RESUMO
A centralidade da proposta deste artigo é discutir em que medida o acaso absoluto peirciano e a emergência se estabelecem como fundamentos para a construção da criatividade indeterminista da complexidade. A perspectiva dessa criatividade é evidenciada com base na visão indeterminista e imprevisível suscitada pelas descobertas das ciências da complexidade. Ressalta-se que esse caminho se abre para um vasto campo de pesquisas futuras entre complexidade, semiótica e criatividade.
PALAVRAS-CHAVE
complexidade; acaso absoluto; emergência; criatividade indeterminista da complexidade; criatividade disruptiva
ABSTRACT
The central focus of this article is to discuss the extent to which Peircean absolute chance and emergence serve as foundations for constructing the indeterministic creativity of complexity. The perspective of this creativity is evidenced based on the indeterministic and unpredictable vision brought about by the discoveries in the sciences of complexity. It is emphasized that this opens up a vast field for future research between complexity, semiotic, and creativity.
KEYWORDS
complexity; absolute chance; emergence; indeterministic creativity of complexity; disruptive creativity
INTRODUÇÃO
De imediato fica evidente a seguinte questão: como um sistema adaptativo complexo e criativo tem origem? Uma possível resposta se insere conforme formatos, linguagens, obras e produtos inauditos emergem e novos sistemas criativos mais complexos se estabelecem. Cabe fazer notar que essa emergência é de caráter disruptivo, logo, de uma ruptura radical com a ordem criativa anterior. Nesse sentido, sob uma visão determinista em que tudo já está dado e formatado, a possibilidade desse sistema complexo parece remota. De fato, Prigogine (1988) afirma que a natureza descrita pela física clássica era inconcebível a possibilidade de que algo novo se produza. Tudo já estava dado. Não obstante, uma nova perspectiva na ciência tem suscitado uma mudança de paradigma. É legítimo supor que, de maneira geral, os estudos das ciências da complexidade têm revelado conceitos que compõem um arcabouço teórico-prático, evidenciando a configuração de um universo evolutivo criativo e complexo. Segundo Sawyer (2005), existe um consenso de que sistemas complexos podem ter leis e propriedades autônomas no nível global que não podem ser facilmente reduzidas para o nível mais baixo ou básico da ciência. Assim, o paradigma de complexidade se opõe ao paradigma reducionista ou determinista.
Na perspectiva assumida neste artigo, vislumbra-se, intrínseca a esse paradigma de complexidade, uma criatividade indeterminista da complexidade. De fato, os conceitos advindos das ciências da complexidade se comportariam como fundamentos para a construção dessa criatividade. Neles, evidenciam um novo paradigma para a criatividade: o deslocamento da visão determinista, previsível e em estado de equilíbrio do universo para uma visão indeterminista, imprevisível e de não-equilíbrio. Assim, pensar os fundamentos para uma criatividade indeterminista da complexidade requer assumir a capacidade do universo de se estabelecer, de fato, em uma evolução criativa inovadora. Nesse sentido, estariam intrínsecos a esse universo elementos imprevisíveis capazes de fomentar a disrupção, os quais suscitariam a emergência do indeterminismo e da imprevisibilidade das obras criadas e, por conseguinte, uma criatividade evolucionária. De fato:
Um sistema é evolutivo em sua existência porque, com relação a seus componentes, ele é uma forma nova, uma organização nova, da nova ordem, um ser novo dotado de qualidades novas. Constitui a base de novas morfogêneses que utilizarão suas emergências como elementos fundamentais
(Morin, 2016, p. 170).
Logo, as linguagens, formatos e obras criadas com base na criatividade determinista da física clássica não se inseririam mais em um estado de hábito ou na categoria de terceiridade, em termos peircianos. Eles passariam a se inserir em um movimento de evolução criativa, no qual novas linguagens, formatos e obras inauditas emergem em função dos sistemas adaptativos complexos e criativos. É fundamental ressaltar que essa emergência é sempre de caráter perturbador. De fato, nessa emergência, a qual engendra a imprevisibilidade das criações, fomenta a heterogeneidade e diversidade do universo. Tal perspectiva revela as concepções de uma criatividade em que as agitações, interações e turbulências criam condições para a criatividade indeterminista. Nesse sentido, as morfogêneses se estabelecem nos encontros catastróficos, na visão de Thom: “Admite-se intuitivamente que a evolução global de um sistema se apresente como uma sucessão de evoluções contínuas, separadas por saltos bruscos de natureza qualitativamente diferente” (Thom, 1985, p. 86).
Cabe fazer notar que as interações são inconcebíveis sem a desordem e as turbulências, que provocam esses saltos bruscos e criativos. Em outras palavras, a organização da criatividade indeterminista da complexidade é inconcebível sem as interações desordeiras, complexas, catastróficas e criativas. É preciso supor, então, que a catástrofe revela o lado produtivo para se engendrar obras e formatos inauditos. “Penso que a desordem surge como sócia e componente de todos os processos cosmogênicos” (Morin, 2016, p. 70). Os processos cosmogênicos criativos se estabelecem em ordem, desordem e organização, em suma, em um sistema adaptativo complexo cujo caráter é genésico. “Afirmar que ele é genésico implica reiterar que ele transforma processos turbulentos, desordenados, dispersos ou antagônicos em uma organização ativa. Ele opera a passagem da termodinâmica da desordem à dinâmica da organização” (Morin, 2016, p. 228). Assim, o arcabouço conceitual engendrado pelas ciências da complexidade revela uma espécie de teoria da criatividade. Prigogine (1988) acredita que o progresso da termodinâmica é de suma importância, pois, pela primeira vez, uma teoria física nos permite descrever e antever acontecimentos que preveem os mais exigentes conceitos de uma teoria da criatividade. Ele afirma também que o marco dos estudos dos estados de não-equilíbrio (instável, desordem) e das estruturas dissipativas envolvem desordem, ampliação de flutuações, desvios, quebra de simetria, e, mais importante, a aparição de um modo de funcionamento qualitativamente novo, ou seja, a capacidade de auto-organização emergente. “A teoria da complexidade desorganizada em última instância tem suas raízes nas leis do acaso e das probabilidades e na segunda lei da termodinâmica” (Bertalanffy, 1977, p. 57)
Na perspectiva assumida neste artigo, a concepção genésica propõe uma articulação privilegiada entre ciências da complexidade e criatividade indeterminista, e, sobretudo, com a semiótica peirciana. É indispensável levar em conta, portanto, que a complexidade tem seu germe, em forma de prognóstico, nos estudos de Charles S. Peirce (1992), como pode ser analisado ao se evidenciar os textos encontrados no livro The Essential Peirce volume 1 (1867–1893). Uma análise será desenvolvida em outro artigo. Nesse livro, há duas coletâneas de textos. A primeira, intitulada Illustration of Logic of Science, é composta de 14 artigos. A outra coletânea, intitulada The Monist Metaphysical Series, é composta de cinco artigos, os quais evidenciam, em tom de prognóstico, os rudimentos do que hoje se denomina ciências da complexidade. “Peirce é o pioneiro ao reencontrar, na contemporaneidade, o lugar lógico daquela coabitação: conceber um mundo em que Acaso e Lei atuassem como princípios simultâneos de espontaneidade e ordem” (Ibri, 2020, p. 103).
Nubiola (2000) escreveu um artigo intitulado Complexity according to Peirce, que ratifica esse prognóstico. Lestienne afirma: “Charles Sanders Peirce foi um defensor ainda mais ardoroso do indeterminismo. Sua originalidade foi a de ter ligado, de maneira ainda mais sistemática do que fizera Boltzmann, a ideia de indeterminismo e a propriedade de irreversibilidade temporal” (2008, p. 52).
Portanto, a proposta do artigo é discutir em que medida os conceitos de acaso absoluto de Peirce e o conceito de emergência se estabelecem como perspectivas para a construção da criatividade indeterminista da complexidade. Nesse sentido, sabendo que o acaso absoluto e emergência não são apenas fenômenos aleatórios, busca-se, primeiramente, investigar a atmosfera mais propícia para que esses fenômenos possam se configurar. Em seguida, instigado por essa atmosfera, busca-se traçar um entendimento de como tal atmosfera engendra uma retroação positiva criativa propícia ao engendramento do acaso absoluto e da emergência. Posteriormente, apreende o conceito de emergência como manifesto disruptivo e, finalmente, evidencia o que é o acaso absoluto de Peirce e sua potência indeterminista. Além do acaso, outras noções peircianas, como a abdução, contribuem para entender a criatividade. Contudo, devido ao espaço limitado do artigo, concentraram-se apenas nos conceitos de acaso absoluto e de emergência. Assim, eles contribuem para uma cosmologia evolucionária.
A evolução não é mais considerada como uma luta competitiva pela existência, mas, em vez disso é reconhecida como uma dança cooperativa na qual a criatividade e a constante emergência da novidade são as forças propulsoras. E, com a nova ênfase na complexidade, nas redes e nos padrões de organização, uma nova ciência das qualidades está lentamente emergindo
(Capra; Luisi, 2014, p. 14).
A contribuição deste artigo se estabelece, portanto, em pensar a criatividade a partir de um novo paradigma, ou seja, de um paradigma indeterminista e imprevisível; evidenciar uma melhor compreensão do que seria uma criatividade disruptiva; e inserir as discussões acerca da criatividade e semiótica em um emergente campo de estudo – as ciências da complexidade.
SISTEMA ADAPTATIVO COMPLEXO ABERTO E CRIATIVO
As ciências da complexidade se inserem em um movimento que atesta a existência de fenômenos muito complexos para serem analisados segundo o arcabouço da física clássica. “Podemos declarar, com característica da ciência moderna, que este esquema de unidades isoláveis atuando segundo a causalidade em um único sentido mostrou-se insuficiente” (Bertalanffy, 1977, p. 71-72). A visão do todo se comporta como uma condição inerente para se pensar fenômenos complexos. Nesse sentido, a visão sistêmica se estabelece como ferramenta fundamental para pensar elementos em interações mútuas. É preciso notar, sobretudo, que sistemas complexos que evoluem se configuram necessariamente como sistemas abertos. “O sistema aberto define-se como um sistema em troca de matéria com seu ambiente, apresentando importação e exportação, construção e demolição dos materiais que o compõem” (Bertalanffy, 1977, p. 193). Trata-se, portanto, de uma atmosfera propícia para a manifestação da emergência e do acaso absoluto.
É indispensável levar em conta o caráter de autonomia desse sistema aberto. “Um sistema aberto pode tender ‘ativamente’ para um estado de organização superior, isto é, pode passar de um estado inferior de ordem a um estado superior de ordem, devido às condições do sistema” (Bertalanffy, 1977, p. 204). Essa perspectiva passa a ser evidente, sobretudo, como resultado da influência de reflexões em torno da capacidade criativa do universo. A autonomia do sistema aberto fomenta o engendramento da diversidade intrínseca ao universo, logo, ratifica a postura evolucionária criativa do paradigma de complexidade.
Até onde podemos conceber o passado cósmico, ele é movimento e interações. Até onde podemos conceber as profundezas da physis, encontramos agitações e interações particulares. Imobilidade, fixidez, repouso são aparências locais e provisórias para certos estados (sólidos), na escala de nossas durações e percepções humanas. A physis é ativa. O cosmo é ativo
(Morin, 2016, p. 195).
Esse cosmo ativo parece estabelecer uma relação com o conceito de realidade de Peirce. “Mas há alguma realidade, ela consiste no seguinte: que há no ser coisas, algo que corresponde ao processo do raciocínio, que o mundo vive, se move e tem o seu ser numa lógica dos acontecimentos. Pensamos todos que a natureza realiza silogismos” (Peirce, 1998, p. 120). Essa concepção de realidade propõe uma articulação privilegiada entre os princípios de sistema aberto, enquanto ratifica a autonomia do universo e da natureza, sua capacidade de adaptação e, sobretudo, perfaz com a capacidade criativa intrínseca ao raciocínio de retrodução. A autonomia da realidade se estabelece quando Peirce afirma que: “Onde se deve encontrar o real, a coisa independente de como pensamos? Deve haver algo assim, pois vemos que nossas opiniões são de alguma forma constrangidas, portanto, há algo que influencia nossos pensamentos e que não é por ele criado” (Peirce, 2000, p. 320). Assim, a realidade confirma a complexidade do universo, que incorpora elementos imprevisíveis de criatividade, os quais são responsáveis por sua própria evolução.
Afirmo que a evolução, onde quer que ela tenha lugar, é uma vasta sucessão de generalizações através das quais a matéria fica submetida a leis cada vez mais altas; afirmo que a infinita diversidade da Natureza testemunha a sua originalidade ou poder de retrodução. [...] Submeto à vossa consideração a retrodução conduzindo ao seguinte princípio metafísico: qualquer elemento não analisado e sui generis que pareça estar na Natureza, e embora ele não esteja onde parece estar, deve, contudo, estar algures na Natureza, pois nada senão ele mesmo poderia ter produzido a própria falsa aparência de um tal elemento sui generis
(Peirce, 1998, p. 120).
Importa salientar, com efeito, que sistema aberto e realidade nos levam a compreender, sob certos aspectos, o que se pode denominar sistema adaptativo complexo criativo – um sistema cuja competência desestabilizadora é reforçada pela capacidade de retrodução, como afirma Peirce na citação acima. Nota-se, portanto, que a hipótese de que os conceitos advindos das ciências da complexidade se comportariam como fundamentos para a construção de uma criatividade indeterminista da complexidade está sendo ratificada pelo entendimento de que sistemas adaptativos complexos se comportam como elementos imprevisíveis de uma criatividade evolucionária. “Em outras palavras, a complexidade é uma desordem aparente onde temos razões para presumir uma ordem oculta; ou ainda, a complexidade é uma ordem cujo código não conhecemos” (Atlan, 1992, p. 67).
Ao se circunscrever em seu bojo, de modo cada vez mais intenso, observa-se que o sistema adaptativo complexo revela a potência de uma criatividade indeterminista “em nome dessa própria lógica da auto-organização, que confere um lugar central à irrupção do radicalmente novo e da criação – a partir não do nada, mas do caos” (Atlan, 1992, p. 166). É a criatividade capaz de criar efetivamente o original. Atlan afirma que “[...] o lugar do aleatório e, portanto, da possibilidade do novo e do imprevisível, continua a ser grande no nível do detalhe, e seu papel efetivo aumenta cada vez mais com a complexidade e a riqueza de interações do sistema considerado” (1992, p. 116). A perspectiva da criatividade indeterminista da complexidade também pode ser sugerida pelos estudos de Ivo Assad Ibri (2020). Graças a tais estudos, pode-se vislumbrar uma relação entre complexidade, criatividade e semiótica. O entendimento da relação do universo com o conceito de objeto semiótico permite relacionar a capacidade e autonomia criativa do universo/objeto de criar signos inauditos para afetar a mente interpretante. “Avesso à estrita causalidade, este universo/objeto anuncia-se assimétrico, pleno de variedade, exibindo sua liberdade desviante da lei. Avesso ao caos, permite a possibilidade do pensamento e, neste, traça sua cósmica gramática” (Ibri, 2020, p. 35).
Trata-se, certamente, da criatividade indeterminista da complexidade se inserir nos elementos imprevisíveis de criatividade do universo/objeto. “Sua consideração de um objeto dinâmico dentro da semiótica é o reconhecimento de um mundo independente em relação ao universo de signos humanos que compõem pensamento e linguagem” (Ibri, 2020, p. 67). Nesse sentido, a complexidade estaria desvendando como o universo/objeto é capaz de engendrar signos inauditos que afetam a mente interpretante científica ou criativa – uma criatividade que se configura no seu caráter indeterminista e imprevisível de criação. “O Universo se diverte, também, como poeta. Jamais se permitiu pintar o céu do mesmo modo ao fim de cada tarde. Em nenhum instante privou-se de se desviar de suas próprias leis, exercendo sua liberdade de criadora de diversidade” (Ibri, 1997, p. 119). Segundo Kauffman (2016), em seu livro Humanity in a Creative Universe, o mundo humano é aberto, radicalmente emergente, não governado por leis determinantes e, como a biosfera, flui para um possível adjacente frequentemente imprevisível e, em grande parte, não intencional, cuja forma muitas vezes não prevemos, mas cocriamos. O possível adjacente refere-se ao conjunto de possibilidades imediatas que se abrem a partir de um sistema. É o espaço da inovação e da criatividade disruptiva à medida que o sistema adaptativo complexo evolui.
A retroação positiva criativa coloca, assim, o sistema em instabilidade criativa propícia à emergência do inaudito e, por conseguinte, à evolução criativa. “A retroação positiva cria tendências a partir de desvios, ou seja, da diversidade e da complexidade potenciais. Cria-se, então, um processo de desvio/tendência/criação de novidade/diversidade, ou seja, de cismogênese/morfogênese” (Morin, 2016, p. 272). Trata-se, sobretudo, não de um aprimoramento da ordem criativa existente, mas, sim, de uma ruptura com ela, engendrando uma ordem criativa mais complexa. A ruptura insere-se na inovação e, por conseguinte, em um abalo da ordem criativa vigente – um abalo catastrófico, em termos de Thom (1985). Essa perspectiva passa a ser evidente, sobretudo, como resultado da influência de reflexões em torno dos conceitos de emergência e de acaso absoluto.
FUNDAMENTO – EMERGÊNCIA
As ciências da complexidade têm evidenciado o surgimento de vários conceitos, os quais compõem o arcabouço teórico-prático para se compreender o seu funcionamento. Esses conceitos revelam uma espécie de teoria da criatividade, como afirmou Prigogine na introdução deste artigo. Na perspectiva assumida neste artigo, corroboramos com tal concepção. E busca-se ir além: identificar de que maneira esses conceitos se comportam como fundamentos para a construção da criatividade indeterminista da complexidade.
A criatividade no universo, para Peirce, é indicada pelo acaso absoluto. A capacidade de gerar algo novo e inesperado está profundamente associada ao indeterminismo. A emergência de novas propriedades e comportamentos complexos é uma expressão dessa criatividade impulsionada pelo acaso. Nesse sentido, elegeu-se esses dois conceitos, que são fundamentais para explicar a evolução criativa do universo e, por conseguinte, do seu indeterminismo. Os conceitos são a emergência e o acaso absoluto. A escolha dos conceitos evidencia a capacidade de engendrar um sistema criativo mais complexo. Assim, o acaso absoluto é fundamental para a concepção de Peirce sobre indeterminismo porque introduz a imprevisibilidade necessária para a emergência de novas propriedades.
E aqui nós encontramos a noção de emergência, ou de propriedades emergentes, um dos conceitos mais importantes da moderna teoria da complexidade e, mais geralmente, da concepção sistêmica da vida. As propriedades emergentes são as propriedades novas que surgem quando um nível superior de complexidade é atingido ao se reunir componentes de complexidade inferior
(Capra; Luisi, 2014, p. 198).
Para Morgan (1927), a sequência ordenada, vista historicamente, parece apresentar, desde tempos em tempos, alguma coisa genuinamente nova. Sob o que Morgan chama aqui de evolução emergente, a ênfase da evolução emergente é colocada nessa entrada do novo. É importante observar que o conceito de evolução emergente se opõe à visão de uma criatividade determinista. Em outras palavras, se nada de novo surge e tudo se resume a um rearranjo de eventos pré-existentes, então não há evolução emergente. Morgan vê uma clara relação entre os princípios dos resultados criativos e disruptivos e a evolução emergente. Um dos aspectos da emergência pode ser comparado a saltos no tempo, ou pode ser melhor descrito como uma mudança qualitativa de direção, ou ponto de inflexão crítico no curso dos acontecimentos ou eventos. Portanto, todo caráter emergente é imprevisível e possui também uma interface com a criatividade disruptiva. Isso ocorre porque não existe relação com eventos e acontecimentos preexistentes. Para Morgan (1927), variedade e novidade são introduzidas como características irredutíveis de desdobramento temporal da evolução. O aumento da complexidade é a consequência dessa propriedade emergente.
Segundo Sawyer (2005), os teóricos da complexidade têm descoberto que emergência é mais provável de ser encontrada em sistema em que: 1) muitos componentes interagem em uma rede densamente conectada; 2) as funções globais (gerais) do sistema não podem ser localizadas em nenhum subconjunto de componentes, mas são distribuídas ao longo de todo o sistema; 3) o sistema geral não pode ser decomposto em subsistemas, e estes, em subsistemas menores de qualquer forma significativa; e 4) os componentes interagem usando uma linguagem complexa e sofisticada; em suma, em um sistema adaptativo complexo. Ainda segundo Sawyer (2005), a emergência introduz dois níveis na realidade social: emergências constantes e emergências efêmeras. Trata-se, portanto, de evidenciar a possibilidade de mudanças efêmeras na ordem criativa, mas, sobretudo, existe a possibilidade de uma mudança radical e permanente na ordem criativa. De fato, para Morowitz (2002), no domínio da emergência, assume-se que tanto os sistemas reais quanto os modelos operam por seleção a partir do imenso espaço e da variabilidade do mundo possível. Ao realizar essa seleção, emergem propriedades novas e imprevisíveis.
De acordo com Laughlin (2007), passamos da Era do Reducionismo para a Era da Emergência, ou seja, a precisão que havíamos conseguido com as medições nos permite dizer com segurança que a pesquisa de uma única verdade chegou ao fim. De fato: “[...] o conjunto de descrições físicas fenomenológicas não só afirmam a seta do tempo, mas também nos conduzem atualmente a compreender um mundo em evolução, um mundo onde a ‘emergência do novo’ reveste um significado irreversível” (Prigogine; Stengers, 1990, p. 18). Segundo Holland (1998), as regras e leis geram a complexidade, e o fluxo, em constante mudança de padrão, segue conduzindo à novidade perpétua e à emergência. De alguma forma, as simples leis dos agentes geram um comportamento emergente muito além de suas capacidades individuais. Esse comportamento é digno de nota, pois ocorre sem direção de um gestor central. Holland (1998) resume essa ideia afirmando que os mecanismos componentes interagem sem um controle central, e a possibilidade para a emergência aumenta rapidamente à medida que a flexibilidade das interações cresce.
Mas a complexidade não compreende apenas quantidades de unidade e interações que desafiam nossas possibilidades de cálculo: ela compreende também incertezas, indeterminações, fenômenos aleatórios. A complexidade num certo sentido sempre tem relação com o acaso
(Morin, 2011, p. 35).
Parece evidente que a complexidade, quando se configura a partir de fenômenos aleatórios, incertezas, indeterminações e, principalmente, do acaso, confirma a potência criativa do acaso absoluto peirciano em fomentar fenômenos emergentes, como veremos a seguir. É importante salientar, com efeito, que a emergência se insere na capacidade de engendrar a novidade disruptiva. É preciso supor, então, que é justamente esse fator de inovação que a credencia como um dos fundamentos para a construção da criatividade indeterminista da complexidade.
A emergência é uma qualidade nova com relação aos componentes do sistema. Ela tem, portanto, virtude de acontecimento, já que surge de maneira descontínua, uma vez que o sistema já está constituído; ela tem certamente o caráter de irredutibilidade: é uma qualidade que não se deixa decompor e que não pode ser deduzida de elementos anteriores
(Morin, 2016, p. 138).
Trata-se, portanto, de apreender a emergência como um afastamento de uma visão determinista, previsível e em equilíbrio do universo. Nota-se, portanto, o caráter imprevisível e indeterminista da conduta futura do objeto/realidade fomentado pelo auspício da emergência. O universo não é apenas lei; é uma mistura de lei e acaso. O acaso é responsável pelo novo, pela inovação intrínseca à emergência, em suma, pela criatividade indeterminista do universo. “Novidade disruptiva e singularidade irredutível, entretanto, são fenômenos a serem explicados, na medida em que sejam explicáveis, apenas em referência ao processo singular pelo qual tal novidade e singularidade vieram a ser” (Colapietro, 2016, p. 55).
A ideia de emergência é inseparável da morfogênese sistêmica, ou seja, da criação de uma forma nova que constitui um todo: a unidade complexa organizada. No fundo, trata-se de uma morfogênese, já que o sistema constitui uma realidade topológica, estrutural, qualitativamente nova no espaço e no tempo. A organização transforma uma diversidade descontínua de elementos em uma forma global
(Morin, 2016, p. 146).
Deve-se, então, compreender que os sistemas complexos são imprevisíveis e indeterminados, pois estão em perpétua novidade de compilações interativas. Nota-se, portanto, o aspecto positivo dessa imprevisibilidade e indeterminismo, já que o sistema sempre irá criar algo inaudito, não esperado, enfim, inovador. Portanto, na perspectiva assumida neste artigo, imprevisibilidade e indeterminismo se estabelecem como criatividade disruptiva, fomentando, portanto, inovações radicais. Segundo Sawyer (2005), para que um sistema seja considerado emergente, ele deve ser imprevisível e engendrar novidade e singularidade, mesmo quando se dispõe de dados completos do conhecimento sobre a descrição do sistema em níveis inferiores ou de base. Deve-se questionar, portanto, como essa propriedade emergente se configura para engendrar resultados tão inovadores. É preciso perceber, sobretudo, a forte relação entre emergência e acaso absoluto peirciano, e como eles se coadunam a fim de explicar o universo indeterminista.
FUNDAMENTO – ACASO ABSOLUTO
Para se compreender o acaso absoluto de Peirce, faz-se necessário inseri-lo no contexto da sua cosmologia evolucionária. A cosmologia evolucionária revela a capacidade do universo de estar em evolução, logo, uma visão indeterminista que suscita a capacidade criativa do universo de cada vez se tornar mais complexo. É preciso supor, então, uma forma de mensurar essa evolução. Nesse sentido, Peirce manifesta as categorias fenomenológicas. “A tarefa da fenomenologia é traçar um catálogo de categorias, provar sua eficiência, afastar uma possível redundância, compor as caraterísticas de cada uma e mostrar as relações entre elas” (Peirce, 1974, p. 23). Nesse catálogo de categorias, Peirce identificou três categorias Universais: “pertencem a todo fenômeno, talvez uma sendo mais proeminente que a outra num aspecto do fenômeno, mas todas pertencendo a qualquer fenômeno” (ibidem). As categorias são primeiridade, secundidade e terceiridade. “A categoria- Primeiro é a ideia daquilo que é independente de algo mais. Quer dizer, é uma Qualidade de Sentimento” (Peirce, 1974, p. 31). A segunda categoria é “a ideia daquilo que é, como segundo para algum primeiro, independente de algo mais, em particular independente de Lei, embora podendo ser conforme uma Lei. O que é dizer, é Reação como um elemento do Fenômeno” (ibidem). E a terceira categoria “é ideia daquilo que faz do Terceiro, ou Medium, entre um Segundo e seu Primeiro. Quer dizer, é Representação como um elemento do Fenômeno” (ibidem). Na perspectiva assumida neste artigo, Peirce, ao vislumbrar essas categorias, elaborou uma espécie de previsão para as ciências da complexidade, descrevendo um universo com propriedades emergentes capaz de incorporar novidade e originalidade, em outras palavras, com capacidade criativa de fomentar a diversidade e a diferença. Assim, a complexidade e as categorias fenomenológicas se relacionam ao entender o universo como uma mistura de ordem e desordem; lei e acaso. Dessa forma, a complexidade é, principalmente, associada à categoria de primeiridade. De fato, na perspectiva assumida neste artigo, complexidade é primeiridade, uma vez que está revelando o modo criativo do universo de evoluir.
No seu texto Design and Chance (1883-1884), Peirce (1992) começa a pavimentar a estrada da complexidade e revelar os elementos criativos do universo.
[...] que todo evento tem uma causa. Eu questiono se isso é exatamente verdadeiro. Os corpos obedecem sensivelmente às leis da mecânica, mas será que, se nossos meios de medição fossem inconcebivelmente melhores, ou se tivéssemos que esperar eras inconcebíveis por uma exceção, exceção irredutíveis em sua própria natureza a qualquer lei não viriam a ser descoberta? Em suma, não poderia ser o acaso, no sentido aristotélico, mera ausência de causa, deva ser admitido como digno de algum mínimo lugar no universo?
(Peirce, 2023, p. 179-180)
É preciso notar, sobretudo, que, nesse texto, Peirce incorpora o acaso como um elemento intrínseco à configuração do universo. O acaso seria responsável pela evolução das leis físicas. “Parece-me que o acaso é a única força ativa essencial da qual depende todo o processo. Sobre a natureza dos fenômenos comuns do acaso, não pode haver disputa” (Peirce, 2023, p. 183). Nota-se, portanto, a forte ligação entre acaso e emergência. De fato, a emergência somente pode ser explicada pelas propriedades criativas do acaso. Para diferenciar o termo acaso das definições da simples sorte ou aleatoriedade, Peirce vai denominar essa propriedade evolutiva de acaso absoluto. “Suponho que em ocasiões esporádicas excessivamente raras uma lei da natureza é violada em algum grau infinitesimal, o que pode ser chamado de acaso absoluto [...]”(idem, p. 184). Logo, ao violar a lei da natureza, o acaso suscita uma disrupção da ordem vigente. “Em algum momento, o acaso causará uma mudança em todas as condições [...] e os objetos sobre os quais opera tiverem grande multiplicidade” (ibidem). O acaso absoluto seria, pois, o responsável pelas inovações radicais e pelo aumento dos fenômenos inauditos. Ora, parece evidente que se está configurando uma criatividade disruptiva, cujo caráter é de indeterminação e imprevisibilidade dos fenômenos a serem criados. O acaso absoluto seria responsável, portanto, pelo aumento da complexidade do universo. “E disso segue-se que o acaso deve agir para mover as coisas, no longo prazo, de um estado de homogeneidade para um estado de heterogeneidade. Esses são estados de coisas improváveis (unlikely)” (Peirce, 2023, p. 186). Segundo Turley (1969), a hipótese do acaso absoluto é a da violação das leis da natureza, ou ilegalidade, as quais são infinitesimais e, portanto, são conhecidas somente de forma indireta. O autor afirma que certos desvios dos fatos são de alguma fórmula definitiva. Existe crescimento, que é um processo irreversível e, portanto, inexplicável pelos princípios deterministas. Acaso absoluto é crescimento e variedade.
No artigo One, two, three: Kantian categories (1886), Peirce (1992) afirma que devemos supor, contudo, um elemento de acaso absoluto jogando espontaneidade, originalidade e liberdade na natureza. Deve-se supor, ainda mais, que esse elemento era indefinidamente muito mais proeminente no passado do que agora, e que a conformidade quase exata da natureza às leis é algo que foi gradualmente alcançado. Temos que presumir que, ao olhar para o passado indefinido, estamos olhando para tempos em que o elemento da lei desempenhava um papel indefinidamente pequeno no universo.
No artigo A Guess at the Riddle (1887–1888), Peirce (1992) afirma que a indeterminação é pura primeiridade. Segundo Turley (1969), Peirce atesta que o crescimento é inexplicável sobre os princípios deterministas porque é um processo irreversível. De acordo com a lei de conservação de energia, muitos processos regidos pela lei da mecânica são reversíveis, conforme o princípio determinista.
No artigo The Architecture of Theories (1891), Peirce (1992) mostra a configuração criativa do universo através das categorias fenomenológicas. Essa configuração é criativa à medida que demonstra o modo pelo qual o universo se configura na heterogeneidade e, sobretudo, como estabelece sua cosmologia evolucionária.
Peirce afirma que, atualmente, a única maneira possível de explicar as leis da natureza e a uniformidade em geral é supor que são resultados da evolução. Isso pressupõe que elas não são absolutas e que não são obedecidas precisamente. Introduz um elemento de indeterminação, espontaneidade ou acaso absoluto na natureza. Peirce chama as categorias de primeiro, segundo e terceiro. Primeiro é a concepção de ser ou existir independentemente de qualquer outra coisa. Segundo é a concepção de ser relativo a, a concepção de reação com algo mais. Terceiro é a concepção de mediação, pela qual um primeiro e um segundo são trazidos à relação. Deve-se compreender que a primeiridade se estabelece em uma criatividade indeterminista, uma vez que os fenômenos são de caráter inaudito, ou seja, estabelecem-se como sui generis.
Na esteira da desordem, segue uma constelação de noções como o acaso, o acontecimento, o acidente. O acaso denota a impotência de um observador para fazer predições diante das múltiplas formas de desordem; o acontecimento denota o caráter não regular, não repetitivo, singular, inesperado de um fato físico na forma em que ele se apresenta para um observador. O acidente denota a perturbação que provoca a articulação entre um fenômeno organizado e um acontecimento, ou o encontro acontecimental entre dois fenômenos organizados
(Morin, 2016, p. 100).
Importa salientar, com efeito, que acaso, acontecimento e acidente seriam as consequências de uma criatividade indeterminista da complexidade: o acaso absoluto denotando as criações inauditas; o acontecimento revelando o abalo na ordem simbólica; e o acidente suscitando uma nova ordem criativa mais complexa.
Sob certos aspectos, esse mecanismo criativo pode ser sintetizado na afirmação de Peirce de que: Acaso é Primeiro; Lei é Segundo; e Tendência de adquirir hábito é Terceiro. Logo, Mente é Primeiro; Matéria é Segundo; Evolução é Terceiro. Um Universo que começa de maneira completamente desordenada, mas livre para sua manifestação criativa e, gradualmente, se solidifica em hábitos rígidos, configurando a matéria e, assim, promovendo a evolução contínua. Ou seja, a desordem gera ordem.
Para Peirce, o legado de Darwin foi além dessa contribuição já essencial. O primeiro considera o segundo como percursor da ideia segundo a qual é o acaso que cria a ordem, bem à moda dos epistemólogos modernos como Ilya Prigogine, Henri Atlan e Edgar Morin. “A Origem das Espécies”, escreve Peirce em 1893, “é responsável pela ideia de que o acaso gera a ordem, o que é uma pedra de toque da física moderna”. Peirce refere-se aqui à conexão entre a física social de Quetelet e o trabalho de Maxwell em mecânica estatística dos gases, de um lado, e o pensamento evolucionista de Darwin, do outro
(Lestienne, 2008, p. 91).
Peirce afirma que, a qualquer momento, no entanto, um elemento de puro acaso sobrevive e permanecerá até que o mundo se torne um sistema absolutamente perfeito, racional e simétrico, no qual a mente finalmente se cristalizará em um futuro infinitamente distante. Ora, parece evidente que, em termos semióticos, o /universo/objeto está criando signos inauditos de forma indeterminada. Nota-se, portanto, a radical mudança que se incorpora no entendimento do que é criatividade e no que ela pode criar. E de tal modo, fomenta a construção de uma emergente criatividade indeterminista da complexidade baseada nessas descobertas.
No artigo The Doctrine of Necessity Examined (1892), Peirce (1992) defende a existência do acaso diante dos argumentos contrários. “Tente-se verificar qualquer lei da natureza e será descoberto que quanto mais precisas forem as suas observações, com tantas mais certezas elas mostrarão desvios irregularidades da lei” (Peirce, 2023, p. 203-204).
Devo reconhecer que existe uma regularidade aproximada e que todos os eventos são influenciados por ela. Todavia, a diversificação, a especificidade e a irregularidade das coisas, suponho que sejam acaso. [...] Se você refletir mais profundamente, verá que o acaso é apenas um nome para uma causa que nos é desconhecida
(Peirce, 2023, p. 207).
Cabe observar que causas desconhecidas nos levam à imprevisibilidade do universo. De fato, no entanto, subjacente ao imprevisível se está revelando também a face desconhecida da inovação disruptiva e radical. “O acaso está na diversidade de lances, e essa diversidade não pode ser devida a leis que são imutáveis” (Peirce, 2023, p. 208). Logo, uma criatividade evolucionária e indeterminista tem início no acaso absoluto.
Assim, por admitir a pura espontaneidade ou vida como uma característica do universo, a qual, embora contida nos limites estreitos da lei, age sempre e em todos os lugares produzindo continuamente desvios infinitesimais da lei, e desvios grandes com infinita infrequência, explico toda a variedade e diversidade do universo no único sentido em que o realmente sui generis e o novo podem ser explicados
(Peirce, 2023, p. 209-210).
Portanto, pode-se afirmar que uma daquelas categorias fenomenológicas é responsável pela configuração criativa do universo. A categoria da primeiridade revela, assim, esse elemento imprevisível de criatividade, responsável pelo indeterminismo e imprevisibilidade do universo e, ao mesmo tempo, da sua criatividade inovadora.
A ideia de Primeiro predomina nas ideias de novidade, vida, liberdade. Livre é o que não tem outro atrás de si determinando suas ações; mas assim aparece a ideia de outro, pela negação da alteridade; ela está presente para que se possa falar que a Primeiridade é predominante. A Liberdade só se manifesta na multiplicidade e na variedade incontrolada; e assim o Primeiro torna-se predominante nas ideias de variedade sem medida e multiplicidade
(Peirce, 1974, p. 94).
Pressupõe-se, no entanto, que a ideia de primeiridade segue parâmetros para se manifestar. “Acaso é indeterminação, é liberdade. Contudo, a ação da liberdade se distribui segundo a mais estrita regra da lei” (Peirce, 2023, p. 188). De fato, na perspectiva assumida neste artigo, a configuração de um sistema adaptativo complexo criativo é a atmosfera propícia para se configurar a categoria de primeiridade e, por conseguinte, a criatividade indeterminista da complexidade.
No artigo Reply to the Necessitarians (1893), Peirce afirma que tanto a existência (o ser) quanto a uniformidade que caracteriza o ser precisam de uma explicação. A única coisa que não requer explicação é a espontaneidade inexistente, ou seja, algo que não existe por si só não precisa de explicação. Isso logo foi prontamente interpretado como acaso absoluto. Essa conclusão foi alcançada após um cuidadoso reexame da função do acaso na ciência em geral e, especialmente, nas doutrinas da evolução.
Nesse artigo, Peirce ainda refuta o Dr. Carus, que admite que o acaso absoluto é não imaginável. Quase tão irrefletida é a objeção de que o acaso absoluto nunca poderia gerar ordem. Peirce afirma que notou em outro lugar a obsolescência histórica dessa objeção. “Devo repetir mais uma vez que a tendência a adquirir hábitos, sendo ela própria um hábito, tem uma tendência a crescer; de modo que apenas um menor germe é necessário?” E completa: “um realista, como eu, não pode encontrar dificuldade na produção desse primeiro germe infinitesimal de aquisição de hábitos pelo acaso, desde que ele acredite que o acaso pode agir” (1893, p.560).
Reynolds (2002) faz um balanço dos significados de acaso empregados por Peirce. São eles: 1) independência dos eventos; 2) distribuição randômica; 3) diversidade e variedade; 4) contingência ou liberdade da lei; 5) violação da lei (imprecisão); e 6) sentimento, espontaneidade e vitalidade. Tendo em vista o objetivo deste artigo, que é analisar o acaso absoluto como um dos fundamentos para a construção da criatividade indeterminista da complexidade, busca-se analisar esses significados do acaso absoluto como elemento imprevisível de criatividade:
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Independência dos eventos. Nesse sentido, o acaso absoluto criaria o inaudito. Nota-se, portanto, que subjacente a tal criação se revela o caráter emergente do sistema criativo, à medida que se insere em um nível superior de criatividade. Logo, a criatividade indeterminista da complexidade somente se configuraria na criação de sistemas adaptativos mais complexos e mais criativos.
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Distribuição randômica. Tal mecanismo revela a potência da liberdade e desordem para a configuração de uma organização criativa. “Essa mistura de ordem e anarquia é o que chamamos de comportamento emergente” (Johnson, 2003, p. 27). Acaso absoluto e emergência suscitam uma criatividade disruptiva enquanto se estabelecem em um sistema adaptativo aberto complexo criativo.
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Diversidade e variedade. Diversidade é criatividade disruptiva; encontros aleatórios fomentam o acaso absoluto. Sistemas descentralizados e diversos fomentam as interações aleatórias e determinam a exploração do espaço-cognitivo sem qualquer ordem predefinida. Esses encontros permitem ao sistema criativo confrontar o macroestado do próprio sistema e repensar novas rotas. Nota-se, portanto, o quanto a diversidade é importante para abalroar no diferente para ter de identificar outros modos de existências criativas. “Os sistemas auto-organizáveis usam o feedback para evoluir para uma estrutura mais ordenada” (Johnson, 2003, p. 89).
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Contingência ou liberdade da lei. Esse mecanismo é fundamental para estabelecer um sistema adaptativo aberto complexo e criativo. De fato, ela revela a capacidade de autonomia, adaptação e inovação do sistema se mover para uma configuração que permita sua evolução criativa.
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Violação da lei (imprecisão). As linguagens e códigos culturais e criativos são hábitos, ou seja, estão na terceiridade, ou são uma terceiridade degenerada? Logo, podem ainda sofrer mudanças de hábitos e, portanto, serem violadas? A questão que se estabelece é a de que a criatividade determinista pertence à terceiridade, pois suas obras precisam ser compreendidas pela mente interpretante, o que revela uma ausência de originalidade, pois tudo já foi criado. De fato, na terceiridade, essa criatividade será capaz de gerar uma mediação com a mente interpretante devido a sua imobilidade. Por outro lado, a terceiridade é a categoria na qual se estabeleceu como lei, logo, a tomada de hábito é algo inerente. “O principal elemento do hábito é a tendência de repetir qualquer ação realizada anteriormente” (Peirce, 2023, p. 190). Desse modo, a criatividade na terceiridade se configura apenas como modificações inusitadas dos signos existentes. Não há espaço para a inovação. Resta somente a reprodução repetitiva dos mesmos formatos. Daí se poder afirmar que a criatividade na terceiridade é uma criatividade determinista. Tudo já está dado e formatado. Sabe-se que o cineasta irá produzir um filme; o pintor, um quadro; e assim por diante. À guisa de contraste, caso essa criatividade esteja estabelecida na primeiridade, toda linguagem, formatos e obras podem ser violados. No entanto, essa criatividade se insere como uma criatividade indeterminista da complexidade. De fato, a ação do acaso absoluto como violação da lei suscita propriedades emergentes imprevisíveis. Não obstante, imprevisível aqui se traduz em criatividade disruptiva, uma evolução emergente. Logo, o sistema adaptativo complexo e criativo torna-se cada vez mais complexo.
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Sentimento, espontaneidade e vitalidade. O acaso absoluto, como espontaneidade, suscita uma realidade topológica, estrutural qualitativamente nova devido ao seu caráter inovador. Nota-se, portanto, a potência do acaso absoluto na configuração da morfogênese sistêmica para suscitar as emergências.
Em uma linguagem mais técnica, são complexos sistemas adaptativos que mostram comportamentos emergentes. Neles, os agentes que residem em uma escala começam a produzir comportamentos que residem em uma escala acima deles [...]. O movimento das regras de nível baixo para a sofisticação do nível mais alto é o que chamamos de emergência
(Johnson, 2003, p. 14).
Como o acaso absoluto pode ajudar a construir emergências criativas? “As formas de comportamentos emergentes [...] mostram a qualidade distintiva de ficarem mais inteligentes com o tempo e de reagirem às necessidades específicas e mutantes de seu ambiente” (Johnson, 2003, p. 15-16). Nota-se, portanto, a forte correlação entre espontaneidade e emergência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que se buscou neste trabalho foi discutir em que medida a emergência e o acaso absoluto peirciano se estabelecem como perspectivas para a construção da criatividade indeterminista da complexidade. O artigo revelou a forte relação entre complexidade, semiótica e criatividade. A complexidade se estabelece por meio de conceitos como emergência, como uma espécie de teoria da criatividade, cujo traço se insere no indeterminismo e imprevisibilidade. Logo, indeterminismo e imprevisibilidade são ressignificados como criatividade disruptiva e radical. Cabe fazer notar que essa criatividade, na perspectiva assumida neste artigo, é a criatividade do universo/objeto. Em termos semióticos, a complexidade revela os elementos imprevisíveis de criatividade presentes no universo/objeto em engendrar signos inauditos para afetar as mentes interpretantes. O artigo revelou também a correlação entre a categoria de primeiridade e complexidade, já que é a primeiridade responsável pela evolução criativa cosmológica. Tendo em vista os aspectos observados, parece evidente a abertura para um vasto campo de pesquisas futuras na interface entre complexidade, semiótica e criatividade.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Jun 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
24 Jun 2024 -
Aceito
13 Nov 2024
