RESUMO
Este artigo teve o intuito de analisar como ocorre a inserção da música popular e dos objetos aurais em exposições museológicas, tendo como objeto de estudo o museu The Beatles Story, localizado em Liverpool. A análise foi embasada em registros coletados empiricamente e estudos teóricos, tendo em vista os estudos interdisciplinares sobre o som e a literatura que aborda os museus dedicados à música e ao som. Para análise, foram considerados o áudio minutado e 90 registros fotográficos produzidos na visita ao museu. O percurso na exposição revelou a predominância da narrativa já consagrada historicamente, sem elementos que ofereçam outras possibilidades interpretativas. Alguns aspectos não abrem espaço para problematização da memória encenada, entre eles as ambiências, criadas principalmente por áudios e objetos aurais, a utilização de legendas inconsistentes e a ausência de outros recursos comunicacionais.
PALAVRAS-CHAVE
Música popular; exposição; museu The Beatles Story; objetos aurais
ABSTRACT
This article aimed at analyzing how the insertion of popular music and aural objects in museum exhibitions occurs, taking as its object of study The Beatles Story museum, located in Liverpool. The analysis was based on empirically collected records and theoretical studies, taking into account interdisciplinary sound studies and literature on museums dedicated to music and sound. The analysis considered the audio minutes and 90 photographic records produced during a visit to the museum. The tour of the exhibition revealed the predominance of the historically established narrative, with no elements that offer other interpretative possibilities. Some aspects do not open up space for questioning the staged memory, including the ambience, created mainly by audio and aural objects, the use of inconsistent captions and the absence of other communication resources.
KEYWORDS
popular music; display; The Beatles Story Museum; aural objects
INTRODUÇÃO
A música popular, tida tradicionalmente como uma forma bastarda e desvalorizada por seu vínculo com o mercado e a indústria cultural, passou a ser reconhecida pelas instituições de consagração do patrimônio, especialmente a partir da segunda metade do século XX, inclusive por ser um elemento bastante utilizado por grupos e indivíduos para conferir significados e construir identidades, participando das apropriações plurais que transformam o patrimônio disposto no espaço urbano, dentro e fora de contextos institucionais.
O presente artigo é fruto de uma investigação mais ampla que procurou perceber semelhanças e diferenças entre as formas de apropriação de lugares e canções, tanto por parte de citadinos quanto de turistas, e em que medida estas afetam e são afetadas por intervenções e narrativas gestadas nas esferas do mercado e do Estado, destacando as que se voltam para os campos museal e do patrimônio cultural. A categoria patrimonial e as influências dos movimentos vinculados ao gênero musical no tecido urbano nos instigam a analisar a inserção da música popular e dos objetos aurais2 em exposições museológicas, tendo como objeto de estudo o museu The Beatles Story (TBS), localizado em Liverpool. Por sua penetração e perenidade enquanto fenômeno cultural em escala global, os Beatles configuram um objeto privilegiado de estudo das formas de atribuição de sentido patrimonial à canção popular, e, consequentemente, de sua inserção em contextos museais.
Em 2015, como parte das atividades de investigação, foi possível realizar uma visita ao museu, uma incursão de um dia por diversos lugares associados aos Beatles em Liverpool, e um breve trabalho de campo no entorno do estúdio da EMI em Abbey Road, Londres. Para analisar a inserção da música popular e dos objetos aurais em exposições, foi retomado o material empírico recolhido naquela oportunidade e foram acrescentadas novas reflexões teóricas no campo interdisciplinar dos estudos do som (sound studies), além dos resultados de investidas mais recentes na literatura que versa sobre os museus dedicados à música e ao som. Notamos que, de modo geral, os museus vieram a incorporar o som mediatizado não apenas como acervo, mas também como meio, por meio de narrações explicativas, audioguias, ambientações sonoras e elementos multissensoriais que integram narrativas expográficas.
Para alcançar nosso intento, baseamo-nos no áudio minutado3 e em 90 registros fotográficos produzidos na visita. Após uma breve explanação conceitual e uma contextualização histórica da instituição, abordaremos o percurso de sua exposição permanente, buscando apresentar seu fio narrativo enquanto refletimos sobre a inserção dos objetos aurais e a forma de representá-los com base na leitura do cânone da narrativa sobre os Beatles. À luz da análise do emprego do som na exposição permanente do TBS, um museu que trata da carreira e obra de músicos populares em recorte eminentemente biográfico, pretendemos entender os possíveis nexos entre acervo, narrativa expográfica e construção de significados que a música popular mobiliza em espaços museológicos que se debruçam sobre ela. Concluímos com uma avaliação crítica que tem por objetivo sinalizar critérios que possam servir de baliza para o emprego do som e da música nos museus, especialmente os que têm a música popular como mote de sua atuação.
O OBJETO AURAL NO CENÁRIO PATRIMONIAL E MUSEOLÓGICO
Compreendemos a mudança de perspectiva sobre a música popular como fenômeno social articulado em sua ligação umbilical com a modernidade, explicitada sobremaneira na escalada do crescimento urbano e no desenvolvimento das expressões culturais inseridas nas cadeias produtivas em formato industrial para distribuição massiva no mercado. Ancorados numa gama de estudos que nos precede, salientamos dois elementos centrais para caracterizar a música popular e embasar as discussões que faremos adiante: 1) A formação de uma audiência massiva, fruto dos múltiplos deslocamentos populacionais que fazem das metrópoles modernas cenários de grande diversidade e trocas culturais, nas quais a experiência social inédita até então desterritorializa sujeitos e descoleciona (Garcia Canclini, 1997) objetos, modificando tradições e minando quaisquer tentativas de manter intactas expressões culturais pretensamente puras. É neste sentido que o popular literalmente põe na roda elementos musicais advindos das mais diversas procedências geográficas e sociais, e, justamente por isso, causa simultâneo incômodo aos folcloristas e acadêmicos eruditos que se querem pretensos guardiões de manifestações a ser preservadas das garras do mercado e da audição pouco criteriosa das massas urbanas; 2) Sua adesão imediata aos meios massivos como forma para sua produção, circulação e consumo, especialmente após o advento da fonografia.
Queremos destacar que as implicações dessa profunda alteração produzida no que o pioneiro estudo de R. Murray Schafer (1997) denomina de “paisagem sonora” (que, sinteticamente, designa um campo acústico de estudo qualquer, enquadrado por quem o escuta) não se restringem, obviamente, à música popular, pois a chamada “revolução elétrica” introduz a possibilidade da reprodução técnica de qualquer som por meio, portanto, da gravação, o que o mesmo Schafer denomina de esquizofonia, ou seja, a possibilidade de separar o som do momento no tempo em que foi produzido por seu emissor. Este processo nos interessa sobretudo na medida em que converte o som em objeto “que pode ser movimentado ou transportado através do mundo ou estocado em fita ou disco [e agora em formatos digitais] para gerações futuras” (Schafer, 1997, p. 134). Assim, reprodutibilidade e mediatização técnica transformaram nossas relações com o som ao torná-lo objetificável. Suas consequências culturais e sociais, a priori, foram evidentes na expansão da indústria cultural e dos meios de comunicação, destacando-se a fonografia e o rádio, mas igualmente reconfiguraram radicalmente as paisagens sonoras, em especial a urbana.
Uma das possibilidades abertas pela gravação foi seu uso para registro documental de expressões culturais. Esse veio também tomou fôlego com a possibilidade de registrar depoimentos relativos a acontecimentos históricos, afetando a construção da memória e a forma de narrar histórias. A etnomusicologia e o Movimento Folclorista beneficiaram-se enormemente das possibilidades de gravação musical de manifestações tradicionais, cujas formas de transmissão, até o momento, se davam exclusivamente por meio da oralidade. Entre as primeiras utilizações da fonografia para fins de pesquisa, Pinto (2005) elenca iniciativas como o Wiener Phonogrammarchiv junto à Academia Imperial de Ciências, de 1899, o arquivo sonoro da Société d’Anthropologie de Paris, com o propósito de constituir um museu fonográfico, em 1900, que já previa “o uso do fonógrafo para finalidades antropológicas”, e, no Brasil, registros produzidos por pesquisadores alemães que fixaram em cilindros sons dos índios Kaiapós, Karajás, Makuxi, Taulipan e Yekuana, entre os anos de 1908 e 1913. Também vale citar o trabalho pioneiro de Edgar Roquette-Pinto, que realizou registros em áudio de sua pesquisa etnográfica em Rondônia, em 1912, e posteriormente foi um dos maiores entusiastas e promotores da radiodifusão no Brasil.
Discutir o som gravado e a música popular como objetos das operações de patrimonialização e musealização passa necessariamente por examinar sua produção como artefatos depositários de atributos e representações sociais em permanente reelaboração. Sterne (2003) escava a história cultural do vínculo entre vida-morte e passado-presente por meio dos primeiros registros sonoros e das expectativas produzidas sobre eles nas últimas décadas do século XIX e na virada para o XX. Destacamos aqui duas passagens: a primeira é sua análise da marca comercial original da RCA-Victor, em que diante do gramofone posta-se um cão, ambos sobre uma superfície polida que evoca um caixão e traz escrita a frase His master’s voice (a voz de seu dono). O autor decanta os elementos da imagem e aponta a recorrência da associação entre caninos e eventos fúnebres na iconografia vitoriana, demonstrando como a imagem evoca lealdade, fidelidade e transcendência, expressando a pretensão dos promotores da fonografia de que a voz persistiria para muito além do perecimento de seu emissor. A segunda aborda o que ele denomina embalsamamento de culturas em extinção. Examinando detidamente o trabalho de etnógrafos e folcloristas, ele identifica ali uma extensão do ethos da preservação, impregnado, obviamente, pela tensão posta pela dinâmica da Modernidade, que promove tanto a percepção de que tais populações são exóticas e primitivas quanto a de que o inexorável turbilhão do progresso irá varrê-las da existência. Não teremos dificuldade em traçar paralelos entre tal impulso e aquele que moveu os profissionais que, no mesmo escopo, dedicaram-se a definir o papel dos museus modernos e das primeiras políticas nacionais de patrimônio.
Já na virada do século XIX para o XX, o reconhecimento de que registros sonoros constituíam acervos de valia cultural e científica levou à criação de arquivos e discotecas públicas. A transformação histórica da música popular de alvo de desqualificação generalizada em objeto de cuidado por parte dos setores que elaboram o discurso e as políticas de patrimônio e museais é um capítulo significativo tanto para compreender mudanças epistemológicas no campo da museologia quanto para traçar um quadro mais denso das operações de valoração na cultura material no âmbito da sociedade capitalista. Câmbios sociais, culturais, econômicos e tecnológicos a situam de modo ímpar no trânsito entre o tangível e o intangível, o efêmero e o duradouro, o local e o global, a memória e o esquecimento. Em ações pioneiras, como os museus brasileiros da imagem e do som, tornaram-se objeto de guarda, pesquisa e extroversão. Igualmente, o lugar social do músico popular passou por uma transmutação, seja no Brasil, seja no exterior. Isso inclui iniciativas oficiais e institucionais de consagração, como nomeações, atribuições de prêmios e ações diversas de patrimonialização, como a criação do Prêmio Pixinguinha, a atribuição do título de sir para Paul McCartney, de doutor honoris causa para Milton Nascimento no Berklee College, o Prêmio Nobel para Bob Dylan e o Camões para Chico Buarque (Blanning, 2011).
Igualmente o som consagrou-se como recurso expográfico recorrente nos museus, sendo utilizado para transportar para dentro da sala uma paisagem sonora gravada alhures ou reconstituir alguma historicamente já extinta, reproduzir narrações, depoimentos, além de outras formas de ambientação. Considera-se, inclusive, que o próprio interior de um museu constitui-se uma paisagem sonora (Kannenberg, 2016). O que desejamos salientar, ao identificar essa gama de aplicações, é que em contextos institucionais diversos, o som é identificado com a produção de sentido e o registro documental de um dado espaço:
[...] é um sentido extremamente importante e evocativo: pode ser descritivo, informativo e poderoso. Quando usado como uma ferramenta interpretativa em exposições de museus, o som pode facilmente transmitir informações e significado aos visitantes, ao mesmo tempo em que fornece experiências de aprendizagem divertidas e imersivas.
(Beliveau, 2015, p. 7).
O CONTEXTO DE CRIAÇÃO DO THE BEATLES STORY
Em nossas pesquisas, miramos a compreensão do nexo entre a música popular, o espaço urbano e a constituição dos patrimônios culturais e coleções. Não pode nos escapar como os museus participam dos rearranjos e ressignificações engendradas por verdadeiras reciclagens do material e do simbólico promovidas pelo incessante revolver da sociedade capitalista. Por isso cumpre fazer uma rápida contextualização sobre a cidade e o papel dos Beatles e da música popular na regeneração econômica de Liverpool, especialmente por meio da indústria do turismo e das requalificações urbanas, uma pista valiosa de como patrimônio e música popular se encontram dentro dessa lógica cultural, como diria Jameson (1996). Liverpool fica no norte da Inglaterra, a 283 quilômetros de Londres, e é o centro do Condado do Merseyside, daí foi derivada a expressão Merseybeat para nomear o estilo musical inicialmente associado aos Beatles e outras bandas da região no início dos anos 1960. O declínio da atividade portuária e industrial, associado à crise econômica, marca um período de deterioração e pobreza arrematado pelas revoltas no distrito de Toxteth, ao final da década de 1970. Por uma mórbida coincidência, a década seguinte começaria com um ato de violência atingindo um dos mais conhecidos filhos da terra, o assassinato de John Lennon em dezembro de 1980, em Nova York. Assim, não foi casual que durante o governo Thatcher tenha sido criada “[...] a Merseyside Development Corporation como uma das ‘vitrines’ de suas novas políticas urbanas (Köhler, 2014, p. 67-84)”, justamente no que era então um bastião de tendência mais à esquerda do Partido Trabalhista. Aberto em 1° de maio de 1990, o museu localiza-se justamente na área que representou o principal projeto da Merseyside Development Corporation, a “recuperação do conjunto arquitetônico e paisagístico de Albert Dock – docas, cais e armazéns –, com sua transformação em centro de lazer, turismo e entretenimento, em 1988” (Köhler, 2014, p. 75). Além do museu dedicado aos Beatles, também estão abertos lá o International Slavery Museum, o Merseyside Maritime Museum e a Tate Liverpool. Ainda que a área seja de caráter privado, há que se notar que eles são de acesso gratuito, com exceção justamente do TBS, em que o ingresso comum para um adulto custava 15 libras em junho de 2015.
As intervenções no tecido urbano, dedicadas a uma suposta ressurreição de áreas ditas mortas (daí o uso da expressão revitalização), pretendem torná-las atrativas para o mercado, promovendo um processo de grande segregação social nesses novos espaços de viver e estar, conhecido como enobrecimento (ou gentrificação). Essas políticas passaram a ser formuladas em pacotes estandartizados, em que se inclui a percepção da própria cidade como mercadoria para a qual é preciso produzir marcas e atrações, de modo a torná-la competitiva no mercado global em que se concorre por investimentos e fluxos econômicos, incluindo os advindos da indústria do turismo. Nesses pacotes, inclui-se a abertura de grandes equipamentos culturais capazes de desempenhar esse papel de atração, e entre eles encontram-se invariavelmente os museus (Bonates, 2009; Kirshenblatt; 1998).
Segundo registros oficiais, até o final do ano de 1980 as autoridades locais não tinham grandes expectativas em relação ao potencial desse turismo, deixando para o setor privado a responsabilidade de explorar o que era percebido como um mercado reduzido aos entusiastas e subsidiado por fãs da comunidade local. É importante destacar os sentimentos contraditórios dos moradores em relação aos Beatles e ao legado deixado por eles (Tessler, 2006). As mudanças drásticas no cenário da cidade podem ser percebidas a partir da segunda metade da década de 1990. A cidade foi convertida em uma espécie de “Beatlelândia” (Leonard, 2010), e o marketing da paisagem relacionada ao grupo musical se transformou em uma indústria altamente rentável (Kruse II, 2005).
O crescente peso econômico desse fenômeno foi recentemente demonstrado por estudo detalhado encomendando pelo poder público, que calcula uma movimentação total de 210 milhões de libras e aproximadamente 6 mil empregos combinando o impacto direto, indireto e catalítico (Yates, Evans, Jones, 2016). O relatório contém um estudo de caso de duas páginas sobre o TBS, apontando sua longevidade e importância, e como a ampliação de sua equipe, do número de visitantes e da arrecadação refletem o significativo crescimento do negócio nos anos do corrente século. Chama ainda a atenção para o fato de que 70% de seus visitantes são turistas estrangeiros (e vale notar que os brasileiros estão entre os maiores visitantes, atrás apenas de estadunidenses e chineses), corroborando o entendimento de que a marca e o patrimônio cultural associado aos Beatles são estratégicos para a inserção globalizada da economia da cidade. Sintomaticamente, a instituição foi adquirida pela Merseytravel, companhia que gerencia transporte público e diversas atrações turísticas na região do Merseyside.
A EXPOSIÇÃO PERMANENTE E OBJETOS AURAIS
A exposição permanente está organizada em 18 sessões dispostas em sequência cronológica que reconstitui a história dos Beatles, biograficamente falando, dando clara ênfase à narrativa canônica em torno de sua carreira como banda. Isso significa que outros aspectos, de cunho pessoal, seja sua infância, amizades, vida social e conjugal, e mesmo as carreiras após o rompimento dos Beatles, não recebem o mesmo destaque. A maior parte das salas está associada a lugares (em Liverpool ou alhures) que são alvo de uma reconstituição, ou, mais precisamente, de uma encenação. Um elemento fundamental da composição da narrativa é o áudio, presença recorrente em depoimentos, pequenos trechos documentais de transmissões, e, obviamente, reproduções mecânicas das gravações dos Beatles. Além disso, há audioguia em dez línguas diferentes, cuja gravação original segue na voz de Julia, irmã de Lennon. Como o próprio sítio eletrônico institucional define, o museu “leva os visitantes numa jornada atmosférica” (The Beatles Story, 2015, tradução nossa), e o som foi usado como principal meio de produzir essa atmosfera. Cabe aqui observar que:
Embora a cultura material da música popular ofereça uma visão das culturas de produção, mediação, consumo, criatividade e socialidade, é também uma espécie de testemunha silenciosa. […] A curadoria de artefatos da música popular não pode substituir ou ser descolada da experiência sonora e corporal da música e das maneiras emocionais e sociais em que é vivida no tempo e no espaço
(Leonard, 2007, p. 147-167, tradução nossa).
Com o propósito de sinalizar o tipo de análise que apresentaremos adiante, destacamos, do registro completo de cerca de uma hora, um extrato [13’10’’-16’40’’], do qual podemos decompor, por dizer assim, a ocorrência do som em quatro categorias predominantes:
Canções gravadas: Consistem no item central do acervo, e, portanto, estão presentes ao longo do trajeto, sendo, muitas vezes, o foco da comunicação, destacadas não só por seu volume de emissão, mas também por estarem acompanhadas de imagens, reproduções e, eventualmente, alguns itens de coleções que a elas se relacionam de algum modo. É notável que desempenham também uma função atmosférica, em particular quando se reproduzem os registros de apresentações ao vivo, invariavelmente acompanhados das reações da plateia, em geral aos gritos. O ponto que recortamos principia com o emblemático e energético final de “Twist and shout”, canção invariavelmente marcada como afirmação do fenômeno da beatlemania, ainda em solo britânico, por encerrar sua primeira apresentação diante da família real.
Paisagem sonora do museu: Trata-se de uma amostra bastante saturada, sonoramente falando, de todo o tipo de vazamento dos áudios para fora das salas, cruzado à movimentação e eventuais conversas do público (que, por ser na maioria formado por turistas, dá-se em várias línguas). Consideramos aqui, na esteira de Kannenberg (2016), o que não está previsto e organizado dentro da proposta da expografia.
Narração: Recorrente durante todo o percurso, constitui o fio condutor da exposição. Trata-se de um texto que guarda muita semelhança com documentários de cunho informativo, sem grandes padrões de oscilação na voz, apresentando um conteúdo canônico.
Registro documental de áudio: Bem menos recorrentes, depoimentos de época, chamadas de programas de rádio e outros eventos sonoros de caráter documental têm caráter ilustrativo, mas também participam da construção de ambientação. O trecho que selecionamos é um rápido anúncio antes da apresentação da banda, preservado no registro ao vivo feito no Cavern Club.
Sem uma nova pesquisa de campo apropriada não podemos afirmar, mas é bem provável que aos ouvidos do público seja muito difícil distinguir certas ocorrências sonoras, e, menos ainda, abstraí-las da ambientação em que sua audição é proposta. Assim, é importante aperfeiçoarmos o modo como o som se apresentará no contexto expositivo. Na falta de explanações precisas e informações atinentes, é muito fácil que tais objetos aurais se apresentem como parte de uma verdadeira cacofonia sinestésica e não estejam claramente distinguidos de reproduções e outros recursos expográficos de reconstituição de ambientes, como se estivessem ali para emprestar alguma autenticidade ao que é basicamente uma retórica da alusão, que constitui a narrativa por meio de uma coleção de ambientes encenados. Em nosso caso, o próprio nome da instituição, indubitavelmente, enfatiza esse ângulo ficcional da narrativa fabricada, preferindo a acepção story a history, o que implicaria em compromisso com o campo disciplinar da história. Nesse sentido, isenta-se da necessidade de produzir qualquer pesquisa histórica que possa autenticar a incorporação dos artefatos sônicos à narrativa da exposição (Crew,1991).
Em seu estudo sobre exposições, que aborda a música popular em diferentes contextos institucionais, feito para subsidiar seu próprio trabalho como curadora da exposição The Beat Goes On, Leonard (2007,) propõe três categorias para analisar sua base conceitual: representações canônicas, contextualização como arte e representação como história social e local. A primeira categoria descreve exposições que recorrem ao conhecimento já consagrado sobre histórias concernentes à música popular, concentrando-se em eventos (e eu acrescentaria, personagens) que já receberam muita atenção da mídia e da crítica musical. A segunda remete à opção de emprestar das mostras de arte em museus e galerias as convenções de linguagem expográfica de maneira a abordar a música popular como se pudesse ser tratada dentro desses mesmos parâmetros estéticos. A terceira, por fim, enfatiza a conexão entre certos músicos, gêneros ou cenas musicais com a sua localidade, entenda-se aqui no sentido empregado por Appadurai (1996). A autora identifica aí uma perspectiva influenciada pela história social, incluindo nela relatos orais, calcando a seleção de acervo na intenção de utilizá-los para contar parte da história da cidade. Tomando tais categorias para aplicar à exposição do TBS, entendemos que ela configura predominantemente uma representação canônica, ainda que possa conter aqui e ali uns poucos elementos que remetem às outras classificações, especialmente um ou outro elemento que remete à história social e local, mas estes claramente subordinados ao fio condutor que é o cânone biográfico do conjunto, em um arranjo que apresenta uma combinação de linearidade cronológica e de escala geográfica.
A narrativa começa pelo nascimento dos quatro definitivos Beatles (Pete Best e Stuart Sutcliffe são devidamente escanteados). Reproduções de suas certidões de nascimento são apresentadas acompanhadas de dados biográficos concernentes à vida privada, bem resumidos, reunidos num painel denominado “Álbum de Família”. Somos rapidamente levados aos primeiros passos musicais dos rapazes. Apresenta-se um módulo que trata da formação musical inicial dos Beatles, suas principais referências, como o rock and roll e o skiffle4. Há um nicho dedicado aos Quarrymen, primeira banda formada por Lennon, que viria a reunir McCartney e Harrison. O nicho destaca uma grande reprodução da foto tirada na apresentação realizada em 1957 no jardim da St. Peter’s Church, ocasião em que McCartney foi apresentado a Lennon. À frente da foto estão posicionados instrumentos próprios da formação de uma banda de skiffle, incluindo banjo e washboard. Outro expositor destaca o primeiro violão de George Harrison. Junto dele há uma foto, costumeiramente reproduzida em livros que abordam a história da banda, em que ele empunha o instrumento. Há um texto explicativo que narra as circunstâncias do início de seu interesse em tocar o instrumento e de como veio a adquirir o violão, e, após 5 anos, vendê-lo. É um dos poucos instrumentos expostos que efetivamente pertenceu a um dos Beatles.
É importante ressaltar que a exposição categoriza certos objetos como autênticos e únicos nas ocasiões em que o artefato permite a associação com os termos. A mostra também não hesita em integrar instrumentos que evocam aqueles utilizados pela banda, sem oferecer explicações detalhadas ou legendas claras sobre eles, e ainda deixa de lado gravações que esclareçam com precisão o timbre de cada um. Tivemos a oportunidade de ouvir um trecho de uma gravação caseira dos Quarrymen, mas a narração mecânica interferiu na experiência. Desde o início do percurso, fica evidente a falta de tratamento e planejamento acústico, sugerindo uma escolha deliberada por sobrecarregar os ouvidos do visitante. Como afirma Meneses (1994), a encenação de uma memória desejada não abre espaço para o tratamento dos artefatos, incluindo os objetos aurais, enquanto documento, mesmo que na ocasião haja essa intenção.
Os módulos seguintes narram o início da atividade profissional dos Beatles, com as reconstituições parciais do clube noturno Casbah, primeira casa onde eles se apresentaram, incorporando Pete Best – a cuja família pertencia o estabelecimento –, e da Reeperbahn, zona boêmia de Hamburgo onde os Beatles se apresentaram em inferninhos e boates como o Star-Club e Indra. Escuta-se, por exemplo, a gravação da canção “Ask me why” (Lennon/McCartney) registrada no Star-Club [6’44’’]. Dentro da narrativa canônica, essas apresentações foram definidoras do estilo inicial de sua música e performance no palco – para o que corrobora o depoimento de Paul McCartney a um programa de TV mencionado aqui – e, igualmente, de seu batismo de fogo, quando se trata do famoso triângulo sexo, drogas e rock and roll. Uma vez que a imagem consolidada da banda não confere tanta importância a esses aspectos mundanos, a exposição se encarrega de fazer no máximo breves e discretas menções a isso, concentrando nossa atenção em reproduções de cartazes, anúncios e letreiros que complementam a paisagem sonora que pretende reconstituir o clima agitado dessas apresentações.
Em seguida, o recorte local fica bem nítido, na medida em que a narrativa se ocupa de mostrar a consolidação da carreira dos Beatles em Liverpool (adentrando aí Ringo Starr, para o que viria a ser a formação definitiva do quarteto). A loja de instrumentos preferida dos então jovens músicos, a Hessy’s, metonimizada por uma vitrine que destaca as condições facilitadas de pagamento, atrativas para clientes como os quatro, nascidos em famílias de classe trabalhadora – entre as quais, a de Lennon era a única que possuía casa própria. Muitos dos painéis com textos explicativos, normalmente colocados como introdução aos ambientes, de modo a enquadrar a expectativa do público em fatos & fotos, enfatizam a linearidade cronológica, explicitando datas e recortes temporais bem definidos em seu topo. Pode-se dizer que há um subtexto em que se apresenta a percepção idealizada da ascensão profissional e social dos músicos de Liverpool, em sua versão do que por lá se entende como o mito do herói da classe trabalhadora. Mas as reais condições de vida dos quatro, de um ponto de vista da história social, não são abordadas em momento algum.
Adentramos um simulacro do escritório do Mersey Beat, jornal local que daria destaque às bandas da região. A partir daí, vários fatos relevantes dentro da narrativa canônica são abordados por meio de notícias reproduzidas das páginas do jornal, como o sucesso nas paradas musicais ou a troca de baterista. Se por um momento pensamos que tal recurso permite remeter ao cotidiano e à história social local, fica claro que o material está todo subordinado a pontuar a escalada dos Beatles rumo ao estrelato local, sem dar maior atenção ao que seria a cena musical como um todo.
Passamos à Mathew Street, com seus bares e vida noturna, destacando o Cavern Club, com placas, iluminação que emula o horário noturno, cartazes e objetos que aludem ao tempo e ao lugar. Destaca-se o palco remontado com fotografias que apresentam os instrumentos correspondentes aos quatro músicos, o baixo e as guitarras em descansos, como se quisessem sugerir que era dessa forma que aguardavam o início do show, como explana a narração guia [15’02’’]. O impacto dessa visão se sobrepõe ao áudio, que pondera que não eram apenas os Beatles que se apresentavam ali. A relevância do Cavern remontado, uma espécie de centro de gravidade da exposição (The Beatles Story, 2015), fica explícita ali na medida em que, ao menos por um breve momento, rompe-se a cronologia canônica para narrar o fechamento e a demolição do Cavern, bem como sua posterior reabertura em outro local na mesma rua. É significativa a fala do diretor do TBS comentando a queixa de fãs sobre o fato de o bar original ter sido demolido, dizendo que “se fosse ele vindo a Liverpool, gostaria de ver o Cavern, o Cavern original, não o novo, com seus tijolos limpos, seu ar-condicionado ou o que seja” (Cohen, 2007, p. 176). Não poderia ser mais irônico.
A seguir, há um módulo que encena a NEMS, loja de discos pertencente à família de Brian Epstein, empresário que influenciaria decisivamente para catapultar nacionalmente a carreira dos Beatles. O contrato é reproduzido com destaque, mas o foco é a loja, em que a reprodução de uma estante de discos é o principal elemento presente. Não há qualquer informação sobre a coleção de discos, disposta num arranjo que subentende-se ser o mesmo que era adotado nos anos 1960, e, combinado com anúncios reproduzidos de jornal, ajudaria a traçar um quadro compreensivo das preferências musicais e hábitos de consumo de discos naquele período. Nesse sentido, o som mecânico assegura a ambientação, tocando grandes hits como “Long Tall Sally”, de Little Richard, que viria a ser gravada pelos Beatles. A sucessão de sucessos é a perfeita representação aural da lógica da indústria cultural que rege a ascensão meteórica dos artistas. Novamente, essa compreensão não vem ao caso, espera-se, sim, que o público forme uma impressão sobre a loja porque esta alude à relação entre os Beatles, seu empresário e sua ascensão rumo às paradas nacionais e a Londres.
Seguimos para Londres e para a imitação da entrada dos estúdios da EMI em Abbey Road. Introduz-se aí outro personagem central na estória dos Beatles, George Martin, o produtor musical de sólida formação, que vai, junto com Epstein, burilar os diamantes brutos e torná-los as joias da coroa da música popular britânica. Não há, por exemplo, menção ao fato de Martin ter rejeitado Ringo inicialmente e utilizado um baterista de estúdio nas primeiras gravações. Por meio de fotos e alguns poucos equipamentos (um gravador, microfones, instrumentos, amplificadores), quase todos apresentados como elementos cenográficos, sem legenda ou informação que permita estabelecer qualquer conhecimento sobre eles, somos supostamente transportados ao ambiente de trabalho mais frequentado pelos Beatles em sua carreira. De todo modo, esse módulo captura o interesse do público com a exibição da parafernália e a execução de canções empolgantes que catapultaram o sucesso nacional da banda. Em nosso registro de campo, um casal de visitantes conversa enquanto ouvimos “Please, please me” (Lennon/McCartney) [19’40’’].
Algumas anotações cedidas há pouco tempo pela EMI, com a letra de George Martin, mostram a organização das sessões de gravação. A narração mecânica, sempre o guia autorizado, segue explanando para o público rudimentos de como era o trabalho no estúdio, mas está mais preocupada em afirmar em números o grande sucesso de audiência e vendagem da banda [24’00’’- 25’00’’]. Não há qualquer tentativa profunda de abordar a criação musical em seus aspectos estéticos e técnicos, o que poderia ser pertinente, nem mesmo qualquer remissão ao dia a dia no estúdio, o que também não combina com a estratégia da narrativa canônica, pois poderia ser despido o véu mágico posto sobre a obra da banda, expondo conflitos, erros e arestas descartadas para constituir um bem-acabado álbum de recordações. Tal lapso é ainda mais grave pela grande quantidade conhecida de sobras de estúdio deixadas pela banda, inclusive as que foram lançadas comercialmente pelo projeto Anthology5. Neste sentido, não há como analisar o uso dos objetos aurais em uma exposição sem considerar igualmente suas ausências, que por vezes soaram como retumbantes silêncios.
Os módulos apresentados em seguida são destinados ao movimento denominado de beatlemania e ao alcance planejado do mercado americano pelos Beatles em 1964. Os ambientes propiciam uma imersão, quase onipresente, das vozes do público global. Somos cercados por sons que se apresentam de forma cada vez mais inaudíveis nos registros das performances ao vivo do grupo musical [29’35’’ e adiante] e aqueles depoimentos recolhidos por reportagens da época em que moças se desfaziam em rede nacional pelos membros da banda [30’35’’]. Invariavelmente, a combinação audiovisual pretende mais mobilizar emocionalmente o visitante do que apresentar um documento, uma fonte para construir conhecimento.
Objetos de toda sorte, de almofadas a pratos, ajudam a dar uma ideia do que foi a exploração mercadológica da imagem e da marca dos Beatles. Sem qualquer problematização, esses módulos apresentam a explosão midiática e mercadológica da banda, e, num dos raros momentos em que a biografia canônica admite tensões e dúvidas, traz imagens em vídeo mostrando as fogueiras organizadas especialmente no sul conservador dos Estados Unidos para queimar discos e outras tralhas Beatle. Mas, claro, é um acontecimento mencionado entre séries de entrevistas e poses para fotografia, como que espremido entre os êxitos da inevitável escalada mundial do sucesso dos músicos.
Os nichos apresentados em seguida referenciam as localidades da cidade de Liverpool mencionadas direta ou indiretamente nas composições do período de 1966 a 1968, incluindo “Eleanor Rigby” [35’47’’], “Penny Lane” e “Strawberry Fields Forever” (Kruse II, 2005; Garcia, 2011). É de se notar que não existe propriamente nenhum espaço ao longo da exposição dedicado essencialmente a ouvir as canções sem outras distrações ou explorar propriamente a discografia, o que atualmente é praticamente certo de se encontrar em exposições ou museus que abordam a música popular. Mais uma vez a expografia reafirma a opção por fazer do percurso sobretudo uma experiência multissensorial. Mas, em relação às últimas duas canções citadas, elas próprias tremendamente sinestésicas, talvez fosse mais interessante exibir em grandes telas os filmes promocionais dedicados a ambas – e se considerarmos videoclipe algo mais que um vídeo de algum artista cantando uma canção, teremos que concluir que os Beatles os inventaram também, o que valeria explorar.
Na parede logo adiante figura uma reprodução da montagem da capa do colorido LP Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, que por si só pode despertar o interesse de quem estuda formas de representar o passado e de colecionamento (Raphael, 1994; Garcia, 2011). Ele está ladeado por nichos coloridos e iluminados, dedicados aos projetos cinematográficos e respectivas trilhas compostas no auge da era psicodélica, “Yellow submarine” e “Magical Mystery Tour”. O espaço é dominado por versões cenográficas do submarino da animação (com um monte de botões fantasiosos para se apertar) e do ônibus de turismo usado no filme feito para televisão sem roteiro prévio, no qual também encontramos um mecanismo interativo em que se usa uma manivela que faz girar um disco em que estão desenhados os Beatles em fantasias de animais, como na capa do disco e no trecho do filme em que tocam a canção “I am the walrus”. As faixas títulos dos LPs tocam em alto-falantes muito próximos, sobrecarregando a paisagem sonora desse local da exposição [41’45’’- 48’’]. Toda essa área não remete, evidentemente, a lugares físicos, e sim ao tema da viagem, do deslocamento no espaço e até mesmo no tempo. Uma dose extra de nostalgia é garantida pela exibição de objetos como lancheiras e bonequinhos inspirados no visual do filme de animação Yellow submarine. Acabamos registrando em campo uma fala sintomática de um visitante sobre a necessidade de levar algum souvenir [46’46’’], muito reveladora da lógica voltada ao turismo e ao consumo cultural que o TBS incorpora totalmente!
No corpo da narrativa, a carreira dos Beatles se aproxima do fim, e acompanhamos a criação da sua empresa Apple (cujo prédio é representado numa foto em preto e branco pouco inspirada, já que se tratava de um ícone da psicodelia) e menções ao show do teto dos estúdios da companhia em Saville Row, às gravações de seus últimos LPs, Let it be e Abbey Road. Os tremendos conflitos entre os membros, incluindo as saídas do grupo de George e Ringo e a intrusão de Yoko Ono, relatados nas biografias mais difundidas, não são abordados. Mais uma reconstituição se faz presente na emulação da rua londrina em que se localizam os estúdios da EMI, destacando a faixa de pedestres que os Beatles cruzaram para fazer a fotografia do álbum Abbey Road. Também aí não há maiores discussões ou informações além do trivial. Como já considerado, não há maiores tentativas de operar uma contextualização como arte, ainda que seja constante no discurso canônico a celebração do sucesso artístico e comercial da banda. Efetivamente, a exposição não propõe ao público compreendê-lo, e sim de (re)vivê-lo. Defrontamo-nos, finalmente, com uma parede preta, em que está escrito, com grandes letras brancas em relevo: “the story continues...”, ou seja, a história continua. A inscrição introduz uma ala mais recente da exposição, composta de duas áreas. Uma delas é dedicada especialmente a Lennon, que, em razão de seu trágico assassinato, teve sua figura pública relida de modo a enfatizar aspectos mais palatáveis e louváveis de seu ativismo político. Isso é plenamente representado na reconstituição da sala branca (white room), que reproduz uma sala da mansão em que viveu com Yoko Ono, Tittenhurst Park, em que todo mobiliário era branco. Claro que o som mecânico reproduz “Imagine” [60’00’’], grande hino utópico que Lennon compôs, e facilmente trará algum tipo de sentimento à tona no visitante. A outra área é uma sala ampla, em que estão posicionadas quatro cabines, grandes saletas dedicadas exclusivamente a cada Beatle e sua trajetória solo, numa combinação talvez exaustiva, misto de colagem pós-modernosa e alegoria de sua persona artística. Essas porções de história concentrada, por assim dizer, são mais o ponto final que a reticência, oferecendo imagens definitivas, bem acabadas, com os melhores ângulos e sons dos Beatles para a posteridade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos considerar que os objetos aurais apresentados ao público ao longo da trajetória biográfica narrada são fetichizados, de modo que deles se extrai apenas aquilo que coaduna a narrativa canônica. Meneses, fazendo severas críticas à chamada living history (expressão inclusive adotada para descrever os audioguias disponibilizados no TBS), alerta para o equívoco desta em tomar o passado como “[...] substância em si, capaz de ser diretamente abordado, sem outras mediações” (Meneses, 1994, p. 34). O emprego inconsistente de legendas e outros recursos de comunicação, consequência também da própria concepção museológica que subsidia essas escolhas, acaba comprometendo qualquer possibilidade de ir além da ambientação e dar inteligibilidade às relações entre os objetos, ou, dito de outro modo, contextualizá-los em uma perspectiva museológica (Meneses, 1994).
O patrimônio teatralizado consiste em “[...] palcos em que os grupos hegemônicos fazem a sociedade apresentar a si mesma o espetáculo de sua origem” (Garcia Canclini, 1997, p. 162), em que o que deve ser representado já está prescrito. Neste caso, faz sentido que o empreendedorismo da indústria do turismo, junto da iniciativa privada, queira lucrar transformando espaços desvalorizados. Observamos que os paradigmas tradicionais do museu canônico, que valorizam a visualidade, o silêncio como pressuposto para contemplação e a ideia de conservação dos objetos materiais, mostram-se insuficientes diante dos novos contextos sociais suscitados por uma museologia social. Esta, ao reconhecer a efemeridade e a transformação do patrimônio sonoro imaterial, propõe práticas mais abrangentes e inclusivas. Assim, reforça-se a importância do envolvimento ativo do público na construção de discursos diversos, ampliando significativamente a função social dos museus (Lezama, 2023; Azevedo, 2021).
Não temos dúvida de que a música popular representa um patrimônio cultural de extrema relevância que precisa ser corretamente salvaguardado, pesquisado e divulgado. Também está bastante audível que o som tem um potencial imenso a ser explorado em exposições museológicas, em particular as que tratam de música, mas não somente destas. É preciso cuidado para que não se transforme em canto de sereia nem a exibição do patrimônio que se pretende compartilhar, nem os meios complementares que podem integrar a forma com que se constrói a narrativa expográfica. É preciso adotar uma abordagem museológica adequada do acervo em tela, jamais negligenciando que esses objetos aurais precisam ser bem conhecidos, contextualizados, problematizados e igualmente ser apresentados de acordo com suas especificidades, o que implica cuidados com a dimensão acústica do projeto expográfico, estudos preliminares sobre o efeito do deslocamento do público pelo percurso, emprego de aparelhagem correta e uma distribuição bem dosada, para que seja percebida pelo público além de um estímulo sensorial ou expressão autorizada de uma narrativa monológica, mas componente integrado para promover a construção do conhecimento, como deve ser proposta em instituições museológicas.
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Versões preliminares de partes deste texto foram apresentadas por Luiz H. Garcia no II e no IV Seminário Brasileiro de Museologia (SEBRAMUS), realizados respectivamente em Recife (2015) e Brasília (2019). Parte da pesquisa foi apoiada pelo CNPq.
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Sendo aural tudo que remete ao que se escuta, denominamos assim todo som reprodutível dentro de um contexto expositivo.
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Disponível em: https://soundcloud.com/luizhenriquegarcia/liverpool-expo-beatles-storymp3. Acesso em: 25 jun. 2025. A gravação dura 1:00:24, com observações pontuadas ao longo do percurso. Todas as sinalizações das minutagens ao longo do texto serão identificadas entre colchetes [ ] no formato: minutos [XX’] segundos [XX’’].
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Tipo de música folk com influência de jazz, blues e country, muito popular entre a juventude britânica na década de 1950.
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Produção multimidiática oficial com material inédito de arquivo encabeçada pela empresa Apple, os Beatles remanescentes e Yoko Ono representando o legado de John Lennon, que incluiu um documentário para TV, um livro e três álbuns de CDs duplos lançados durante a segunda metade dos anos 1990, com o intuito de representar o sumo da memorialística oficial sobre a banda.
Disponibilidade de dados de pesquisa
Os dados de pesquisa estão disponíveis no corpo do documento.
REFERÊNCIAS
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Editado por
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Editores responsáveis:
Adriana TeixeiraFábio Fonseca de CastroMaurício Ribeiro da SilvaNorval Baitello
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
06 Nov 2024 -
Aceito
12 Jun 2025
