenômeno.
Além da ideia da tolerância, há outra que não pode ser menosprezada, já que está umbilicalmente ligada ao fenômeno da vaguidade. Trata-se da ideia de que, mesmo que sejamos irremediavelmente ignorantes acerca dos casos fronteiriços de riqueza, altura, força etc., nós podemos saber sobre casos claros/definidos/determinados envolvendo tais conceitos. Ocorre que essa ideia impõe uma das maiores dificuldades para a visão incoerentista sobre os predicados/conceitos vagos. Afinal, se, por exemplo, calvo é um conceito incoerente, ele teria de se manter essencialmente incoerente em qualquer situação de atribuição, não importando, no fim das contas, se o objeto em questão possui 0 cabelos ou 1 milhão de cabelos. Nesse caso, e consoante ao que já vimos no argumento da ignorância imparável, não poderíamos ser ignorantes acerca de um caso fronteiriço e sabermos acerca de um caso não-fronteiriço. A consequência do incoerentismo em vaguidade há de ser ceticismo geral sobre as proposições vagas. A visão incoerentista padece de outra dificuldade ainda, uma que envolve o fato de que as conclusões dos argumentos soríticos deveriam ser consentidas. Isso significa dizer que basta anuirmos às conclusões dos respectivos argumentos para resolvemos o paradoxo sorítico.16 Entretanto, é preciso deixar claro que os paradoxos são argumentos cujas conclusões não deveriam, ultima facie, serem normalizadas. Um argumento paradoxal não é um argumento cuja conclusão parece bizarra apenas prima facie. Trata-se de um argumento que detém uma conclusão objetivamente absurda.17 Se negarmos tal coisa, teremos que assumir que alguém com 0 cabelos é cabeludo, que alguém com 0 dinheiros e rico, que alguém estático é veloz e assim por diante.
Na medida em que as consequências oriundas da adoção da visão incoerentista da vaguidade são radicalmente indesejáveis, temos, ao menos, o direito intelectual de lidar com o argumento da ignorância imparável de uma maneira que tente preservar os seguintes postulados acerca da vaguidade:
(P1): Conceitos vagos são tolerantes (ainda que careçamos de uma explicação verdadeiramente clara sobre o fato);
(P2): Há proposições vagas cognoscíveis, há proposições vagas incognoscíveis.
5 Construindo os alicerces para um correto tratamento da dupla vaguidade-sorites e para a refutação do argumento da ignorância imparável
Uma observação inicial a respeito de (P2) e dos princípios de ignorância que dinamizam o argumento da ignorância imparável é que eles são silentes sobre se a ignorância em jogo é a priori ou a posteriori. No que segue, tentaremos mostrar que a resolução daquela perplexidade passa por uma reflexão sobre a relação entre as modalidades a priori e a posteriori da ignorância/conhecimento de proposições vagas. Dadas as modalidades epistêmicas em jogo e a relação com o postulado (P2), quem quiser sustentar (P2) - semanticistas e epistemicistas o querem - terá de sustentar uma das seguintes alternativas:
(P2.1): Há proposições vagas cognoscíveis a priori, há proposições vagas incognoscíveis a priori;
(P2.2): Há proposições vagas cognoscíveis a posteriori, há proposições vagas incognoscíveis a posteriori.
Vamos começar examinando (P2.1). Para tanto, vamos supor que os casos cognoscíveis a priori sejam os claros/definidos/determinados e os incognoscíveis a priori sejam os fronteiriços. Ora, ao fazê-lo, deparamo-nos com uma dificuldade aparentemente incontornável. Para vê-lo, vamos assumir que alguém com 0 dinheiros seja um caso claro/definido/determinado de não-riqueza. Agora, consideremos, apenas por hipótese, que alguém que possua 1 bilhão de dinheiros seja um caso claro/definido/determinado de riqueza (se alguém considerar o valor baixo, poderá aumentá-lo ad libitum). Desse modo, os casos limítrofes têm de estar entre 0 e 1 bilhão de unidades de posse monetária. Sendo assim, poderíamos saber a priori que os casos limítrofes seriam 1, de um lado, e 999.999.999 de outro (ou, se alguém preferir, poderíamos saber a priori que o intervalo inteiro de 1 a 999.999.999 é fronteiriço em ambas as pontas18). Ocorre que isso contradiz a suposição de que os casos fronteiriços deveriam ser incognoscíveis a priori. O contrassenso se manteria, mesmo se resolvêssemos adicionar mais uma unidade monetária para os casos claros/definidos de não-riqueza, de modo que quem tivesse 0 ou 1 dinheiros seria um caso claro/definido de não-riqueza e/ou que alguém com 999.999.999 ou 1 bilhão de dinheiros fosse um caso claro/definido de riqueza. A única coisa que estaríamos fazendo seria mudar o caso-limite inferior de 1 para 2 e o caso-limite superior de 999.999.999 para 999.999.998.
O esquadrinhamento de (P2.2) não mostrará resultado diverso. Para vê-lo, vamos supor que os casos cognoscíveis a posteriori sejam os claros/definidos/determinados e os incognoscíveis a posteriori sejam os fronteiriços. Consideremos novamente o caso de alguém que possui 0 dinheiros e o caso de alguém que possui 1 bilhão deles. Ora, é perfeitamente possível saber a posteriori até mesmo verdades necessárias como a de que alguém com 0 dinheiros é (definidamente) não-rico, bem como verdades contingentes como a de que quem tem 1 bilhão de dinheiros é (definidamente) rico. Mas, sendo assim, poderíamos saber a posteriori que os casos-limite são 1 e 999.999.999, o que contradiz a suposição inicial de que os casos fronteiriços seriam incognoscíveis.
Nesse instante, poderíamos ser induzidos a pensar que os contrassensos com os quais temos nos deparado se devem aos subpostulados (P2.1) e (P2.2) e, no saldo final, ao postulado (P2). Acontece que o preço a pagar pela negação de ambas as versões epistemicamente modalizadas de (P2) é tão alto, quanto o de abraçarmos os contrassensos com os quais topamos. Por essa razão, precisaremos examinar novamente (P2.1) e (P2.2) e tentar detectar o que há de errado com esses postulados, a ponto de termos sido conduzidos às reduções ao absurdo vistas acima. Para tanto, é crucial perceber que as hipóteses que, realmente, foram empregadas nos argumentos de reductio ad absurdum expressos acima não foram precisamente (P2.1) e (P2.2), mas, sim, as distribuições de casos claros/definidos/determinados e limítrofes em (in)cognoscíveis a priori e a posteriori. E é justamente essa percepção que nos fornece a primeira pista para descobrirmos o que está errado com (P2.1) e/ou (P2.2). Vamos começar com a observação de que parece inviável tentarmos negar qualquer uma das sentenças componentes de (P2.1). Que há proposições vagas cognoscíveis a priori, é certo. É o caso do sujeito que, com 0 dinheiros, seria (definidamente) não-rico.19 E também é certo que há proposições vagas incognoscíveis a priori. É, por exemplo, o caso da proposição de que o sujeito que possui 1 bilhão de dinheiros é (definidamente) rico. Esse tipo de proposição não pode, definitivamente, ser conhecida a priori. Não obstante, isso não quer dizer que não se poderia saber a posteriori que alguém com 1 bilhão de dinheiros seria (definidamente) rico. Nossa suspeita inicial em relação ao caso - ou, se alguém preferir, a nossa intuição intelectual/racional em relação a ele - recai sobre a proposição de que podemos, sim, saber a posteriori coisas como a de que é (definidamente) rico alguém que possui 1 bilhão de dinheiros (à frente, iremos oferecer um argumento que confirma tal suspeita).
Dessa forma, a falsidade que permitiu gerarmos os contrassensos vistos acima está em alguma das sentenças componentes de (P2.2). Como temos uma suspeita sólida de que há proposições vagas cognoscíveis a posteriori, a falsidade que estamos procurando nas versões epistemicamente modalizadas de (P2) está isolada na afirmação de que há proposições vagas incognoscíveis a posteriori. Dessa maneira, podemos corrigi-la e asseverar que, a despeito do fato de que nem todas as proposições vagas sejam cognoscíveis somente a posteriori, é o caso de que todas as proposições vagas são cognoscíveis a posteriori. Essa posição contraria todas as atuais propostas semanticistas e epistemicistas.20 Por outro lado, ela libera, automaticamente, uma forma de epistemicismo cuja ignorância acerca dos casos limítrofes não seria da ordem da necessidade, conforme preconizam os atuais epistemicismos, mas da mera contingência. Liberaria automaticamente a conclusão em questão alguma forma de semanticismo? Em princípio, não. Conforme já vimos, um dos traços genéticos do semanticismo é a tese de que a indeterminação que caracterizaria essencialmente a vaguidade é de ordem primordialmente objetiva. De todo modo, se os argumentos que temos apresentado até aqui são corretos, então, mesmo que algumas proposições vagas sejam cognoscíveis a priori, todas elas são cognoscíveis a posteriori. Mas, de que modo isso é precisamente possível?
6 Um esboço de tratamento da vaguidade e do paradoxo sorítico
6.1 Conhecimento e vaguidade
Embora algumas proposições vagas sejam cognoscíveis a priori, e, dependendo do tipo de agente intelectual envolvido, só possam ser conhecidas desse modo, temos assumido aqui que todas as proposições vagas podem ser conhecidas a posteriori. Sendo assim, a pesquisa empírica sobre as medidas/quantidades relativas ao conceito não-vago que está intrinsecamente ligado ao conceito vago atribuído tem de poder fornecer as informações que permitem associar as medidas/quantidades descobertas ao respectivo conceito vago. Tomemos, por exemplo, o conceito de ser alto. O conceito de ser alto é vago, o conceito de ter 2 m de altura não. Além disso, eles podem ser atribuídos de forma independente. Se alguém diante da Torre Eiffel exclama “Nossa, como ela é alta!”, esse sujeito pode saber que ela é alta sem saber que ela tem exatos 330 m de altura. Da mesma maneira, se alguém visitasse a caixa-forte do Tio Patinhas, poderia saber que ele é rico, a despeito de não saber exatamente quantas moedas de ouro estariam lá guardadas. De todo modo, é importante vermos que os conceitos de ter uma determinada medida/quantidade de altura e de ser alto, os conceitos de ter certa quantidade de posse monetária e de ser rico monetariamente, os conceitos de carecer de alguma quantidade de cabelos no topo do crânio e de ser calvo etc., etc. estão ligados umbilicalmente. Veremos mais à frente o quão fundamental é essa relação para compreendermos melhor a dupla vaguidade-sorites.
O fato de que conceitos vagos são atribuíveis independentemente de o atribuidor conhecer a medida/quantidade relevante envolvida mostra que as sentenças “a é rico” e “a, com 1 bilhão de dinheiros, é rico” são importantemente diferentes. Basta vermos que não se consegue construir o paradoxo sorítico fazendo uso apenas do primeiro tipo de sentença vaga. Tal verdade, bem como importantes implicações, serão tratadas adiante com um pouco mais de detalhe. Nossa tarefa agora será defender a tese de que o quantum de posse monetária, de altura, de calvície etc. que se associa ao conceito vago correspondente é algo que só sabemos a posteriori, apenas mediante investigação empírica. Nós gostaríamos de sustentar que os conceitos vagos conservam um “espaço aberto” a ser “preenchido” com as respectivas medidas colhidas através de um levantamento empiricamente conduzido. É a pesquisa empírica que produz a informação sobre as medidas de altura, pobreza, força, calvície etc. dos itens aos quais atribuímos os conceitos vagos. Tais considerações nos fornecem uma chave para começarmos a entender como é possível conhecer proposições vagas, incluindo aquelas relativas aos casos de fronteira.
Voltemos aos casos da Torre Eiffel e da Caixa-forte do Tio Patinhas. Ao refletirmos sobre casos assim, podemos ver que o ser alto, ou não, da Torre Eiffel ou o ser rico, ou não, do Tio Patinhas não estão na dependência da altura ou da riqueza particulares do atribuidor conceitual (ou do aplicador de predicados). Se a Torre Eiffel é um objeto alto, ela o é, independentemente de se quem o assere é o Homem-Formiga ou o Godzilla. E se o Tio Patinhas é rico, não importa se quem o assere é um frade franciscano ou Elon Musk. Além disso, certos conceitos podem ser associados aos vagos para gerarem especificações adicionais. Por exemplo, as sentenças “O obelisco tal-e-tal é alto” e “O obelisco tal-e-tal é um obelisco alto” afirmam coisas diferentes. Basta vermos que a verdade da primeira sentença acarreta a da segunda, mas não o contrário. A despeito dessa discrepância, as sentenças em jogo compartilham uma propriedade que, a nosso ver, é muito importante para a compreensão da vaguidade. E a segunda sentença é aquela que nos fornece a chave de compreensão da primeira. Tal como podemos ver, a segunda sentença afirma que o obelisco tal-e-tal é alto enquanto obelisco. Isso significa dizer que, considerados os demais obeliscos, o obelisco tal-e-tal é o mais alto ou figura entre os altos numa determinada escala de alturas dos respectivos itens. Em outras palavras, a segunda sentença estabelece de maneira explícita uma classe de comparação para a aplicação/atribuição do respectivo predicado/conceito vago.21 Sendo assim, torna-se pertinente perguntarmos sobre se a sentença “O obelisco tal-e-tal é alto” não carregaria de forma implícita uma classe de comparação. E a nossa resposta é “sim”. Para vê-lo, basta notarmos que a sentença “O obelisco tal-e-tal é alto” diz a mesmíssima coisa que a sentença “O obelisco tal-e-tal é um objeto/coisa/item alto”. Em consequência, a primeira sentença carrega tacitamente uma classe de comparação, que, nesse caso, é a mais geral possível e contrasta com a especificidade da segunda sentença. E é isso que explica por que a verdade de “O obelisco tal-e-tal é alto” acarreta a verdade de “O obelisco tal-e-tal é um obelisco alto”, mas não o oposto. Afinal, a sentença mais geral, em sendo verdadeira, acarreta a verdade da sentença mais específica, não o inverso. Além do mais, essa relação entre a maior generalidade de uma das sentenças e a maior especificidade da outra só faz sentido se for verdadeiro dizer que ambas envolvem, implícita ou explicitamente, uma classe de comparação. Tais considerações nos premiam com uma pista preciosa para podermos compreender uma característica essencial dos conceitos/predicados vagos: sua contexto-dependência (ou contexto-sensibilidade).
Vimos antes que sentenças vagas como “O obelisco em homenagem a George Washington é alto” e “O obelisco em homenagem a George Washington é um obelisco alto” fixam uma classe de comparação. Por essa razão, há indagações que deveriam ser vistas como indispensáveis para uma discussão profícua da vaguidade. Por exemplo: que obeliscos deveriam participar da classe de comparação, apenas os que sobreviveram concretamente até aqui, os do passado, presente e futuro do mundo real ou deveriam ser incluídos alguns, quiçá todos, os obeliscos reais e meramente possíveis? Tal como vemos as coisas, o fato de a indagação acima versando sobre o escopo metafísico da correspondente classe de comparação ser pertinente à discussão sobre a vaguidade exibe de maneira translúcida a contexto-dependência dos conceitos vagos.22 Se não fosse assim, a indagação acima teria de ser considerada despropositada, irrelevante. Porém, não é. Dessa forma, dada a irrepreensibilidade daquela indagação, resta claro que os conceitos vagos são contexto-sensíveis. Nosso desafio agora é respondê-la.
Para fazê-lo, invocaremos duas noções não suficientemente exploradas nas discussões concernentes à vaguidade, quais sejam: (I) a noção de escala de medidas/quantidades relativas ao conceito vago; (II) a noção de casos mediais/medianos/médios de conceitos vagos. A nossa aposta é a de que, se bem manejarmos tais noções, seremos capazes de mostrar que a alternativa intermediária - a do mundo real em todas as suas divisões temporais - é a resposta correta àquela indagação. Antes, porém, é importante darmos algum esclarecimento sobre os casos medianos/médios de vaguidade. Tais casos precisam ser contemplados por qualquer tratamento correto do tópico. Afinal, se selecionássemos uma quantidade suficientemente extensa, porém finita, de obeliscos com diferentes alturas, nós poderíamos arranjá-los numa escala, de modo que: os mais altos ocupariam as posições de uma das pontas, os mais baixos ocupariam as posições da outra e, no centro, os médios/medianos/mediais, que, nesse caso específico, seriam também os intermediários, ocupariam suas respectivas posições. Em outras palavras, temos que admitir a possibilidade de casos médios/mediais/medianos numa escala de conceitos vagos. Afinal, quando alguém faz afirmações sobre a classe econômica média ou sobre a estatura mediana de certos indivíduos, esse alguém não está falando de ricos ou pobres, altos ou baixos. Além do mais, assumir a existência de casos mediais/medianos de vaguidade nada tem a ver com assumir que podemos saber a priori quais seriam, por exemplo, os casos limítrofes entre os baixos e os medianos numa das pontas da escala ou entre os medianos e os altos na outra ponta. Para vê-lo, vamos supor que a altura de certa classe de indivíduos varie da medida mínima, i, à medida máxima, k, de maneira que k > i > 0 e “i” e “k” não representem dízimas.23 Ora, ainda que não se saiba se itens com a medida i de altura são baixos ou com a medida k de altura são altos, podemos saber qual é a medida que expressa o ponto médio da escala de altura. Afinal, o item que tiver a medida de altura j, em que j = (i + k)/2, será necessariamente um representante medial/médio/mediano da escala relativa aos conceitos de ser alto e de ser baixo.24 A lição a ser aprendida aqui é a de que casos mediais/medianos, os quais, eventualmente, podem ser também intermediários, são possíveis e não podem ser desprezados por nenhuma teoria correta do fenômeno da vaguidade.
Com base na lição acima, vamos começar mostrando a inadequação da alternativa mais abrangente: a de que a classe de comparação para o predicado “obelisco alto” deva conter todos os obeliscos possíveis. A razão para descartarmos essa possibilidade reside no fato de que ela tornaria impossíveis os casos mediais de vaguidade. Para vê-lo, consideremos justamente o caso do conceito de ser um obelisco alto. Se uma escala de altura dos obeliscos tivesse de ser constituída por todos os obeliscos possíveis, ela teria de ser infinita.25 Afinal de contas, para cada obelisco possível o, com medida de altura n, seria possível um obelisco o 1 , com medida de altura n + 1. A questão é que, se a escala fosse infinita, não poderia haver nenhum caso medial, uma vez que não haveria número ou intervalo numérico que pudesse representar um ponto ou uma faixa medial em uma escala infinita. Portanto, a classe de comparação do predicado “obelisco alto” não pode ser constituída por todos os obeliscos possíveis, somente por alguns.
De fato, temos que assumir que, pelo menos, um dos mundos possíveis contendo obeliscos mantém relação importante com a respectiva classe de comparação. É aparentemente indubitável que, pelo menos, o mundo possível que contenha o item ao qual se atribui o conceito de obelisco alto tenha de estar entre os mundos possíveis em relação aos quais todos os obeliscos nele contidos seriam integrantes da classe de comparação. Em outras palavras, seria completamente descabida a ideia de que o mundo possível em que o sujeito atribui o conceito de obelisco alto não tenha todos os seus obeliscos incluídos na classe de comparação pertinente. Afinal, visto que uma classe de comparação é determinada, automaticamente, pela atribuição do conceito de obelisco alto, ou pela aplicação do correspondente predicado, ao obelisco em homenagem a George Washington, devemos convir que seria demasiadamente estranho que os obeliscos (presentes, passados e futuros) do mundo em que a atribuição ocorre não se fizessem presentes na classe em jogo. Não obstante, o fato é insuficiente para provarmos o ponto perseguido aqui. Precisamos de um argumento mais robusto. Para tanto, vamos supor que o obelisco em homenagem a Washington, com seus 169,046 m, seja, não só um obelisco alto, mas o mais alto que foi, é ou venha a ser construído no mundo real. Nesse caso, quem afirma no mundo real que tal obelisco é um obelisco alto afirma uma verdade. Então, se excluíssemos o mundo onde a atribuição tem vez para ficarmos apenas com outros mundos possíveis, próximos ou não ao mundo em que a atribuição ocorre, acabaríamos corrompendo a verdade daquela afirmação sobre a altura do obelisco em homenagem a um dos pais dos EUA. Basta vermos que, a escala de altura dos obeliscos em mundos alternativos próximos ao mundo da atribuição já poderia começar, entre os mais baixos, com 169,046 m. Se casos assim tivessem de constar na classe de comparação, o obelisco em homenagem a Washington não seria alto.
Assim, a opção que resta, e que ainda provaremos ser sadia, é a de que os itens que devem compor a classe de comparação do conceito de obelisco alto sejam todos, e apenas, os obeliscos do mundo possível no qual tem lugar a respectiva atribuição conceitual. Enfim, temos à disposição o elemento de que precisávamos para mostrar que todas as proposições vagas são cognoscíveis, incluindo aquelas que versam sobre os casos-limite. Afinal, se até aqui estamos certos, o levantamento empírico da altura dos obeliscos, prédios, seres humanos etc. que habitam o mundo da atribuição dos correspondentes conceitos é o fator que permite conhecermos a escala que determina todos os casos, dos baixos aos medianos, dos medianos aos altos. Para compreendermos melhor o ponto, vamos supor que um dado sujeito, S, creia no tempo t e no mundo μ que certa coisa, o, é um obelisco alto. Vamos supor que tal crença seja verdadeira. Ora, de acordo com a proposta que estamos oferecendo aqui, o que torna verdadeira/falsa a crença de S em jogo é o fato de que, considerados todos os obeliscos existentes no passado, presente e futuro de μ, o está entre os obeliscos altos da coleção. E como se determina se o está ou não entre os obeliscos altos de tal coleção? Primeiro, precisamos determinar a escala de altura dos obeliscos de μ, a qual é formada pela ordenação interna dos itens da classe de comparação de todos os obeliscos de todos os tempos de μ. Se tivermos acesso a tal escala, podemos obter o ponto médio da escala, o qual, a depender do caso, permitir-nos-á o estabelecimento de uma parte/porção/divisão medial da escala, que separaria os obeliscos baixos dos médios e os médios dos altos (avante, retornaremos a esse ponto).
O fato de que uma parte/porção medial possa ser estabelecida em relação a determinadas escalas mundo-relativas de vaguidade é algo que precisa ser consagrado por qualquer teoria que aspire à verdade sobre o fenômeno. Afinal, é preciso fazer justiça ao uso perfeitamente inteligível de sentenças como “Carlos tem uma estatura média”, “Maria tem uma beleza mediana”, “Pedro pertence, economicamente falando, à classe média”, “João é um caso medial de calvície” etc., etc. Se um dado mundo tem uma classe medial/intermediária de obeliscos em vista de suas alturas, é possível sabê-lo. Para tanto, é preciso saber, primeiro, a média da soma da menor e da maior medida de altura dos obeliscos pertencentes à classe de comparação de μ. Tais informações, obtidas evidentemente a posteriori, permitem-nos determinar o ponto médio da escala e, se possível, determinar a partir disso a sua parte/divisão medial. Ora, a parte medial deve, evidentemente, ser a mais central possível, devendo alastrar-se o mínimo possível para cima e/ou para baixo da escala. As considerações feitas até aqui valem para quaisquer conceitos/predicados vagos. Assim, se estiver em jogo tão somente o conceito de ser alto, sem qualificações adicionais, a classe de comparação pertinente será constituída por todos os indivíduos de todas as épocas de μ.
Com base nas considerações acima, examinemos alguns casos especiais. Vamos supor que num dado mundo possível, devido à legislação tacanha, implacável e em tempo algum transgredida, haja indivíduos que detenham de 0 a 100 dinheiros apenas. Vamos supor também que haja, ao menos, um sujeito com exatamente 0, 50 e 100 dinheiros. Os indivíduos com 0 dinheiros são absolutamente pobres, e isso podemos saber a priori. E quanto aos demais? Podemos saber onde se encaixam em termos de riqueza monetária? De acordo com a proposta que está sendo apresentada aqui, podemos. Isso por que as medidas que determinam a subclasse intermediária determinam, por sua vez, os pontos de corte/transição entre intermediários e pobres (e, portanto, não-ricos) e entre intermediários e ricos (e, portanto, não-pobres), que pertencem à escala do respectivo mundo. Desse modo, pertencerá à classe média todo e qualquer sujeito que tenha exatos 50 dinheiros, pois esse é o ponto médio - e também a posição medial - da escala. No entanto, não só quem detém a medida em questão deveria pertencer à classe média da escala da pobreza-riqueza monetária concernente àquele mundo. Por essa razão, se for possível, as medidas limítrofes para os casos mediais/intermediários devem ocupar a faixa/intervalo mais central da escala de medidas entre ricos e pobres, não apenas a medida determinada pelo número que expressa o ponto médio ou a posição medial da escala. Para vermos por que isso é necessário, vamos imaginar outro mundo possível. Suponhamos que devido à legislação tacanha, implacável e em tempo algum transgredida, haja indivíduos que detenham de 0 a 101 dinheiros apenas. Nesse caso, o ponto médio da escala seria 50,5. Acontece que esse ponto não corresponde a nenhuma posição na escala. Afinal, só números inteiros positivos podem representar posições possíveis numa escala de pobreza-riqueza monetária.26 Mas, tal como vimos antes, a classe medial deve, se viável, estender-se para além de uma única posição na escala a fim de contrastar-se com as classes superior e inferior da forma mais balanceada ou harmônica possível. Assim, se há margem numérica para uma faixa/intervalo/região medial, ela deve ocupar a porção/parte/divisão mais central possível da escala. Nesse caso, dada a hipótese em discussão, as medidas que estabelecem as fronteiras inferior e superior da classe intermediária são, respectivamente, 34 e 67 dinheiros. Por conseguinte, pertencerá à classe pobre (ou baixa, se preferirmos) todo sujeito com 33 dinheiros ou menos e pertencerá à classe rica (ou alta, se preferirmos) todo sujeito que possua de 68 a 101 dinheiros. Dessa maneira, se S souber tais coisas, ele pode vir a saber as proposições vagas pertinentes, incluindo os casos fronteiriços das três partições da escala.
Mas, como ficaria a distribuição da classe intermediária num mundo possível em que, em vista da existência de uma legislação tacanha, implacável e em tempo algum transgredida, os indivíduos têm apenas de 0 a 100 dinheiros. O ponto em jogo aqui é que não é possível uma distribuição paritária entre as classes inferior, intermediária e superior. Uma delas deve ser maior. Mas, qual? Nesse momento dramático, poderíamos ser tentados a conceder que casos do tipo mostram a necessidade de adotarmos algum elemento estipulacional/convencional na explicação da vaguidade. Afinal, sempre houve a desconfiança de que a vaguidade acomodaria algo de legitimamente arbitrário e arbitrariamente legítimo. Bem, embora acreditemos na existência de conceitos arbitrais, nós descremos que os conceitos vagos pertençam a essa categoria.27 Nós assumiremos que qualquer divisão desigual das partes de uma escala de vaguidade mundo-relativa deve privilegiar a parte medial. O melhor arrazoado que podemos oferecer para tal assunção é o seguinte: se for possível, a classe medial deve ser privilegiada em relação às demais, porque se tivéssemos, por exemplo, que construir um muro para separar duas áreas de terra contíguas, ele deveria ser postado o mais centralmente possível em consideração de tais áreas. Dessa maneira, para se poder construir uma divisória real entre as áreas em jogo, é preciso que elas percam algo de si mesmas. Vale a analogia de que as partes inferior e superior de uma escala de vaguidade percam tamanho para a classe medial, quando isso for necessário, haja vista que, assim como muros separam áreas contíguas, a parte medial é capaz de separar as partes inferior e superior da escala de vaguidade. Mas, claro, isso deve ser pensado em termos de algo que, além da fixação somente de números inteiros nos limites das diferentes partes, estenda-se apenas o bastante para acomodar o privilégio natural da porção intermediária. Nesse sentido, pensamos que as diretrizes que nos permitem conhecer a distribuição de partes desiguais em uma escala de vaguidade são as que seguem: (i) a parte/divisão/etc. intermediária deve ser a mais central possível; (ii) se houver diferença na quantidade de posições entre as diferentes partes, a intermediária deve ser privilegiada, porém apenas o mínimo possível: (iii) todas as posições da escala devem ser contempladas. Portanto, a escala do mundo possível da nossa hipótese em foco ficaria assim: a parte inferior de 0 a 32, a parte medial de 33 a 67 e a parte superior de 68 a 100.
Vamos a mais casos especiais. Suponhamos que em certo mundo possível, visto sua legislação tacanha, implacável e em tempo algum transgredida, todos os indivíduos possuem precisamente 100 dinheiros. Ora, se algum dos cidadãos desse mundo é rico, todos são, se algum deles é pobre, todos são. Todavia, à que classe, afinal, pertencem os indivíduos hipotéticos em questão? Segundo o tratamento que temos oferecido aqui para os conceitos/predicados vagos, todos os sujeitos daquele mundo pertencem à classe média. Afinal, a média das medidas mínima e máxima da escala de pobreza-riqueza é, nesse caso, de exatos 100 dinheiros. A média das medidas mínima e máxima permite determinar o ponto médio e a posição medial da escala e, apenas se possível, permite determinar sua parte/divisão medial/intermediária. Na medida em que todos os sujeitos têm exatos 100 dinheiros, não há parte/divisão intermediária na escala do mundo em discussão. Nesse sentido, o ponto nevrálgico é o seguinte: para que um item pertença à classe medial, basta que o quantum de propriedade monetária do sujeito seja idêntico ao ponto médio da escala, ou, alternativamente, que o sujeito ocupe a posição medial da escala. Esse é justamente o caso em relação a todos os habitantes do mundo sob hipótese. Todos detêm um quantum que é idêntico ao ponto médio da escala, o que implica que também ocupam a posição medial dessa escala. Desse modo, todos pertencem à classe média, mesmo não pertencendo a nenhuma classe intermediária, já que não há partes/divisões na escala do respectivo conceito vago em relação ao mundo da nossa hipótese.
Mas, faz sentido falar de uma classe média/medial/mediana, quando não há indivíduos na escala que sejam pertencentes às classes inferiores e superiores? Estamos convictos de que sim, pois há, no mínimo, três boas razões para sustentar a ideia. Primeiro, a ocorrência de uma classe mediana está estritamente relacionada ao ponto médio da escala, não à existência de sujeitos que instanciem as classes inferiores e superiores da escala. Segundo, e retomando a analogia do muro que divide duas porções de terras contíguas iguais em área, vamos supor que após construí-lo, os donos das áreas, arrebatados por um súbito golpe de estupidez28, concordem em aumentá-lo paulatinamente em área, de forma que o muro vá ocupando mais e mais o espaço das áreas de terra que separava. Ao fim e ao cabo, haverá apenas muro, nenhuma área de terra para ser dividida. Nesse caso, não diremos que o muro deixou de ser a porção medial, mas, sim, que a porção medial se tornou senhora das demais. Sendo assim, a existência de indivíduos que integrem a classe medial/mediana de uma dada escala de vaguidade de um determinado mundo possível não implica que haja algo lá que pertença à classe inferior ou superior. Terceiro, o fato de serem verdadeiros certos contrafactuais relativos ao mundo em discussão também ajuda a mostrar que um mundo pode ter apenas itens mediais na respectiva escala de vaguidade. Tendo em vista o mundo de nossa hipótese, é verdadeiro dizer que, se alguém tivesse 101 dinheiros, seria rico e que, se alguém tivesse 99 dinheiros, seria pobre. Ambos desses contrafactuais se referem a um mundo próximo ao da hipótese, um mundo que é acessível, justamente, por meio dos contrafactuais em jogo e cujo resultado é consistente com a proposta que temos apresentado aqui.
Dois importantes casos ainda precisam ser considerados. Vamos supor que, num dado mundo possível, uma lei tirânica, em tempo algum desobedecida, determine voto de pobreza monetária absoluta para todos os cidadãos. Nesse caso, o valor médio entre, no mínimo, 0 e, no máximo, 0 é 0.29 E é óbvio que ter zero dinheiros é ser absolutamente paupérrimo em termos monetários. Casos em que a medida mínima e máxima de posse monetária é a mesma, sejam elas maiores ou não que zero, coloca todos os itens da escala de medidas na classe medial/mediana. Na hipótese em jogo, pertencer à classe medial acarreta pobreza absoluta, todavia não acarreta pertencer à classe baixa/inferior. Há algum contrassenso aqui? A nosso ver, nenhum. Afinal, se todos os itens de um mundo possível apresentam o mesmo quantum de riqueza, altura, calvície etc., então é fato que estão todos exatamente na média do respectivo mundo, pertencendo, portanto, à classe medial/mediana/média desse mundo. Se a média do respectivo mundo for igual a zero, os indivíduos serão absolutamente pobres, absolutamente lentos, absolutamente calvos - os carecas30 - e assim por diante, já que esse status está reservado para os casos em que a média do mundo é igual a zero. O próximo caso é seguinte: suponhamos que, em certo mundo possível, os sujeitos só possam ter 0 ou 1 dinheiro. Ora, não há número inteiro que expresse o ponto médio entre 0 e 1. Trata-se de mais um caso em que o ponto médio da escala não expressa uma posição válida da escala. Além do mais, uma vez que as posições 0 e 1 não são mediais, mas, respectivamente, inferior e superior, a escala de pobreza-riqueza monetária do respectivo mundo também não tem posição medial. Por ambas as razões, não é possível constituir classe medial/média no respectivo mundo. Haveria aqui alguma dificuldade para a teoria que temos esposado? Nenhuma, já que, nesse caso, apenas nos deparamos com um mundo que é constituído tão somente por absolutamente pobres e absolutamente ricos. A classe média simplesmente não é instanciada nesse mundo e tal fato não constitui óbice para a teoria professada aqui.
Em suma, a tese de que todas as proposições vagas são cognoscíveis está assentada sobre a tese de que o levantamento empírico mundo-relativo das medidas de altura, riqueza, calvície etc. serve para descobrimos a escala das medidas/quantidades relativas aos itens que recebem a atribuição com tais conceitos. Consideremos mais uma vez o conceito de altura. À medida que vamos atribuindo o conceito de ser alto distribuímos os itens com menor altura numa ponta da escala e os itens com maior altura na outra.31 Se, em vista do mundo em que ocorre a atribuição, a escala montada pelo atribuidor espelhar fidedignamente as medidas mínima e máxima do conceito não-vago associado ao vago atribuído, o sujeito poderá saber qualquer proposição vaga relevante ao caso, inclusive aquelas que concernem aos casos limítrofes. Sendo assim, é falsa a tese simpliciter de que a vaguidade acarreta ignorância necessária dos casos-limite. Nós dispomos de bons argumentos para defendermos que esse tipo de ignorância acontece apenas se estiver em pauta o conhecimento apriorístico de tais casos. Na sequência, vamos aplicar a proposta esboçada aqui para oferecermos uma análise parcial dos conceitos de ser monetariamente rico, de ser alto e de seus respectivos antípodas, ou seja, dos conceitos de ser monetariamente pobre e de ser baixo, além dos conceitos mediais correspondentes.32
6.2 Uma proposta de análise parcial de alguns conceitos vagos, com a pretensão de que o modelo sirva para analisarmos todos
Para os conceitos de ser monetariamente rico, pobre e mediano, as propostas são as seguintes:
(r) Se, em consideração de todos os tempos do mundo μ, x é monetariamente rico em μ, então a quantidade de dinheiro havida por x situa-se na parte/divisão superior da escala de pobreza-riqueza relativa a μ;
(p) Se, em consideração de todos os tempos do mundo μ, x é monetariamente pobre em μ, então a quantidade de dinheiro havida por x situa-se na parte/divisão inferior da escala de pobreza-riqueza relativa a μ;
(m > 0) Se, em consideração de todos os tempos do mundo μ, x é monetariamente mediano em μ e o quantum monetário havido por x é maior que zero, então o quantum monetário havido por x está na posição medial da escala de pobreza-riqueza relativa a μ ou está na parte/divisão intermediária dessa escala;33
(m = 0) Se, em consideração de todos os tempos do mundo μ, x é monetariamente mediano em μ e o quantum monetário havido por x é igual a zero, então o quantum monetário havido por x é o ponto médio da escala de pobreza-riqueza relativa a μ e x é absolutamente pobre.
Para os conceitos de ser alto, baixo e mediano, as propostas são as seguintes:
(a) Se, em consideração de todos os tempos do mundo μ, x é alto em μ, então a medida da altura de x situa-se na parte/divisão superior da escala de medidas de altura dos itens de μ;
(b) Se, em consideração de todos os tempos do mundo μ, x é baixo em μ, então a medida de altura de x situa-se na parte/divisão inferior da escala de medidas de altura dos itens de μ;
(m) Se, em consideração de todos os tempos do mundo μ, x tem estatura média em μ, então a medida de altura de x está na posição medial da escala de altura dos itens de μ ou está na parte/divisão intermediária dessa escala.34,35
Como podemos notar, as propostas de análise acima exibem com clareza as expressões conceituais cuja saturação específica e consequente precisificação numérica dependem de informação obtida por meio de investigação empírica no mundo possível onde ocorre a atribuição dos respectivos conceitos vagos. Estamos nos referindo, evidentemente, às expressões “parte/divisão superior”, “parte/divisão inferior”, “posição medial”, “parte/divisão intermediária” e “ponto médio”. Mutatis mutandis, as considerações acima valem para todos os conceitos vagos.
6.3 Conhecimento vago e sorites
A proposta que temos oferecido aqui para explicar o que são conceitos vagos tem de permitir a resolução dos paradoxos soríticos, venham eles no formato que vierem. De toda maneira e para todos os efeitos, vamos considerar o sorites condicional como sendo a principal forma de argumento sorítico.36 Mais diretamente: só é possível resolvermos o sorites condicional se identificarmos o condicional falso do argumento. Do contrário, não estaríamos falando propriamente da resolução do paradoxo. E se estivermos certos no que temos defendido, é a pesquisa empírica que nos permite conhecer as escalas de um conceito vago relativamente a um determinado mundo possível. E, sendo assim, torna-se possível descobrirmos as quantidades/medidas que determinam as posições de transição extensional entre, por exemplo, pobres e medianos e entre medianos e ricos (isso vale, evidentemente, para os casos em que o mundo possível em jogo contempla todas as correspondentes partições, não apenas duas ou, então, nenhuma). Isso posto, vamos supor que, num dado mundo possível, a escala de pobreza-riqueza monetária vá de não ter dinheiro algum a ter 1 trilhão e 2 dinheiros. Embora não seja necessário, vamos supor que, para cada número inteiro da escala, haja, ao menos, um sujeito que detenha a respectiva quantidade. Ora, o ponto médio, bem como a posição média, da escala é 500 bilhões e 1 e, sendo assim, a escala acomoda a ocorrência de uma classe intermediária. Consideremos, então, o seguinte sorites:
-
a0 com 0 dinheiros é monetariamente pobre;
-
Se a 0 com 0 dinheiros é monetariamente pobre, a 1 com 1 dinheiro também é;
-
Se a 1 com 1 dinheiro é monetariamente pobre, a 2 com 2 dinheiros também é;
-
Se a 2 com 2 dinheiros é monetariamente pobre, a 3 com 3 dinheiros também é;
Logo, a 1.000.000.000.002 com 1trilhão e dois dinheiros é monetariamente pobre.
De acordo com o que temos afirmado ao longo do texto, e tendo em vista a hipótese em jogo, é possível identificarmos o condicional falso do sorites acima. Sabemos que o ponto médio é 500 bilhões e 1. Trata-se de um número inteiro e, portanto, identifica obrigatoriamente uma posição pertencente ao particionamento intermediário da escala. Mas, é claro, não somente aquele número o faz. A escala do respectivo mundo tem 1 trilhão e 3 posições. O particionamento triplo dispõe as posições de 0 a 333.333.333.333 na porção inferior e, portanto, pobre da escala. Assim, a posição 333.333.333.334 é a posição ocupada pelo primeiro sujeito pertencente à partição intermediária da respectiva escala e, portanto, à classe média. Logo, é falso o condicional “Se a 333.333.333.333 com 333.333.333.333 dinheiros é monetariamente pobre, a 333.333.333.334 com 333.333.333.334 dinheiros também é”.
Nesse momento, alguém poderia reclamar que a nossa proposta de tratamento do sorites é irrealista, artificiosa. No mundo real, diria o objetor, quem dispõe de 333.333.333.333 dinheiros é rico. Bem, independentemente da invocação de questões inflacionárias, acreditamos que o erro básico da objeção está em usar o mundo real como régua de medição de mundos alternativos. Essa estratégia é, em essência, a estratégia naturalista de subordinação modal dos mundos meramente possíveis ao real. Ocorre que ela parece inadequada até mesmo para lidar com conceitos/predicados não-vagos, o que dirá com os vagos, os quais, segundo já vimos, exigem classes de comparação intramundanas.37 No entanto, a dificuldade mais dura enfrentada pela objeção em jogo tem a ver com o fato de que ela está comprometida em classificar como rico qualquer sujeito, real ou meramente possível, que possua 333.333.333.333 de dinheiros ou mais. No entanto, vamos supor que, num dado mundo possível, seja por razões nomológicas ou legais, o quantum de posse monetária mínima é de 333.333.333.333 dinheiros e a máxima seja absurdamente maior, por exemplo, de 1 decilhão de dinheiros (se alguém considerar esse número insuficiente, sinta-se à vontade para expandi-lo a gosto). Ora, se a objeção em discussão fosse certa, todos os sujeitos desse mundo teriam de ser ricos. Afinal, se alguém com n dinheiros é rico, alguém com n + 1 dinheiros também é. É falso, entretanto, que todos sejam ricos no mundo possível em questão. Afinal, uma classe monetária intermediária, uma que ladeia pobres e ricos, é perfeitamente traçável em relação àquele mundo. E, sendo assim, é falso que quem tem 333.333.333.333 de dinheiros não pode ser pobre.
Uma segunda objeção contra o tratamento que devotamos ao sorites seria a seguinte: na medida em que pobre é alguém que tem um quantum de dinheiro mais próximo de zero, um sujeito com 333.333.333.333 dinheiros não pode ser pobre. Contudo, a objeção enfrenta sérias dificuldades. A primeira tem a ver com o apelo ao conceito de ser próximo de zero. Esse conceito, ou é vago, ou é arbitral. Se for vago, o seguinte argumento entra em cena:
(1) Ter 1 dinheiro é ter próximo de 0 dinheiros;
(2) Se ter 1 dinheiro é ter próximo de 0 dinheiros, ter 2 dinheiros também é;
(2) Se ter 2 dinheiros é ter próximo de 0 dinheiros, ter 3 dinheiros também é;
Por conseguinte, ter 333.333.333.333 dinheiros é ter próximo de 0 dinheiros.
Diante do argumento acima, não restaria alternativa ao nosso objetor hipotético, senão oferecer uma resolução do sorites que, além de correta, deveria ser consistente com suas alegações. Afinal de contas, o argumento sorítico acima opõe-se à tese do objetor de que ter 333.333.333.333 dinheiros não poderia instanciar pobreza. Porém, o conceito de próximo de zero pode ser arbitral, em vez de vago. Se o conceito de ser próximo de zero é arbitral, posição para a qual nos inclinamos, o núcleo da objeção sob escrutínio é ad hoc.38 O ponto é que, nesse caso, o objetor pode estipular ad libitum que números serão próximos de zero. A questão é que a sua estipulação não pode refutar validamente outras, nem mesmo as puramente hipotéticas, pois tais estipulações não prevalecem umas sobre as outras. Nesse caso, a premissa básica da objeção - a de que um sujeito com 333.333.333.333 dinheiros não pode ser pobre - seria uma tentativa ad hoc de fazer com que uma estipulação imperasse sobre aquela que abrigasse a ideia de que tal número é, sim, compatível com pobreza monetária.
7 Epílogo
Conforme temos dito, há razões sólidas para sustentarmos que todas as proposições vagas são cognoscíveis. Algumas podem ser conhecidas a priori e outras, incluindo as que versam sobre os casos-limite, podem ser conhecidas a posteriori. E, por essa razão, é possível localizar a premissa falsa do sorites condicional a partir de informações advindas da pesquisa puramente empírica. Ao contrário das atuais propostas semanticistas e epistemicistas, as quais defendem ignorância necessária dos casos fronteiriços, nós defendemos uma forma de epistemicismo cuja ignorância dos casos de vaguidade é puramente contingente e, dessa maneira, remediável. Além disso, pensamos que a perspectiva que adotamos para explicar a vaguidade contempla a possibilidade de divisões internas nas classes inferior, média e superior de uma escala, bem como o emprego de advérbios de intensidade como “exiguamente”, “pouco”, “mais ou menos”, “muito”, “extremamente” etc. Porém, esse é um assunto para outra oportunidade.
Referências
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1
Para um resumo das diferentes concepções disputantes, confira Ronzitti (2011), Sorensen (2018), Hyde e Raffman (2018).
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A discussão que empreenderemos aqui sobre a vaguidade não fará distinção relevante entre a perspectiva linguística de um falante competente aplicando, ou não, um predicado vago e a perspectiva conceptualista de um sujeito atribuindo, ou negando-se a atribuir, um conceito vago. A discussão sobre a dupla vaguidade-sorites é independente da discussão sobre se predicados denotam, ou não, conceitos e se esses últimos seriam, ou não, entidades abstratas, os chamados “universais”. Além do mais, é importante notar que o debate acerca da vaguidade não se limita, em termos linguísticos, apenas aos predicados vagos. Há defesas importantes da tese de que outras categorias da linguagem contemplariam o fenômeno. Para um resumo, confira van Rooij (2011).
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Embora o andamento da nossa discussão não dependa de abordarmos o respectivo tópico, parece-nos que os teóricos que rejeitam a ideia de que haveria uma passagem extensional precisa a partir da adição ou subtração de uma determinada unidade enfrentam dificuldades adicionais no debate sobre a vaguidade. Segundo Simons (Williamson; Simons, 1992, p. 163), é anátema ao semanticista a ideia de que uma unidade mínima de medida/quantidade separando dois itens faça um deles pertencer, por exemplo, à extensão dos altos, enquanto o outro pertenceria à dos não-altos. Conceitos como os de altura, força, velocidade etc., parecem alavancar essa tese. Afinal, que unidade mínima, em vez de uma faixa ou região contínua de unidades, faria a diferença entre algo ser alto e não-alto, forte e não-forte etc.? Por outro lado, dado o fato de que predicados vagos tem extensão e contraextensão, tem que haver, inexoravelmente, pontos de passagem. Se pensarmos no predicado “é calvo”, em que a unidade mínima é a de 1 fio de cabelo, parece inadequado acreditarmos que a transição entre alguém (definidamente) calvo e não (definidamente) calvo não ocorra, precisamente, pela diferença de apenas 1 fio de cabelo. O assunto é desafiador, mas não será tratado com maior detalhamento aqui.
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As expressões “proposições vagas” e “sentenças vagas”, ou correlatas, são elipses para “proposições com conceitos vagos” e “sentenças com predicados vagos”, respectivamente.
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As expressões predicativas “não é nem definidamente rico, nem definidamente não-rico” e “é nem definidamente rico, nem definidamente não-rico” são rigorosamente sinônimas. Afinal, se elas se aplicarem a alguém, esse alguém estará inserido no limbo da terceira categorial extensional, a da obscuridade/indeterminação/indefinição no que concerne à riqueza ou a não-riqueza.
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Vale registrar que o fato de S saber a quantidade de dinheiros possuída por alguém não implica que S possa saber que esse alguém se trata de um indivíduo (definidamente) rico, (definidamente) não-rico ou nem uma coisa nem outra.
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Ainda que por razões fundamentalmente diversas do que aquelas oferecidas pelas atuais abordagens epistemicistas, as principais propostas semanticistas (indeterminismo, supervaloracionismo e gradualismo veritativo) e certas formas de contextualismo implicam necessária ignorância dos casos-limite (confira no Apêndice alguns comentários adicionais sobre a proposta gradualista). Ironicamente, Wrigth (1994, p. 148-152) tenta pressionar o epistemicismo de Williamson (1992; 1994) justamente no que diz respeito a ignorância, pois argumenta que o semanticismo é a concepção que melhor explica a necessária ignorância que envolveria os casos de vaguidade. Williamson o responde em Williamson (1996). Curiosamente, Sorensen (2001), que é visto como um dos campeões da causa epistemicista, aprova a crítica de Wright contra Williamson. Entretanto, de acordo com Valcarenghi (2023b), o tratamento dado por Sorensen à vaguidade não deve ser considerado rigorosamente epistemicista.
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8
Isso indica que, embora o argumento da ignorância imparável não seja exatamente um sorites, ele está associado a algum. E a razão está no fato de que, para certas regras, o conceito de aplicação sucessiva válida de uma regra é vago. E, claro, assim como podemos falar de coisas mais e menos altas, mais e menos velhas etc., podemos falar também de regras mais e menos aplicadas em sucessão.
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Afinal de contas, é óbvio que, se x com a quantidade q de dinheiros é rico, então y com a quantidade q + 1 de dinheiros é ainda mais rico e, portanto, são ambos ricos. Considerações desse tipo valem, evidentemente, para qualquer conceito vago. Por exemplo, se z com a altura a é baixo, então w com a altura a - 1 é ainda mais baixo e, portanto, são ambos baixos.
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Confira as discussões sobre a relação entre indistinguibilidade/indiscriminabilidade e vaguidade em Williamson (1994; 2013) e Dummett (1975). Para Williamson, a vaguidade tem tudo a ver com incapacidade discriminatória de casos imediatamente contíguos e, por conta disso, com a necessária ignorância de sujeitos não-oniscientes. Assim, a vaguidade acarretaria incapacidade discriminatória. Mas, não o inverso. A incapacidade de alguém de distinguir entre um lobo e um cão da raça pastor alemão não envolve obrigatoriamente vaguidade. Para uma discussão da relação entre incapacidade discriminatória e, por exemplo, casos de tipo Gettier, confira Goldman (1976).
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A ideia em jogo se assemelha ao chamado “princípio da tolerância”, o qual, segundo Wright (1975), permeia todos os predicados vagos. Nós aceitamos a ubiquidade da noção de tolerância em vista dos predicados/conceitos vagos. Entretanto, não aceitamos qualquer versão do princípio de tolerância. Em especial, não consentimos àquelas versões que são aparentadas à premissa indutiva do sorites indutivo. Em outras palavras, não concordamos que o princípio de tolerância vinculado aos conceitos vagos seja encapsulado por sentenças universais como “Para qualquer número n, se a com n dinheiros é rico, então a com n - 1 dinheiros também é”, “Para qualquer número n, se a com n cm de altura é baixo, então a com n + 1 cm de altura também é” e assim por diante. Outras formulações também são empregadas na tentativa de captar a noção de tolerância que seria própria aos predicados/conceitos vagos. Consideremos as duas versões a seguir, ambas inspiradas em van Rooij (2011, p. 147-148): (i) Se dissermos que alguém é rico e esse indivíduo não for visivelmente mais rico do que outro sujeito, temos que dizer que esse outro também é rico; (ii) Para quaisquer x e y, se x é baixo e x é indistinguível de y em termos de altura, então y é baixo. A dificuldade enfrentada por tais formulações é a de que, se as aceitarmos, somos compelidos a aceitar também a conclusão do argumento sorítico. Felizmente, podemos assumir um princípio que captura a noção de tolerância própria dos predicados/conceitos vagos, sem precisarmos nos comprometer com a conclusão sorítica. Basta assumirmos, simplesmente, que existe um número n tal que, se x com n dinheiros é rico, então y com n - 1 também é e que existe um número n tal que, se x com n cm de altura é baixo, y com n + 1 cm de altura também é.
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Epistemicistas defendem o princípio da bivalência. Segundo eles, ou é verdade que x é rico, ou é falso que x é rico. Semanticistas negam bivalência, de modo que, para eles, em termos gerais, ou é verdade que x é rico, ou é falso que x é rico, ou é indefinido/indeterminado que x seja rico ou não-rico. E, em sendo verdadeiro que x é rico, então x é definidamente rico (alternativamente: definidamente, x é rico), em sendo falso que x é rico, então x é definidamente não-rico (alternativamente: definidamente, x não é rico) e, por fim, em sendo o caso que x não é nem rico, nem não-rico, então x é indefinidamente/indeterminadamente rico ou não-rico (alternativamente: não é o caso que, definidamente, x é rico ou não-rico). É importante observar que a caracterização adotada aqui contempla, não apenas a perspectiva trivalente em lógica, mas também as perspectivas supervaloracionista e gradualista veritativa, todas de genética semanticista no tratamento da vaguidade.
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Nós preferíamos usar o termo “incoerentismo”, e seus correlatos, para ser aplicado a fenômenos puramente epistêmicos. A nosso ver, o termo mais feliz para o caso seria “autoconflitante”. Nesse sentido, os incoerentistas em vaguidade argumentariam que os conceitos/predicados vagos seriam autoconflitantes. Para uma melhor explicação acerca da natureza dos conceitos autoconflitantes, confira Valcarenghi (2022b).
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Wright (1975) também assume que expressões vagas são incoerentes, porém numa perspectiva de que a incoerência estaria nas regras de uso dessas expressões, o qual não poderia ser simultâneo, apenas alternativo. Não é claro para nós que o incoerentismo defendido por Wright tenha as implicações epistemológicas e metafísicas extremas havidas pelas visões de Priest e de Unger.
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Alguém poderia estranhar o fato de termos usado “calvo” em vez de “careca”. Não se trata de algo incidental. Temos boas razões para pensar que o conceito de careca implica não ter nenhum cabelo e, portanto, não se trataria de um conceito vago. Coisa diferente se dá com o conceito de ser calvo, que é vago, pois quem é calvo possui algum grau de déficit capilar no topo do crânio. Ironicamente, também pensamos que o exemplar mais clássico de alegado conceito vago, o conceito de monte, igualmente não seja vago. É claro que os conceitos de pequeno monte, grande monte, monte gigantesco etc. são vagos. Mas, isso se deve ao fato de que os conceitos de ser pequeno, grande etc. são vagos e acabam, nesse caso, contaminando com vaguidade as correspondentes expressões predicativas.
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Em oposição ao que admite Ferreira (2017, p. 109), pensamos que a anuência à conclusão de um paradoxo não pode ser tomada, literalmente, como uma forma de resolvê-lo. Ao aceitarmos ulteriormente a conclusão de um argumento cuja conclusão nos pareceu inicialmente chocante, estaremos, na verdade, apenas assumindo que o argumento não expressa realmente um paradoxo. A propósito do autor, Ferreira (2017, p. 111-161) defende um tratamento arbitrarista da vaguidade. A ideia central de sua proposta, atavicamente contextualista, é a de que, assumidas certas restrições mínimas, cuja inspiração vem de Graff (2000), para a aplicação dos predicados vagos a certos casos especiais, então, para os não-especiais, os predicados vagos toleram tudo aquilo que os usuários da linguagem arbitrarem ao efetuarem suas asserções com predicados vagos. Não temos como discutir detidamente a proposta arbitrarista aqui. Mas, cabem algumas considerações pontuais. A adoção de restrições mínimas para os chamados “casos-ideais” de predicados vagos e de estipulação para os demais casos não é uma solução ao enigma da vaguidade, mas uma fuga. Um dilema claro enfrentado pela proposta arbitrarista, versão de Ferreira, é que, se ele assumisse um vale-tudo arbitrarista para qualquer aplicação de um predicado vago, ele enfrentaria objeções relativas aos chamados “casos-ideais”. E caso ele limite a aplicação arbitrária para que ela não valha sobre os casos ideais, algo que de fato faz, ele irá enfrentar objeções relativas ao fato de que a aplicação exclusiva para tais casos é excessivamente restrita. Em outras palavras, o arbitrarismo defendido por Ferreira assume que a aplicação correta de predicados vagos se estende para além dos casos ideais, porém sua proposta não possui dispositivos para estabelecer os limites divisórios. E isso nos parece imprescindível para quem argumenta da forma como Ferreira o faz. Quanto ao tratamento dispensado ao sorites, nós o consideramos insuficiente. O arbitrarismo, como outras formas de tratamento do sorites, limita-se a afirmar apenas que o princípio irrestrito de tolerância é falso. Isso parece distante de representar uma resolução hígida do paradoxo sorítico, já que não nos permite, por exemplo, identificar o condicional falso num sorites condicional.
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Confira a discussão sobre a natureza dos paradoxos em Sainsbury (2009) e em Valcarenghi (2022a, p. 30-37).
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A concessão de intervalos inteiros feita acima não está subscrevendo a tese de que, em vez de casos fronteiriços em que uma única unidade faria a diferença para o trânsito extensional, haveria regiões fronteiriças difusas/nebulosas. Afinal, dadas as suposições em jogo no argumento, a passagem entre a extensão e a contraextensão de um dado predicado vago podem, sim, se dar em função de uma única unidade adicionada/subtraída. É a visão de que a vaguidade é uma indeterminação objetiva que está comprometida com a ideia de que uma unidade apenas não poderia bastar para a transição extensional. Essa tese não nos parece dispor de um sustentáculo claro. Afinal, algum quantum separa extensão de contraextensão. Então, por que cargas d’água essa separação não poderia se dar pela adição, ou subtração, de apenas 1 unidade relativa à grandeza não-vaga correspondente? Não parece haver bom argumento negando tal possibilidade.
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Alguém poderia especular que a discussão que estamos promovendo acima favoreceria o tratamento de Williamson (1994) no sentido da adoção de princípios de margem de erro para lidar com a vaguidade. A questão é que o tratamento de Williamson parece sofrer de males cuja extirpação parece inexequível dentro dos bastidores de sua teoria. Confira as objeções de Valcarenghi (2023a) ao tratamento mencionado.
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Poder-se-ia alegar que abordagens contextualistas da vaguidade seriam compatíveis com a posição acima. Isso, porém, não é claro para nós. Talvez a única perspectiva compatível com a posição em foco seria alguma forma de arbitrarismo. Não, entretanto, a versão proposta por Ferreira (2017, p. 159-161), uma vez que ele defende que apenas frases vagas precisificadas, como, por exemplo, “João com 2 m de altura é alto, exprimiriam proposições (uma frase como “João é alto” não o faria). Acreditamos que essa visão enfrenta tribulações sérias. Lamentavelmente, não poderemos tratar do assunto aqui.
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É digno de nota o fato de que sentenças do tipo “x é lento para ser um pugilista profissional”, “y é gordo para ser um bailarino” etc. também estabelecem explicitamente classes de comparação. Não obstante, e apesar de os predicados “é lento” e “é gordo” serem vagos, não o são os predicados das sentenças em discussão (claro, são vagos os predicados “é muito lento para ser um pugilista profissional”, “é demasiadamente gordo para ser um bailarino” etc. são vagos. Mas, isso é mérito puro das expressões modificadoras adicionadas aos predicados originais). Tal como vemos as coisas, a sentença “x é lento para ser um pugilista profissional” diz o mesmo que “x é inferior em rapidez em comparação com os indivíduos menos rápidos do grupo de pugilistas profissionais”. No segundo caso, a sentença “y é gordo para ser um bailarino” diz o mesmo que “y tem maior quantidade de gordura corporal em comparação com os bailarinos menos magros”. Em ambos desses casos, classes de comparação estão envolvidas, mas não vaguidade. Graff (2000) sustenta uma opinião diversa. Além de assumir que as expressões predicativas em jogo são vagas, ela oferece alguns casos com o intuito de mostrar que essas expressões predicativas não envolveriam classes de comparação, explícitas ou implícitas. Nós acreditamos que os casos de Graff apenas prestidigitam, mais ou menos sutilmente, as devidas classes de comparação. Lamentavelmente, não poderemos nessa ocasião aprofundarmo-nos nos casos de Graff. Para casos onde sentenças vagas fixam classes de comparação de maneira tácita, confira, por exemplo, Ludlow (1989).
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22
O tipo de contexto-dependência dos conceitos vagos que será defendido aqui não fica refém das críticas de Stanley (2003), posto que os predicados vagos não serão concebidos aqui como expressões indexicais. De acordo com o que tentaremos mostrar, o tipo de dependência que caracteriza a contextualidade dos conceitos/predicados vagos não tem relação com as intenções semânticas do atribuidor/falante, caso das expressões indexicais, nem com seus objetivos ou interesses. O contextualismo que iremos defender aqui a fim de explicar a vaguidade exibirá uma natureza exclusivamente objetiva.
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23
A razão para a exclusão do número zero é a de que não parece possível que algo tenha altura, largura, profundidade etc. iguais a zero. A razão para rejeitarmos as dízimas é a de que são números essencialmente indeterminados, e nada pode ter uma medida de altura essencialmente indeterminada, nem mesmo objetos com crescimento contínuo. Afinal, dado um determinado recorte temporal, tais itens teriam de ter uma altura determinada. Logo, os números dizimáticos não representam propriamente a medida da altura de nenhum objeto possível.
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24
A tese de que há casos mediais ou intermediários de vaguidade não afronta o princípio da bivalência. Um caso intermediário de estatura não é o caso de um item acerca do qual não é nem verdadeiro, nem falso dizê-lo alto ou dizê-lo não-alto. Do mesmo modo, um caso intermediário de estatura não é o caso de um item acerca do qual não é nem verdadeiro, nem falso dizê-lo baixo ou dizê-lo não-baixo. Um caso intermediário de estatura é simplesmente o de um item em que é verdadeiro dizer que não se trata de algo alto, nem de algo baixo, ou que é falso dizer que se trata de algo alto ou algo baixo.
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25
A afirmação acima não fixa compromisso com a tese de que há mundos possíveis com infinitos itens. Por outro lado, não há óbice algum para a tese de que há infinitos mundos possíveis, um para cada obelisco ou grupo de obeliscos possíveis, se assim alguém o desejar. Não queremos nos estender em demasia no assunto, mas, além de considerarmos que devemos vedar espaço a escalas infinitárias em vista de suas longitudes, consideramos que devemos fazer o mesmo em relação ao miolo das escalas. Se a escala que representasse as medidas de altura exemplificadas por itens de um dado mundo possível tivesse uma quantidade infinita de posições, o mundo em questão teria de ter também um número infinito de itens. A hipótese de que um mundo com infinitos itens é possível é algo que ousamos rejeitar. Afinal, se um mundo com infinitos itens fosse possível, ele teria de conter todos os itens possíveis. Tais itens poderiam ser distribuídos em regiões diferentes e independentes entre si, igualmente em número infinito, de modo que todos os princípios naturais possíveis também teriam de ser contemplados nesse mundo infinitário. Mas, desse jeito, seria necessário apenas 1 mundo: o mundo infinitário. Dado que consideramos que mais de 1 mundo seja possível, a hipótese em jogo nos parece um contrassenso e devemos rejeitá-la.
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26
Para qualquer que seja a unidade monetária escolhida, não haverá metade, um terço etc. dessa unidade. Vale o mesmo para os casos capilares, pois o quantum de cabelos de alguém será sempre expresso por meio de inteiros positivos. Afinal de contas, a metade, a terça parte etc. de 1 cabelo conta exatamente como 1 cabelo. Em rigor, todas as medidas/quantidades relevantes para o fenômeno da vaguidade podem ser expressas por meio de inteiros positivos. Por exemplo, se algo tem exatamente 1,5 m de altura, esse algo também tem exatos 150 cm, exatos 1500 mm etc. Se algo tem exatos 0,1 km de largura, então tem exatos 100 m, exatos 10.000 cm e assim por diante.
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Exemplos de conceitos que cremos serem arbitrais são, por exemplo, os conceitos relativos aos diferentes tipos de divisão do tempo, incluindo os diversos tipos de calendário, as diferentes mãos para o sentido obrigatório no trânsito de veículos etc. Que 1 hora seja dividida em 60 unidades, em vez de 600, ou que o calendário anual tenha 12 divisões mensais, em vez de 120, são coisas puramente convencionais, algo que a análise correta de conceitos desse tipo precisa prever em termos estruturais.
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Embora não seja fator decisivo para a argumentação em curso, a conjectura adotada acima pode não distar tanto assim do mundo real, como se poderia inicialmente pensar. Para ficar convencido disso, veja Cipolla (2011).
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A despeito de ser uma forma prolixa ou pomposa de se expressar, não há qualquer incorreção conceitual em dizermos, por exemplo, que um cesto contém no mínimo 0 e no máximo 0 maçãs.
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Tal como já indicamos, é essencial distinguirmos os predicados “é careca”, “é calvo” e “é cabeludo” - esse último, aliás, possuindo no mínimo dois significados distintos, ambos vagos. O predicado “é cabeludo” pode significar algo como “ter muitos cabelos” ou como “ter cabelos longos/extensos”. No primeiro sentido, ninguém pode ser um cabeludo careca (ou um careca cabeludo, se alguém preferir). No segundo, isso é possível, pois basta imaginar alguém com uma minúscula porção de cabelos na cabeça, mas cujos fios sejam longos. Ser calvo é ser portador de algum déficit capilar no topo do crânio. O maior déficit possível - o de não ter cabelo algum - identifica o status de careca. Por isso, ser calvo é vago, ser careca não.
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31
A propósito da ordenação das posições numa escala, cabe um esclarecimento sobre a questão de se sentenças como “x é mais calvo que y”, “z é mais magro que w” etc. implicam, correspondentemente, que x e y são ambos calvos e que z e w são ambos magros. Em Português, essas sentenças são ambíguas a respeito do tema. Num sentido, implicam aquilo, noutro não. Para evitar mal-entendidos, vamos preferir usar algo como “ter maior/menor calvície/magreza/etc.” ou “ter mais/menos calvície/magreza/etc.” em substituição à expressão “ser mais/menos calvo/magro/etc.”.
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A relação entre conceitos vagos e seus correspondentes antípodas, ou antagônicos, é simétrica. Assim, se Φ é o conceito vago antípoda do conceito vago Ψ, Ψ é o conceito vago antípoda do conceito vago Φ.
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33
Como podemos ver, o consequente do condicional que expressa a proposta é disjuntivo. Isso mostra que o conceito em jogo, o de classe monetária média com ponto médio maior que zero, admite uma subdivisão ulterior. Os conceitos que fazem as devidas especificações são exibidos justamente por cada um dos disjunctos. Em rigor, trata-se apenas de uma medida de economia, que será repetida, já que um consequente disjuntivo não pode representar propriamente uma análise conceitual.
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Com as análises acima e com as devidas adaptações, podemos obter as análises parciais dos conceitos de ser humano alto, obelisco alto, prédio alto etc. Para o conceito de prédio alto, por exemplo, teríamos o que segue: se, em consideração de todos os tempos do mundo μ, x é um prédio alto em μ, então a medida da altura de x situa-se na parte/divisão superior da escala de medidas de altura dos prédios de μ.
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Como podemos perceber, a análise que propusemos acima não contempla a alternativa em que o ponto médio seria zero. Tal como vemos as coisas, conceitos vagos como os de ser alto, largo, comprido, profundo etc., não podem ter ponto medial escalar igual a zero. Nada com altura igual a zero pode existir.
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Além dos sorites condicional e indutivo, costumam ser listados como argumentos de tipo sorítico os chamados “sorites fenomenológico” e “sorites da linha divisória”. A despeito da alegada variedade, pensamos que haja boas razões para considerarmos o sorites condicional o mais poderoso de todos no que tange à geração de perplexidade. O sorites indutivo é, a nosso ver, o mais facilmente tratável. Afinal, a sua premissa indutiva é claramente falsa. O chamado “sorites da linha divisória” está longe de ser paradoxal, posto que não é nada absurda a tese de que a adição/subtração de uma única unidade não permitiria transitar entre a extensão e a contraextensão de um conceito/predicado vago. No mínimo, deveríamos considerar que tal tese está sub judice e que, por conta disso, não podemos tomá-la para ser uma das conclusões absurdas a serem extraídas de argumentos soríticos. Para diferentes formas de argumentos supostamente soríticos, confira Priest (1991) e, principalmente, Hyde (2011). Acerca do chamado “sorites fenomenológico”, confira algumas notas adicionais no Apêndice.
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Confira a crítica de Valcarenghi (2022) ao naturalismo filosófico.
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Há razões que plausibilizam pensarmos que o conceito de ser próximo de zero, ou de qualquer outro número, seja um conceito arbitral. Posto que a série dos números naturais é infinita, qualquer número dessa série será mais próximo de zero do que próximo do número derradeiro da série, justamente por que ela não possui tal número. Isso indica que o conceito de ser próximo de um dado número tem uma plasticidade natural, que está naturalmente apto a acomodar-se ao arbitramento da distância numérica limite em relação à qual o usuário do conceito assume que certo número ainda se encontra próximo de 0. Não obstante, é claro para nós que, se estivéssemos às voltas com uma série finita, as coisas mudariam radicalmente de figura. Nesse caso, teria de haver um limite a partir do qual o usuário do conceito não poderia mais arbitrar ser próximo de um dado número. Nesse caso, pensamos que o conceito não seja arbitral. Mas, também não é vago.
Apêndice
Nota 7: Grosso modo, o gradualismo veritativo sustenta que verdade e falsidade, bem como os próprios predicados vagos, são graduáveis. Suponhamos que as sentenças “x com 2,01 m de altura é alto” e “y com 2,0 m de altura é alto” sejam ambas verdadeiras. Para o gradualismo, a sentença que descreve o primeiro caso é mais verdadeira do que a que descreve o segundo. Gradualistas assumem que os graus de verdade/falsidade estão no intervalo dos números reais de 0 a 1. Tem grau zero a sentença completamente/totalmente falsa e grau 1 a sentença completamente/totalmente verdadeira. Assim, a proposta gradualista assume que há infinitos graus de verdade/falsidade. Esse estoque é crucial para a concepção em jogo, pois o número de proposições precisificando conceitos vagos é infinito. Não temos a finalidade, nem o devido espaço, para fazermos qualquer levantamento detalhado do gradualismo veritativo e de suas declamadas dificuldades. Para isso, confira, por exemplo, as críticas de Unger (1979), Williamson (1994) e Sainsbury (2009). De toda sorte, não é impróprio tecermos aqui certas considerações contidas. Vemos algo estranho acontecer com o gradualismo quando consideramos sentenças com predicados cuja extensão não tem limitação superior, como, por exemplo, com o predicado “é alto”. Não pode haver nada que seja a coisa mais alta possível. Afinal, para qualquer item que tenha a altura n, é possível outro item com altura n + 1. O fato é banal, mas parece indicar que o gradualismo veritativo se compromete com um indigesto ceticismo a respeito das proposições vagas. A dificuldade envolvendo sentenças com o tipo de predicado mencionado é que não parece possível sabermos o grau de verdade/falsidade das proposições correspondentes. Afinal de contas, como seria possível saber o grau de verdade/falsidade de sentenças como “x com a medida a de altura é alto”? Qual seria o parâmetro de associação entre a medida de altura de alguma coisa e o grau de verdade/falsidade da sentença descritora correspondente? Parece-nos que, ao menos, com o tipo de predicado em jogo, ninguém poderia saber o grau de verdade/falsidade de sentenças vagas afirmando ou negando que alguma coisa é alta. Por conta disso, parece implausível pensar que seja possível sabermos se algo é alto ou não, caso não seja possível sabermos também o grau de verdade/falsidade da proposição correspondente. É certo que alguma associação do tipo sempre pode ser feita. Mas, ela seria apenas um grande exercício de arbitrariedade, algo incompatível com conhecimento. Em resumo, como não parece ser possível sabermos o grau de verdade/falsidade de proposições cuja sentença abrigue o tipo de predicado em discussão, também não parece ser possível saber se algo é ou não alto. Machina (1976, p. 60-61) poderia replicar-nos asseverando que a associação entre sentenças vagas e seus alegados graus de verdade/falsidade pode ser realizada de maneira não completamente arbitrária, desde que se dê a partir de um levantamento empírico do reconhecimento dos padrões de aplicação dos respectivos predicados vagos por seres humanos. Ocorre que a tentativa de Machina esbarra no seguinte fato empírico: aplicadores humanos competentes de predicados vagos, via de regra, abstêm-se de aplicar tais predicados perante casos não-claros de vaguidade. Nesse caso, extraviar-se-ia a pretensa simetria entre a aplicação gradual de predicados vagos e a aplicação de verdades/falsidades parciais às respectivas sentenças. No fim, parece insanável a arbitrariedade envolvendo a associação entre a aplicação de predicados vagos e os alegados graus de verdade/falsidade das respectivas proposições. Segue-se disso que, se o gradualismo veritativo fosse verdadeiro, todas as proposições vagas seriam incognoscíveis. Mas, elas não são.
Nota 36:
Tal como vemos, o chamado “sorites fenomenológico” tem obscuridades que precisam ser trazidas à luz. Diferentemente de outras formas soríticas, sabidamente genuínas, o alegado sorites tem premissas de bastidor. O argumento é sempre precedido pela descrição de casos em que há alguma sequência de itens que diferem minimamente entre si em relação às suas colorações, alturas sonoras, posições, formas espaciais, tamanhos etc. Tomemos como exemplo a hipótese de Raffman (1994), que é basicamente a que segue: suponhamos que haja uma sequência de 50 placas, todas numeradas, as quais diferem entre si apenas quanto à coloração. A primeira é vermelha, a última é laranja e as placas imediatamente vizinhas difeririam sutilmente de cor ou coloração. A ideia que alavanca o alegado sorites é a de que, se um sujeito observa a sequência de placas em duplas e em ordem crescente - ou seja, observa a primeira com a segunda, a segunda com a terceira, a terceira com a quarta e assim por diante - ele não será capaz de distinguir/discriminar a passagem das placas vermelhas para as laranjas - ou ao revés, das placas laranjas para as vermelhas - a despeito de o sujeito ser linguisticamente competente e de, isoladamente, perceber que a última placa, e quiçá outras antes, são laranjas. Em termos de argumentação no estilo sorítico, teríamos algo como o seguinte: a placa 1 parece vermelha ao sujeito. Se a placa 1 parece vermelha ao sujeito, a placa 2 também. Se a placa 2 parece vermelha ao sujeito, a placa 3 também. E, assim por diante, até a conclusão de que a placa 50 parece vermelha ao sujeito. Mas, como isso é falso, pois a placa 50 parece laranja ao sujeito, estaríamos às voltas com um paradoxo. O argumento também costuma ser expresso na seguinte versão: a placa 1 parece vermelha ao sujeito. A placa 1 é perceptualmente indistinguível/indiscriminável da placa 2 quanto à cor para o sujeito. A placa 2 é perceptualmente indistinguível da placa 3 quanto à cor para o sujeito. E, assim por diante, até a conclusão de que, para qualquer número n, a placa n é perceptualmente indistinguível da placa n + 1 quanto à cor para o sujeito. Mas, isso é falso, pois a placa 1 parece vermelha ao sujeito, enquanto a placa 50 lhe parece laranja. Dadas as versões acima para o denominado “sorites fenomenológico”, defenderemos a ideia de que nenhuma é genuinamente sorítica. Nosso ponto é o de que os dois argumentos dependem de premissas ocultas que, uma vez explicitadas, mostram que eles não constituem enigmas de próprio direito. Todos os supostos sorites fenomenológicos pressupõem que haja uma sequência de objetos em que a diferença quanto à cor, altura da nota sonora, forma espacial, tamanho, posição etc. seja tão sutil e harmonicamente distribuída no interior da sequência quanto desejarmos. Vamos examinar mais especificamente o caso de Raffman, pretendendo, evidentemente, que os resultados alcançados nesse exame se apliquem a todos os conceitos fenomenológicos.39 Via de regra, tomamos de maneira inocente a suposição de que as placas, que vão do vermelho ao laranja, diferem entre si sutil e equilibradamente. Isso só acontece por que acreditamos que as placas iniciais mantenham apenas uma diferença de tonalidade/matiz entre si, não de cor. Ocorre que, se a distinção entre todas as placas da sequência fosse meramente tonal, a sequência jamais poderia partir do vermelho e chegar no laranja, ou vice-versa. Temos, então, alguma explicação para o fato de sermos compelidos a aceitar que não somos capazes de distinguir/discriminar placas adjacentes, a saber: a crença de que as duplas iniciais de placas são todas vermelhas, diferindo entre si apenas quanto ao tom/matiz dessa cor (mutatis mutandis, vale o mesmo em relação ao laranja no movimento ao revés). Sendo assim, parece que desvelamos a falácia dos chamados “sorites fenomenológicos”. O ponto é o seguinte: o fato de as primeiras duplas de placas parecerem ambas vermelhas ao sujeito, haja vista diferirem entre si apenas em relação ao tom/matiz da respectiva cor, só permitiria estender a indiscriminabilidade para as demais duplas de placas, tal como fazem os alegados argumentos soríticos em discussão, se a sequência fosse composta apenas por placas que parecessem vermelhas. Ocorre que os próprios casos que motivam os argumentos em jogo estabelecem que a sequência termina com uma placa que parece laranja ao sujeito. Isso posto, as expressões “assim por diante” que aparecem naqueles argumentos e que são encapsuláveis por uma premissa indutiva são sabotadas pelos próprios casos que lastreiam os argumentos. Sendo assim, o caráter enigmático dos alegados sorites fenomenológicos não se deve a uma paradoxalidade latente e legítima, mas, sim, à ocultação de pressupostos importantes que, uma vez trazidos à tona, mostram que os chamados “sorites fenomenológicos” não são genuínos sorites. De toda sorte, o caso das placas não se esgota na constatação de que nenhum paradoxo genuíno dele se extrai. Isso por que ele pode ser explorado em termos de perplexidades que não seriam propriamente soríticas. Uma das perspectivas que poderiam ser exploradas frente ao caso seria a de que um sujeito poderia crer razoavelmente em proposições inconsistentes. Isso por que, aparentemente, ele poderia crer razoavelmente que há placas de cores diferentes na sequência e crer, também razoavelmente, que não há nenhuma placa de cor diferente, em razão de crer que, se as placas são observadas em ordem e de duas em duas, elas lhe parecerão ambas vermelhas. Confira, por exemplo, as perspectivas de Klein (1985), Sorensen (2001) e Foley (2004) no sentido de que a racionalidade epistêmica seria compatível com a inconsistência. Para sermos francos, não acreditamos que casos do tipo sustentem ultima facie a perspectiva sobremencionada. No entanto, trata-se de algo que, ao menos prima facie, é desafiador. Acerca de casos como o das placas, vale salientar um fato fenomenológico importante. Tal como vemos as coisas, quaisquer percebedores que motivem suas crenças adequadamente em relação às suas atribuições conceituais em situação perceptual só poderão crer falsamente que há uma placa vermelha diante deles caso não exista placa nenhuma. Havendo uma placa e havendo uma crença motivada pela atribuição do conceito de vermelho a ela, a placa existente será inexoravelmente vermelha. Raffman (1994, p. 47; 54-55) parece concordar conosco nesse pormenor. Isso é um tanto curioso, porque ela afirma que o sorites que utiliza a noção de indistinguibilidade/indiscriminabilidade, sem assumir que se trata de indistinguibilidade fenomenológica, poderia promover um tráfico entre as noções subjetiva e objetiva ligadas àqueles conceitos (Raffman, 2011). Essa acusação de eventual tráfico não é muito clara para nós. Afinal de contas, mesmo que duas placas variem entre si em relação a alguma propriedade associada à cor - como a frequência das ondas, por exemplo - porém o sujeito não mude sua atribuição quanto à cor, diremos o quê? Diremos que o sujeito deveria mudar sua atribuição ou que variações naquelas propriedades associadas às cores são irrelevantes para a propriedade de ser de tal-e-tal cor? Conforme vemos as coisas, os conceitos de cor, altura sonora, forma espacial, tamanho, posições etc. são essencialmente fenomenológicos. Sendo assim, eles são totalmente vinculados ao conceito de parecer perceptualmente assim-e-assim ao sujeito. O fato de a cor vermelha estar associada, no mundo real, a uma particular frequência de um feixe de fótons é algo puramente contingente. Se, num dado mundo possível, o percebedor atribuísse o conceito de vermelho a uma placa cuja frequência do feixe de fótons correspondesse no mundo real ao de outra cor, a placa seria, mesmo assim, inevitavelmente vermelha. Nesse caso, cabe a seguinte pergunta: poderiam dois atribuidores formar crenças que fossem adequadas às suas atribuições conceituais de cor e, mesmo assim, as crenças serem discordantes? Certamente que sim. No entanto, isso não mostra que as propriedades/conceitos de cor são fenomenologicamente independentes do atribuidor/predicador. Isso mostra tão somente que o conceito de cor é contexto-sensível. Mais precisamente: ele é subjetivo-sensível (assim como é o conceito de beleza). De alguma maneira a ser ainda melhor explicada, deveríamos consagrar o apotegma católico de que gostos, cores e amores não se discutem. De toda maneira, é importante alertar para o fato de que tais considerações não mostram que o sujeito saberia a priori onde mudaria a sua atribuição de cor às placas no interior da sequência. Para saber tais coisas, o sujeito precisa experimentar a situação a fim de saber onde suas atribuições mudam. E caso o sujeito realizasse o experimento diversas vezes, em ordem crescente ou decrescente, poderia ele atribuir diferentes conceitos de cor a uma mesma placa? Certamente que sim. Mas, isso só mostra que, se uma mesma placa lhe pareceu vermelha há pouco e laranja agora, então elas mudaram de cor relativamente a tal sujeito. A única coisa que ele não poderá fazer é crer com razoabilidade que a placa tem duas cores ao mesmo tempo. Afinal, ele não dispõe de nenhuma razão para acreditar nisso.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Jan 2025 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
26 Dez 2023 -
Aceito
07 Jun 2024