RESUMO
Este artigo analisa as estratégias discursivas de convocação ao consumo da Bolsonaro Store, plataforma criada para comercializar produtos em homenagem ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Com base nos pressupostos teórico-metodológicos da análise de discurso de linha francesa, explora-se como as publicações no Instagram da loja articulam consumo político, comunicação e mobilização das bases. A análise das 301 postagens revelou que os produtos comercializados funcionam como símbolos ideológicos e dispositivos de memória, convocando o enunciatário a performar uma identidade conservadora e patriótica por meio de um viés maniqueísta e essencialista. O estudo mostra ainda como essas mercadorias materializam estratégias discursivas de engajamento contínuo, ancoradas em uma lógica de culto à personalidade, polarização política e mobilização permanente. Com isso, discutem-se aspectos contemporâneos do consumo político na reprodução e circulação de discursos conservadores, com foco em uma cena discursiva construída por meio de discursos de memória, pertencimento, oposição e provocação.
PALAVRAS-CHAVE
comunicação; consumo; política; discurso
ABSTRACT
This article analyzes the discursive strategies used by Bolsonaro Store, a platform created to market products in tribute to former president Jair Bolsonaro, to promote consumption. Drawing on the theoretical-methodological foundations of French discourse analysis, this study explores how the store’s Instagram posts articulate political consumption, communication, and base mobilization. The analysis of the 301 posts revealed that the products sold function as ideological symbols and memory devices, interpellating the addressee to perform a conservative and patriotic identity through a manichean and essentialist lens. The study further shows how these commodities materialize discursive strategies of continuous engagement, anchored in a logic of personality cult, political polarization, and permanent mobilization. In doing so, the article discusses contemporary aspects of political consumption in the reproduction and circulation of conservative discourses, focusing on a discursive scene constructed around narratives of memory, belonging, opposition, and provocation.
KEYWORDS
communication; consumption; politics; discourse
Introdução
Em 26/02/2023, Eduardo Bolsonaro anuncia o lançamento da Bolsonaro Store2 – um e-commerce criado para vender produtos oficiais em homenagem ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Na aba “Sobre Nós” da loja, lê-se que a Bolsonaro Store surgiu “para manter vivo na memória boa parte dos feitos do Presidente Bolsonaro”. Além disso, “tudo é elaborado por uma equipe que ama o que faz, que sempre esteve perto do presidente Bolsonaro e que conta com seu apoio e colaboração”. Sua missão é “oferecer produtos de qualidade a um público conservador e exigente” e a visão é “tornar-se referência em todo Brasil em produtos para o público de direita, marcando presença entre as personalidades políticas do país e do mundo”.
O culto a personalidades políticas por meio da circulação de mercadorias icônicas não é uma novidade na política brasileira. Seja pela mobilização de um aparato estatal específico para essa finalidade (como o Departamento de Imprensa e Propaganda no Estado Novo); seja por um trabalho feito pelas organizações sociais (como o MST3) ou partidos políticos (como A Loja do PT4 ou a Loja Novo5) com o objetivo de arrecadação de fundos; ou por meio de uma produção empreendedora de fãs (como as lojas Camisa Crítica6, com ícones de esquerda, ou Capitalista Morena7, que remete a imaginários da direita), não é rara a circulação de bens de consumo que funcionam como extensões materiais de uma identidade política. Essas mercadorias corporificam um culto à personalidade, transformando líderes em ícones consumíveis e permitem que simpatizantes comuniquem sua lealdade por meio de objetos do cotidiano como camisetas, quadros ou canecas. Esse tipo de consumo político é não apenas normalizado no país como, em muitas ocasiões, foi abertamente utilizado como estratégia comunicacional de marketing eleitoral.
A Bolsonaro Store, contudo, parece trazer algumas especificidades no que se refere às correlações entre estratégias de comunicação e consumo de itens políticos. No canal de Instagram da Bolsonaro Store8, é possível encontrar não apenas propagandas dos itens comercializados, mas também vídeos com Eduardo Bolsonaro cuja cena enunciativa proposta mostra formas específicas de relacionamento entre consumo político, comunicação e mobilização das bases. O objetivo do presente artigo é analisar, com base nos pressupostos da análise de discurso de linha francesa (Maingueneau, 2005), as convocações discursivo-midiáticas ao consumo (Prado, 2013) nas publicações do perfil oficial de Instagram da Bolsonaro Store para discutir aspectos contemporâneos do consumo político na reprodução e circulação de discursos conservadores. Após o final do governo Bolsonaro, parece haver um investimento simbólico expressivo na midiatização do consumo político por parte da família do ex-presidente que é digno de nota, uma vez que tanto destaca estratégias comunicacionais do bolsonarismo já presentes ao longo de seu governo quanto articula formas próprias de expressão simbólica com a midiatização do consumo de mercadorias políticas para manutenção de um engajamento ao bolsonarismo pós-governo.
Produtos políticos e convocações midiát icas ao consumo
O uso de mercadorias que contém mensagens políticas institui uma aparição importante na esfera pública. Camisetas, bonés, bótons, adesivos, entre outros produtos, oferecem “uma maneira de anunciar uma presença no cenário político, com o objetivo tanto de fortalecer a solidariedade quanto de avançar a retórica pública” (Penney, 2013, p. 289). Assim, “ao marcar visivelmente os corpos dos usuários e identificar publicamente suas [...] visões políticas”, essas mercadorias “contribuem para um projeto mais amplo de visibilidade” (Penney, 2013, p. 289) que escancara o fato de que os bens de consumo são importantes mediadores de relações sociais (Douglas e Isherwood, 2004; Baudrillard, 1995; Appadurai, 2010).
Mercadorias políticas podem ser lidas como “meios acessíveis para manifestantes amplificarem a mensagem e demonstrarem unidade” (Akou, 2019), para convocar outras pessoas a se juntarem a certas causas e ideários (Miller, 2015) e servem como instrumento de marketing eleitoral, contribuindo para a construção de uma imagem de engajamento e identidade coletiva entre apoiadores de figuras políticas (Scotto, 2003). Além disso, esses produtos têm a capacidade de materializar visões ideológicas em objetos de consumo cotidiano, gerando uma interseção entre práticas de consumo e ativismos (Micheletti et alii, 2003). Trata-se de itens que dizem respeito a uma comodificação das ideologias, em que o consumo sustenta uma mensagem, reforça a comunicação de uma adesão a movimentos sociais, promove ideários e ajuda a consolidar narrativas políticas no espaço público.
Ao estudar o consumo de camisetas com mensagens políticas, Nwala (2020) mostra como, do ponto de vista discursivo, mercadorias políticas são meios de comunicação que ajudam a descrever pessoas, eventos, situações e posições. Tais produtos podem ser analisados como discursos multimodais que criam metáforas visuais e mediam slogans como formas de comunicação política. O uso de bens políticos realiza um ato ilocucionário, ou seja, uma ação por meio da mercadoria, para provocar uma reação perlocucionária, uma resposta na instância pública. Mesmo que essa ação não se realize, a camiseta política, para o autor, é um convite a uma reação pública, um chamado (de adesão ou repulsa) a um discurso.
Para Paterson (2017, p. 81), bens de consumo políticos são “como uma forma de comentário social que exibe e dissemina cultura”, posto que fornecem uma superfície física que mediatiza valores coletivos no ato de sua exibição. Além disso, a capacidade dessas mercadorias de “capturar e comunicar cultura imita a capacidade das plataformas de novas mídias de espalhar informações por meio de formas comumente conhecidas como memes”. Nesse sentido, “a superfície de uma camiseta pode ser vista como uma plataforma com a capacidade única de ‘falar’ para e pelo dono, levantando a questão de como as camisetas são vistas e disseminadas pelo público em geral” (Paterson, 2017, p. 19), sendo tanto um artefato quanto um dispositivo comunicacional.
A exibição das mercadorias políticas em espaços digitais ampliados, como as redes sociais, potencializa o papel desses objetos como comunicadores de identidades na esfera pública. A autoexposição com uma mercadoria política nas redes sociais envolve acionamentos de ritualidades e sociabilidades próprias dessas plataformas, reforçando o vínculo entre consumo e expressão identitária (Scabin et alii, 2023). As redes sociais possibilitam dinâmicas que reforçam o vínculo entre consumo e expressão ideológica, ao mobilizarem valores e pertenças compartilhadas.
Embora constante na política brasileira, as mercadorias políticas de culto a um líder ou imaginário político adquire contornos específicos com a ascensão de Bolsonaro ao poder (Cyril-Lynch e Paschoeto-Cassimiro, 2021; Barbosa et alii, 2021) e, especialmente, a partir do final de seu mandato, em 2023. As mercadorias de homenagem já eram uma forma de comunicação e mobilização importante ao longo de seu governo e isso é intensificado após sua saída do poder: a Bolsonaro Store é fundada em fevereiro de 2023; a linha de perfumes oficial de Bolsonaro, da marca AF Beauty, é lançada em 20249; a vinícola Bolsonaro10, que existe desde o final de 2020, passou a ter participação direta de Eduardo Bolsonaro em suas estratégias de divulgação a partir de 2023, quando deixou de ser um produto de fã e adquiriu um caráter de mercadoria oficial da família Bolsonaro. Assim, embora o culto ao líder regenerador feita por intermediação de mercadorias não seja uma novidade, a forma como a família Bolsonaro vem mobilizando a divulgação de produtos oficiais de homenagem ao ex-presidente após o final do mandato dinamiza o culto à personalidade na política brasileira recente.
Embora os produtos em si já sejam uma forma de comunicação política, o nosso interesse reside na midiatização e publicização dessas mercadorias feitas por meio do perfil oficial de Instagram da Bolsonaro Store. Ali, estão engendradas convocações discursivas ao consumo que revelam modos de engajamento político por meio das mercadorias que têm sido articuladas não apenas pela Bolsonaro Store, mas por uma série de empreendimentos da família Bolsonaro após o final do mandato presidencial. A importância das correlações entre comunicação, consumo e política parece ter sido percebida pelo bolsonarismo que, sistematicamente, tem investido em frentes de atuação nesse âmbito.
Por convocações discursivo-midiáticas ao consumo entendemos, tal como Prado (2013) os processos pelos quais os meios de comunicação mediam discursos que ao mesmo tempo promovem objetos de consumo e interpelam os sujeitos a se posicionarem e agirem em relação a esses objetos. Essas convocações funcionam como mecanismos de produção de sentido que, ao atribuírem valor simbólico aos bens e serviços, orientam as práticas de consumo relacionando um bem-viver a um bem-consumir. No perfil da Bolsonaro Store há uma convocação ao consumo que se estrutura em torno de conotações ideológicas, em que as mercadorias tornam-se veículos de expressão de posicionamentos políticos e há um convite para que os consumidores transformem o ato de compra em um gesto moral de afirmação identitária e participação no debate público.
Analisaremos, sob a perspectiva da análise de discurso de linha francesa (Maingueneau, 2005), as postagens da Bolsonaro Store desde sua inauguração até o final de setembro de 2024. São, ao todo, 301 postagens que revelam diferentes estratégias discursivas de convocação ao consumo. O objetivo do presente artigo não é fazer uma análise dos produtos em si, mas das estratégias discursivo-comunicacionais que acompanham essas mercadorias no perfil de Instagram da Bolsonaro Store, para discutir as correlações entre comunicação, consumo e política. Diante do grande número de postagens, serão destacados, na análise, alguns exemplos que materializam estratégias comunicacionais mais amplas que atravessam as diversas produções.
É importante considerar que a interdiscursividade precede a discursividade, o que implica que os sujeitos enunciadores não têm controle total sobre seus próprios discursos. Isso ocorre porque o discurso se forma de sua relação com outros discursos dentro de um campo discursivo. Assim, os discursos não existem de forma isolada, mas se constroem em relação (seja de aliança ou de conflito) com outros discursos. O interdiscurso estabelece “um sistema no qual a definição da rede semântica que delimita a especificidade de um discurso coincide com a definição de suas relações com o Outro” (Maingueneau, 2005, p. 35).
Os discursos, em seu conjunto, carregam “uma compreensão de como o mundo ‘funciona’ e, portanto, uma noção de como sociedades e indivíduos devem reagir a esse funcionamento” (Gomes, 2019, p. 273). Essas concepções são materializadas nas dispersões e/ou regularidades dos enunciados que revelam diferentes formações discursivas sobre a construção de objetos políticos no contexto social-midiático. Com base nessa abordagem, identificaremos alguns dos cruzamentos discursivos presentes nas convocações midiáticas ao consumo no perfil de Instagram da Bolsonaro Store, o que envolve investigar como, por meio da interdiscursividade, outros discursos estruturam os discursos midiatizados da loja.
Dada a multiplicidade de elementos discursivos que permeiam as postagens, optamos por concentrar a atenção nas recorrências que se destacam no feed da Bolsonaro Store. Essas recorrências são especialmente evidentes em um dos principais produtos em circulação: o calendário de Bolsonaro, cuja foto de capa retrata o ex-presidente sem camisa, com o torso nu à mostra. Tal objeto, ao condensar uma cena discursiva específica, configura-se como um artefato que sintetiza padrões discursivos, facilitando a identificação de estratégias discursivas que se repetem. Assim, a análise inicial do calendário permite uma observação mais focada das estratégias de convocação ao consumo mediadas. O calendário é o principal produto comercializado pela Bolsonaro Store: ele é colocado em evidência no cabeçalho do site e é presença recorrente nas postagens do perfil de Instagram do estabelecimento.
A foto de capa do calendário apresenta uma imagem de Jair Bolsonaro em plano médio, sentado em um banco, com o tronco nu e um semblante sério. O fundo preto destaca o corpo do ex-presidente, chamando a atenção para a cicatriz no lado esquerdo de seu abdômen, uma marca da facada que recebeu durante a campanha presidencial de 2018. A imagem transmite um ar de austeridade e resistência, reforçada pela frase que acompanha a foto: “A nossa liberdade vale mais do que a nossa própria vida” – enunciado que é retomado em outros produtos comercializados pela Bolsonaro Store.
A frase foi proferida por Bolsonaro durante a formatura e entrega de espadas a guardas-marinha da turma de 2020 da Escola Naval, no Rio de Janeiro. Ela é, contudo, recontextualizada no produto à venda para remeter a um contexto mais dramático do que o original, ligando-a diretamente ao atentado de 2018. Como efeito de sentido, há uma articulação discursiva, utilizada durante e após o seu governo, para construção da imagem de um líder forte e invulnerável, mas ao mesmo tempo sacrificado por sua missão política. Ao colocar a cicatriz em evidência, o produto reforça a ideia de Bolsonaro como alguém que sofreu pelo país e pela liberdade, acionando um discurso de martírio e força.
Destaca-se, ainda, que o produto não traz apenas fotografias de Bolsonaro ao longo de suas páginas, mas também um compilado de momentos de sua vida e de seu governo. Nas datas com eventos considerados importantes, é possível encontrar pequenos textos que mostram os feitos de Bolsonaro ao longo dos anos.
No Instagram da loja, a postagem de 10/06/2024 traz “6 razões para ter um calendário do Mito da Bolsonaro Store”. Segundo o carrossel de imagens, “1. Ele traz 36 fatos sobre a vida pública do presidente; 2. E também seus feitos nos 4 anos como presidente; 3. É super útil para organizar o dia a dia; 4. É colecionável, cada ano, um calendário diferente; 5. Repele esquerdista da sua casa ou do seu trabalho; 6. Mostra para todo mundo que você apoia o melhor presidente da história”. A postagem de 01/04/2024, também sobre o calendário, reforça esses pontos, com a legenda: “Não é só um calendário. É um resumo de todo legado de um homem em favor de seu país”.
Pese-se o fato de que Bolsonaro é anunciado como presidente (e nunca como ex-presidente) – o que evidencia que as palavras empregadas trazem “circunscrição de campo, definição e ordenação numa abordagem específica, construção da realidade” (Gomes, 2003, p. 92) –, a cena enunciativa (Maingueneau, 2008) do calendário se repete nas diversas postagens da Bolsonaro Store. Por isso, destacaremos a postagem do calendário como um ponto nodal das estratégias discursivas de convocação ao consumo da Bolsonaro Store, que serão esmiuçadas nos próximos tópicos de análise.
Na cena englobante de um discurso publicitário com forte caráter político-ideológico, que combina discurso comercial com discurso político, as postagens da Bolsonaro Store trazem um culto à imagem do ex-presidente, em que ele é representado como herói nacional. A cenografia discursiva – centrada na construção de um ambiente simbólico que celebra a imagem de Bolsonaro como um líder forte, patriota, e heroico – configura-se a partir de um enunciador que se posiciona como porta-voz da memória e do legado de Bolsonaro. O enunciador assume um papel de curador da memória política do ex-presidente, oferecendo aos seguidores um meio de materializar sua lealdade e admiração por meio de objetos que carregam símbolos e frases associadas à sua figura. O destinatário é construído discursivamente com base em um viés específico: o patriota conservador. Além disso, as postagens mobilizam uma linguagem que reforça uma posição de confronto político a partir da delimitação de inimigos específicos (como na proposição de “repelir esquerdistas”). A cena discursiva sugere que comprar os produtos da Bolsonaro Store é um ato de demarcação ideológica contra os inimigos políticos.
O calendário – e as demais postagens sobre produtos da Bolsonaro Store no Instagram – não vende apenas um produto, mas uma cena discursiva específica. O torso de Bolsonaro está nu e, junto a ele, algumas estratégias discursivas também podem ser expostas, conforme discutiremos na sequência.
ANÁLISE DA CENA MIDIÁTICA DA BOLSONARO STORE
Culto à personalidade e mediad ores da memória
A família Bolsonaro, especialmente articuladas em torno da figura de Eduardo Bolsonaro, ao promover diretamente produtos oficiais ligados à imagem do ex-presidente, reforça a personalização da política como um instrumento comunicacional importante de mobilização. A chancela oficial da família Bolsonaro nessas mercadorias confere uma aura de autenticidade aos produtos, em uma estratégia bem organizada de manutenção e fortalecimento de uma marca política. Os produtos vendidos nas lojas ligadas à família estão amparados por estratégias comunicacionais materializadas nos perfis oficiais dessas lojas nas redes sociais que reproduzem elementos da política comunicacional do populismo bolsonarista, como a eleição de inimigos da nação, o culto ao líder e a mobilização permanente (Barbosa et alii, 2021). “Do ponto de vista estratégico”, trata-se de “propagar a doutrina autoritária e o culto à personalidade do chefe do Estado e, ao mesmo tempo, dar visibilidade à ‘guerra cultural’ contra o comunismo, provocando deliberadamente polêmicas” (Cyril-Lynch e Paschoeto-Cassimiro, 2021, p. 238). Essa combinação entre mercadorias icônicas e uma forma de comunicação oficial, ancorada na imagem de Jair e Eduardo Bolsonaro, exemplifica como o consumo é instrumentalizado como uma extensão de um projeto político para manter o bolsonarismo vivo como movimento cultural.
Particularmente no perfil de Instagram da Bolsonaro Store, é possível encontrar propagandas de diversas mercadorias de homenagem ao ex-presidente, como cadernos com fotos e desenhos de Bolsonaro; uma caneca mágica que revela sua imagem quando se coloca um líquido quente; troféus de mesa com frases e slogans relacionados ao ex-presidente; quadros com fotos de sua gestão (como o dia da posse e as motociatas); uma luminária com sua silhueta em várias cores; copos e canecas com sua imagem e frases famosas; kits de decoração de festas em homenagem a Bolsonaro, entre outros.
O culto ao líder é evidente não apenas nos produtos, mas também nas legendas e textos que acompanham os vídeos. A postagem de 23/09/2024, por exemplo, diz “Acesse nosso site e conheça uma infinidade de produtos que, na sua essência, demonstram nossa gratidão pelo melhor presidente que nosso país já teve e também nosso amor por essa nação!”. A de 03/04/2024 diz “Quando se trata de estilo: você é apaixonado pelo presidente e quer que todo mundo saiba… ou é mais tímido e prefere estampas mais discretas? A Bolsonaro Store tem os produtos perfeitos para agradar a todos os estilos. Escolha sua estampa favorita de caderno e compre já o seu!”. A postagem de 26/03/2024 diz “Só quem ama o presidente bolsonaro vai curtir esse produto! Que tal ter uma cartela com adesivos variados do melhor presidente da história do nosso país?”. O culto à imagem de Jair, portanto, mostra-se de maneira ostensiva e direta.
Um elemento discursivo relevante refere-se à presença constante de Eduardo Bolsonaro como garoto-propaganda da loja. Embora não existam produtos feitos em sua homenagem (apenas Jair é homenageado), Eduardo aparece como principal figura de divulgação e engajamento com o público.
A postagem de 20/09/2024, por exemplo, traz um vídeo de Eduardo mostrando alguns quadros com fotos do ex-presidente vendidos na Bolsonaro Store. Em sua fala: “Quem se lembra das motociatas? Legal, né? E esse aqui, ó, do dia da posse? Fácil de colar, atrás, adesivo dupla face, você não precisa nem furar a parede, não vai nem se estressar com o maridão. O presidente, aqui ele sozinho. Enfim, vários outros produtos. Se você gosta bolsonarostore.com.br. [...] E a gente sempre agradece a você por estar nos dando mais meios de ação nessa nossa guerra cultural”. A de 24/05/2024, mostra Eduardo dizendo “O lema de todo patriota e conservador você já sabe qual é: Deus, Pátria, Família e Liberdade. O que você talvez não saiba é que na Bolsonaro Store você encontra um troféu com design exclusivo que defende este ideal de nosso povo. Gostou? Então acesse nosso site agora mesmo e garanta o seu!”.
Nessas falas, Eduardo encarna um enunciador que assume o papel de curador da memória política do pai, agindo como mediador e guardião do legado bolsonarista. Ele não é apenas um actante narrativo promotor dos produtos da loja, mas um articulador simbólico, que organiza e dá sentido à narrativa em torno das realizações de Jair Bolsonaro. Eduardo encarna, discursivamente, o enunciador que seleciona, interpreta e promove uma versão específica da história política de seu pai.
Com base no pressuposto de que a memória é sempre mediada, Assmann (2011) destaca os mediadores da memória dos grupos sociais como elementos que dão uma forma concreta à volatilidade do ato de lembrar. Embora as próprias mercadorias comercializadas pela Bolsonaro Store (especialmente o calendário de apoio a Bolsonaro, que traz uma curadoria dos feitos mais marcantes de sua gestão) sejam objetos mediadores de uma memória política específica, o enunciador Eduardo Bolsonaro como figura mediadora articula-se como actante central na curadoria e perpetuação dessa memória. Ao se apresentar como enunciador legítimo (uma espécie de encarnação de fidelidade ao bolsonarismo), a presença constante de Eduardo nas postagens traz consigo o discurso de que o consumo dos produtos da Bolsonaro Store não é apenas uma transação comercial, mas um ato de engajamento com um projeto político e de preservação de uma memória que carrega uma identidade coletiva.
Eduardo Bolsonaro, portanto, atua como um agente ativo na patrimonialização dessa memória ao fixá-la em símbolos concretos e acessíveis, ao mesmo tempo que dialoga diretamente com os apoiadores para fortalecer essa narrativa. Ele atua nas postagens como um actante narrativo importante para que o consumo material se converta em uma prática de preservação de uma identidade política. Ele é um mediador discursivo de memória que estabiliza os sentidos desses produtos e fortalece uma narrativa política de engajamento ao bolsonarismo.
O enunciatário conservador e patriota
O enunciatário, em uma cena discursiva, é construído no e pelo discurso. Ele “não é uma instância abstrata e universal”, mas “uma imagem concreta a que se destina o discurso” (Fiorin, 2004, p. 71). Nas postagens da Bolsonaro Store, esse enunciatário é construído no discurso por meio do acionamento de duas palavras de ordem: patriota e conservador.
Isso fica evidente em postagens como a de 27/05/2024, que anuncia o kit de decorações de festas com temática Bolsonaro: “Já pensou em comemorar seu aniversário com um tema que todo patriota iria amar?Se liga no Kit Festa da Bolsonaro Store e marque nos comentários um amigo que fará aniversário em breve e amaria esse tema!
”. Ela é utilizada também nos anúncios do kit caipirinha (“Genuinamente brasileira e perfeitamente patriota”), do saca-rolhas (“Mais que um simples saca rolhas, um símbolo de patriotismo, requinte e muito bom gosto! Um brinde!”) e da caneca mágica (“A caneca mais patriota do Brasil está em nosso site e eu posso provar! A caneca mágica da Bolsonaro Store revela a silhueta do presidente mais amado da história do nosso país ao entrar em contato com líquido quente”).
O atributo conservador do enunciatário também é importante e pode ser encontrado em postagens como: “Hey, conservador! Agora, você não precisa nem sair de casa para adquirir os itens que tem tudo a ver com você!”, de 24/08/2024; “Diga que você é conservador, sem dizer que você é conservador com o troféu de mesa da Bolsonaro Store!”, de 13/08/2024; “Se o seu pai é conservador e patriota, o presente perfeito para ele está aqui… e com valor promocional nunca visto!”, de 02/08/2024; “O presente da mãe patriota e conservadora está na Bolsonaro Store! São dezenas de opções e certamente uma delas irá agradar a ela!”, de 18/04/2024.
Essas postagens apontam que a retórica nacionalista do bolsonarismo se encontra com um contexto do consumo político específico em que se por um lado “as nações recuperaram destaque como símbolos centrais de unidade política e mobilização”, por outro, “o ressurgimento do nacional vai muito além do campo da política; ele está ancorado na lógica do capitalismo global e se entrelaçou inextricavelmente com as práticas de promoção e consumo” (Castelló e Mihelj, 2017, p. 1).
O nacionalismo comercial abrange uma série de fenômenos relacionados à comercialização de símbolos nacionais – como entidades comerciais que fazem do discurso nacionalista para promover bens e serviços específicos ou o branding de nação, com esforços liderados pelo Estado para melhorar a imagem de um país. Para retratar essa série de fenômenos, Castelló e Mihelj utilizam o conceito de nacionalismo econômico, definido “juntamente com suas formas constituintes, como o nacionalismo comercial e do consumidor, como um subtipo específico de nacionalismo que dá primazia às práticas econômicas (venda, publicidade, consumo etc.) como marcadores essenciais de identidade nacional”. Em termos mais específicos, “podemos tratar o nacionalismo do consumidor como um conjunto de discursos e práticas que atribuem significado nacional a objetos de consumo (bens, serviços)” (Castelló e Mihelj, 2017).
As convocações ao consumo presentes na Bolsonaro Store se apropriam do nacionalismo comercial, mas com uma perspectiva discursiva específica, em que conservador e patriota atuam como palavras de ordem que estruturam discursos normativos (Gomes, 2003). A repetição constante dessas palavras nas postagens exerce um papel de ordenação discursiva, definição e controle, delimitando o campo discursivo e reforçando uma visão de mundo que exige constante reafirmação. Isso porque ao enquadrar o destinatário como conservador e patriota, “bens de consumo lhe serão destinados; uma fração da propaganda, do mercado, dos lazeres lhe será dedicada; uma atitude política lhe será cobrada e seus direitos específicos aí descortinados” (Gomes, 2003, p. 95) pelo discurso. Essas palavras, portanto, materializam discursos em disputa e negociação simbólica na esfera pública que se urde à “apresentação de uma visada de mundo e seus discursos e pela exclusão dos inúmeros possíveis” (Gomes, 2003, p. 100). No discurso, ser conservador e patriota é ser, sobretudo, bolsonarista, de forma que os demais sentidos que essas palavras poderiam assumir são apagados do discurso.
O enunciatário é interpelado por essa cena discursiva e é convidado a se enxergar nos produtos e a expressar sua adesão aos valores conservadores e patrióticos por meio do consumo. Isso fica particularmente evidente na postagem de 03/03/2024, em um vídeo cujo título é “Que tipo de bolsonarista você é?”. Nas imagens, intercalam-se as perguntas – “O que ama papelaria? O que aprecia bons livros? O que curte barzinho? O apaixonado por verde e amarelo? O que ama calendários? O que curte cozinhar? O que coleciona canecas? O que tem saudades do ex?” – com sugestões de produtos que podem ser adquiridos na Bolsonaro Store.
O vídeo apresenta uma dinâmica discursiva que reforça a construção do enunciatário conservador e patriota, mas que opera por fragmentação e personalização: em vez de um enunciatário homogêneo, o discurso permite que cada indivíduo se veja em uma das categorias propostas, associando sua identidade de consumidor a uma forma de ser bolsonarista. Essa heterogeneidade, contudo, está sempre contida dentro dos limites do bolsonarismo. As categorias oferecidas são variações de um mesmo tema, e a aparente diversidade de gostos (gostar de livros, cozinhar etc.) é enquadrada no discurso conservador e patriota. Dessa forma, o vídeo reafirma a ideia de que, dentro desse campo discursivo, ser conservador e patriota é ser, necessariamente, bolsonarista, limitando outros possíveis significados que esses termos poderiam assumir.
O enunciatário é interpelado com base em uma lógica consumista que reforça a adesão ao bolsonarismo por meio do ato de compra – uma ação que, ao mesmo tempo, comunica uma identificação política e enquadra o enunciatário em um conjunto de valores específico sobre o que significa ser conservador e patriota.
A interpelação desse destinatário vem acompanhada pelo delineamento discursivo de inimigos políticos – que também são articulados discursivamente por meio da relação simbólica entre comunicação e consumo. Assim como o bolsonarista é convidado a afirmar sua identidade política por meio da compra de produtos que simbolizam o conservadorismo e o patriotismo, seus oponentes são construídos no discurso como aqueles que rejeitam esses símbolos, criando uma clara oposição entre os patriotas e seus antagonistas.
A postagem de 09/09/2024, por exemplo, tem como tema “Preparando minha casa para receber a visita do primo esquerdista”, para publicizar uma luminária em neon da silhueta de Bolsonaro. Em 28/08/2024, a postagem diz: “Seu professor ficaria feliz ou irritado ao te ver usando este caderno? Se ele ficaria feliz, este é o motivo perfeito para você adquirir já o seu. Mas, se ele ficaria irritado, este também é o motivo perfeito para você adquirir o seu!”. Em 21/08/2024, diz-se que os quadros com fotos de Bolsonaro servem para “decorar o seu quarto, o seu escritório e espantar os esquerdistas do seu ambiente”.
Trata-se de enunciados que delimitam identidades políticas por meio de uma polarização entre patriotas e esquerdistas – que são desqualificados e apresentados como o outro a ser evitado ou ridicularizado. A materialidade discursiva desse outro se manifesta no consumo simbólico: o primo esquerdista que visitará a casa adornada com uma estátua de Bolsonaro ou o professor irritado com o caderno bolsonarista. O discurso assume um papel performativo ao sugerir que o consumo de certos bens (como a estátua neon ou o caderno) é uma forma de marcar território simbólico e reafirmar uma identidade política antagônica ao esquerdismo.
A interpelação, ainda, opera a partir de uma naturalização dessa oposição discursiva, encenando um território em que estão muito bem demarcados os bolsonaristas que representam o bem contra os esquerdistas que representam o mal. A identidade é apresentada no discurso sob um verniz essencialista, que apaga nuances nas formações identitárias e opera um fechamento discursivo maniqueísta. A interpelação ao enunciatário é, ao mesmo tempo, um convite ao consumo e um processo de disciplinamento simbólico, em que o enunciatário é instigado a performar sua identidade política no espaço privado, como consumidor, enquanto deslegitima o outro, o esquerdista, dentro dessa cena discursiva.
A categoria esquerdista é apresentada no discurso como um constructo negativo absoluto, criado para reforçar os limites do que é aceitável no campo discursivo conservador. Isso revela um movimento de apagamento de outras possibilidades de sentido para a identidade do enunciatário, que é constantemente tensionado a reiterar sua posição política por meio de práticas de consumo e rejeição simbólica ao outro. Ser patriota e conservador envolve o apoio explícito a Bolsonaro, mas também o confronto constante com os inimigos políticos, simbolizados e performados no espaço discursivo da Bolsonaro Store.
Em conjunto, a interpelação ao enunciatário e o delineamento dos inimigos políticos performativizados em produtos reiteram características do bolsonarismo mapeados em estudos anteriores. “O Bolsonarismo é um movimento que parece estar em constante campanha política, mobilizando apoiadores de maneira permanente” (Barbosa et alii, 2021, p. 6). Na cena discursiva da Bolsonaro Store, isso é materializado nos produtos de consumo. As postagens são explícitas em relação à necessidade de um engajamento permanente ao bolsonarismo, materializada em narrativas de consumo.
Um vídeo publicado em 26/08/2024 mostra uma entrevista com Eduardo Bolsonaro, em que ele diz:
Poxa, caneca de chopp. Teve gente aí que é dono de restaurante, de bar etc. que comprou umas dúzias dessa caneca para deixar o bar dele inteiro só com a caneca da Bolsonaro Store. E a nossa pegada aqui esse ano, a nossa mensagem principal é “O nosso sonho segue mais vivo do que nunca”. Pra não deixar o pessoal desanimar e dizer que as nossas ideias seguem vivas, a gente segue sendo Deus, pátria, família e liberdade e não vai desistir dos nossos sonhos por causa de uma eleição não.
Em outro, publicado em 06/08/2024, Eduardo Bolsonaro afirma que:
Meus amigos, pra você[s] que não se importam com a opinião desses esquerdopatas e pretende[m] também ter uma decoração na sua casa pra esse tipo de pessoa, está aqui ó, nada melhor do que esse troféu de mesa “Nosso sonho segue mais vivo do que nunca”. Até porque desistir não é uma opção. Ou é o nosso guia “Deus, Pátria, Família, Liberdade”, para você deixar na sua estante. E, agora, o novo lançamento da Bolsonaro Store, recarregável, também para você ter a silhueta do Mito em várias cores, e também um excelente presente para você decorar sua casa. Essas e outras sugestões você vai encontrar na nossa Bolsonaro Store. Que, além de tudo, você ainda vai estar contribuindo para nos dar mais meios de ação nesse terreno não só político, mas também de guerra cultural.
Postagens como essas reiteram a permanência em um estado de campanha ativa, que não se limita ao contexto eleitoral, mas que se mantém em constante mobilização, convocando seus apoiadores de maneira permanente. Na cena discursiva da Bolsonaro Store, a mobilização constante é traduzida em produtos de consumo que representam símbolos de engajamento contínuo. A cena discursiva engendra uma narrativa sobre o consumo que coloca o enunciatário em um papel muito ativo e atraente: adquirir os produtos da loja não é apenas o ato de compra de um item de decoração, implica a participação em uma campanha política permanente.
Os vídeos mencionados exemplificam essa lógica de mobilização, em que o consumo é discursivamente articulado a narrativas de resistência e continuidade do projeto bolsonarista. Esse processo se ancora em dois pilares discursivos: primeiro, a reafirmação de valores centrais como “Deus, Pátria, Família e Liberdade”, que funcionam como o ethos do bolsonarismo e são materializados nos produtos; segundo, a noção de uma “guerra cultural”, na qual os produtos da Bolsonaro Store são apresentados como ferramentas de resistência contra inimigos políticos.
Trata-se de uma outra forma de interpelar o enunciatário: além de conservador e patriota, ele é interpelado a um dever contínuo de lutar pelos ideais do bolsonarismo (ainda que seja em um ato de compra). A afirmação de Eduardo de que a compra de produtos não só ajuda a manter a mensagem viva, mas também oferece “mais meios de ação” para o movimento e para a “guerra cultural”, posiciona o enunciatário em um papel de destaque na narrativa, em que sua ação não tem apenas um valor simbólico, mas também atende à sustentação financeira do movimento.
As convocações midiático-discursivas ao consumo da Bolsonaro Store mostram como o bolsonarismo se apropria da relação entre comunicação e consumo como uma ferramenta discursiva importante para sua estratégia de mobilização contínua. O enunciatário é convidado a se engajar em atos de consumo que reitera identificações políticas como uma espécie de herói que mantém o movimento atuante, em uma narrativa muito atrativa de resistência e luta.
Uma lógica de circulação: pode f alar mal de mim
As estratégias discursivo-midiáticas da Bolsonaro Store não são originais. A loja segue a mesma proposta da Trump Store11, na qual fãs podem comprar diversas mercadorias, como canecas, camisetas e ursinhos de pelúcia com o nome de Trump ou com o slogan “Make America Great Again”, em um movimento que combina o consumo político com a manutenção do engajamento do eleitorado por meio de bens de consumo. O próprio uso do termo em inglês no nome da loja (Bolsonaro Store) é significativo e indica o alinhamento a discursos trumpistas reiterados ao longo do governo de Jair Bolsonaro.
Ao analisar os objetos de promoção política na Trump Store, Bittner afirma que eles podem ser entendidos como “extensões icônicas” que “facilitam atos miméticos”. São objetos que trazem uma forma condensada de intericonicidade e que permitem às audiências, “ao adotar e adaptar criativamente essas extensões icônicas em suas vidas cotidianas”, reforçar “o poder icônico por meio da reprodução simbólica” (2024, p. 1). Ao analisar como o boné MAGA (acrônimo de Make America Great Again, slogan da campanha de Donald Trump) se tornou um dos itens de merchandising político mais reconhecíveis e controversos dos Estados Unidos, Bittner (2024) afirma que o produto “ganha destaque no cenário midiático devido à sua capacidade de interpelar os indivíduos e incitá-los à interação”, estimulando conversas e contato entre os agentes de formas diversas. O boné MAGA, para a autora, ao mesmo tempo que materializa um símbolo de inclusão e exclusão civil, faz também um convite à interação com o espaço e à aparição pública, por um lado, e se torna também uma fonte de paródia e sátira, por outro, fomentando o engajamento de todo o espectro político-ideológico.
O ícone “funde uma superfície material tangível com uma profundidade discursiva, mesclando a comunicação com uma experiência estética visceral” e “condensa informações complexas em uma cena visual, pessoa, objeto ou frase facilmente reconhecível que representa um momento específico (histórico) no tempo” (Bittner, 2024, p. 4). Os ícones urdem-se a narrativas do a favor ou contra e movimentam a esfera pública a partir dessas oposições. Assim, “ícones são símbolos altamente mediados com qualidades totêmicas que conferem às pessoas um senso de pertencimento e coesão social ou repelem audiências, que se agrupam em oposição a eles” (Bittner, 2024, p. 5). Eles não são apenas objetos feitos para significar alinhamentos políticos, mas também para estimular presenças e circulações midiáticas, de forma que a lógica do “fale bem, fale mal, mas falem de mim” é parte das convocações ao consumo desses itens.
Esse parece ser um elemento discursivo importante também nas estratégias discursivo-midiáticas de convocação ao consumo na Bolsonaro Store. O lançamento da loja gerou reações importantes nas redes sociais. Vários jornais noticiaram a produção de uma série de memes que ridicularizam a iniciativa12. Além disso, foi lançado o Bolsonaro Shop13, um site de humor que imaginava produtos falsos em homenagem ao ex-presidente como capas para tornozeleira eletrônica, caneca para golden shower, entre outros. Uma parte relevante da repercussão que a Bolsonaro Store obteve não foi engendrada pelos manifestantes bolsonaristas, mas por outros setores que fazem a mensagem circular – ainda que sob o viés da crítica ou da sátira.
É curioso que muitos produtos e mensagens da Bolsonaro Store se apresentem de uma forma hiperbólica ou mesmo grotesca: o torso nu de Bolsonaro no cabeçalho da página do site, o kit-festa com chapéus de cone com desenhos do rosto do ex-presidente, o seu torso brilhando em luzes neon em canecas e luminárias – todos parecem produtos cujo exagero é intencional.
Sob a perspectiva das convocações discursivo-midiáticas ao consumo, a estética hiperbólica cumpre um papel duplo: mobiliza os apoiadores ao torná-los parte de uma comunidade que compartilha da mesma visão política, ao mesmo tempo que provoca e incita o campo opositor a fazer o discurso circular (ainda que sob o viés da crítica). Em sua coluna no site UOL, Madeleine Lackso, ao comentar o lançamento da Bolsonaro Store, chama a atenção para o fato de que “a tentação de falar ‘veja que absurdo’ ou ‘veja que ridículo’ é muito mais forte que o senso de sobrevivência e a preocupação com as consequências”. E isso porque “quem passou o dia tirando sarro da Bolsonaro Store deu engajamento a ela, ou seja, deu poder real à família Bolsonaro”14.
Para Pereira e Carvalho (2023, p. 2), “o partidarismo político de comediantes e as falas pouco decorosas do presidente Jair Bolsonaro evidenciam que o humor foi arma importante na ascensão da nova direita no Brasil”, que soube fazer uso de uma linguagem política em que tanto apoiadores quanto opositores são mobilizados e dão visibilidade para o discurso bolsonarista.
A mercantilização política promovida pela Bolsonaro Store revela uma estratégia complexa de convocação discursiva ao consumo que transcende a adesão direta e envolve também o campo opositor no discurso. A estética exagerada e o tom abertamente provocativo parecem explorar a lógica contemporânea da cultura de memes, em que o humor e o hiperbolismo visual atuam como formas de capturar a atenção e promover interações. Dessa forma, a Bolsonaro Store configura-se como uma cena discursiva em que o consumo se torna ato performativo, capaz de mobilizar tanto a coesão identitária quanto a polarização, consolidando uma presença simbólica na circulação midiática.
Considerações finais
“Quando alguém me perguntar se o Bolsonaro não sai da minha cabeça, vou mostrar o meu boné!”. Essa postagem, de 24/07/2024, encapsula elementos relevantes da lógica discursiva que estrutura o projeto de mobilização política da Bolsonaro Store, em que o consumo de produtos se entrelaça a um culto à personalidade, à manutenção de uma memória política ativa, a narrativas midiatizadas específicas e ao reconhecimento de uma lógica de circulação comunicacional conectada às redes sociais.
As convocações discursivo-midiáticas ao consumo da Bolsonaro Store revelam um projeto de mobilização que integra discursos sobre identidades políticas, ideologia e consumo. As postagens convocam um enunciatário conservador e patriota por meio de um viés maniqueísta e essencialista (tornando-o sinônimo ao bolsonarismo) e convida esse enunciatário a se perceber não como consumidor, mas como defensor de um imaginário de direita em uma guerra cultural. Eduardo Bolsonaro, figura constante nas postagens, confere legitimidade ao convite, atuando como operador simbólico do legado do ex-presidente.
Apoiado pela dicotomia patriotas versus esquerdistas, cria-se uma cena discursiva de confrontação e pertencimento. Esse confronto é representado de forma hiperbólica nas narrativas associadas e nos produtos para convocar reações que alimentam sua circulação, expandindo o alcance das mensagens da loja. Assim, cada item se torna um símbolo ideológico, projetado para circular, afirmar identidade e polarizar. Trata-se de uma convocação discursiva estrategicamente hiperbólica e provocativa, enquadrada em uma narrativa que incita o enfrentamento.
Ao unir comunicação, consumo e política, a loja mobiliza um espaço de disputa simbólica que prolonga a visibilidade do bolsonarismo no período posterior ao mandato presidencial. Isso porque produtos de consumo e suas estratégias discursivo-midiáticas de convocação materializam estratégias de engajamento e memória, evidenciando o consumo como um espaço dinâmico de disputa simbólica. A Bolsonaro Store revela que a manutenção de um engajamento ao bolsonarismo após 2023 articula o consumo a um ato político performativo, em que símbolos (como o boné midiatizado da Bolsonaro Store que não sai da cabeça) prolongam a presença simbólica do bolsonarismo na esfera pública e mobilizam seguidores por meio de estratégias discursivo-midiáticas que fazem desses produtos (e suas narrativas midiáticas associadas) veículos de memória, identidade, pertencimento ideológico e provocação para circular.
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1
Pesquisa realizada com bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2.
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2
Disponível em: <https://www.bolsonarostore.com.br>. Acesso em: 14/10/2024.
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3
Disponível em: <https://armazemdocampo.shop>. Acesso em: 18/10/2024.
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4
Disponível em: <https://loja.pt.org.br>. Acesso em: 18/10/2024.
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5
Disponível em: <https://loja.novo.org.br>. Acesso em: 14/10/2024.
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6
Disponível em: <https://www.camisacritica.com>. Acesso em: 14/10/2024.
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7
Disponível em: <https://capitalistamorena.com>. Acesso em: 14/10/2024.
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8
Disponível em: <https://www.instagram.com/bolsonarostoreoficial>. Acesso em: 14/10/2024.
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9
Disponível em: <https://afbeauty.com>. Acesso em: 14/10/2024.
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10
Disponível em: <https://www.instagram.com/vinhobolsonaro>. Acesso em: 14/10/2024.
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11
Disponível em: <https://www.trumpstore.com>. Acesso em: 14/10/2024.
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12
Ver, por exemplo, https://revistaforum.com.br/politica/2023/2/27/eduardo-surta-apos-bolsonaro-store-virar-piada-nas-redes-da-justificativa-inacreditavel-131987.html. Acesso em: 14/10/2024..
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13
Ver em https://www.otempo.com.br/economia/bolsonaro-shop-satiriza-loja-do-ex-presidente-e-vende-capa-para-tornozeleira-1.2825876. Acesso em: 14/10/2024.
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14
Disponível em: <htps://noticias.uol.com.br/colunas/madeleine-lacsko/2023/02/27/bolsonaro-store-e-mais-uma-aposta-digital-na-arrogancia-progressista.htm>. Acesso em: 14/10/2024.
Disponibilidade de dados de pesquisa
Os dados de pesquisa estão disponíveis no corpo do documento.
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Editado por
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Editores responsáveis:
Adriana TeixeiraFábio Fonseca de CastroMaurício Ribeiro da SilvaNorval Baitello
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
01 Nov 2024 -
Aceito
20 Jul 2025
