Open-access Ressentimento, ódio e política: uma interpretação nietzschiana

Resentment, hatred, and politics: a nietzschean interpretation

RESUMO

O presente trabalho constitui um estudo propedêutico acerca da conexão entre o trato nietzschiano do ressentimento enquanto perspectiva interpretativa e o problema do ódio vinculado à esfera política contemporânea. Nesse sentido, e tendo em vista a premissa de que a genealogia nietzschiana pode ofertar um modo de apreensão dos significados manifestos pelo fenômeno do ódio na atual situação política, o percurso metodológico deste estudo parte da análise do ressentimento em Nietzsche e do ódio como seu operativo; em seguida, examina com base nessa interpretação aspectos discursivos e performativos provenientes do atual cenário político. Por esse meandro, propõe-se a edificar uma argumentação baseada no estabelecimento de algumas hipotéticas chaves hermenêuticas desde a quais pretende interpretar determinadas escolhas, práticas e discursos que vêm perfazendo uma reconhecida fatia do ambiente político do qual somos coetâneos.

Palavras-chaves:
Nietzsche; genealogia; ressentimento; ódio; política contemporânea

ABSTRACT

The present work constitutes a propaedeutic study about the connection between Nietzsche’s treatment of ressentiment as an interpretative perspective and the problem of hatred linked to the contemporary political sphere. In this sense, and taking into account the premise that Nietzsche’s genealogy can offer a way of apprehending the meanings manifested by the phenomenon of hatred in the current political situation, the methodological path of this study starts from the analysis of resentment in Nietzsche and hatred as its operative; then, based on this interpretation, it examines discursive and performative aspects arising from the current political scenario. Through this meander, proposes to build an argument based on the establishment of some hypothetical hermeneutical keys from which it intends to interpret certain choices, practices and discourses that have been making up a recognized slice of the political environment of which we are contemporary.

Keywords:
Nietzsche; genealogy; resentment; hatred; contemporany politics

1 Introdução

No bojo das discussões políticas que irrompem na última década, já se faz manifesta a presença de uma conjuntura cuja sintomatologia é constituída, entre outros atributos, pelo crescimento de movimentos políticos de extrema-direita, ascensão do neoconservadorismo, recrudescimento de discursos e movimentos ultranacionalistas, instrumentalização político-eleitoral de redes sociais virtuais (ou a algoritmização da política) com vistas à difusão de notícias falsas, e apelo ideológico ao negacionismo histórico e científico, os quais instaurariam a hoje dita ‘era da pós-verdade’. O modo como certas ações e discursos são produzidos e performances protagonizadas, os fins e efeitos intentados ou que impremeditadamente ocorrem nesse arranjo sociopolítico chamam particular atenção por um componente específico: o ódio.

Prima facie, julgamos ser esse afeto humano um dispositivo psicológico a uma política do ódio transmutado em recurso metodológico, em meio e fim de uma dada forma do fazer político que esboça voo no contemporâneo. A cena em que advém é a de uma aguda crise de representação política e institucional, de tremor das bases do Estado democrático de direito, da aparição redentorista do político-empresário como suposto antídoto contra o político tradicional, e de um capítulo a mais no avanço do neoliberalismo. De outra parte, nesse quadro vigoram rijas formas costumeiras de relações de poder que em determinado grau pactuam com todas ou algumas propostas da extrema-direita, ou assistem mudas ao surgimento do fenômeno, ou então a ele se opõem abertamente. Porém, até que ponto as velhas oligarquias políticas1 não se veem intimidadas pelo referido dispositivo? Não julgam inclusive esse aparente levante ultraconservador como uma ameaça à manutenção de suas mecânicas de poder?

Diante disso, as questões aqui elencadas são como faróis na tentativa de achar vias para depreender a dinâmica própria do ódio e assim ofertar uma compreensão sobre sua incômoda presença no plano das escolhas, ações e discursos políticos neste início de século XXI. De que maneira se constitui e como atua o ódio? Que relações possui com o ressentimento? Em que medida uma análise do aparato psicológico do ressentimento pode contribuir para um entendimento da atuação do ódio? É permitido conceber que este se arvora como meio e produto do ressentimento? Por quais razões e de que modo passa da condição de sentimento individual a sentimento institucionalizado? Tomando as rédeas em direção a essas perguntas, ajuizamos obter do pensamento de Friedrich Nietzsche uma entre as possíveis saídas hermenêuticas à compreensão da mencionada dinâmica. É exatamente isso que buscamos investigar neste trabalho.

Conforme pensamos, o exame genealógico edificado por Nietzsche se mostra como topos mediante o qual seria possível construir uma apreciação da questão central posta em voga, qual seja, o estudo da noção nietzschiana de ressentimento pode oferecer pistas a uma interpretação do fenômeno do ódio emergente e atuante em discursos e práticas ínsitas ao cenário político atual? Tendo isso em vista, percebemos em suas reflexões uma entre outras exequíveis saídas hermenêuticas ao entendimento dessa dinâmica, interessando-nos, portanto, compreender por seu intermédio a lógica do ódio, o mecanismo psíquico do ódio que opera no ressentimento. Isto posto, a presente investigação constitui um estudo propedêutico acerca da conexão entre o trato nietzschiano do ressentimento enquanto perspectiva interpretativa e o problema do ódio conjuminado à esfera das relações políticas do contemporâneo.

Partindo então da premissa de que o enfoque genealógico nietzschiano nos concede uma forma de apreensão dos significados manifestos pelo fenômeno na atual situação política, optamos por iniciar o percurso metodológico deste estudo analisando a visão do ressentimento em Nietzsche, sua lógica própria e, dentro dela, a percepção do ódio como um operativo; em seguida, com base nessa interpretação, examinamos aspectos discursivos e performativos provenientes do atual cenário político. Por esse meandro, colimamos então edificar uma argumentação por meio do estabelecimento de algumas hipotéticas chaves hermenêuticas desde a quais intentamos abrir fendas à interpretação de determinadas escolhas, práticas e discursos que vêm perfazendo uma reconhecida fatia do ambiente político do qual somos coetâneos.

2 A psicologia do ressentimento

Talhada no contexto do último período de produção intelectual de Nietzsche, a noção de ressentimento constitui um dos elementos medulares da crítica genealógica da moral estatuída pelo filósofo alemão no âmbito de sua obra Genealogia da Moral. Enquanto crítica que expõe as condições socioculturais e fisiopsicológicas de engendramento dos valores morais pétreos da cultura ocidental e ocidentalizada - bem e mal -, a genealogia é um método filosófico que finca no terreno imanente das próprias inter-relações humanas assentadas historicamente, a origem desses valores. Ocupando-se inicialmente com uma mirada filológico-linguística que possibilita a identificação de semânticas associadas a terminologias morais em várias línguas, o Nietzsche filólogo aprofunda a investigação desses indícios linguísticos para desenvolver a argumentação em torno de duas tipologias morais apontadas anteriormente em Além do Bem e do Mal: a moral de escravos e a moral de senhores2. O horizonte interpretativo no qual emana essa dicotomia tipológica, horizonte tecido sob inspiração da pergunta sobre o valor dos valores morais - seu Leitmotiv -, é o locus em que a filosofia nietzschiana tardia traz à tona sua concepção de ressentimento.

Sob a perspectiva do que postula ser o tipo nobre ou senhor, Nietzsche pensa um arquétipo com base em indivíduos e grupos humanos encontrados nos mais distintos devires socioculturais, designados como artífices de uma forma específica de avaliar e criar valores. A este tipo, que eclodiria de maneira simultânea e sucessiva em todos os tempos históricos sem estar necessariamente ligado à aristocracia ou à nobreza factuais, vincula duas características fundamentais: a disposição para criar e a afirmação da vida. A disposição para instituir valores e recobrir o mundo de sentidos não seria propriamente uma ‘faculdade’, mas uma assunção de impulsos vitais, única realidade reputada como ‘dada’3 pelo autor. É desse modo que o tipo senhor assume para si, consoante escreve Nietzsche (2001b, p. 19/KSA 5, § 2-I, p. 259), “o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores”, e o faz sob a força estimulante da vida4 como vontade de poder, que é assim afirmada como tal. É dessa assunção criadora que emerge o par de valores morais ‘bom’ e ‘ruim’, subsumidos no pathos aristocrático da distância, condição indispensável ao vir a ser da moral de senhores.

Com efeito, a argumentação nietzschiana prossegue admitindo ter havido um ponto de inflexão histórico decisivo ao engendramento do outro tipo ora analisado, o tipo escravo, cujo protagonista é o povo judeu. A sinalização de uma reviravolta dos valores nobres, vinda à tona desde o aforismo 195 de Além do Bem e do Mal, é a chave interpretativa do movimento histórico-cultural cujo estratagema psicológico conduzirá ao enfraquecimento da moral nobre:

nada do que na terra se fez contra ‘os nobres’, ‘os poderosos’, ‘os senhores’, ‘os donos do poder’, é remotamente comparável ao que os judeus contra eles fizeram; os judeus, aquele povo de sacerdotes que soube desforrar-se de seus inimigos e conquistadores apenas através de uma radical tresvaloração dos valores deles, ou seja, por um ato da mais espiritual vingança” ( Nietzsche, 2001 b, p. 25/26. Grifo do autor/KSA 5, § 7-I, p. 267).

Nietzsche entende essa tresvaloração histórica enquanto ardil mobilizado pelo aparato psíquico da vingança que se fez carne e espírito entre os judeus. Vingar-se não constitui bem uma ação, mas uma reação investida de ódio e dirigida a uma alteridade: para coroar-se exige a existência de um outro que tem invertida sua posição axiológica anterior no quadro de valores vigente. O ressentimento como acontecimento humano é combustível e motor da psiquê judaica produtora de uma moral de escravos estatuída por intermédio da inversão dos valores nobres, moral que advém, escreve Nietzsche (2001b, p. 26/KSA 5, § 8-I, p. 268), “do tronco daquela árvore da vingança e do ódio, do ódio judeu - o mais profundo e sublime, o ódio criador de ideais e recriador de valores, como jamais existiu sobre a terra”. Pelo artifício de uma negação ressentida, a guinada moral judaica empreende uma transformação axiológica em que aquele que se autodesignava ‘bom’ é tomado como ‘mau’, enquanto aquele julgado ‘ruim’, na escala nobre de valores, passa à condição de ‘bom’. Conforme esclarece João Evangelista Tude de Melo Neto (2022, p. 93), “através desse artifício, a vitalidade nobre teria passado a ser considerada um vício, enquanto a impotência plebeia teria sido convertida em uma virtude”.

No § 11 da primeira dissertação de Genealogia da Moral, ao traçar os contornos dessa distinção entre duas tipologias morais, Nietzsche assevera o papel do ódio na base dessa reinterpretação dos valores ao reiterar a origem do valor ‘mau’ na moral de escravos procedendo de uma reação odiosa com relação a um outro (o tipo nobre):

este ‘ruim’ de origem nobre e aquele ‘mau’ que vem do caldeirão do ódio insatisfeito - o primeiro uma criação posterior, secundária, cor complementar; o segundo, o original, o começo, o autêntico feito na concepção de uma moral escrava - como são diferentes as palavras ‘mau’ e ‘ruim’ ( Nietzsche, 2001 b , p. 32. Grifo do autor/KSA 5, § 11-I, p. 274).

Notadamente, a reflexão nietzschiana ressalta a diferença psicofisiológica nas condições de criação dos valores ‘ruim’ e ‘mau’: a primeira exigiria uma distinção estabelecida não por ódio ou vingança, mas por uma hierárquica distância de estirpe (o sentimento do nobre para com o não-nobre seria muito mais um desdém distanciador segundo o filósofo, que uma ira aversiva); já a segunda pressuporia o aparato do ressentimento manifesto por um ‘ódio insatisfeito’ que ‘recria’ valores e cria ideais ascéticos como sua condição de possibilidade. “O ideal ascético”, assevera Michel Henry (1985, p. 51), “tem sua fonte no instinto de defesa e de salvação de uma vida em via de degeneração, a qual busca subsistir por todos os meios e luta pela sua existência”. Conforme a hipótese genealógica, apenas quando tal aparato adentra ao devir humano uma vingança fictícia ganha corpo. Ela ocorre por uma alteração no modo de ver instituinte de valores, sob uma lógica de negação de um ‘outro’ e uma inversão semântica do conteúdo dos adjetivos morais. Segundo o filósofo de Zaratustra, “esta inversão do olhar que estabelece valores - este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si - é algo próprio do ressentimento”, donde se segue que “a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto - sua ação é no fundo reação” (Nietzsche, 2001 b , p. 29. Grifo do autor/KSA 5, § 10-I, p. 271).

Por esses delineamentos, é possível sustentar haver na tipologização proposta na genealogia nietzschiana dois modos básicos de avaliar que fundam as duas formas elementares de moral ora tratadas. No âmbito da moral dos senhores, avaliar equivale a criar, instituir sentidos, significados5, interpretações, numa palavra, valores. Tal criação é fruto de uma afirmação de si posta ao mesmo tempo como singularização e anuência da própria vida enquanto vontade de poder, dinâmica conformadora ativa, na direção em que Nietzsche entende a noção de atividade (Aktivität) como medida crítica à posição mecanicista moderna6. Dito sinteticamente, o tipo nobre cria, afirma a vida e é ativo. Em contrapartida, na moral escrava, avaliar significa inverter valores, redirecionar o sentido dos valores. Disto se segue que inverter não equivale a criar: a inversão de valores é uma operação que apenas troca a posição axiológica dos termos, constituindo uma alteração semântica. Rebento da negação de um ‘não-eu’, a moral escrava é reativa, reage pela inversão por ela mesma armada, à qual vincula uma trama amparada em ideais artificiosos, os únicos produtos ficcionais que é capaz de criar.

Insistindo na distinção entre ativo e reativo (indicando respectivamente nobre e escravo, forte e fraco), irrecusável à visão da psicologia do ressentimento, conjeturamos haver em Nietzsche uma espécie de ‘teoria da ação’ assentada na energética das forças própria da derradeira fase de sua filosofia, que se empenha em ultrapassar a redoma antropológica na qual se acham circunscritas as narrativas hegemônicas sobre a ação humana (visto que se referem a noções como alma, consciência, sujeito, senso), inscrevendo-a, portanto, na esfera da fisiologia. Noutros termos, no pensamento do Nietzsche genealogista, do interior da teoria das forças arquitetada sob o esteio da vontade de poder, seria exequível extrair/derivar uma teoria da ação.

Dessa perspectiva, Oswaldo Giacoia Jr. vê como necessário “tomar como base fundante da distinção psicológica entre os tipos nobre e escravo a espécie de distinção fisiológica entre ativo e reativo e, com ela, deixar-nos guiar pelo fio condutor da teoria das forças” (Giacoia Jr., 2001, p. 80). Isto posto, a tipificação reativa, nuclear à assimilação do tipo humano ressentido, liga-se a um determinado arranjo fisiológico cuja dinâmica envolvida seria destituída de um quantum de força excedente capaz de escoamento espontâneo. Em outras palavras, faltaria a arregimentações vitais reativas espontaneidade na descarga de forças, designativa de vigor e superação, aspectos apinhados ao tipo ativo: ela não tem um alvo, é um puro expressar-se, expansividade concretizada em atos. Ao referir-se ao movimento fulcral do ressentimento, Giacoia Jr. considera que “o processo psíquico do ressentimento não almeja a descarga externa do afeto pela própria descarga” (Giacoia Jr., 2001, p. 83); disto se pode inferir que essa ‘descarga externa do afeto pela própria descarga’ pertenceria ao tipo ativo.

Ainda nesse diapasão, a falta de um excedente de força leva o tipo reativo a buscar um estímulo externo, única condição pela qual se habilita a uma descarga motivada negativamente, de menor potência e indicativa de prostração vital. Não se trata aqui de uma reação reflexa a uma excitação exterior, mas de ser inflamado por uma alteridade pouco a pouco arquitetada como inflamatória. Conforme entende Giacoia Jr. (2001), Nietzsche liga a essa descarga negativa de afetos uma necessidade de aliviar a dor e o sofrimento, uma necessidade de entorpecer-se inerente ao ressentido. O filósofo alemão desenvolve sua conjetura ao reputar que o tipo reativo seria incapaz de dar vasão a forças e afetos, posto que nele essa capacidade é inibida por outra incapacidade, a de desatar-se das impressões de dor vividas. É precisamente nessa impotência que mantém inapagável a consciência da dor, porquanto malogra ao tentar esquecê-la ou superá-la, que tem sua origem psíquica o ressentimento. Tal consciência é narcotizada: o torpor neutraliza as tenazes marcas de dor na memória.

Um alvo é, por conseguinte, requisito estruturante da lógica do ressentimento, que, por esse motivo, é finalística, ao “mobilizar, voltando-se para uma causa externa ‘culpada’ pelo sofrimento, a descarga de um afeto tônico” (Giacoia Jr., 2001, p. 83). Culpar a um outro pelo sofrimento, acusá-lo pela dor, está na raiz de um escoamento de forças que se confunde ao fim e ao cabo com uma sedação da consciência: eis que nos defrontamos como o fim e a razão de ser do ressentimento. Esses dois modos de dar vasão às forças ou de operar descargas de força, um ativo porque espontâneo e outro reativo em virtude de exigir um estímulo exterior sacramentado como ‘culpado’, enviam outrossim à reflexão nietzschiana sobre a forma de lidar com a dor e o sofrimento na condição humana, que se estende de uma aquiescência transfiguradora - cujos exemplos se encontrariam na Grécia arcaica e estariam sintetizados na expressão dionisíaco, ressignificada em Crepúsculo dos Ídolos, consoante o § 4 do Capítulo X (Nietzsche, 2006/KSA 6, § 4-X) - até uma intoxicação ressentida (atrelada à moral escrava e especialmente ao cristianismo interpretado como prolongamento do judaísmo).

Após essa exposição, indagamos de que maneira o ódio é percebido como um nutriente no exame nietzschiano do ressentimento, que peso possui nessa análise, como figura no plano geral do esquema moral escravo, e até que ponto esse arranjo permanece intacto ou com variações mínimas nas formas renovadas de ódio imanentes à vivência política do contemporâneo. Em Ecce Homo, Nietzsche traz à tona como objetivo de seu pensamento um tour de force relativo ao desvelamento crítico do espírito de vingança, independentemente de suas formas históricas: “quem conhece a seriedade com que minha filosofia perseguiu a luta contra os sentimentos de vingança e rancor, até ao interior da doutrina do ‘livre-arbítrio’ - a luta contra o cristianismo é apenas um caso particular dela” (Nietzsche, 2003, p. 31/KSA 6, § 6-I, p. 273). Embora seja somente uma de suas formas históricas, substantiva parte dessa tarefa nietzschiana volta-se para o cristianismo, para o diagnóstico do tipo cristão como continuação e aperfeiçoamento do tipo ressentido.

3 A dinâmica do ódio na crítica genealógica

Poderíamos então afiançar que a lógica do desejo vingativo requer um ‘não-eu’ esquadrinhado como causa de minhas dores, a quem deve reportar-se a vingança sob o modo de uma ficção narcotizante ou vingança imaginária, a qual, em Genealogia da Moral, é tutelada por ideias igualmente fictícios (ideais ascéticos), mas aptos a instituir modelos acabados de organização da cultura. Nietzsche vê no cristianismo o arquétipo eficiente de sistema espiritual que se apoia na dita lógica. Tomando esse rumo, questionamos: é possível conceber o quadro vingativo delineado por Nietzsche sem o sentimento de ódio? Há vingança sem ódio, ira, raiva e outros afetos repulsivos? Claramente, tais afetos tornam-se condição de possibilidade à formação dessa dinâmica de vingança. Implica dizer que o ódio está na raiz, no caule, nos frutos e sementes do ato vingativo consumado pelo tipo escravo reativo, cujo protótipo histórica e culturalmente perfeito é o rebento da moral cristã. Como insinua Nietzsche, “seria mais justificado se na entrada do paraíso cristão e sua ‘beatitude eterna’ estivesse a inscrição ‘também a mim criou o eterno ódio’ - supondo que uma verdade pudesse ficar sobre a porta que leva a uma mentira” (Nietzsche, 2001b, p. 40/KSA 5, § 15-I, p. 283-284).

São muitos os acenos nietzschianos a essa identificação entre ódio e psicologia cristã. Em oposição à inteireza de espírito e ao caráter afirmativo das tipologias nobres, índice de felicidade e força, o escravo faz de sua fraqueza o motor do ressentimento:

aqui pululam os vermes da vingança e do rancor; aqui o ar fede a segredos e coisas inconfessáveis; aqui se tece continuamente a rede da mais malévola conspiração - a conspiração dos sofredores contra os bem logrados e vitoriosos, aqui a simples vista do vitorioso é odiada. E que mendacidade, para não admitir esse ódio como ódio” ( Nietzsche, 2001 b p. 112. Grifo do autor/ KSA 5, § 14-III, p. 368-369).

Pelo excerto, Nietzsche nos permite inferir que a ‘conspiração dos fracos’ cujo ódio embora crônico seria latente e inconfesso, figura suplementado por uma inveja pela felicidade do tipo ‘bem logrado’. Referindo-se a esses tipos de humanos, escreve o filósofo alemão: “estes são todos homens do ressentimento, estes fisiologicamente desgraçados e carcomidos, todo um mundo fremente de subterrânea vingança, inesgotável, insaciável em irrupções contra os felizes” (Nietzsche, 2001b, p. 113/ KSA 5, § 14-I, p. 370). No limite, significa que o ódio vive em meio a outros afetos acoplados que se nutrem uns aos outros no processo psíquico da vingança produtora de ressentimento. No cerne d’O Anticristo, o exame do tipo cristão, pensado com base na premissa segundo a qual Paulo - o ‘gênio na lógica do ódio’7 - e não Cristo seria o mentor do sistema moral do cristianismo, dá indícios dessa polifonia de afetos que orbitam à volta do ódio para incrementá-lo. “É cristão”, escreve o filósofo no § 21, “um determinado senso de crueldade, contra si mesmo e os outros; o ódio aos que pensam diferentemente; a vontade de perseguir”, ultimando que “cristão é o ódio ao espírito, ao orgulho, coragem, liberdade, libertinage do espírito; cristão é o ódio aos sentidos, às alegrias dos sentidos, à alegria mesma” (Nietzsche, 2007, p. 26/KSA 6, § 21, p. 188).

Na passagem acima é possível ressaltar dois elementos que se incorporam ao ódio na tipologia cristã perfilhada por Nietzsche, e compreender os alvos mirados por tal ódio. O primeiro elemento identificado é um senso de crueldade contra si mesmo e os outros: senso este que se volta contra o próprio indivíduo (automartírio) e que ele dirige contra dois outros, os tipos senhoriais (quiçá um atavismo do modelo judaico de ressentimento) e o mundo ou realidade na totalidade. O segundo reside na vontade de perseguir: não basta culpar o outro, é preciso manter-se em seu encalço, envilecê-lo, atormentá-lo. Ademais, o ódio do tipo cristão, para Nietzsche, lança-se 1) contra aquele que pensa diferente, algo extensível à própria condição de ser diferente; 2) contra o espírito, a potência criadora/transformadora manifesta pelo tipo afirmador da vida, indicadora de ‘orgulho, coragem, liberdade’; 3) contra os sentidos, tomando-se aqui os impulsos corpóreos e o corpo mesmo, recusado como instância legítima da condição humana; e 4) contra a alegria dos sentidos, o prazer, o gozo dos referidos impulsos.

São dignas de nota as passagens d’O Anticristo nas quais nos é dado a entender ser o ódio o afeto-motriz na operação psicológica do ressentimento cristão. Numa dessas passagens, constante no § 5, Nietzsche traça uma comparação entre o cristão e o anarquista, e declara: “ambos décadents, ambos incapazes de atuar de outra forma que não dissolvendo, envenenando, estiolando, chupando o sangue, ambos o instinto do ódio mortal a tudo o que está de pé, que é grande, que tem duração, que promete futuro à vida” (Nietzsche, 2007, p. 73/KSA 6, § 58, p. 245). O mesmo espírito crítico aparece antes na segunda parte de Assim falou Zaratustra, intitulada ‘Dos sacerdotes’, na qual o filósofo assevera: “o sangue é a pior testemunha da verdade; o sangue envenena inclusive a mais pura doutrina, tornando-a loucura e ódio nos corações” (Nietzsche, 2011, p. 88/KSA 4, II, p. 119). Segundo compreendemos, em função do ódio como seu afeto-motriz, o ressentimento cristão sofre uma nítida ampliação em dois sentidos: torna-se mais amplo porque se dirige para um ‘outro’ que é precisamente a totalidade do mundo (este ‘vale de lágrimas’) e não simplesmente ao tipo senhorial (como ocorrera no caso da transvaloração judaica que funda a moral de escravos); e torna-se igualmente mais amplo ao passo que é redirecionado para ‘dentro’ do indivíduo, que já não culpa só a totalidade do mundo, a realidade, mas culpa-se a si próprio por sua dor e sofrimento, ardil que entroniza a ideia de pecado e a justificação da continuidade da queda adâmica.

No primeiro caso, o cristianismo amplia esse ‘outro’ para a toda a realidade - a realidade inteira é causadora de todos os males que me afligem: sob a tese nietzschiana do “ódio instintivo a toda a realidade”, reiterada no transcorrer da obra (expressão reproduzida ipsis litteris ainda nos parágrafos 29 e 30 d’O Anticristo), o ódio é então reconhecido como “o único elemento impulsor na raiz do cristão” (Nietzsche, 2007, p. 46/KSA 6, § 39, p. 212). Noutras palavras, significa afirmar que o ódio contra a totalidade da realidade é o dispositivo psicológico engendrador e constitutivo da tipologia cristã, e que, com ela, atingiu um grau único de expansão e sofisticação. “Torna-se claro”, sugere o filósofo, “em qual povo se eternizou o ódio, o ódio de chandala a essa ‘humanidade’, onde ele se tornou religião, onde se tornou gênio...” (Nietzsche, 2006, p. 52. Grifo do autor/KSA 6, § 4-VII, p. 188). Além disso, esse ódio que insulta o mundo, a vida, a natureza, a realidade, é o mesmo que ficciona um outro mundo sob o esteio de ideais ascéticos, desde onde é possível apreender a distinção entre os que criam valores (o tipo senhoril) e os que criam ideais (o tipo escravo). Nas palavras do filósofo, “todo esse mundo fictício tem raízes no ódio ao natural” (Nietzsche, 2007, p. 21/KSA 6, § 15, p. 181).

No segundo caso, o ódio contra si mesmo reflete em sua origem o papel decisivo da classe sacerdotal ao efetuar o redirecionamento do alvo do ressentimento, interpretação estatuída por Nietzsche no § 15 da terceira dissertação de Genealogia da Moral:

os sofredores são todos horrivelmente dispostos e inventivos, em matéria de pretextos para seus afetos dolorosos; eles fruem a própria desconfiança, a cisma com baixezas e aparentes prejuízos, eles revolvem as vísceras de seu passado e seu presente, atrás de histórias escuras e questionáveis, em que possam regalar-se em uma suspeita torturante, e intoxicar-se do próprio veneno de maldade - eles rasgam as mais antigas feridas, eles sangram de cicatrizes há muito curadas, eles transformam em malfeitores o amigo, a mulher, o filho e quem mais lhe for próximo. ‘Eu sofro: disso alguém deve ser culpado’ - assim pensa toda ovelha doente. Mas seu pastor, o sacerdote ascético, lhe diz: ‘Isso mesmo, minha ovelha! Alguém deve ser culpado: mas você mesma é esse alguém - somente você é culpada de si!...’. Isto é ousado o bastante, falso bastante: mas com isso se alcança uma coisa ao menos, com isto, como disse, a direção do ressentimento é - mudada ( Nietzsche, 2001 b , p. 117. Grifos do autor/KSA 5, § 15-III, p. 374-375).

O ressentido, como o próprio nome explicita, re-sente, sente novamente as dores e horrores de sua existência, seu masoquismo faz questão de incansavelmente reproduzi-las mediante uma memória incapaz de esquecimento. Ao repisá-las acusa o mundo, os outros em seu entorno e por fim, através do ardil dirigente do pastor asceta, acusa-se a si mesmo. Ao fazê-lo cava o próprio buraco onde se enterra, porque cria esse ‘dentro’ que tal como o abrangente ‘fora’ (‘o amigo, a mulher, o filho e quem mais lhe for próximo’, e também o mundo) passa a ser odiado e espezinhado.

A título de síntese, partindo da interpretação nietzschiana das bases lógicas do ressentimento, acreditamos serem defensáveis as seguintes deduções: como componente do ressentimento o ódio não cria valores, apenas inverte valores. O ‘poder’ do ódio, que em termos nietzschianos seria indício de prostração vital, adoecimento e fraqueza, está em sua capacidade de operar inversões. O seu ‘gênio’ é unicamente habilitado a criar ideais cujo conteúdo é niilista ao projetar uma outra vida em um outro mundo, negando assim esta vida e este mundo. O fato de os ressentidos serem ‘dispostos e inventivos’ reside outrossim na astúcia que se põe a imaginar além-mundos com o fito de, em simultâneo, detratar a realidade, executar o ‘estado de torpor’ ante o sofrimento, fortalecer, expandir e consolidar o ideal como a narrativa verdadeira e unicamente legítima.

Afeto marcadamente reativo, o ódio é o rebento de arranjos fisiopsicológicos e socioculturais historicamente situados, sendo ao mesmo tempo produto resultante de tais arranjos e elemento no processo de produção dos mesmos. Ademais, parecem-nos decisivas na compreensão nietzschiana as duas percepções que institui: o ódio ao outro enquanto ódio ao diferente, traço básico do ressentimento em sua forma inicial e mais abrangente (judaica); e o ódio a si mesmo, efeito do voltar-se contra si mesmo do ressentimento cuja genealogia resulta do redirecionamento8 promovido pelo discurso sacerdotal, no campo de efetivação e consagração espiritual do cristianismo paulíneo. No entanto, em ambos os casos o indivíduo ressente, espezinha-se neurastênica e ininterruptamente, reproduz de maneira regular o sentimento, permanece preso a uma memória incapaz de esquecer, quando a condição vital do esquecimento é reputada uma força ativa9.

4 Ressentimento, ódio e política contemporânea: algumas chaves hermenêuticas

Considerando o quadro argumentativo até então exposto, faremos doravante um incurso que se pretende unicamente uma tentativa interpretativa, ainda tateante, hipotética, no empenho de articular pontos nevrálgicos entre a apreciação nietzschiana do ressentimento (e nela, a figura do ódio), e o problema do ódio presentificado nos horizontes prático e discursivo da política contemporânea. Dessa maneira, reiteramos: pode a perspectiva nietzschiana da estrutura lógica do ressentimento oferecer uma contribuição à compreensão do fenômeno do ódio manifesto em parte dos discursos e práticas políticas que rodeiam o nosso tempo? Com vistas ao ensaio de uma possível resposta à presente indagação, elencamos algumas chaves hermenêuticas por hora consideradas profícuas a uma interpretação da base psíquica subjacente ao ódio que marca frações do discurso político hodierno.

O ressentimento como motor psicológico dos discursos e práticas de ódio na arena política atual seria uma primeira chave. As bases psicológicas do ressentimento cimentam, a nosso ver, a forma e o conteúdo destes discursos: o espírito de vingança, o revanchismo, o rancor, a perseguição, a condenação moral do outro, que, por seu turno, visam à instauração de práticas políticas de desvirtuamento e silenciamento. Embora admitamos a complexidade do fenômeno, supomos que o histórico de sujeitos ou grupos assim reconhecidos revela em geral uma inexpressiva e desdenhada posição anterior, tanto pela adesão a uma pauta reputada pirotécnica, débil ou pouco prospectiva, como pela inépcia de um protagonismo político significativo. Conforme pensamos, neles, como em outros grupos no fluxo histórico, acumulam-se os adubos adequados a um estouro ressentido. Conforme ilustra Peter Sloterdijk (2012, p. 116-117):

esse ressentimento começa a se formar quando a ira vingadora é impedida de alcançar uma expressão direta e se vê forçada a tomar um desvio por sobre um adiamento, uma interiorização, uma tradução ou um deslocamento. Onde quer que um sentimento de revés esteja submetido à compulsão ao adiamento, à censura e à metaforização, formam-se armazenamentos locais da ira, cujo conteúdo só é conservado para o posterior esvaziamento e retradução. A conservação da ira coloca a psyché do vingador obstruído diante da exigência de ligar o refluxo da ira com a sua prontidão para um momento do tempo indeterminadamente adiado.

Em caminho análogo, Sloterdijk (2012) compreende a modernidade como visceralmente marcada por um culto da vingança mantido até hoje como ponto cego do processo civilizatório, uma mescla entre vingança e imanência, situando um elo entre ressentimento e política. “Nos meios do nacionalismo e do internacionalismo”, escreve o autor, “surgiram novas fontes agudas de ressentimento que foram atiçadas por um clero de tipo diferente, pelo clero espiritual mundano do ódio” (Sloterdijk, 2012, p. 42). Isto posto, o ressentimento iniciado com os judeus, sutilmente redesenhado pelos cristãos, transborda-os e expande-se como espectro psicopolítico ínsito ao pacote de vantagens da modernidade, o qual passa ileso pelos totalitarismos do século XX e desagua nos afetos que movem parte da política contemporânea, “afetos entranhados que ardem ocultos” (Nietzsche, 2001 b , p. 36/KSA 5, § 13-I, p. 280), mas que são expressos e podem tornar-se programáticos.

Outra chave à questão ora tratada residiria no operar pela inversão de valores enquanto tática discursiva. Valores em torno dos quais se criaram grandes consensos, sobretudo no pós-guerra, tornam-se alvos de combate no quadro de uma recorrente retórica da inversão. Inverte-se valores referentes a conquistas civilizatórias como a democracia, o Estado democrático de direito, as políticas de reconhecimento e as políticas afirmativas; o conhecimento científico é depreciado, o trabalho intelectual acadêmico desvalorizado, realidades históricas consumadas são simplesmente negadas, organismos nacionais e internacionais (de meio ambiente, saúde, educação, cultura etc.) são publicamente desacreditados, entre outros deslocamentos. Um ‘clima conspiracionista’ é criado de modo a servir de alicerce supostamente justificador para uma audiência que se comporta ou quer se comportar como seita dogmática, por razões difusas10. Quanto ao sentido propriamente antidemocrático das pautas em questão, a filósofa Carolin Emcke (2017, p. 58) nos lembra que “é absurdo se enfrentar ao rigorismo com rigorismo, aos fanáticos, com fanatismo, aos que odeiam, com ódio. Só se pode combater a antidemocracia pela via democrática e com os instrumentos do Estado de direito”.

Com efeito, Nietzsche nos ensina que o ódio é incapaz de inventar valores, pois tão-somente os inverte, desloca significações. Em vista disto, questionamos se haveria então uma transvaloração de valores de grandes proporções em curso a partir do contexto político em que estamos enredados. Acreditamos que por sua superficialidade e quixotismo tacanho, não nos parece que esses grupos reúnem condições para produzir uma transvaloração dos valores vigentes11; longe disso, tais grupos são constituídos por um programa alquebrado desde a origem (por oxigenar valores que, embora ainda povoem subjetividades e incorporem ações em alguns devires histórico-psíquicos-culturais que simultânea e sucessivamente tecem o tecido dinâmico da realidade atual, há muito perderam força coercitiva e legitimidade legal), e facilmente desconstruído em razão de seus ‘pés de argila’ (em geral, as pautas que endossam estão nos antípodas de princípios, leis e diretrizes constitucionais republicanas, e da ordem democrática, numa conjuntura mundial constituída por uma soma considerável de Estados democráticos). Em nosso olhar, essa tática retórico-discursivo-ideológica - operar por inversões axiológicas - convive com contrapontos críticos instados em distintos centros discursivos de força inerentes a ambientes democráticos (imprensa, ciência, academia, opinião pública, mídias sociais), o que não lhe permite, segundo nosso julgamento, ultrapassar a condição de mera tática de jogo e inibe qualquer possibilidade de uma virada axiológica consequente. Por outro lado, importa não fechar questão acerca de tal possibilidade, uma vez que deparamos com o indeterminismo do fluxo dinâmico da história e nele das conformações políticas, assumindo o entendimento de Chantal Mouffe (2007, p. 25) ao alertar que “toda ordem é política e está baseada em alguma forma de exclusão. Sempre existem outras possibilidades que haviam sido reprimidas e que podem reativar-se”. Esses aspectos ora ressaltados, no limite, nos impelem à sensatez de não adotar uma perspectiva taxativa.

Por derivação, inferimos uma outra chave interpretativa: a transformação do adversário político em inimigo, visando à aniquilação do outro. Análoga à lógica da inversão de valores judaica que funda a moral de escravos, uma vez que um de seus mecanismos reside em declarar ‘o outro’ como mau (o declarar mau acaba por tornar mau aquele que é declarado como tal), essa transmutação do adversário em inimigo transcende o domínio retórico e passa a comandar os afetos numa ágora esgarçada. O adversário, admitido e respeitado no jogo político como um oponente cujas as ideias são diferentes ou mesmo contrárias às minhas passa à condição de inimigo, desde a qual deve ser odiado, execrado, aniquilado do jogo político democrático, e este último - que pressupõe a existência do contraditório como sua conditio sine qua non - é igualmente dilacerado. Com efeito, a desqualificação do adversário sustenta-se preponderantemente em argumentos ad hominen: a ofensa gratuita e asquerosa à pessoa do outro evidencia-se como o padrão discursivo operatório nesses grupos, avesso ao diálogo, à tolerância, e incapaz de abertura à diferença. A nosso ver, dois interesses emergem dessa mudança: o desejo de extermínio da diferença em nome da hipertrofia do discurso único, e o desejo de pulverização da democracia como palco de disputa e manutenção das diferenças.

No primeiro, nota-se o problema da absolutização de uma visão em razão da elisão das diferentes visões no espaço público. Para Jorge Luiz Viesenteiner, a negação do diferente é o motor do instinto judeu em Nietzsche: “negar intransigentemente o que é diferente de judeu ou exterminar toda perspectiva diferente da judia a fim de sobreviver, é o que Nietzsche entende por jüdischer Instinkt [instinto judeu]” (Viesenteiner, 2006, p. 36. Grifo do autor). Daí decorre a unilateralidade enquanto telos de uma política do ódio que mais que invisibilizar busca extirpar os diferentes discursos e fixar-se como única narrativa válida acerca do político. Michel Foucault já chamara atenção sobre esse problema ao discutir a ideia de fascismo na introdução à edição norte-americana de O Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guatarri, pondo entre os princípios relevantes àquilo que entende ser uma vida não-fascista a emancipação da “ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante” (Foucault, 1977, p. 03). Quanto ao segundo desejo, é possível afirmar que a ideia de adversário pressupõe a luta justa, e uma agonística própria da dinâmica vital em Nietzsche, na qual a disputa não visa à destruição do outro, mas inclui sua consideração numa disputa justa - aspecto que nos envia ao sentido da boa Éris d’A Disputa de Homero (Nietzsche, 2005/KSA 1, p. 785-792). Por essa via, à maneira de intérpretes como Lawrence Hatab (1995), poder-se-ia posicionar o filósofo de Zaratustra, sem ignorar a sua crítica à democracia, como um ‘defensor’ do jogo democrático na medida em que afirma a manutenção das diferentes perspectivas em disputa no tabuleiro político.

Em correspondência com as demais, é possível indicar uma outra chave de interpretação: o predomínio de uma postura reativa. No pensamento nietzschiano, a distinção entre ativo, forte, nobre, saudável, e reativo, fraco, escravo, doente, inscreve-se em um duplo registro: o primeiro apresenta a potência de retirar da consciência o sofrimento experimentado, superando-o através do esquecimento; o segundo, por sua vez, é impotente para fazê-lo. É justamente nesse sentido que a “impotência para afastar da consciência a dor vivida é que distingue a saúde da doença” (Giacoia, 2001, p. 83). O tipo reativo é incapaz de esquecer: a nosso ver, os discursos abonados por uma política do ódio definem-se por um agressivo repisar o suposto ou imaginado agente e a suposta ou imaginada causa do sofrimento, seja de si próprio, seja da ‘nação’, do ‘povo’ ou do ‘país’, postos como meros jargões retóricos. Eles demandam enquanto condição de existência e sob uma batuta retórica, da parte dos sujeitos e grupos que os propalam, uma memória perene das chagas realmente vividas (o fato de terem sido desprezados ou tidos como heteróclitos, inexpressivos, inócuos) e das imaginadas (uma alteridade a ser proclamada inimiga), como motor de uma reação compulsiva. Tais discursos - que instituem práticas e estas, por seu turno, reiteram tais discursos, num movimento que nos parece circular - permanecem quase sempre encarcerados às suas próprias memórias, nada acrescentando como algo derivado deles mesmos senão mais discursos e práticas explícitas ou sutis de ódio.

Nas pegadas de Peter Sloterdijk, o ódio consiste no prolongamento psíquico da ira, nela fundando-se à medida que a preserva mediante uma memória cultivada. De acordo com o autor, o ódio deve ser compreendido com base no registro da ira, entendendo que somente a partir desta, aquele toma musculatura conceitual e analítica: “em seu conjunto, o conceito de ódio se mostra como analiticamente inútil, uma vez que ele deriva de fenômenos da ira e só pode se tornar inteligível como forma de sua conservação” (Sloterdijk, 2012, p. 80). Assim, para Sloterdijk, não é propriamente o ódio que fabricaria discursos, performances e enformaria programas políticos, sendo tão-só um recurso metodológico psíquico para tal, mas a ira. É nesse sentido que “por meio da cultura do ódio”, assegura o autor, “a ira ganha o formato de projetos” (Sloterdijk, 2012, p. 82). A título de hipótese, vê-se também nesses sujeitos e grupos, que o ensaio de realizar uma inversão no plano dos valores é como que transposto para o plano epistemológico. Entretanto, essa tentativa afigura-se desde o início malograda. Dirigida pelo negacionismo histórico e científico, contextualizado no âmbito de um quiçá apressado rótulo de ‘pós-verdade’, tal investida tem o seu fracasso anunciado por aquilo Hannah Arendt (2011. p. 298) pensa ser o caráter coercitivo da verdade: “vista do ponto de vista da política, a verdade tem um caráter despótico. Ela é, portanto, odiada por tiranos, que temem com razão a competição de uma força coercitiva que não podem monopolizar”. Qualquer inversão epistêmica esbarra na consolidação dos saberes e nos enormes consensos gerados em seu entorno, jogando entusiastas da negação pura e simples em circunstâncias patéticas.

5 Considerações finais

O sucesso de uma inversão epistemológica negacionista só é possível, suspeitamos, quando boa fatia do tecido social abraça uma destruição cognitiva completa, algo pouco crível de ocorrer no cerne de sociedades democráticas complexas e plurais. Não obstante o campo político, do ponto de vista da natureza de seu discurso, instaurar-se como campo retórico por excelência, ao comportar estratégias que passam ao longe da argumentação demonstrativa e razoável, não quer dizer que o ódio e suas consequências sejam em seu âmago uma praxe habitual, mormente nas democracias contemporâneas. Noutra senda, sua instrumentalização estratégica por partes de grupos de poder, apesar da nítida intenção de alastrá-lo, não pode dar conta de seus efeitos destrutivos, embora em alguma medida os possa ignominiosamente querê-los.

Por fim, aqui foram ensaiadas algumas direções interpretativas possíveis a uma tipificação de mecanismos psíquicos subjacentes à instauração do que intitulamos uma política do ódio, por meio da genealogia nietzschiana do ressentimento. Pelo exposto, como dinâmica psíquica-moral o ressentimento é incapaz de criar valores, sua capacidade limita-se unicamente a modificar valores já instituídos: ele é um redirecionador e um ressignificador de semânticas sobre a matéria bruta do valor no sentido de sua inversão - a modificação nos valores que produz é unicamente uma inversão, uma modificação dos polos e não uma mudança que possa designar um outro viés interpretativo (uma terceira via), mas apenas uma alteração das posições axiológicas previamente postas. Sendo assim, o ódio e o ressentimento são estéreis em um sentido nietzschiano, porquanto infecundos quanto à possibilidade de realização de uma transfiguração moral e politicamente afirmativa.

Referências

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  • VIESENTEINER, J. L. 2006. A grande política em Nietzsche São Paulo: Annablume.
  • 1
    Em O Ódio à Democracia, Jacques Rancière assume a premissa de que “todo estado é oligárquico”, atestando, entretanto, que “a oligarquia dá à democracia mais ou menos espaço, é mais ou menos invadida por sua atividade. Nesse sentido, as formas constitucionais e as práticas dos governos oligárquicos podem ser denominadas mais ou menos democráticas” (Rancière, 2014, p. 92).
  • 2
    No aforismo 260 de Além do Bem e do Mal, obra cronologicamente anterior a Genealogia da Moral, Nietzsche anuncia pela primeira vez a referida dicotomia. Após fazer uma investigação histórico-cultural de muitas morais, assegura ter encontrado “certos traços que regularmente retornam juntos e ligados entre si: até que finalmente se revelam dois tipos básicos, e uma diferença fundamental sobressaiu. Há uma moral dos senhores e uma moral de escravos” (Nietzsche, 2001a, p. 172. Grifos do autor/KSA 5, § 260, p. 208). No presente trabalho, as obras de Nietzsche em português serão acompanhadas de referências às obras originais reunidas na Kritische Studienausgabe (KSA), organizadas por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, seguidas de volume, aforismo (acompanhado de capítulo em algarismo romano, se necessário) e número da página.
  • 3
    A hipótese nietzschiana de que o mundo de nossos impulsos seria a única realidade admissível situa-se no § 36 de Além do Bem e do Mal, quando da suposição de que nada poderia ser “‘dado’ como real, exceto nosso mundo de desejos e paixões”, e que não seria possível, “subir ou descer a nenhuma outra ‘realidade’, exceto à realidade de nossos impulsos” (Nietzsche, 2001a, p. 42/KSA 5, § 36, p. 54).
  • 4
    O § 5 do quinto capítulo de Crepúsculo dos Ídolos é, a esse respeito, peremptório: “ao falar de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos força a estabelecer valores, ela mesma valora através de nós, ao estabelecermos valores” (Nietzsche, 2006, p. 37. Grifo do autor/KSA 6, § 5-V, p. 86).
  • 5
    Nietzsche chega mesmo a conjeturar a origem da linguagem como rebento da existência tipológica nobre, única, conforme a hipótese aventada, capaz de cunhar palavras, recobrir o mundo de significações. Na emblemática passagem escrita no § 2 da primeira dissertação de Genealogia afirma que “o direito senhorial de dar nomes vai tão longe, que nos permitiríamos conceber a própria origem da linguagem como expressão de poder dos senhores: eles dizem ‘isto é isto’, marcam cada coisa e acontecimento com um som, como que apropriando-se assim das coisas” (Nietzsche, 2001b, p. 19. Grifo do autor/KSA 5, § 2-I, p. 259).
  • 6
    Consideramos a noção de ‘atividade’ como sendo ao mesmo tempo uma alternativa à ideia de adaptação oriunda do darwinismo, e um argumento que visa articular tal noção à vontade de poder: “o claro não assentimento à interpretação darwinista-spenceriana impele Nietzsche a pensar outra acepção do ‘acontecer fisiológico’, ou melhor, da própria vida. Ela envolveria uma imprescindível diferenciação entre as noções de reatividade e atividade, uma distinção entre vida pensada como teleologicamente orientada para a autoconservação, a adaptação, o ajustamento, e vida interpretada como vontade de poder” (Apolinário, 2018, p. 34. Grifo do autor). Por essa via, a vida como vontade de poder nega a tese mecanicista em nome de uma compreensão dinâmica de forças não determinística atuante em todo acontecer orgânico: uma dinâmica, não uma mecânica.
  • 7
    Ao operar uma distinção entre Cristo e Paulo, Nietzsche tece o seguinte comentário: “em Paulo se incorpora o tipo contrário ao ‘portador da boa nova’, o gênio em matéria de ódio, na visão do ódio, na implacável lógica do ódio. O que não sacrificou ao ódio esse ‘disangelista’” (Nietzsche, 2007, p. 49/KSA 6, § 42, p. 215-216).
  • 8
    Tomando isso em consideração, a nosso ver faz-se premente investigar possíveis meios responsáveis pelo redirecionamento do ressentimento na atualidade, na condução de indivíduos ao acúmulo de rancor: mídias sociais digitais financiadas por grupos políticos e econômicos, conglomerados de comunicação (rádio e TV), instituições religiosas de massa, todos possíveis candidatos a novos sacerdotes ascéticos no mercado sacerdotal contemporâneo.
  • 9
    Desde Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral, Nietzsche vê no esquecimento um caráter plástico e ativo ligado à percepção de seu papel como um freio da consciência que garantiria a segurança do humano em meio a um arranjo vital cultor de verdades esquecidas como metáforas. Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. São Paulo: Hedra, 2008. p. 41/KSA 1, I, p. 883. Em Genealogia da Moral, ele retoma essa visão: “esquecer não é uma simples vis inertiae, como crêem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência” (NIETZSCHE, 2001b, p. 47/KSA 5, § 1-II, p. 291). Nesse sentido, Henry acresce que em Nietzsche o esquecimento liga-se à dinâmica mesma da vida, posto que “esquecer é não pensar em [...] Esquecer para a vida é não pensar em” (HENRY, 1985, p. 22); e isto porquanto “o esquecimento não promana do enfraquecimento de uma faculdade deixada sem emprego mas da estrutura da vida e de seu querer incondicional” (HENRY, 1985, p. 24).
  • 10
    Em torno disso, indicamos a urgência de um exame ulterior sobre os inúmeros interesses que na cena política do mundo atual entram em jogo na adesão a projetos conspiracionistas, ligados a agremiações políticas, conglomerados econômicos, instituições religiosas, grupos midiáticos; a posições neoconservadoras, extremistas, armamentistas, elitistas, neoliberais, reformistas; a reivindicações e visões de amplo espectro (desejo por mudança, populismo, interesses de categorias do serviço público); ou ainda a decepções originadas pelo descrédito com relação a partidos políticos, pela crise de representação política e institucional, entre outros aspectos. Mapeá-los a fim de compreender essa tecedura política constitui tarefa para investigações futuras.
  • 11
    Consoante entendemos, a ideia de transvaloração dos valores (Umwetung aller Werte) assumida como programa por Nietzsche liga-se, em última instância, à instituição de novos valores em decorrência da afirmação da vida enquanto matriz de avaliação, à luz da vontade de poder como dinâmica plástica criadora-destruidora. Para Scarlett Marton, três movimentos medulares referentes à noção de valor, dão corpo ao sentido de transvaloração na filosofia nietzschiana: a iconoclastia quanto a valores niilistas, a inversão de valores e a criação de novos valores. Conforme a filósofa, “transvalorar é, ainda, criar novos valores. Aqui Nietzsche pretende realizar obra análoga a dos legisladores: estabelecer novas tábuas de valores” (Marton, 2001, p. 78). No contexto ético e político atual, verificam-se, se muito, práticas discursivas baseadas em mecanismos de inversão de valores as quais, reiteramos, não produzem uma transvaloração, sobretudo no sentido da criação de novos valores em assentimento à vida como vontade de poder, uma vez que tais práticas reeditam valores considerados negadores da vida no horizonte nietzschiano, é dizer, valores metafísicos e morais.

Editado por

  • Nome dos editores responsáveis pela avaliação:
    Inácio Helfer
    Luís Miguel Rechiki Meirelles

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2025
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2023
  • Aceito
    25 Mar 2024
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