RESUMO
Este artigo investiga o som na mise en scène do documentário Ex-Pajé (2018) de Luiz Bolognesi. Nas sociedades indígenas, as visões de mundo são equivalentes às “audições de mundo”, com o ouvido (yapú) sendo central para o pensamento (Bastos, 2012). Tendo como metodologia a análise interna de imagem e som (Aumont e Marie, 2009), o estudo examina como o som modifica cenas e o sentido do filme, propondo que os sons fundamentais e arquetípicos da floresta – fonte da riqueza sonora dos rituais de cura dos Paiter Suruí – sejam integrados na imagem para criar “efeitos audiovisógenos” (Chion, 2009), especialmente os “efeitos de significado”, fundamentais na construção da mise en scène do filme.
PALAVRAS-CHAVE
cinema documental; som cinematográfico;
mise en scène
; cosmologias ameríndias
ABSTRACT
This article investigates sound in the mise en scène of the documentary Ex-Pajé (2018) by Luiz Bolognesi. In indigenous societies, worldviews are equivalent to “world hearings”, with the ear (yapú) being central to thought (Bastos, 2012). Using the internal analysis of image and sound (Aumont e Marie, 2009) as its methodology, the study examines how sound modifies scenes and the meaning of the film, proposing that the fundamental and archetypal sounds of the forest – the source of the sonic richness of the Paiter Suruí healing rituals – are integrated into the image to create “audiovisual effects” (Chion, 2009), especially the “effects of meaning”, fundamental in the construction of the film’s mise en scène.
KEYWORDS
documentary cinema; cinematic sound;
mise en scène
; amerindian cosmologies
INTRODUÇÃO
O artigo investiga como os “sons fundamentais” do ambiente (Schafer, 2001) são utilizados como elementos de encenação no documentário Ex-Pajé (2018), de Luiz Bolognesi. O filme aborda a história de Perpera, um pajé da etnia Paiter Suruí, que foi forçado a abandonar sua prática religiosa devido à influência de uma igreja evangélica neopentecostal. Com medo, Perpera deixa de rezar e tocar as flautas sagradas, vivendo em constante alerta. Contudo, quando uma morte ameaça a aldeia, o poder de comunicação com os espíritos pode se tornar novamente necessário.
O som em Ex-Pajé, captado por Rodrigo Macedo e trabalhado na pós-produção por Armando Torres Jr. e Caio Guerin, foi essencial para o sucesso do filme, que estreou no Festival de Cinema de Berlim em 2018, recebendo menção honrosa, e conquistou outros prêmios nacionais e internacionais. A importância da escuta na cosmologia ameríndia é ressaltada por Rafael Bastos (2012)1, que demonstra como a audição é mais do que um canal sensorial entre os Kamayurá do Xingu, mas um modo privilegiado de conhecimento e de relação com o mundo.
O artigo propõe que o som no cinema indígena não deve ser visto apenas como estilo, mas como elemento fundamental da mise en scène. Argumenta-se que os sons fundamentais e arquetípicos do ambiente moldam as cenas e influenciam seus significados, produzindo “efeitos audiovisógenos” (Chion, 2009), especialmente o “efeito de significado”. Para fundamentar essa hipótese, são utilizados conceitos de Michel Chion (2008; 2009) sobre som no cinema, a ideia de “escritura sonora” de Daniel Deshays (2019), e as classificações de paisagem sonora de Murray Schafer (2001).
A reflexão sobre a mise en scène tradicionalmente se refere a elementos visuais, mas é necessário considerar o som como um componente estético e significante. Jacques Aumont (2008, p. 68) define mise en scène como “exercer o olhar sobre o que se filma, distinguindo-lhe o essencial e tornando-o visível”, enquanto David Bordwell (2008, p. 36) entende a mise en scène apenas em termos visuais: “o essencial sentido técnico do termo denota cenário, iluminação, figurino, maquiagem e atuação dos atores dentro do quadro”. No entanto, defendemos que o som pode expandir, ou mesmo subverter, a interpretação das imagens.
Hugo Leonardo Castilhos dos Reis (2013) discute o uso inovador do som na obra de Reygadas, em que o som ambiente frequentemente ganha mais destaque do que os diálogos, dando dinâmica ao plano de longa duração. Dialogando com autores como Michel Chion e Fernando Morais da Costa (2010), este afirma que, por meio de avanços tecnológicos como os sistemas de exibição multicanal, o cinema contemporâneo enriqueceu suas paisagens sonoras, permitindo sobreposições complexas de camadas de som que criam ambientes mais detalhados. Para Reis, Reygadas aproveita essas possibilidades para criar uma trilha sonora em que o som ambiente muitas vezes ganha mais atenção do que os diálogos, interferindo diretamente em outras decisões de direção, como o enquadramento e o movimento dos atores, sugerindo uma ampliação do conceito de mise en scène para incluir elementos sonoros. Em artigos, outros autores têm feito reflexões sobre o papel do som na mise en scène do cinema contemporâneo, como Virgínia Flôres (2015), Guilherme Farkas (2017) e, principalmente, Erly Vieira Júnior (2020), que identificou características comuns entre os filmes analisados, de cineastas como Reygadas, Lucrecia Martel, Lisandro Alonso, Pedro Costa e Sandra Kogut, associados ao cinema de fluxo.
Erly Vieira Jr. (2020) destaca a importância do som ambiente na construção sensorial do realismo cinematográfico, especialmente no cinema de fluxo. Essa abordagem cinematográfica, influenciada por pensamentos transgressivos e críticas ao modernismo, valoriza a desordem, a intensidade sensorial e a dissolução de formas narrativas rígidas. A ambiência sonora, característica do cinema de fluxo, cria uma multissensorialidade que promove a imersão no espaço e tempo cênicos, focando a experiência sensorial em detrimento da narrativa convencional.
Diferentemente do cinema de fluxo, em que há uma temporalidade difusa, Ex-Pajé apresenta temporalidades bem definidas, com planos estruturados em começo, meio e fim, e uma montagem que não segue a abordagem minimalista do cinema de fluxo. Contudo, em momentos específicos, como na cena em que Perpera Suruí participa do culto evangélico em sua aldeia, o filme se serve da mesma sensorialidade, representando acontecimentos por meio de sua dimensão aural. O design sonoro estende o espaço percebido além do enquadramento visual, criando uma zona de contato entre o personagem e a floresta. Sons em diálogo com imagens podem representar significados simbólicos e enfatizar sentidos que não estão visíveis. Investigaremos se Bolognesi, ao enfatizar a experiência sensorial, também prioriza o horizonte contemplativo do cinema, explorando os aspectos existenciais e a maneira como o espectador pode ver, ouvir e sentir por meio de seus personagens.
Nossa metodologia de pesquisa consiste na análise interna da imagem e do som (Aumont e Marie, 2009). Compreendendo o filme como um meio de expressão, este tipo de análise centra-se no espaço fílmico enquanto um texto e recorre a conceitos da linguagem do cinema para revelar seu funcionamento e propor uma interpretação. Com a decupagem, descrevemos numa tabela as locações das cenas, os personagens, os tipos de planos visuais e os elementos sonoros.
Michel Chion (2008) sugere quatro recomendações para o som de um filme. A primeira é o “método das máscaras”, que consiste em assistir a uma sequência várias vezes, alternando entre ver com som e imagem juntos, apenas com som, e apenas com imagem. A segunda recomendação é elaborar um questionário para identificar os elementos sonoros, como falas, música e ruídos, e verificar quais são dominantes em diferentes momentos. A terceira é identificar pontos de sincronização marcantes entre som e imagem que criam significado ou efeito. Por fim, Chion recomenda fazer comparações entre som e imagem, observando como ambos se relacionam a um mesmo critério de representação e como o som reage a mudanças na imagem.
As recomendações para a análise do som de Chion (2008) foram consideradas complementarmente, para que possamos compreender como a mise en scène de Ex-Pajé vai além dos elementos visuais, servindo-se do desenho sonoro e dos efeitos audiovisógenos (Chion, 2009) quando as imagens não são suficientes para representar os sentidos pretendidos, ou quando se busca antes sensações, sentimentos e sentidos simbólicos.
O LUGAR DO SOM NA MISE EN SCÈNE
O cinema sempre combinou imagem e som, embora, no começo, o som fosse apenas adicionado nas exibições, com narradores ou orquestras acompanhando as cenas. Com o avanço tecnológico da gravação sonora, surge o cinema “falado”, marcado pela junção de duas materialidades: a visual e a sonora. Márcia Regina Carvalho (2005, p. 1) destaca que a trilha sonora é composta pela organização dos elementos auditivos, como música, vozes e efeitos sonoros, definidos como “sons reconhecíveis e irreconhecíveis ou ruídos”.
Já para Frederico Pessoa (2011, p. 31), o som de um filme é formado por voz, música, ruído e silêncio, sendo este último muitas vezes um “silêncio ambiente”. A voz é entendida como qualquer manifestação sonora por meio da palavra, incluindo diálogos, monólogos, narração ou pensamentos. A música abrange composições instrumentais, canções, e ruídos organizados musicalmente, como na música concreta. Os ruídos englobam todos os sons que não sejam voz ou música, podendo ser sons do cotidiano, como tráfego, chuva, passos, ou ruídos eletrônicos não organizados. O silêncio pode ser a ausência total de som ou um silêncio ambiente com ruídos de fundo sem destaque.
Débora Opolski (2009, p. 31) classifica os sons do ambiente, que ela denomina “composição do ambiente”, em duas categorias: “apresentação do ambiente” (background), que são sons contínuos e característicos de um local, e “eventos sonoros pontuais”, usados para situar o espectador na cena. Para Opolski (2009), a composição ambiente é um recurso que possibilita não somente a localização sonora geográfica e espacial, mas também a utilização criativa de sons distintos de maneira simultânea.
Daniel Deshays (2006, p. 13, tradução nossa) vê o design sonoro como uma “escritura sonora”, reconfigurando a paisagem sonora para criar significados e emoções. Por meio da seleção de materiais e da invenção de novos arranjos em “ruptura com a escuta comum”, o autor mostra como uma escrita é elaborada após a tomada do som. Partindo das ideias de Opolski e Deshays, podemos pensar que o desenho sonoro é um primeiro nível de encenação, já que este processo de selecionar e dispor os elementos sonoros em novos arranjos não se faz sem considerar os elementos visuais da cena.
Murray Schafer (2001), ao discutir a “paisagem sonora”, propõe identificar os sons significativos, como os sons fundamentais, sinais, marcas sonoras e sons arquetípicos – antigos e carregados de simbolismo. Segundo o autor, uma paisagem sonora de alta fidelidade (no inglês, hi-fi) é característica de ambientes mais silenciosos, onde todos os sons, mesmo os mais sutis, podem ser perfeitamente distinguidos. Em contraste, uma paisagem sonora de baixa fidelidade (lo-fi) possui maior intensidade de ruídos, mascarando sons mais sutis devido à saturação sonora.
Michel Chion (2008; 2009) nos apresenta ideias cruciais sobre a interação entre som e imagem no cinema que nos levam a compreender porque o som, embora possa ser um elemento central da mise en scène, acaba sendo percebido como um “valor agregado”, que o autor define como “o valor expressivo e informativo com que um som enriquece uma determinada imagem, até dar a crer, na impressão imediata que dela se tem [...], que essa informação [...] decorre ‘naturalmente’ daquilo que vemos e que já está contido apenas na imagem” (2008, p. 12). Chion introduz conceitos como “ponto de escuta” e distingue tipos de escuta (causal, semântica, reduzida), além de propor a ideia de “imagem fantasma”, uma imagem sugerida pelo som, mas não visível:
A imagem fantasma é uma imagem precisa sugerida pelo som, mas que não aparece. Por exemplo, [...] no Hulot de Tati há aquela mise-en-scène em áudio de crianças brincando e chamando umas às outras, mas nunca vemos uma cena delas fazendo isso. Em outra cena, de Os Pássaros, ouvimos os pássaros atacando [...], mas não os vemos. Sons fantasmas são fantasmas sensoriais que devem ser levados em consideração na análise audiovisual, [...]
(Chion, 2009, p. 483, tradução nossa).
Chion explora também os “efeitos audiovisógenos” (Chion, 2009, p. 468, tradução nossa), que surgem da interação entre som e imagem, gerando significados, atmosferas, materialidade, cenografia e manipulação temporal. Sobre o efeito de materialidade, ele destaca que os sons “nos remetem para a sensação da materialidade da fonte” e que sua dosagem é uma forma de “encenação, de estruturação e de dramatização” (Chion, 2008, p. 92). Esses efeitos discutidos pelo autor mostram que a mise en scène é um processo que envolve tanto a visão quanto a audição, de modo que a direção cinematográfica não é apenas um ato de ver, mas também de ouvir, criando sentidos e expressando intenções por meio do som.
Luiz Carlos Oliveira Jr. (2010) argumenta que o cinema de fluxo representa uma ruptura com o conceito tradicional de mise en scène, aproximando-se de uma estética “barroca” caracterizada pelo inacabamento, movimento e dissolução das formas. Ele nota a importância do som em filmes de diretores como Hou Hsiao-Hsien, Apichatpong Weerasethakul e Claire Denis, exemplificando com uma cena de A Viagem do Balão Vermelho, de Hsiao-Hsien.
Nessa cena, a câmera realiza um plano-sequência que acompanha a dinâmica de personagens em um espaço fechado. A sequência inicia com Simon jogando videogame, seguida pela chegada de outros personagens, enquanto a câmera se move suavemente pelo ambiente, alternando entre diferentes planos. A tensão cresce com a entrada de novos personagens e sons sobrepostos, culminando em um momento de introspecção de Suzanne, isolada em meio ao caos. A cena termina com a câmera focando no piano.
Oliveira Jr. (2010, p. 132) ressalta que o som é essencial para a riqueza da cena, criando uma paisagem sonora detalhada e diversa que intensifica a experiência do espaço-tempo fílmico. Ele observa que a câmera é guiada por indicações sonoras, respondendo aos estímulos auditivos do ambiente, como o som de uma porta se abrindo. Essa abordagem sonora gera, para o autor, um campo visual “elástico” que reflete a multiplicidade e a ausência de hierarquia do campo acústico.
Vieira Jr. (2020, p. 16) aponta que “a elipse temporal e a ambiguidade visual e sonora”, características do cinema de fluxo, produzem incertezas e convidam o espectador a sentir antes de racionalizar. Nesse cenário, a câmera-corpo assume um papel fundamental, transitando pela heterogeneidade e fragmentação do espaço contemporâneo, a explorar os transbordamentos de energias e afetos dos corpos que percorrem os espaços, proporcionando uma experiência sensorial intensificada ao espectador.
Refletindo sobre as paisagens da floresta como exemplo dessa condição heterotópica, o autor revela a importância do som ambiente no cinema de fluxo. A floresta, simultaneamente macro e microscópica, está imersa em incontáveis microfluxos, oferecendo uma rica variedade de intensidades sensoriais. Analisando a obra de Apichatpong Weerasethakul e Naomi Kawase, que explora as paisagens da floresta, Vieira Jr. nota como a câmera, criando uma imersão no presente eterno e fugidio, uma ligação corpo-natureza com elementos fantásticos e espirituais, ou na abordagem mais realista e documental, utiliza o som ambiente para intensificar a experiência sensorial e relacional do espectador:
Há também toda uma preocupação na construção de uma paisagem sonora que intensifique esse amálgama entre corpos e paisagem: o som, repetido em ostinato, dos pássaros e primatas (durante o dia) e a interminável cantoria das cigarras (à noite), ao qual vão se confundindo, pouco a pouco, os raros sons humanos captados pelo radiocomunicador, até que estes também se percam na densa e irrecusável parede sonora que se ergue por toda a floresta
(Vieira Jr., 2020, p. 132).
No campo da antropologia fílmica, também há reflexões que nos ajudam a compreender o som como elemento da mise en scène. Claudine de France (1990) explora o comentário verbal como uma forma de encenar o real ou a imagem. Ane Comolli (1995) observa que o autocomentário no cinema passou por “liberações sucessivas”, criando uma mise en scène específica para sua apresentação. Sandra Coelho (2014), em sua tese sobre a etnoficção de Jean Rouch, argumenta que os diferentes tipos de comentários nos filmes, como em Eu, um negro, de Rouch, devem ser considerados inseparáveis das imagens.
Clarisse Alvarenga (2017), em sua tese focada em filmes indigenistas sobre o primeiro contato com indígenas isolados, aborda como o som e a mise en scène se manifestam em duas instâncias temporais distintas. A primeira instância refere-se aos “momentos intensos”, descritos como cenas do contato que aumentam a experiência do filme, criando mudanças narrativas, tensões e desregulações na mise en scène.
Alvarenga também explora como as cenas do contato se constroem não apenas pelo que é visível, mas pelo extracampo, que adquire importância crescente nas análises. Quando é difícil localizar os indígenas na floresta, a escuta de seus sons se torna fundamental para a cena do contato. Cada nova tentativa de aproximação pelas expedições amplia o campo de visualidade dos filmes, reconfigurando a relação entre o visível e o invisível. Nesses momentos, o enquadramento é essencial, incluindo o posicionamento da câmera, os limites do quadro, a distância entre o cineasta e os filmados, e a interação entre campo, antecampo e extracampo. A maneira como os indígenas respondem à câmera, tocam os instrumentos de captura de som e imagem, e interagem com os corpos dos cineastas é central para essa dinâmica.
Em Ex-Pajé, a relação entre cineasta e filmados é diferente, mas o som também surge como um elemento central nos “momentos intensos” (Alvarenga, 2017). Ele desestabiliza a mise en scène nas cenas de contato, que mostram os indígenas em trânsito entre sua cultura originária e a cultura hegemônica. Essas cenas são particularmente experimentais e tentam, tal como no cinema intercultural, “representar a experiência de viver entre dois ou mais regimes culturais de conhecimento” (Marks, 2000, p. 1).
Laura Marks (2000) argumenta que, no cinema intercultural, é essencial entender como o significado é experimentado pelo corpo, e não apenas por signos visuais. Ela explora exemplos de filmes e vídeos interculturais para demonstrar que a imagem pode ser uma experiência multissensorial, criando uma “visualidade tátil” que reescreve histórias, produz arquivos e articula memórias. O “cinema háptico” promove uma relação corporal entre espectador e imagem, estabelecendo uma “copresença” com os objetos, em vez de buscar identificação com uma figura, similar ao conceito de “falar próximo”, da cineasta Trinh T. Minh-ha. A autora propõe que o cinema apela ao conhecimento corporal e ao tato para recriar memórias, incluindo o som percebido como “audição háptica”, em que o ouvinte escolhe quais sons focar. Esses conceitos ajudam a entender o som como parte da mise en scène no cinema feito com indígenas, criando uma “copresença” entre quem filma (não indígena) e quem é filmado (indígena).
Em Ex-Pajé, o tempo parece suspenso, criando uma imersão num presente dilatado que é essencial para representar a escuta indígena, remetendo à cosmopercepção xamânica. Essa experiência sensorial e afetiva, característica da audiovisualidade tátil, evoca a encenação da escuta do pajé nas cenas de contato, num certo “inacabamento da história” (Alvarenga, 2017), expressando como os povos indígenas constroem, treinam e valorizam sentidos, como a audição, de maneira diversa (e muitas vezes oposta) ao paradigma ocidental, o que o etnomusicólogo Rafael Bastos (2012, p. 10) chama de “biopolítica das sensorialidades indígenas”. Para Bastos, no mundo xinguano, assim como entre os ameríndios de um modo geral, ouvir é conhecer, é se relacionar, é ser – e essa construção sensorial é central para a vida social, espiritual e artística.
Da mesma forma, Rosângela de Tugny (2011) argumenta que, para os indígenas, o som é mais que um componente sensorial; é uma expressão de poder, conhecimento e relação com o sagrado. Sobre a cosmologia dos tikm ũ’ũ n maxakali, Tugny salienta a importância do som, esclarecendo que o corpo do futuro xamã é preparado para ser “o receptáculo dos sons”, guardando a memória ancestral:
Quase-ver, ver-ouvir, auscultar o próprio corpo-receptáculo-acústico, ver menos, ver o que é quase imperceptível, essa é a modalidade de visão empreendida pelos futuros xamãs tikmu’um, a visão do morcego. Ela implica a transformação do corpo em instrumento de reverberação acústica”. [...]. Todos [os espíritos] trazem, pelos seus cantos, imagens a serem partilhadas com os homens e mulheres que cantam com eles.
(Tugny, 2011, p. 98-99).
No cinema feito com indígenas, a representação da escuta xamânica reflete essa “memória do toque”, esse “conhecimento incorporado” (Marks, 2000), envolvendo um corpo especializado para escutar, distinguir sons aparentemente indiferenciados, que carregam memórias e saberes ancestrais. Em Ex-Pajé, Perpera Suruí, mesmo não querendo ser visto pelos espíritos, é chamado a escutá-los, compreendendo suas mensagens. Como encenar essa espiritualidade Paiter Suruí, senão através dos sons, estes índices que nos levam a imagens mentais?
O aprendizado da visão xamânica, do sonho e a vigilância da atividade onírica são temas recorrentes das etnografias que têm como foco o xamanismo ameríndio. Não se trata apenas de escutar como oposição a ver. Privar a visão temporariamente no ritual de iniciação xamânica é antes uma forma de aprofundar a visão do que privá-la, de modo a desenvolver a capacidade de visualizar imagens outras, “imagens interiores” (Viveiros de Castro, 2006). Da mesma forma, centrar a mise en scène no som não implica em criar uma encenação aural por oposição à noção tradicional de mise en scène, visiocentrada, mas criar uma forma de aprofundar os sentidos criados na encenação do cinema feito com indígenas por meio da sensibilidade às suas escutas.
A MISE EN SCÈNE AURAL DE EX-PAJÉ
Os Paiter Suruí são um povo indígena de Rondônia, na fronteira com o Mato Grosso. O contato oficial com eles ocorreu em 1969, liderado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas(FUNAI) e o sertanista Francisco Meirelles. Desde então, a região passou a ser ocupada por madeireiros, agronegócio e algumas igrejas protestantes. O filme Ex-Pajé retrata a fase atual da vida de Perpera Suruí, que foi pajé dos Paiter Suruí até seus 20 anos.
Para Diogo Matheus de Souza e Claricia Otto (2020, p. 366), “Bolognesi se concentra nos impactos culturais que a doutrinação evangélica forçada causou nesse povo, que vão desde a demonização de suas práticas religiosas até a busca em apagar sua tradição e memória, transmitidas, oralmente, no convívio entre gerações”. Dessa forma, os Paiter Suruí se afastam de suas crenças tradicionais e do próprio pajé, negando sua sabedoria e suas práticas. Enquanto o filme expõe esse processo de desterritorialização cultural, também mostra a guarda florestal indígena tentando defender o território dos invasores. Um evento significativo ocorre quando a irmã de Perpera é picada por uma cobra venenosa, levando-o a realizar um ritual de cura que envolve cânticos tradicionais, evidenciando a resistência cultural.
O filme inicia com imagens de arquivo de 1969, mostrando o território Paiter Suruí, uma estrada na floresta, e um avião. Sons de cânticos indígenas misturam-se ao barulho do motor e de uma flauta, acompanhando cenas de dança, canto e riso dos Paiter Suruí. A sequência termina com um canto sagrado enquanto eles retornam à mata. O prólogo, composto por imagens do primeiro contato dos Paiter Suruí com não indígenas, contrasta com a sonoridade das imagens mais recentes da Aldeia Lapetanha, filmadas em 2017, onde os rituais tradicionais foram suplantados por louvores cristãos após a chegada de uma igreja neopentecostal.
Nos primeiros diálogos, percebe-se o drama de Perpera, que, ao rever publicações antropológicas (figura 1), comenta: “A pessoa se destacava quando era pajé”. Seu sobrinho pergunta se ele gostava de ser pajé, e Perpera responde, de forma nostálgica, que antigamente o pajé era consultado, enquanto hoje só tomam aspirina. A exclusão social de Perpera é ilustrada quando ele precisa de uma carona para a cidade e é relegado à carroceria de uma caminhonete. Pescando com o sobrinho, ele revela o motivo de ter deixado de ser pajé: “Depois que o pastor disse que pajé é coisa do diabo, ninguém mais falou comigo, viraram o rosto para mim” (15m).
Se os problemas enfrentados pelos Paiter Suruí são relatados, ao menos introdutoriamente, por meio das conversas entre personagens, os processos de resistência, principalmente no que se refere à questão da religiosidade, são representados por meio das relações dissonantes entre sons e imagens nos planos. Ao falar sobre a memória das imagens, Laura Marks (2000) argumenta que as lacunas características do cinema de imagem-tempo oferecem uma maneira de representar memórias que são apagadas das representações cinematográficas dominantes. Seguindo Deleuze, ela defende que às vezes a disjunção entre o visível e o verbal pode apontar para significados que estão entre eles, mas muitas vezes escapam.
As sequências destacadas a seguir nos ajudam a compreender a importância do cinema como “incorporação multissensorial da cultura”, essa visualidade tátil, sobre a qual fala Marks (2000), levando-nos a refletir também sobre a relevância da escuta háptica na mise en scène de Ex-Pajé. A encenação das escutas do pajé, em sua disjunção com a visualidade das cenas, cria potentes “efeitos audiovisógenos” (Chion, 2009), em especial efeitos de significado, como veremos a seguir.
A primeira sequência começa com um plano de conjunto que já revela uma primeira relação contrastante entre som e imagem que vai se intensificar adiante (figura 2). Perpera está em traje social (gravata, calça e camisa social), que nos remete ao estereótipo do cristão evangélico, mas atravessa uma floresta densa tanto visual, quanto sonoramente, que nos remete à sua identidade indígena. Enquanto Perpera Suruí abre a igreja, escutamos no background os primeiros zumbidos das abelhas, logo abafados pelo som da caminhonete do pastor, que chega e inicia a evangelização com a tradução de um Paiter Suruí para sua língua nativa. Enquanto isso, Perpera está sentado à porta da igreja. Ele aparece em primeiro plano, olhando atentamente para fora do quadro, enquanto ainda escutamos as vozes do tradutor e do pastor, ao mesmo tempo que voltamos a ouvir gradativamente o enxame de abelhas. No plano seguinte, um plano de detalhe, vemos a florada no alto da árvore, com as abelhas que Perpera observava. Acompanhando a ênfase visual, os sons das abelhas vão crescendo em intensidade e volume, até atingir um certo hiper-realismo sonoro.
A voz da pregação do pastor diminui em intensidade e volume na cena descrita, enquanto a atenção de Perpera se volta para os chamados dos espíritos da floresta, que se comunicam através do zumbido das abelhas. O som hiper-realista das abelhas nesta cena do culto nos remete à noção de “efeito audiovisógeno de renderização e materialidade” (Chion, 2009), pois demonstra que a direção de som de Ex-Pajé optou por dosar os “índices sonoros materializantes” da floresta como meio sutil e ao mesmo tempo arrebatador de encenação, trazendo impressões de energia, textura, velocidade, volume e temperatura. Como este som da escuta ativa do protagonista, despertando uma memória afetiva, representa uma atitude de resistência cultural, contrapondo-se aos elementos visuais da cena, que representam uma situação de conversão à religiosidade cristã, podemos dizer também que o diretor se serve do que Michel Chion chama de “efeito de significado” (2009, p. 468), um efeito que também se dá pela heterogeneidade entre as materialidades e os sentidos das imagens visuais e sonoras, de modo a criar uma “metáfora audiovisual” (Nichols, 2005).
Em seguida, acompanhamos Perpera em diversas situações que revelam toda a sua sabedoria. Numa sequência, ele está junto aos parentes ensinando as crianças a produzir a tinta e a fazer pinturas corporais. Em outra, ele conta histórias para um menino, aparentemente seu neto. Em uma delas, ensina que se deve acender um fogo para enfrentar o medo e se proteger de animais, como uma cobra.
Na sequência seguinte, vemos o pajé conversando com os parentes que tentam ajudá-lo a consertar a lâmpada. Perpera relata que não pode dormir no escuro: “Os espíritos da floresta me batem a noite toda. Estão bravos por causa da Igreja”. Ele precisa de luz para afastar os espíritos e assim conseguir dormir. Mas os parentes vão embora sem consertar a lâmpada do quarto e Perpera é obrigado a ficar com a porta aberta para poder usufruir da luz da varanda da casa (figura 3). Tal como ensinou para o menino, acendeu uma chama para enfrentar seus medos, mas a chama aqui é elétrica.
Neste trecho, o som da flauta do ritual de Hô-êi-ê-tê2, que escutamos no prólogo, volta a aparecer sutilmente, amalgamado com a ambiência sonora da floresta, retornando frequentemente durante o filme. Num plano médio, Perpera está sentado na cama, aflito, envolto em seu mosquiteiro e tomado pela insônia, enquanto ouvimos a ambiência sonora noturna da aldeia, como o canto das cigarras e a estridulação dos grilos. Um plano-geral (figura 3) mostra a floresta, com sua sonoridade noturna repleta de camadas, de onde um som acusmático de um pássaro se sobressai, pontuando a tensão do personagem. Murray Schafer (2001, p. 26-27) classifica esse tipo de som como sinal, por ser indicial e por vezes organizado “dentro de códigos bastante elaborados”. São “sons destacados”, em volume e espaço superiores para serem “ouvidos conscientemente”. Assim, se os elementos visuais deste plano conformam um fundo, o som traz uma figura.
Esses sons retornam frequentemente ao longo do filme, sinalizando que os espíritos Paiter estão insanos com Perpera e toda a aldeia, como na sequência seguinte, da Igreja, após uma senhora entregar remédios para mulheres indígenas, e um pouco mais adiante, logo após a irmã de Perpera ser picada por uma cobra (figura 4). O som acusmático do que imaginamos ser um pássaro noturno nos remete a duas das três atitudes de escuta de Chion: inicialmente, a escuta causal. Como não encontramos a causa, ficamos na escuta reduzida. Para Michel Chion (2008, p. 31), a escuta reduzida tem o poder de abrir a escuta e afinar o ouvido do realizador, do investigador ou do técnico, e aqui acrescentaríamos também do espectador: “Com efeito, o valor afetivo, emocional, físico e estético de um som está associado não só à explicação causal de que falamos, mas também às suas qualidades específicas de timbre e textura, ao seu frêmito”.
Neste sentido, a opção pela acusmática nesta cena pode levar ao efeito tátil, já que a escuta reduzida tem esse poder de nos fazer apelar para os outros sentidos, inclusive do tato. Quando entramos em contato com as sensações que esse som áspero e agudo nos desperta, como o assombramento, é que acessamos uma memória que nos leva ao valor “arquetípico” (Schafer, 2001) desse som3. E mesmo não vendo a causa, pressentimos seu significado, pois se diferencia em meio à paisagem sonora intrincada e imprecisa da floresta, assinalando tensões na narrativa.
Outro aspecto importante da mise en scène e da montagem do filme é o trânsito permanente entre o tradicional e o moderno, a natureza e o artifício, que também fica evidente através do som, que corta repentinamente da “paisagem sonora hi-fi” (Schafer, 2001) da aldeia para a “paisagem sonora lo-fi” (idem) da cena das motocicletas cruzando a floresta e depois das roçadeiras no campo (29 min.). Esses contrastes representados no filme (figura 5) não levam, entretanto, a um mero jogo estético. Representam a cosmovisão dos Paiter Suruí, caracterizada por dualidades. Na mise en scène de Ex-Pajé, que se alterna constantemente entre a aldeia e a floresta, o “espaço da cena” (Rêgo, 2023) é uma categoria fundamental para representar esse aspecto da cosmovisão Paiter Suruí, como aliás se dá também no cinema propriamente indígena.
Em tese sobre a mise en scène no cinema Mbya Guarani, Francisco Gabriel Rêgo identifica algumas categorias para a compreensão da mise en scène nos filmes indígenas por ele investigados, sendo um deles o “espaço da cena”, que o autor define como “um meio de desenvolvimento do registro e das relações presentes nesse processo” (2023, p. 17). Rêgo defende que o espaço procura representar os atributos centrais da cultura ao realçar “uma lógica de ocupação e de estar nos diferentes espaços que busca emular a mobilidade e a estabilidade, em cenas que reiteram significados importantes para os Mbyá no passado e no contemporâneo” (2023, p. 216). Para o autor, essa oposição entre a mobilidade e a estabilidade é essencial para a compreensão das cenas e se estabelece como uma premissa importante para a investigação da mise en scène do Coletivo Mbyá Guarani: “Entre a mobilidade e a estabilidade se assenta as contradições principais dos Mbyá no dia de hoje, em especial, no tocante aos destinos estabelecidos nos diferentes percursos imprimidos pelos indígenas ao longo de sua história” (Rêgo, 2013. p. 216).
No caso de Ex-Pajé, a dicotomia que a alternância entre os espaços da cena ajuda a representar é também entre a aldeia e a floresta. Para a antropóloga Betty Mindlin, essa divisão em metades, ou “metare” (1984/1985, p. 46) está presente em distintas atividades da vida social dos Paiter Suruí, organizando desde as atividades produtivas até a vida ritualística. Pode ser percebida na constituição da vida entre a roça e a aldeia, mas atualmente essa dicotomia se estabelece também entre o tradicional e o moderno, entre o artesanal (a roça das mulheres) e o mecanizado (a roça dos homens).
O filme mostra que os indígenas adotam diversas tecnologias modernas: caminhonetes 4x4, motocicletas para deslocamento na mata, roçadeiras mecânicas, máquinas de lavar, celulares, computadores, câmeras fotográficas, internet e espingardas. Em geral, essas tecnologias são usadas para defesa e sobrevivência, como na denúncia de extração ilegal de madeira e desmatamento, feitas pelos guardiões da floresta e publicadas em sites e redes sociais. Eles também produzem alimentos para autossustento e geram renda para suprir o que não conseguem mais produzir ou caçar em suas terras. A tradição se manifesta na cura de picadas de cobra pelo pajé, na destruição de cupinzeiros pelo guerreiro Paiter Suruí, nos ritos de pintura corporal, no artesanato de adornos, nos ingredientes naturais das refeições (e suas formas tradicionais de cultivo) e na família reunida ouvindo as mensagens dos pássaros na floresta.
A sonoridade do filme fica ainda mais potente quando Perpera começa a resgatar o ritual de cura hô-êi-ê-tê para salvar a irmã, que está internada devido à picada de cobra jararaca no momento da colheita de batatas. Abatida física e espiritualmente, toda a aldeia se envolve no ritual. Para Perpera, a causa da tragédia é, além do afastamento das entidades Paiter Suruí, um espírito malévolo que se exterioriza num ninho de cupim. Segundo sua cosmovisão, um guerreiro Paiter Suruí é o único que teria o poder de demolir o ninho. O pajé começa, então, a coordenar os preparativos do ritual de cura e pede para seu sobrinho Ubiratan coletar a madeira de bambu para confecção da flauta.
Um indígena prepara a flauta sob o olhar curioso de um menino Paiter-Suruí, testando-a em cada etapa (figura 6). Após a conclusão, uma série de planos gerais da floresta e do rio traz um silêncio contrastante. Da varanda de sua casa, Perpera Suruí toca o instrumento (figura 6), e ouvimos uma composição de flautas hô-êi-ê-tê marcando o início do ritual. No entanto, como muitos Paiter Suruí se converteram ao cristianismo protestante, o ritual, que deveria ser coletivo, é reduzido, com a aldeia e a igreja vazias, preenchidas apenas pelos sons das flautas. Rosângela de Tugny (2011, p. 26) reflete que “negar a escuta de outros corpos acústicos é sobretudo recusar um espaço comum, compartilhado, sensível”. Este contraste entre a coletividade do som e o vazio das imagens nos remete à perda das tradições entre os Paiter Suruí, mas pode também representar o poder que a música tem de criar esse “espaço comum”, promover essa “prospecção do mundo que habitamos” (Tugny, 2011, p. 26).
Em seguida, um guerreiro destrói um abrigo de cupim e queima seus restos, enquanto o som da sinfonia de flautas cessa. Fotografias dos primeiros contatos dos Paiter Suruí com não indígenas reforçam um retorno às origens. Após o ritual de cura, a rotina é retomada. O som de um pássaro atrai a escuta do pajé, que se mostra apreensivo. A irmã do pajé, curada, é vista novamente no templo evangélico, onde também está Perpera (figura 7). O som de abelhas cresce e então desaparece abruptamente, encerrando com cânticos tradicionais e os créditos finais.
Curada pelo ritual xamã, a irmã de Perpera Suruí volta à igreja, mas o pajé continua atento aos sons dos espíritos codificados nas sonoridades da floresta.
A análise evidencia que o som é um componente essencial na mise en scène de Ex-Pajé, alcançando um efeito sensorial. Esse reforço tátil nos aspectos visuais dos planos é reflexo da escolha por planos fixos ou com movimentos sutis, expressando uma sensação de pairar na cena. O ritmo da montagem, com planos alongados que permitem a contemplação, também contribui para a potencialização da encenação da escuta ativa do protagonista, bem como de todas as demais dinâmicas sonoras do filme. Outra característica da banda sonora que se sobressai é o uso recorrente de sons fora de campo. Muitas imagens criadas por Bolognesi com suas composições e enquadramentos, tal como os planos gerais da mata ou os planos muito próximos das abelhas em meio às floradas, parecem evitar, intencionalmente, a descrição, de modo que a informação sonora passa a desempenhar outras funções que não a de simplesmente sublinhar o que se vê.
Além disso, as longas pausas entre as falas dos personagens contribuem para evidenciar os sons ambiente, na medida em que aliviam a atenção do espectador sobre a primazia da voz, tal como aprendemos no Ocidente. Por meio de ruídos pontuais expressivos ou de pontos de sincronia (Chion, 2008), camadas de som trazidas à tona no processo de mixagem complementam a narrativa imagética. Por meio desses arranjos, Bolognesi consegue diminuir a centralidade da voz, de modo a aproximar-se da hierarquia perceptiva do som dos povos ameríndios, tal como explica Rafael Bastos (2012), em que a música (os cantos), que abre e fecha o filme, está no topo dessa hierarquia, e o som ambiente é a matéria (a base) dessa musicalidade, sendo a voz apenas um elemento intermediário.
Essa investida estética nos aproxima sensivelmente das histórias contadas nessa obra, não somente pelas histórias em si, mas pelo modo de contá-las. Ouvimos, em suas línguas originárias, os indígenas narrarem seus contos tradicionais e suas próprias histórias de resistência às violações dos seus direitos culturais e territoriais, ao mesmo tempo que temos representadas nas histórias situações e sentimentos humanos universais, como a doença e a cura, provocando empatia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base na teoria da audiovisão, de Michel Chion (2008; 2009), bem como nos conceitos de desenho sonoro e paisagem sonora, defendemos a viabilidade de potencializar o som como um elemento de mise en scène no documentário híbrido, como uma maneira de agir na “biopolítica das sensorialidades indígenas” (Bastos, 2012). Atento à escuta do protagonista, o diretor de Ex-Pajé, com a ajuda de seu técnico de som, Rodrigo Macedo, capta no som o que não está evidente na imagem. Os sons dos animais da floresta que despertam a atenção de Perpera Suruí são captados, editados, mixados e, na montagem, inseridos em planos fixos – ora curtos, ora de longa duração, mas quase sempre fixos – de tal modo a potencializar o som, a encenação da escuta do personagem.
A análise demonstrou como o uso dos sons fundamentais na encenação de Ex-Pajé, levados a um patamar arquetípico, possibilita uma outra leitura das imagens, mais afetiva. A análise demonstrou que todos os elementos sonoros do cotidiano e da cultura da etnia Paiter Suruí são catalisados pelo desenho de som do filme e destacam a relevância do aural na construção da mise en scène. A carga sensorial da floresta e a pujança sonora de uma prática de cura trazem sensações, sentimentos e sentidos fundamentais para a narrativa, já que encenam as escutas ativas dos personagens, em especial do pajé, como formas de resistência cultural.
Nas cenas em que Perpera Suruí se encontra no interior da igreja evangélica, por exemplo, durante a realização dos cultos, não somente os elementos visuais da mise en scène do plano demonstram sua dificuldade ou resistência em aderir completamente à nova forma de conexão espiritual (ele senta sempre à porta da igreja, afastado dos demais fiéis, e fica quase de costas para o pastor, apesar de já ter recebido e cumprimentado todos os fiéis), mas também os elementos sonoros expressam aspectos da identidade cultural e religiosa do pajé que representam seus processos sutis de resistência à evangelização neopentecostal. A fala do pastor e seu tradutor, que começa como um elemento central da cena, cede cada vez mais em intensidade e volume para a sonoridade das abelhas que rondam as flores de uma árvore próxima, sonoridade esta que captura a atenção de Perpera, colocando o espectador em seu ponto de escuta. Essa sonoridade da floresta remete à memória dos espíritos que guiam o pajé e que se manifestam insistentemente ao longo do filme através da sonoridade de outros animais da floresta, demonstrando como aspectos estéticos do som reverberam na mise en scène do filme.
Quando atentamos para a ligação entre os planos na cena do culto, também devemos pensar sobre o papel progressivo da encenação sonora na criação de “metáforas audiovisuais”4, tais como no documentário poético (Nichols, 2005), utilizando como princípio comum a heterogeneidade entre materialidades e sentidos representados pelo som na sua relação com a imagem, como pudemos perceber nos primeiros planos do exterior e interior da igreja. Na imagem, Perpera Suruí é representado em condição subalterna, de zelador, vestido com calça e camisa social, mas no som temos a representação da sua identidade cultural e religiosa, por meio da encenação de sua escuta ativa, especialmente atenta às sonoridades dos animais da floresta, por meio dos quais os espíritos se manifestam, resultando numa metáfora audiovisual dos processos de resistência sutis dos Paiter Suruí aos métodos de evangelização e cura inseridos pelos neopentecostais e ao etnocídio, de um modo geral.
O diretor de Ex-Pajé, junto à sua equipe, encena o que não está verbalizado no roteiro, produzindo sensações, sentimentos e sentidos sutis, que remetem à espiritualidade de Perpera Suruí, que, mesmo na condição de “ex-pajé”, zelador de uma igreja evangélica neopentecostal, continua sensível à escuta das sonoridades “arquetípicas” (Schafer, 2001, p. 26) da floresta, o que pode gerar também um “efeito de significado” (Chion, 2009) que remete à resistência dos Paiter Suruí às imposições culturais do colonizador, provocando uma releitura da história do Brasil não somente por meio da montagem entre imagens de tempos diferentes (aquelas geradas pelo primeiro contato com não indígenas e as imagens recentes da evangelização neopentecostal entre os Paiter Suruí), mas também por meio da articulação dialética entre som e imagem na própria mise en scène do plano.
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1
Rafael Bastos (2012) explica que o verbo anup (ouvir) também significa compreender, mostrando uma equivalência entre escuta e entendimento. Já o verbo tsak (ver) está ligado a uma forma mais analítica, racional e até suspeita de conhecimento – associada a figuras antissociais como feiticeiros.
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2
Antes do contato com os não indígenas, este ritual era praticado frequentemente para a cura ou prevenção de doenças, em que o pajé, com seu bastão característico, o “naraí”, puxava o canto, seguido por homens com taquaras de palhas nas pontas, em que os espíritos incorporavam, exercendo assim o papel de fazer a interseção entre o terreno e o celestial (Mindlin, 1985, p. 61).
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3
Schafer (2001) nota que o som fundamental pode vir a ser arquetípico, caso evoque um significado profundo para as pessoas.
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4
Bill Nichols (2005, p. 106-118) afirma que os documentários usam metáforas para tratar de temas complexos, como amor, guerra e família, que não podem ser plenamente descritos por definições de dicionário. Essas metáforas ajudam a enriquecer a compreensão de conceitos sociais e a persuadir o público, criando visões específicas. Para Nichols, o poder de convencimento dos documentários está em seu estilo e retórica, que, por meio de imagens e sons, geram uma compreensão emocional além do factual.
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» https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50120
Editado por
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Editores responsáveis:
Adriana TeixeiraFábio Fonseca de CastroMaurício Ribeiro da SilvaNorval Baitello
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
22 Set 2024 -
Aceito
24 Maio 2025








Fonte: Frames do documentário Ex-Pajé (2018), de Luiz Bolognesi.
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