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A materialidade relacional como provocação aos estudos intermidiáticos

Relational materiality as a provocation of intermedia studies

Resumo

Contra a vertente teórica das materialidades da comunicação, que se baseia no conceito de presença e na fisicalidade do suporte, este artigo pretende repensar o campo das materialidades propondo a passagem de uma lógica da presença para uma lógica da relação. Assim, trata-se de sugerir uma teoria da materialidade relacional. As implicações de tal possibilidade permitem não apenas uma crítica ao conceito de presença, mas também uma revisão da própria noção de intermidialidade. Para esse propósito, os aportes teóricos utilizados foram Marshall McLuhan, Richard Grusin, Jay Bolter e Gilles Deleuze.

Palavras chave
materialidades da comunicação; materialidade relacional; intermidialidade

Abstract

Against the theoretical strand of materialities of communication, which is based on the concept of presence and on the physicality of the apparatus, this paper intends to rethink materialities by proposing the transition from a logic of presence to a logic of relations. Thus, it is a matter of suggesting a theory of relational materiality. Such possibility implies not only a critique of the concept of presence, but also a re-examination of the very notion of intermediality. For this purpose, the theoretical contributions of Marshall McLuhan, Richard Grusin, Jay Bolter and Gilles Deleuze are used in this paper.

Keywords
materialities of communication; relational materiality; intermediality

Por uma materialidade relacional

De acordo com o paradigma epistemológico das materialidades da comunicação, sobretudo com base nos estudos de Hans Ulrich Gumbrecht, a ideia predominante é a de que as materialidades das mídias não são meros mecanismos transmissores, mas determinam o sentido daquilo que transportam. Daí que Gumbrecht (2010)GUMBRECHT, H. U. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Trad. Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2010. reivindica uma teoria ancorada no que denomina “campo não-hermenêutico” e que se fundaria no conceito de presença, a fim de combater as implicações metafísicas que se associam ao chamado “campo hermenêutico”. Em suas palavras, “nos víamos confrontados com a ausência de conceitos que nos teriam permitido lidar com o que chamávamos de ‘materialidades da comunicação’” (GUMBRECHT, 2010GUMBRECHT, H. U. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Trad. Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2010., p. 37). É por isso que ele se dedica à noção de presença. Não se trata aqui de problematizar o conceito de presença e sua relação intrínseca com a metafísica da presença, isto é, demonstrar que Gumbrecht estaria se comprometendo com aquilo que visa combater, mas sim repensar o próprio campo das materialidades. Nesse sentido, em vez de uma materialidade baseada na fisicalidade dos objetos, na exterioridade do significante e no suporte de inscrição, o que se propõe é uma materialidade das mídias que considere justamente o seu aspecto medial, de entre-lugar, de meio — em suma, pretende-se pensar em uma materialidade relacional.

Em um texto de 1972, intitulado “Hume”, e publicado no volume A ilha deserta e outros textos, Gilles Deleuze (2006)DELEUZE, G. Hume. In: _____. A ilha deserta e outros textos. Trad. Luiz Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006. p. 211-220. retoma alguns argumentos lançados em seu livro Empirismo e subjetividade (2001), onde realiza uma leitura do empirismo, que rompe com a sua equivocada recepção, na história da filosofia, como mera inversão do racionalismo. Para Deleuze (2006, p. 212)DELEUZE, G. Hume. In: _____. A ilha deserta e outros textos. Trad. Luiz Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006. p. 211-220., a originalidade do pensamento de David Hume consiste na proposição de que “as relações são exteriores aos seus termos”. Isso fica mais claro quando se pensa num enunciado como A é maior do que B; afinal, como é possível reduzir essa relação a uma suposta interioridade (atributo ou substância) de A ou de B, bem como ao todo aos quais tais termos se relacionam? O fato é que há uma exterioridade irredutível da relação; aliás, são primeiramente as relações que se dão a ver na forma como se percebem os termos. Deleuze (2006, p. 212)DELEUZE, G. Hume. In: _____. A ilha deserta e outros textos. Trad. Luiz Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006. p. 211-220. continua: “se as ideias não contêm nenhuma outra coisa e nada mais do que o que se encontra nas impressões sensíveis, é precisamente porque as relações são exteriores e heterogêneas a seus termos, impressões e ideias”. Não se trata de pensar as relações como linhas que ligam pontos, pois isso persistiria numa fixidez dos termos — como se fossem mônadas fechadas sobre si mesmas. Ou seja, a diferença permaneceria subordinada à identidade; as relações, aos termos; porém, quando Hume inverte a fórmula, em vez do é, tem-se o e ou o ou. É a lógica da conjunção, da relação.

Em vez da coisa, só se percebem as relações que a compõem; em vez do imediato, apenas as mediações. Não se trata, no entanto, de seguir Régis Debray (2000, p. 100, tradução nossa)DEBRAY, R. Introduccíon a la mediología. Trad. Núria Pujol i Valls. Barcelona: Buenos Aires: Paidós, 2000. quando ele afirma que “a mediologia não concerne a um âmbito de objetos senão a um âmbito de relações”. Isso porque a mediologia enfoca os meios de transmissão e circulação simbólicos com base em suas relações com as técnicas de transmissão, incorrendo na mesma dicotomia entre sentido e suporte de inscrição. Com efeito, o que interessa é subverter a fórmula de Debray e dizer: a mídia (meio, medium, ou media) refere-se não às coisas, mas às relações. A materialidade da mídia não consiste, portanto, na coisidade, na matéria, no suporte, mas na própria relação. Não há mensagem de um lado e suporte de outro. O que comumente se denomina mídia é apenas uma de suas formas de atualização, um campo de relações possíveis, e a convenção restringe esse campo e lhe confere rótulos fixos, denominando-o fotografia, cinema, livro, televisão etc. O que se argumenta é que a materialidade é relacional, e decorre dessa proposição que uma mídia é um campo de relações, um agenciamento no qual se dá a interação de diversas relações que, se atualizadas em outras combinações, formariam uma mídia distinta. E, de fato, só é possível a passagem de uma mídia para outra porque são compostas de relações.

Em 1964, Marshall McLuhan publicou um dos livros pioneiros nos estudos de mídia e, sem dúvida, um dos que mais causaram impacto no mundo acadêmico do pós-guerra: Understanding media, que, no Brasil, recebeu o título de Os meios de comunicação como extensões do homem. Além de desenvolver os conceitos de meios frios e meios quentes, bem como a ideia de que as mídias são extensões do corpo, o leitmotiv do livro é a fórmula aforística de “o meio é a mensagem” (the medium is the message), que dá título ao primeiro capítulo. A frase opera como um trocadilho, visto que, por vezes, McLuhan emprega mess age, mass age ou massage, no lugar de message. O problema do uso do termo mass age (era das massas) dentro dessa fórmula consiste no fato de que a teoria de McLuhan parece correlata ao lugar-comum acerca das mídias como sinônimo de cultura de massas ou indústria cultural, quando, na verdade, seu conceito de meio/mídia é muito mais abrangente. Com efeito, o meio é a mensagem significa que as “consequências sociais e pessoais de qualquer meio — ou seja, de qualquer uma das extensões de nós mesmos — constituem o resultado do novo estalão introduzido em nossas vidas por uma nova tecnologia ou extensão de nós mesmos” (McLUHAN, 1974McLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio Pignatari. 5 ed. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 21). À parte das problemáticas implicações da noção de mídia como extensão do homem, que não interessam a este artigo, a afirmação de que o meio é a mensagem quer dizer, no limite, que as mídias referem-se apenas a si mesmas. Não há conteúdo de um lado e aquilo que transmite o conteúdo de outro: “o ‘conteúdo’ de qualquer meio ou veículo é sempre um outro meio ou veículo” (McLUHAN, 1974McLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio Pignatari. 5 ed. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 22). O que McLuhan perfaz, bem antes de Gumbrecht (1998)______. Corpo e forma: ensaios para uma crítica não-hermenêutica. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998., é a inversão do modelo hermenêutico, o qual prezaria apenas pelo conteúdo em detrimento do seu meio de transmissão. E, com efeito, quando McLuhan (1974, p. 23)McLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio Pignatari. 5 ed. São Paulo: Cultrix, 1974. afirma que “não deixa de ser bastante típico que o ‘conteúdo’ de qualquer meio nos cegue para a natureza desse mesmo meio”, é possível ouvir os ecos gumbrechtianos a respeito da necessidade de um paradigma teórico voltado para as materialidades da comunicação. Ademais, subjaz à sua teoria um método dialético que se afigura problemático; afinal de contas, o meio é a mensagem significaria que “o conteúdo da escrita é a fala, assim como a palavra escrita é o conteúdo da imprensa e a palavra impressa é o conteúdo do telégrafo” (McLUHAN, 1974McLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio Pignatari. 5 ed. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 22). Isto é: na passagem da fala para a escrita e, depois, para a imprensa, persiste uma ideia de negação, conservação e superação (que constitui a própria Aufhebung da dialética hegeliana), porque, a despeito de uma evolução midiática, a fala estaria recalcada no telégrafo, por exemplo. Isso se torna problemático porque McLuhan não apenas repete os passos de Aristóteles e Saussure no que diz respeito à língua como representação da fala, mas também porque seria preciso remontar a uma mídia originária da qual todas as outras emanariam, uma mídia pura, livre de contaminações posteriores. Embora os seus princípios tenham sido descobertos apenas no século XIX, a luz elétrica viria a suprir, na teoria de McLuhan (1974, p. 22)McLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio Pignatari. 5 ed. São Paulo: Cultrix, 1974., esse status de pureza essencial: “a luz elétrica é informação pura. É algo assim como um meio sem mensagem, a menos que seja usada para explicitar algum anúncio verbal ou algum nome”. Ainda segundo McLuhan: “não percebemos a luz elétrica como meio de comunicação simplesmente porque ela não possui ‘conteúdo’” (1974, p. 23). A luz seria anterior a outras mídias dela dependentes, como o rádio e a televisão. E a cegueira que se tem em relação a ela sucede da familiaridade cotidiana, isto é, ela se torna uma extensão da vida humana como se fosse parte intrínseca desta. Apenas quando se interrompe (um curto-circuito, por exemplo) é que ela é percebida e sai da narcose narcísica.

No que se refere ao conceito de energia híbrida, em que pese um aceno ao caráter relacional das mídias, McLuhan ainda permanece enclausurado em termos essencializantes. Afinal, apesar da hibridização ou do cruzamento pressupor a interpenetração de uma mídia em outra, criando uma nova mídia distinta, as primeiras são preservadas — como se tivessem um atributo essencial. Daí é que McLuhan afirma que o encontro de duas mídias (híbrido) é um “momento de verdade e revelação, do qual nasce a forma nova. Isto porque o paralelo de dois meios nos mantém nas fronteiras entre formas que nos despertam da narcose narcísica” (1974, p. 75). Se o híbrido desperta do entorpecimento que as mídias impõem aos sentidos — e tal entorpecimento/cegueira diz respeito ao fato de se esquecer dos mecanismos de transmissão, dando primazia ao suposto conteúdo (não levando em conta que o próprio conteúdo é apenas outra mídia) —, tal despertar refere-se a perceber a essência de cada mídia, isto é, os “seus componentes e propriedades estruturais” (McLUHAN, 1974McLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio Pignatari. 5 ed. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 67). Ora, como é possível que o híbrido seja esse momento de revelação e desentorpecimento se, a priori, “todos os meios andam aos pares, um atuando como ‘conteúdo’ do outro, de modo a obscurecer a atuação de ambos” (McLUHAN, 1974McLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio Pignatari. 5 ed. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 71)? Ou melhor, se todas as mídias estão relacionadas a outras mídias, por que o híbrido revela o próprio de cada uma? Não seria justamente o fato de estarem sempre inter-relacionadas o que constitui per se a mídia? Afinal, quando McLuhan diz que os meios (mídias) “começam a funcionar muito antes de que nos demos conta deles” (1974, p. 68), não se deveria supor que tal funcionamento diz respeito à sua inter-relação, uma vez que o conteúdo de um meio é sempre outro meio? O fato é que McLuhan, a despeito de seu insight acerca do aspecto relacional das mídias, não leva adiante a radicalidade de sua proposição e mantém-se preso a uma suposta essencialidade inerente a cada mídia. Isso porque trata as relações como interiores aos termos que as compõem, e não exteriores — conforme postula Deleuze com base em Hume. “Os meios, como extensões de nossos sentidos, estabelecem novos índices relacionais, não apenas entre os nossos sentidos particulares, como também entre si, na medida em que se inter-relacionam” (McLUHAN, 1974McLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio Pignatari. 5 ed. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 72). Dito de outro modo, para McLuhan, são as mídias que estabelecem as relações, e não as relações que estabelecem as mídias; entretanto, isso implica um paradoxo, uma vez que, sendo uma mídia sempre outra mídia, é de antemão impossível que estas tenham uma essência. O que se propõe, ao contrário, é que são as relações que constituem a materialidade das mídias, isto é, as relações existem virtualmente antes mesmo de sua atualização; esta última seria a forma como essas relações se moldam, criando o campo relacional que denomina determinada mídia.

Em Remediation (2000), Jay Bolter e Richard Grusin retomam a premissa mcluhaniana de que o conteúdo de uma mídia é sempre outra mídia. Remediation ou remediação tem sua raiz no latim remederi, que significa curar, restaurar. Assim, remediação seria o aperfeiçoamento de uma mídia antiga criando uma mídia nova: “adotamos a palavra para expressar o modo pelo qual cada mídia é vista em nossa cultura como reforma ou melhora de outra” (BOLTER e GRUSIN, 2000BOLTER, J.; GRUSIN, R. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000., p. 59, tradução nossa). Cumpre dizer que a preocupação dos autores não recai apenas sobre as chamadas novas mídias, como celulares, tablets, e-readers etc., uma vez que a remediação diz respeito não apenas às mídias digitais: “podemos identificar o mesmo processo ao longo das últimas centenas de anos de representação visual ocidental” (BOLTER; GRUSIN, 2000BOLTER, J.; GRUSIN, R. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000., p. 11, tradução nossa). Mas o motivo condutor do livro ecoa McLuhan na medida em que, para Bolter e Grusin, as mídias não funcionam isoladamente, tampouco no contexto socioeconômico: a remediação existe porque permanentemente uma mídia está restaurando outras. Outra característica digna de nota é que — não apenas nas mídias digitais, embora com elas isso se torne mais claro — há uma oscilação entre transparência e opacidade, immediacy (imediação) e hypermediacy (hipermediação). Por trás da imediação, subsiste a ideia de que, por exemplo no caso do computador, a interface gráfica do usuário apagaria a si mesma; logo, “o usuário não está mais ciente de confrontar uma mídia, mas antes mantém uma relação imediata com os conteúdos dessa mídia” (BOLTER; GRUSIN, 2000BOLTER, J.; GRUSIN, R. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000., p. 23-24, tradução nossa). O desejo de uma transparência não mediada é, no limite, o desejo do real para além da representação. Todavia, não se trata de um real no sentido metafísico; “em vez disso, o real é definido em termos da experiência do observador; é o que evocaria uma resposta emocional imediata (e, portanto, autêntica)” (BOLTER; GRUSIN, 2000BOLTER, J.; GRUSIN, R. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000., p. 53, tradução nossa).

Dentro do esquema proposto por Bolter e Grusin, a imediação, pura transparência, é o desejo de que as coisas se apresentem de imediato, como pretendiam a perspectiva na pintura renascentista e a fotografia, nos tempos de Talbot e Daguerre. Já a hipermediação opera de modo contrário, pois abre múltiplas perspectivas, múltiplos atos de representação ao mesmo tempo que torna visível a própria mídia. Para Bolter e Grusin, “com suas constantes referências a outras mídias e seus conteúdos, as hipermídias acabam por reivindicar nossa atenção como pura experiência” (2000, p. 54, tradução nossa). Visto que a hipermediação chama a atenção para a mídia em si mesma, a lógica da imediação se insinua, na medida em que, por exemplo, nas colagens e nas fotomontagens, o gesto hipermediado utiliza-se de uma mídia supostamente imediada, a fotografia. Em outras palavras, a opacidade confronta a transparência na hipermediação.

A remediação lida, portanto, com o empréstimo, com a apropriação de uma mídia, seja ela supostamente imediada, seja ela hipermediada. O problema nessa lógica da remediação concerne não ao esquema binário aventado por Bolter e Grusin, tampouco no fato de que se supõe a existência de algo não mediado — tanto que os autores falam da a-mediação não como factual, mas como um desejo —, mas sim porque se sugere, além de seguir um movimento dialético e evolutivo de contínuo aperfeiçoamento, que a remediação seria “a representação de uma mídia em outra” (BOLTER; GRUSIN, 2000BOLTER, J.; GRUSIN, R. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000., p. 45, tradução nossa). Ora, ao se conceber esse processo de apropriação/evolução como mera representação, tem-se de antemão que haveria um modelo ideal, fechado em si mesmo, que seria tão-somente replicado, uma cópia de segunda ordem daquilo que é originário. Isso fica mais claro quando os autores, usando o exemplo dos livros expandidos, afirmam que o próprio nome dessa mídia indica esse aspecto de aperfeiçoamento, mas sobretudo a prioridade da mídia antiga, visto que, embora expandidos, o que importa é o fato de serem livros. Enfim, preserva-se a essência da mídia precedente: “o próprio ato de remediação, porém, garante que a mídia mais antiga não possa ser inteiramente apagada” (BOLTER; GRUSIN, 2000BOLTER, J.; GRUSIN, R. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000., p. 47, tradução nossa).

Não obstante, o que importa reter do conceito desenvolvido por Bolter e Grusin (2000, p. 55, tradução nossa)BOLTER, J.; GRUSIN, R. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000. é a asserção de que toda mediação é uma remediação, ou melhor, a remediação é a mediação da mediação: “cada ato de mediação depende de outros atos de mediação. Mídias estão continuamente comentando, reproduzindo e substituindo umas às outras, e esse processo é parte integrante das mídias”. Ao considerar que a mediação refere-se à mediação, e que esse processo é característico das mídias, os autores articulam a teoria da comunicação à mediação no sentido filosófico. Apesar de parecer óbvia tal aproximação, visto que mídia e mediação têm uma raiz comum, os estudos sobre mídia nem sempre entenderam a mediação como parte integrante, tanto que alguns teóricos preferem o termo mediatização (mediatization) em vez de mediação (mediation). No ensaio “Genesis of the media concept”, publicado na revista Critical Inquiry, em 2010, John Guillory afirma que essa anomalia deve-se à aparente falta de relação entre as palavras mídia (medium) e mediação no registro filosófico: “esse problema, a meu ver, é crucial para nossa compreensão do modo que o conceito de mediação como processo parece entrar e sair das teorias filosófica e social sem estabelecer até recentemente uma relação especial com o campo da comunicação” (GUILLORY, 2010GUILLORY, J. Genesis of the media concept. Critical Inquiry, n. 36, p. 321-362, 2010., p. 344, tradução nossa). Embora essa relação entre mídia (medium) e mediação tenha permanecido impensada por muito tempo, as duas mantêm significados parecidos: basta lembrar que mediação usualmente é empregada no sentido de reconciliação, de intercessão entre partes antagônicas e que, na doutrina cristã, Jesus conciliava o espiritual e o carnal, Deus e homem; já médium, na doutrina espírita, é aquele que estabelece comunicação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, atualizando aquilo que está distante. Por seu turno, a mídia concilia a presença com a distância. Daí é que, por exemplo, o telefone torna presente um interlocutor distante; a fotografia e o cinema trazem à presença do observador/espectador aquilo que está distante espacialmente e temporalmente. Ainda segundo o autor,

Em nossa história de formação de conceitos, a prevalência do medium espiritual marca uma transição da noção de comunicação baseada na troca face a face para uma noção baseada na distância; ambas as proporções espaciais estão incorporadas na figura do médium espiritual, que mediava as comunicações com o mais distante de todos os reinos, o “país desconhecido de cuja fronteira nenhum viajante retorna” de Hamlet

(GUILLORY, 2010GUILLORY, J. Genesis of the media concept. Critical Inquiry, n. 36, p. 321-362, 2010., p. 348, tradução nossa).

Todavia, conforme a conceitualização de Bolter e Grusin de que a mídia articula-se à remediação, que nada mais é que mediação da mediação, rompe-se com esse aspecto de conciliação de termos opostos. Não à toa, propõem uma nova definição: “uma mídia é aquilo que remedia” (BOLTER; GRUSIN, 2000BOLTER, J.; GRUSIN, R. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000., p. 65, tradução nossa). Vale ressaltar ainda que a remediação não atua em uma progressão histórica, na medida em que se trata de uma genealogia de afiliações, e não uma história linear, porquanto nessa genealogia as velhas mídias podem também remediar as novas mídias — a televisão se apropriando da internet, por exemplo. Este artigo subscreve tais premissas com uma ressalva: essa genealogia de afiliações, que trata a história das mídias não linearmente, mas de modo constelar, contradiz a dinâmica dialética que os autores imprimem na remediação ao dizerem que a mídia antiga não pode ser inteiramente apagada. Em outras palavras, retêm-se as seguintes conclusões: 1) há tão-somente mediação de mediação; 2) a mídia é a forma atual das relações; 3) a história das mídias não é uma progressão linear.

No ensaio “Radical mediation”, Grusin (2015, p. 135, tradução nossa)GRUSIN, R. Radical mediation. Critical Inquiry, n. 42, p. 124-148, 2015. afirma que “em vez de dizer que não há nada que não seja mediado, eu diria que não há nada que não seja mediação e que a mediação é imediata [...]. Defendo que não há nada que não seja mediação e que a própria mediação é imediata”. Com efeito, a proposição de que a própria mediação é imediata reencena a leitura adorniana da mediação: “a mediação não está no próprio objeto, em algo entre o objeto e aquilo que é trazido” (ADORNO apud WILLIAMS, 1977WILLIAMS, R. Marxism and literature. Oxford; New York: Oxford University Press, 1977., p. 98, tradução nossa). Por mais que a premissa de que a mediação está no próprio objeto e que ela é em si mesma imediata derrube a dicotomia entre mediado e imediato, isso não resolve o problema da imediatidade; antes, restaura-a com mais força. Invertendo a ordem do enunciado e afirmando que o imediato é em si mesmo mediado, ecoa-se tão-somente Hegel e reafirma-se a indeterminação do imediato. É uma contradição dizer que a mediação é em si mesma imediata e também que ela é mediação de mediação. Não se trata de inverter a oposição hegeliana e, tampouco, de buscar uma reconciliação impossível, como pretende Grusin; com efeito, o mero fato de que as relações referem-se a relações e as mediações a mediações exclui o imediato, elemento que funda tal dicotomia. Não há o que se chama de imediato, objeto ou coisa, mas apenas o campo de relações, que é a maneira como se atualizam em uma forma, nesse caso, a mídia.

Apesar de algumas discordâncias com Grusin, está-se de acordo neste artigo com a premissa de que a mediação deve ser o ponto de partida, isto é, deve-se começar pelo meio — o que está entre o início e o fim. Trata-se de demonstrar a relação entre meio e mídia, pois só assim se esclarecerá por que a materialidade das mídias é relacional, e não uma presença imediata. Embora o mais adequado, para fins metodológicos, fosse explicar no início a etimologia da palavra mídia, faz-se só agora, porque se pretende assinalar justamente de que modo a mídia é um encontro de relações. Mídia deriva da palavra latina medium, neutro de medius, e tem como plural media. Enquanto em Portugal tornou-se mais corrente o uso de media, no Brasil opta-se, geralmente, por mídia, ou mídias, ainda que, na tradução de Décio Pignatari de Understanding media, de Marshall McLuhan, medium tenha sido traduzido por meio — e, de fato, a tradução da palavra latina medium corresponde literalmente a meio. É da palavra medium que derivam mediação, em português, e mediation, em inglês. Mediação tem, portanto, sua raiz em meio. Na filosofia de Hegel, o conceito-chave de vermittlung é traduzido por mediação e, pode-se observar, a sua raiz é mitt-, que deriva de mittel, cuja tradução é meio. Sybille Krämer (2015, p. 36, tradução nossa)KRÄMER, S. Medium, messenger, transmission: an approach to media philosophy. Trad. Anthony Enns. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2015. faz uma aproximação entre os termos medium e mittel (ou middle, conforme a tradução em língua inglesa): “ocupar o meio é precisamente o que a posição de mídia [medium] representa”. Tais considerações importam na medida em que liberta o medium/mídia da comunicação e lhe confere o significado daquilo que está entre, no meio. Evidentemente, não se trata de estabelecer relações entre opostos, mas de compreender a mídia como um campo de relações, como um agenciamento. A mídia é um meio porque o meio é o intervalo/entre em que as relações se entrecruzam. De certa forma, há uma afinidade entre essa concepção de mídia proposta e o conceito de rizoma, desenvolvido por Deleuze e Guattari em Mil Platôs (1995).

Ser radical é agarrar as coisas pelo rizoma

O rizoma é da ordem da multiplicidade, não da unidade; das relações, não das essências; do meio, não da origem (arché) ou da finalidade (télos): “subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever n-1. Um tal sistema pode ser chamado de rizoma. Um rizoma como haste subterrânea distingue-se absolutamente das raízes e radículas” (DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Introdução: Rizoma. In: ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995. p. 11-37., p. 15). A imagem da árvore é recorrente na filosofia ocidental, e em Princípios da filosofia, Descartes (1997, p. 22)DESCARTES, R. Princípios da filosofia. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, 1997. escreve: “a Filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a metafísica, o tronco a Física, e os ramos que saem do tronco são todas as outras ciências”. Na crítica de Heidegger ao cartesianismo, a pergunta pelo sentido do ser é o solo no qual a metafísica floresce, isto é, a metafísica já seria derivada de algo ainda mais originário. Já para Deleuze e Guattari (1995, p. 28-29)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Introdução: Rizoma. In: ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995. p. 11-37., “é curioso como a árvore dominou a realidade ocidental e todo o pensamento ocidental, da botânica à biologia, a anatomia, mas também a gnoseologia, a teologia, a ontologia, toda a filosofia...: o fundamento-raiz, Grund, roots e fundations”. Não se trata, portanto, de fincar os pés na terra como fundamento último, mas de observar o rizoma, aquilo que se ramifica não de um ponto específico; antes, se dá simultaneamente, de múltiplos lugares. Eles continuam: “princípios de conexão e de heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem” (DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Introdução: Rizoma. In: ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995. p. 11-37., p. 15). O rizoma é uma multiplicidade; rompe em qualquer parte e retorna também em qualquer uma de suas linhas. Ele não cessa de tecer relações, desterritorializa-se e reterritorializa-se continuamente. Para Deleuze e Guattari (1995, p. 18)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Introdução: Rizoma. In: ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995. p. 11-37.,

Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não param de se remeter umas às outras. É por isto que não se pode contar com um dualismo ou uma dicotomia, nem mesmo sob a forma rudimentar do bom e do mau.

A estratificação/territorialização/atribuição se dá quando essas linhas se sobrepõem, convergindo umas com as outras. Mutatis mutandis, as relações se estratificam quando se combinam num mesmo campo, conferindo-lhe uma funcionalidade, uma aparente unidade. No entanto, essas relações não cessam nunca, estão permanentemente conectando-se umas às outras e criando novos campos relacionais. Desterritorializam-se e reterritorializam-se, mudam de natureza ao conectar-se com outras linhas e outras relações. Em razão disso, o rizoma seria uma antigenealogia, na medida em que se opõe à ideia de reconstituir uma origem. Ou seja, no rizoma, passado, presente e futuro coexistem. A temporalidade do rizoma é multitemporal; a da mídia, como campo de relações, também. Michel Serres (1996, p. 67)SERRES, M. Diálogos sobre a ciência, a cultura e o tempo: conversas com Bruno Latour. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. usa o automóvel para ilustrar essa multitemporalidade:

Pense numa viatura automóvel de um modelo recente: constitui um agregado heterogéneo de soluções científicas e técnicas de épocas diferentes; podemos datá-la peça por peça: este órgão foi inventado no começo do século, aquele há 10 anos e o ciclo de Carnot tem quase 200 anos. Sem contar que a roda remonta ao neolítico. O conjunto não é contemporâneo a não ser pela sua montagem, desenho, carroçaria, por vezes apenas pela pretensão de publicidade.

Vale lembrar que Marshall McLuhan trata o automóvel como uma mídia, uma evolução de meios de transporte mais arcaicos. De qualquer forma, um automóvel moderno, para além das relações que se combinam na descrição de Serres, ainda atualiza outras relações: rádio, TVs portáteis, GPS e aplicativos de todos os tipos, i.e., compõem-se de relações que, uma vez estabelecidas com outras relações, criam uma mídia distinta. E assim como a roda, quando de sua invenção, jamais foi sonhada como uma parte integrante do automóvel e certamente há peças acessórias que futuramente serão utilizadas em algo ainda impensado. Pode-se arguir que tais peças têm uma materialidade específica, mas, conforme se defende neste artigo, tudo quanto se pode observar são as relações que as compõem: o espelho retrovisor, por exemplo, remonta a outras funcionalidades, combinações, e relações. Em A Geology of media, Jussi Parikka (2015)PARIKKA, J. Materiality grounds of media and culture. In: ______. A geology of media. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2015. p. 1-28. mostra-se interessado em buscar o materialismo midiático no âmbito de seus componentes químicos. Em suas palavras,

[...] em vez de rádio, prefiro pensar quais componentes e materiais possibilitam tais tecnologias; em vez de rede, precisamos lembrar a importância do cobre ou da fibra óptica para essas formas de comunicação […]. Considere, então, o lítio como um material midiático tão pré-midiático que é essencial para a existência da cultura tecnológica, mas também como um elemento que atravessa as tecnologias. Este elemento químico (Li) é essencial para baterias de laptops, bem como para futuras tecnologias verdes (novamente, tecnologia de baterias, mas para carros híbridos) (PARIKKA, 2015PARIKKA, J. Materiality grounds of media and culture. In: ______. A geology of media. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2015. p. 1-28., p. 4-5, tradução nossa).

Embora recue aos aspectos geofísicos das materialidades das mídias, é interessante reter da concepção de Parikka o fato de que os elementos químicos corresponderiam ao aspecto ainda pré-midiático das mídias, ou seja, à sua fisicalidade bruta. Não se trata de retroceder até as partículas atômicas como se fossem o aspecto irredutível da matéria, mas de observar o que realmente importa, que são as relações. Por si só, são apenas elementos químicos; no entanto, quando combinados a outros, quando relacionados a outros, criam-se formas e mídias. As relações desterritorializam-se e reterritorializam-se em outras formas.

Esse movimento de reterritorialização nada tem a ver com a remediação de Bolter e Grusin, visto que estes a entendem como a representação de uma mídia em outra. E o mimetismo se funda numa lógica binária de essência e aparência, de cópia e decalque. Para Deleuze e Guattari, não se trata de imitação, mas de captura de código: “não há imitação nem semelhança, mas explosão de duas séries heterogêneas na linha de fuga composta de um rizoma comum que não pode mais ser atribuído, nem submetido ao que quer que seja de significante” (1995, p. 19). O que caracteriza o rizoma é o fato de ele ter múltiplas entradas; difere assim do mimetismo, cujo princípio é o retorno a si mesmo, à origem. Um rizoma “não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda” (DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Introdução: Rizoma. In: ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995. p. 11-37., p. 32). Ele pode ser visto em qualquer posição, posto em relação com qualquer outro. O mesmo pode ser dito a propósito das relações que compõem uma mídia. As relações não se cruzam porque há uma causa primeira que as impele; estão sempre no meio, constituem o meio, o campo movediço onde se dá tal encontro formando uma dada mídia. Nas palavras de Deleuze e Guattari (1995, p. 37),

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção ”e... e... e...”. Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. [...] Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio.

Ele parte do meio, entra e sai do meio, não começa nem termina. Quanto a esse aspecto relacional na composição das mídias, que nada mais seriam então do que campos não topológicos nos quais tais relações se cruzam, o presente artigo se apoia, não sem reservas, tanto na definição mcluhaniana de que o conteúdo de uma mídia é outra mídia quanto na de Bolter e Grusin, que a descrevem como aquilo que estabelece mediações com outras mídias. A diferença entre essa concepção e as dos autores consiste no fato de que as relações são exteriores aos termos, ou melhor, não há uma substância originária em presença. As relações referem-se sempre às relações, apesar de se darem a ver quando se cruzam, quando se atualizam num campo de relações, quando se fazem mídias.

Uma mídia é uma mídia é uma mídia é uma mídia...

A questão que se impõe é: qual é o lugar da intermidialidade numa teoria que define de antemão as mídias como relacionais? Segundo a hipótese sustentada, a intermidialidade seria um pleonasmo, porquanto é próprio das mídias se inter-relacionarem, interagirem entre si. Para os que defendem que as mídias têm uma essência que permite distingui-las umas das outras, a intermidialidade se afigura a priori uma impossibilidade, visto que, se cada mídia tem um estatuto ontológico e se baseia numa materialidade específica (fundada na presença), a intermidialidade só pode acontecer como representação ou mera citação, nunca se fundindo completamente. A materialidade tornar-se-ia uma barreira à intermidialidade, conforme assinalam Hernán Ulm e Adalberto Müller (2015)ULM, H.; MÜLLER, A. A fenda incomensurável: literatura, cinema. Terra Roxa e outras terras, Londrina, v. 29, p. 30-39, dez. 2015. ao falarem sobre uma fenda incomensurável>1 1 “[...] há uma fenda, incomensurável, entre as palavras e as imagens. Há alguma coisa entre elas que não se deixa medir, e que, portanto, as afasta irremediavelmente. Há uma desmesura que vai de umas para as outras e retorna como o silêncio do que não pode ser dito, como a cegueira do que não pode ser visto. As palavras faltam, e ficamos mudos diante das páginas do livro que se fecha. As imagens não conseguem nos mostrar o que procuramos e ficamos no escuro da sala sem nada para ver diante da tela vazia [...]. Não há sentido, senão aquele que nasce da materialidade (da mídia, do meio). Por isso, não há hierarquia, nem subordinação dos princípios de uma prática sobre os princípios da outra. Desse modo, a literatura e o cinema são materialidades que produzem modulações do tempo que não podem “se adaptar”; e, portanto, é estéril toda comparação valorativa entre elas. Mais do que de uma adaptação, trata-se de pensar o que numa resiste à outra” (ULM; MÜLLER, 2015, p. 30-31). entre literatura e cinema, bem como Pascal Lefèvre (2012)LEFÈVRE, P. Ontologias visuais incompatíveis?: A adaptação problemática de imagens desenhadas. In: DINIZ, T. F. N; VIEIRA, A. S. (org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. v. 2. Belo Horizonte: Rona Editora; Fale/UFMG, 2012. p. 189-207., ao se referir a ontologias incompatíveis. Contudo, assumindo-se uma nova concepção de materialidade — não mais fundada na presença, mas na relação —, a questão das fronteiras midiáticas cai por terra.

Antes de avançar sobre a problemática questão das fronteiras midiáticas, é preciso definir o que é a intermidialidade. Apesar de pequenas divergências, o conceito de intermidialidade diz respeito, grosso modo, à interação entre duas ou mais mídias. É um campo vasto — weites feld (WOLF, 1999WOLF, W. The musicalization of fiction: a study in the theory and history of intermediality. Amsterdam: Rodopi, 1999.) —, um termo guarda-chuva (MÜLLER, 2012MÜLLER, J. E. Intermidialidade revisitada: algumas reflexões sobre os princípios básicos desse conceito. In: DINIZ, T. F. N.; VIEIRA, A. S. (org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. v. 2. Belo Horizonte: Rona Editora; Fale/UFMG, 2012. p. 75-95.), que abarca as mais diversas formas de interação midiática: transposição midiática, combinação midiática ou referência midiática (RAJEWSKY, 2012RAJEWSKY, I. O. A fronteira em discussão: o status problemático das fronteiras midiáticas no debate contemporâneo sobre intermidialidade. In: DINIZ, T. F. N.; VIEIRA, A. S. (org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. v. 2. Belo Horizonte: Rona Editora; Fale/UFMG, 2012. p. 51-73.); abarca também as mais diversas disciplinas: antropologia, comunicação, semiótica, sociologia, estudos literários, entre outras. Claus Clüver (2011, p. 9)CLÜVER, Claus. Intermidialidade. Pós – Revista de pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes da UFMG, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, p. 8-23, nov. 2011. assevera que “como conceito, ‘intermidialidade’ implica todos os tipos de interrelação e interação entre mídias; uma metáfora frequentemente aplicada a esses processos fala de ‘cruzar as fronteiras’ que separam as mídias”. Werner Wolf (1999)WOLF, W. The musicalization of fiction: a study in the theory and history of intermediality. Amsterdam: Rodopi, 1999., Lars Elleström (2017)ELLESTRÖM, L. Midialidade: ensaios sobre comunicação, semiótica e intermidialidade. Trad. Vários tradutores. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2017. e Jürgen E. Müller (2012)MÜLLER, J. E. Intermidialidade revisitada: algumas reflexões sobre os princípios básicos desse conceito. In: DINIZ, T. F. N.; VIEIRA, A. S. (org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. v. 2. Belo Horizonte: Rona Editora; Fale/UFMG, 2012. p. 75-95. compartilham, em certa medida dessa definição, o que leva Irina Rajewsky (2012, p. 52) a afirmar que “parece existir um (certo) consenso, entre os estudiosos, com relação à definição de intermidialidade em sentido amplo. Em termos gerais, e de acordo com o senso comum, ‘intermidialidade’ refere-se às relações entre mídias, às interações e interferências de cunho midiático”. Esse cruzamento de fronteiras midiáticas está contido no prefixo da palavra intermidialidade, inter, que sugere a ligação de um ponto a outro. Enquanto Müller (2012, p. 83)MÜLLER, J. E. Intermidialidade revisitada: algumas reflexões sobre os princípios básicos desse conceito. In: DINIZ, T. F. N.; VIEIRA, A. S. (org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. v. 2. Belo Horizonte: Rona Editora; Fale/UFMG, 2012. p. 75-95. atenta-se ao fato de que a etimologia do termo sugere um entre-lugar, Elleström (2017, p. 51)ELLESTRÖM, L. Midialidade: ensaios sobre comunicação, semiótica e intermidialidade. Trad. Vários tradutores. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2017. adverte sobre o caráter delicado de tal entre-lugar: “o ponto crucial do ‘inter’ em intermidialidade é uma ponte, mas sobre o quê?”. Afinal, se as mídias são intrinsecamente diferentes, não é possível que haja inter-relações; do contrário, se são intrinsecamente semelhantes, é difícil encontrar qualquer coisa que já não seja inter-relacionada — tal como supõe W. J. T. Mitchell (1994, p. 95, tradução nossa)MITCHELL, W. J. T. Beyond comparison: Picture, text, and method. In: ______. Picture theory. Chicago; London: The University of Chicago Press, 1994. p. 83-107., quando afirma que “todas as mídias são mídias mistas, combinando códigos diferentes, convenções discursivas, canais e modos cognitivos e sensoriais”.

Segundo Müller (2012, p. 82)MÜLLER, J. E. Intermidialidade revisitada: algumas reflexões sobre os princípios básicos desse conceito. In: DINIZ, T. F. N.; VIEIRA, A. S. (org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. v. 2. Belo Horizonte: Rona Editora; Fale/UFMG, 2012. p. 75-95., “nenhuma mídia pode ser considerada uma ‘mônada’”, pois, se assim fosse, não apenas incorreria na impossibilidade de inter-relação, mas também na pressuposição de uma pureza originária. Derivaria, além disso, uma demarcação precisa e normativa acerca das fronteiras midiáticas. Assim é que, para Rajewsky (2012, p. 54)RAJEWSKY, I. O. A fronteira em discussão: o status problemático das fronteiras midiáticas no debate contemporâneo sobre intermidialidade. In: DINIZ, T. F. N.; VIEIRA, A. S. (org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. v. 2. Belo Horizonte: Rona Editora; Fale/UFMG, 2012. p. 51-73., “o conceito de intermidialidade configura-se problemático na medida em que ‘pressupõe ser possível distinguir com clareza entre as diferentes mídias em jogo’”. O fato é que, conforme uma perspectiva relacional da materialidade, corrobora-se a premissa de Mitchell sobre a impossibilidade de mídias puras. Para Rajewsky (2012)RAJEWSKY, I. O. A fronteira em discussão: o status problemático das fronteiras midiáticas no debate contemporâneo sobre intermidialidade. In: DINIZ, T. F. N.; VIEIRA, A. S. (org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. v. 2. Belo Horizonte: Rona Editora; Fale/UFMG, 2012. p. 51-73., as fronteiras midiáticas são determinadas pela convenção, quer dizer, são sujeitas às transformações históricas e apresentam fluidez; logo, as características que descrevem o teatro ou a literatura, por exemplo, são resultado de uma contingência histórica. A literatura, de Homero à poesia digital, passando pelo trovadorismo, pelo romantismo e pelo modernismo, pouco tem de características comuns, a começar pelo suporte de inscrição. E, no entanto, o texto recitativo de Homero recebe o mesmo estatuto de literatura que os textos impressos de Mallarmé. Se o cinetoscópio de Thomas Edison predominasse sobre o cinematógrafo dos Irmãos Lumière, ainda assim o cinema seria cinema. Não importa, portanto, a materialidade física do suporte.

Todavia, Rajewsky (2012, p. 62)RAJEWSKY, I. O. A fronteira em discussão: o status problemático das fronteiras midiáticas no debate contemporâneo sobre intermidialidade. In: DINIZ, T. F. N.; VIEIRA, A. S. (org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. v. 2. Belo Horizonte: Rona Editora; Fale/UFMG, 2012. p. 51-73. afirma que, nas interações intermidiáticas, “apenas uma mídia convencionalmente distinta vai se revelar em toda sua especificidade física e midiática”. Isso porque, embora determinadas pela convenção, dependem da possibilidade de o receptor separar os modelos midiáticos que lhe vêm à mente. Ainda de acordo com Rajewsky (2012, p. 68)RAJEWSKY, I. O. A fronteira em discussão: o status problemático das fronteiras midiáticas no debate contemporâneo sobre intermidialidade. In: DINIZ, T. F. N.; VIEIRA, A. S. (org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. v. 2. Belo Horizonte: Rona Editora; Fale/UFMG, 2012. p. 51-73., devido às condições materiais, trata-se de “uma diferença midiática que não se pode apagar”, porquanto, “em que pese a construtividade e a convencionalidade das concepções precedentes, essas restrições midiáticas básicas não podem ser abolidas”. Na mesma esteira de Rajewsky, Elleström (2017, p. 229, 230)RAJEWSKY, I. O. A fronteira em discussão: o status problemático das fronteiras midiáticas no debate contemporâneo sobre intermidialidade. In: DINIZ, T. F. N.; VIEIRA, A. S. (org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. v. 2. Belo Horizonte: Rona Editora; Fale/UFMG, 2012. p. 51-73. declara que “a transferência não ocorre sem deixar traços”, porquanto tal transferência implica “manter algo, desfazer-se de algo e adicionar algo novo”. Afinal, continua Elleström (2017, p. 60)ELLESTRÖM, L. Midialidade: ensaios sobre comunicação, semiótica e intermidialidade. Trad. Vários tradutores. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2017., os “dados sensoriais [de uma mídia] permanecem os mesmos”, eles são estáticos.

Um problema aqui se coloca: se, por um lado, trata-se tão somente de mídias convencionalmente distintas, isso significa que nada há de intrínseco que as possa definir: o construtivismo sócio-histórico das convenções consiste justamente no contrário da suposta ontologia imutável de uma mídia específica; por outro lado, se a materialidade é uma restrição que não pode ser apagada, negligencia-se o fato de que uma contingência histórica determina que sejam estes e não outros materiais que constituem uma dada mídia, como é o caso do cinema. A fim de resolver esse problema, Elleström (2017, p. 85-86)ELLESTRÖM, L. Midialidade: ensaios sobre comunicação, semiótica e intermidialidade. Trad. Vários tradutores. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2017. propõe uma solução ainda mais temerária: “uma mídia técnica pode, portanto, ser descrita como uma ‘forma’ realizadora, enquanto as mídias básicas e qualificadas são ‘conteúdo’ latente” — ressalta-se que, para o autor, as mídias básicas/qualificadas seriam o cinema, a literatura, a música e a televisão, as quais, antes de sua efetivação num suporte físico (mídia técnica), existiriam somente como idealidades. Em razão dessa dicotomia entre forma e matéria, a relação entre as duas instâncias midiáticas (concreta e ideal) acaba por se tornar totalmente arbitrária, isto é, não há nenhuma razão para que uma se realize na outra. Ou seja, se uma mídia distinta existe apenas como idealidade, a materialidade técnica não constitui o seu atributo intrínseco; logo, não haveria de ser uma restrição às práticas intermidiáticas.

Ao contrário de Elleström (2017, p. 51)ELLESTRÖM, L. Midialidade: ensaios sobre comunicação, semiótica e intermidialidade. Trad. Vários tradutores. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2017., que sugere que “a intermidialidade deve ser compreendida como uma ponte entre diferenças midiáticas cujas bases são semelhanças midiáticas”, e que essas semelhanças compartilhadas se apoiam em quatro modalidades que constituem a base transmidial — material, sensorial, espaçotemporal e semiótica —, sendo básicas e universais, sustenta-se que: 1) o conceito de intermidialidade é tautológico, pois todas as mídias são intermidiáticas; 2) as diferenças e semelhanças midiáticas se baseiam apenas nos modos de atualização das relações, e as relações são compartilhadas por todas as mídias enquanto virtualidades; e 3) tendo em vista esse aspecto relacional a-histórico das mídias, não faz mais sentido falar de novas mídias e velhas. No “À propôs du CRI”, do site do Centre de Recherche sur l’Intermédialité (2022, n.p.)CENTRE DE RECHERCHE SUR L’INTERMÉDIALITÉ. À propos du CRI. Disponível em: <http://cri.histart.umontreal.ca/cri/fr/vitrine/recherches_champ_principal.asp>. Acesso em: 18 jan. 2022.
http://cri.histart.umontreal.ca/cri/fr/v...
, diz-se que, para os estudos intermidiáticos, é necessário um novo arcabouço conceitual, isto é, uma “passagem de uma lógica do ser para uma lógica da relação”. Esse é justamente um dos leitmotifs deste artigo, uma vez que a materialidade é pensada não mais dentro de uma lógica do ser (ontologia), enraizada na metafísica da presença, mas sim dentro de uma lógica da relação. Desse modo, não se trata simplesmente de dizer que as relações são virtuais e as mídias, atuais, tampouco de repetir o gesto de Elleström, que funda um esquema dicotômico entre mídia ideal e mídia concreta, porquanto o virtual não se opõe ao real.

Em Diferença e repetição (2000, p. 342), Deleuze diz: “o virtual não se opõe ao real, mas apenas ao atual. O virtual possui uma plena realidade como virtual”. Por ter uma realidade, o virtual não tem uma existência indeterminada: ele não é um fundamento do qual emergem as formas atuais, não é o caos de onde surge uma ordem atual; ao contrário, “o virtual é completamente determinado” (DELEUZE, 2000______. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Lisboa: Relógio d’Água, 2000., p. 342). Não se deve também confundir o virtual com o possível, pois este opõe-se ao real, quer dizer, o seu processo é o de uma realização; já o virtual tem uma realidade, e seu processo é a atualização. Assim, talvez não seja o mais adequado pensar o virtual em oposição ao atual, pois, em vez de uma dualidade, o que há é apenas uma diferença de estado: o atual já está contido no virtual, ambos estão imbricados. Conforme assinala Éric Alliez (1996, p. 14)ALLIEZ, É. Deleuze: filosofia virtual. Trad. Heloisa b. S. Rocha. São Paulo: Ed. 34, 1996., há uma “troca perpétua entre o virtual e o atual”. A passagem do virtual para o atual não é uma mudança permanente de estado; o atual é um instante efêmero que continua a produzir linhas de fuga, desterritorializações, virtualidades.

O atual corresponde, de certa forma, à individuação, formando um corpo, um organismo, que nada mais é do que “um conjunto de termos e correlações reais (dimensão, posição, número) que atualiza, neste ou naquele grau de desenvolvimento, as relações entre elementos diferenciais” (DELEUZE, 2000______. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Lisboa: Relógio d’Água, 2000., p. 308). É do encontro de relações, de virtualidades, que o atual se dá a ver. Ressalta-se que não se trata meramente de pensar as relações antecedendo os termos, e a multiplicidade, a singularidade – se assim fosse, conservar-se-ia a noção de um fundamento originário, por mais que se hesite em chamá-lo de ser. Ao contrário, a ideia de multiplicidade e de relações pressupõe uma simultaneidade, que, atualizada, se constitui por um agrupamento atual de relações. Se a forma atual fosse definitiva, não seria possível também o trânsito com outras relações e, consequentemente, a criação de outros campos relacionais.

Rajewsky (2012, p. 56)RAJEWSKY, I. O. A fronteira em discussão: o status problemático das fronteiras midiáticas no debate contemporâneo sobre intermidialidade. In: DINIZ, T. F. N.; VIEIRA, A. S. (org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. v. 2. Belo Horizonte: Rona Editora; Fale/UFMG, 2012. p. 51-73. afirma que “nunca encontramos a ‘mídia’ enquanto tal, por exemplo, filme como mídia ou escrita como mídia, mas apenas filmes específicos de cunho individual, textos individuais e assim por diante”. Pode-se pensar tal afirmação da seguinte maneira: existem apenas atualizações, campos de relações, mas nunca a mídia em si. Só há filmes e textos específicos porque, por mais que as relações se atualizem repetidas vezes de modo parecido, cada filme e cada texto é um campo de relações único; afinal, se as relações se atualizassem sempre da mesma forma, haveria sempre o mesmo filme, o mesmo texto, a mesma música, e assim por diante. O que permite falar em filme ou literatura como campo de relações (ou mídia) em sentido lato é o fato de que essas relações, por vezes, se atualizam com poucas variações — daí é que surgem as convenções generalizadoras. A materialidade do cinema, por exemplo, não está em um elemento específico (tela, sala escura, projetor, película, história narrada, enquadramentos etc.), mas sim em sua combinação, no cruzamento dessas relações. Uma mídia específica — o campo de relações que se chama de mídia — é uma multiplicidade infinita. Ela compõe-se de infinitas relações e, ao mesmo tempo, devido à desterritorialização dessas relações, afeta outras mídias, num movimento permanente.

A mídia é um meio não porque faz a mediação entre sentido e suporte de inscrição, mas porque essas relações não têm uma origem simples, uma finalidade clara, estão sempre in media res, num entre-lugar, entre outros campos de relações. Quando ocorre o cruzamento, suporte e sentido são um único e mesmo movimento, uma mesma relação entre outras múltiplas relações que compõem um campo específico. Não há uma presença imediata, física e real da mídia enquanto tal; a materialidade de uma mídia invoca infinitas relações — presentes, passadas e futuras — simultaneamente. Assim, considerando que a materialidade é relacional, as diferenças e semelhanças entre literatura e cinema, por exemplo, derivam de quais relações são atualizadas: uma diferença quantitativa, não de natureza ontológica.

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    “[...] há uma fenda, incomensurável, entre as palavras e as imagens. Há alguma coisa entre elas que não se deixa medir, e que, portanto, as afasta irremediavelmente. Há uma desmesura que vai de umas para as outras e retorna como o silêncio do que não pode ser dito, como a cegueira do que não pode ser visto. As palavras faltam, e ficamos mudos diante das páginas do livro que se fecha. As imagens não conseguem nos mostrar o que procuramos e ficamos no escuro da sala sem nada para ver diante da tela vazia [...]. Não há sentido, senão aquele que nasce da materialidade (da mídia, do meio). Por isso, não há hierarquia, nem subordinação dos princípios de uma prática sobre os princípios da outra. Desse modo, a literatura e o cinema são materialidades que produzem modulações do tempo que não podem “se adaptar”; e, portanto, é estéril toda comparação valorativa entre elas. Mais do que de uma adaptação, trata-se de pensar o que numa resiste à outra” (ULM; MÜLLER, 2015ULM, H.; MÜLLER, A. A fenda incomensurável: literatura, cinema. Terra Roxa e outras terras, Londrina, v. 29, p. 30-39, dez. 2015., p. 30-31).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2022
  • Aceito
    01 Nov 2022
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