Open-access Os ricos não veem TV: perspectivas dos coaches brasileiros sobre a relação entre televisão, sucesso e desenvolvimento pessoal

Rich people don’t watch TV: perspectives from Brazilian coaches on the relationship between television, success, and personal development

RESUMO

Este estudo analisa os discursos de coaches brasileiros em vídeos do YouTube sobre o hábito de assistir à TV. Utilizando a análise do discurso de inspiração foucaultiana (2009), examinamos como esse consumo é retratado como prejudicial, ligado à má gestão do tempo e visto como um obstáculo ao desenvolvimento pessoal. Exploramos os discursos que individualizam os impactos mentais da TV no contexto da cultura terapêutica promovida por esses indivíduos. Identificamos duas categorias principais: TV e vibração e TV e riqueza, que revelam as interconexões entre a cultura de aconselhamento e os discursos que desacreditam a TV, apresentando-a como uma prática cultural inferior, que reforça distinções de classe. Por fim, apontamos as problemáticas da responsabilização individual em atos corriqueiros como o hábito de assistir à televisão, que obscurece os fatores estruturais e sistêmicos que influenciam as trajetórias sociais e econômicas dos sujeitos.

PALAVRAS-CHAVE
coaches ; televisão; qualidade; consumo; sucesso

ABSTRACT

This study examines the discourses of Brazilian coaches in YouTube videos regarding the habit of watching TV. Drawing upon Foucauldian-inspired discourse analysis (2009), we scrutinize how this consumption is depicted as detrimental, linked to poor time management, and perceived as a hindrance to personal development. We delve into discourses that individualize the mental impacts of TV within the context of the therapeutic culture promoted by these individuals. We identify two main categories: TV and vibration and TV and wealth, which unveil the interconnections between the counseling culture and discourses discrediting TV, presenting it as an inferior cultural practice that reinforces class distinctions. Finally, we highlight the problematic aspects of individual accountability in everyday acts such as the habit of television viewing, which obscures the structural and systemic factors influencing the social and economic trajectories of individuals.

KEYWORDS
coaches; television; quality; consumption; success

Introdução

Ao longo de sua história, a televisão foi estigmatizada como uma mazela da sociedade, um bode expiatório responsável por diversas disfunções sociais. Esse processo resultou em uma predominância de trabalhos que enfatizavam suas características negativas e os supostos perigos do seu consumo diário (Mander, 1978). As desconfianças direcionadas às produções televisivas, especialmente aquelas provenientes da TV aberta, eram frequentemente associadas a um produto de qualidade inferior, devido à sua popularidade e massificação. O surgimento dos canais pagos serviu para reforçar essa visão, e muitos deles buscavam se associar a uma ideia de “não televisão” (Newman, 2016). Essa estratégia aparece agora com uma nova roupagem, reiterada pelas plataformas de streaming (Castellano e Meimaridis, 2021). Em última análise, essa associação busca estabelecer hierarquias culturais, na tentativa de legitimar um suposto “bom gosto” exclusivo de uma elite que se distanciou do gosto popular, considerado pejorativamente como ignorante (Bourdieu, 2007), ao passo que a televisão é caracterizada de forma depreciativa como um “objeto ruim” (Hilmes, 2005).

Contudo, os argumentos veiculados na mídia especializada em relação ao hábito de assistir à TV como algo prejudicial são marcados por uma variedade de estigmas de qualidade e estão associados a explicações sobre seus potenciais danos à saúde física e mental. Essa ênfase na relação entre o consumo de televisão e problemas como obesidade, sedentarismo, demência, fracasso, depressão e ansiedade contribui para reforçar socialmente essa percepção negativa sobre o meio. Tais argumentos são disseminados em diversos formatos midiáticos, como reportagens em jornais, vídeos e, mais recentemente, em publicações nas mídias sociais.

Neste artigo, analisaremos uma materialização específica desse discurso: vídeos do universo da cultura terapêutica, manifestada na lógica do aconselhamento e da autoajuda (Rüdiger, 1996; Furedi, 2004; Castellano, 2018; Illouz, 2011), nos quais o hábito de assistir à TV é frequentemente retratado como uma perda de tempo, um indicativo de fracasso ou uma ausência de desenvolvimento pessoal/profissional. Essa associação é fundamentada na significativa busca contemporânea por aprimorar constantemente as performances individuais (Ehrenberg, 2010; Trento e Holtz, 2017). Tal perspectiva é influenciada pela governabilidade neoliberal que permeia a sociedade, na qual as subjetividades são moldadas sob essa lógica (Foucault, 2008; Dardot e Laval, 2016).

A metodologia empregada neste estudo é uma síntese entre uma revisão bibliográfica e uma abordagem de análise do discurso de inspiração foucaultiana (2009)1. A seleção2 dos oito vídeos de coaches brasileiros no YouTube foi conduzida com base em critérios específicos, considerando especialmente o conteúdo relacionado diretamente ao hábito de assistir televisão. A análise teve como objetivo identificar os enunciados, as formações discursivas e as relações de poder inerentes às falas dos coaches. Essa abordagem possibilitou uma compreensão profunda dos discursos que sustentam a percepção negativa do consumo televisivo proposta por esses sujeitos, assim como a identificação das estratégias enunciativas empregadas para legitimar seus argumentos e que estão profundamente conectadas à lógica da cultura terapêutica (Foucault, 2009; Illouz, 2011).

No processo de análise do material, identificamos uma forte associação entre o hábito de assistir à programação da TV aberta e o gerenciamento do tempo, a influência negativa do telejornalismo e das telenovelas e o impacto prejudicial no desenvolvimento pessoal. Com base nesses resultados, classificamos as abordagens em duas categorias distintas: TV e vibração e TV e riqueza. Embora apresentem diferentes perspectivas e façam uso de linguagens distintas, os vídeos analisados reforçam uma visão comum: o ato de assistir à TV aberta é uma perda de tempo.

Para uma apresentação mais clara do nosso argumento, o artigo está dividido em duas seções. Inicialmente, discutimos as principais críticas direcionadas à televisão e à experiência proporcionada por ela na história do meio. Em seguida, verificamos as relações entre a cultura do aconselhamento, da autoajuda, e os discursos sobre a TV como um problema. Essa seção é dividida em duas partes. Na primeira, abordamos a negatividade, a força do pensamento e a experiência televisiva e, na segunda, exploramos a questão da distinção baseada em classe social, a fim de elucidar como os discursos dos coaches sobre a televisão estabelecem uma relação direta entre sucesso e ausência de TV no regime de consumo cultural, definindo essa mídia como entrave para o enriquecimento com base no leitmotiv “os ricos não veem TV”.

Os discursos sobre os males da televisão

Ainda hoje, é comum ouvirmos relatos de pais preocupados sobre os potenciais perigos associados ao consumo excessivo de televisão e à extensa exposição de seus filhos à tela do aparelho televisivo. Todas essas críticas enquadram a TV sob uma perspectiva negativa, moldada por um arcabouço acadêmico que remonta aos textos apocalípticos da década de 1950. Entre as abordagens adotadas, destacam-se a concepção de uma experiência esvaziada proporcionada pelo meio televisivo (Adorno, 1954), seu poderoso poder de influência (Mander, 1978), especialmente no público infantil (Winn, 1977), a associação ao sedentarismo, a exposição a conteúdos violentos e sua própria natureza tecnológica (Cavell, 1982).

A despeito dessa construção negativa, a televisão não emergiu na sociedade como um elemento considerado intrinsecamente prejudicial, tampouco foi inicialmente percebida como uma mídia de qualidade inferior. Tais discursos foram construídos ao longo das primeiras décadas de existência desse meio. De forma paradoxal, no contexto de seu surgimento, a TV foi recebida com certo entusiasmo, com autores impulsionados por uma visão pedagógica, que enxergavam seu potencial de difundir produtos de alta cultura para as massas (Freire Filho, 2003). Contudo, esse período de lua de mel logo se esgotou, à medida que pesquisadores de áreas como comunicação, sociologia, psicologia e ciência política contribuíram para a crítica sistemática desse já nem tão novo meio. Em 1979, Boyle já registrava a existência de mais de 6 000 livros sobre o tema, a maioria dos quais enfatizava seus efeitos prejudiciais, especialmente sobre as crianças, além de censurarem a suposta falta de qualidade de seu conteúdo (1979, p. 681). Outros, defensores do cinema como forma de arte, condenavam os atributos artísticos – ou a falta deles – nos produtos televisivos.

Dessa maneira, difundiu-se entre as esferas culturais e políticas das nações ocidentais a percepção de que a TV seria um “objeto ruim” (Hilmes, 2005). Grande parte das críticas direcionadas ao meio televisivo foi influenciada pelo pensamento advindo da Escola de Frankfurt, que adota uma perspectiva crítica em relação à cultura de massa. Segundo Adorno e Horkheimer (1997 [1947]), a televisão representaria um perigo, uma vez que adentraria o espaço doméstico de inúmeras famílias, difundindo as ideologias das classes dominantes e fortalecendo o sistema capitalista perante uma audiência massiva. Além disso, esses autores, que atuavam na Alemanha justamente no contexto histórico de ascensão do nazismo, temiam o poder que esses mesmos meios poderiam ter na difusão de ideologias perigosas.

Paralelamente, teóricos também direcionaram críticas à televisão sob uma perspectiva tecnológica. Argumentava-se que a TV possuía uma qualidade “viciante” (Cavell, 1982), capaz de envolver os espectadores em um estado de “transe hipnótico” que, paradoxalmente, promovia a passividade, mas também podia incitar comportamentos violentos e agressivos.

As críticas dirigidas à TV não se restringem ao seu conteúdo, mas também abrangem a própria natureza da experiência televisiva. Marie Winn (1977) expõe os efeitos prejudiciais da televisão na vida familiar, na infância e, principalmente, no desenvolvimento educacional e cognitivo das crianças. Partindo do pressuposto de que a TV tornaria seu público mais passivo, Winn argumenta que o meio carece de quaisquer qualidades redentoras, a partir de uma “nostalgia sentimental”, que revela um anseio pelo retorno a uma suposta “era pré-televisiva”, na qual Mittell, ironicamente, supõe que “as famílias estavam felizes, as crianças liam e brincavam pacificamente, e as comunidades eram muito unidas e livres do crime” (2000, p. 216, tradução nossa).

A TV também teve sua natureza artística criticada, principalmente por teóricos pautados pela dicotomia que separa a arte da mercadoria. A teoria crítica argumentava que as produções televisivas comprometiam a experiência estética ao oferecer um encontro passivo, cooptado pela ideologia dominante. Essa visão negativa da televisão como meio massivo e repetitivo permitiu que a TV fosse considerada inferior às outras formas já legitimadas de arte, como o cinema e a literatura. Essa construção da TV como um meio menor também se deve à associação entre a massa e a mulher. Petro indica que enquanto as discussões sobre a arte tendem a ser acompanhadas por “metáforas de gênero que acionam valores ‘masculinos’ de produção, atividade e atenção”, o debate sobre a cultura de massa aparece ligado a valores “‘femininos’ de consumo, passividade e distração” (1986, p. 6, tradução nossa).

A partir da década de 1990, observou-se uma reversão gradual da tendência de menosprezar a televisão como forma artística, impulsionada pela valorização de determinadas produções graças à sua qualidade estética e narrativa. Nos Estados Unidos, esse movimento de reconhecimento resultou no surgimento de paradigmas como o da Quality TV (Thompson, 1997), que buscava identificar as características inovadoras de obras em relação à programação televisiva tradicional. Frequentemente, tais obras eram avaliadas com base em sua suposta aproximação com a estética cinematográfica. Já no Brasil, Machado (2000) ilustra esse movimento em sua proposta de levar a TV “a sério”, apontando produtos merecedores de atenção crítica e acadêmica. Esse movimento foi impulsionado pelo advento e difusão dos canais de TV paga, que reivindicavam para si o prestígio do meio, enfatizando a superioridade de suas produções em relação à TV aberta.

Para Newman, os produtos da TV paga estadunidense são direcionados a um público que não era associado tradicionalmente à televisão. Newman define esse público como “mais masculino, adulto e sofisticado, em comparação com aqueles associados com a televisão comum, concebida como cultura de massa feminizada, endereçada ao menor denominador comum” (2016, p. 3, tradução nossa). Para Meimaridis (2023), ao reforçar esse discurso, perpetua-se a concepção equivocada de que a TV se tornou “melhor” à medida que conquistou um público considerado mais masculino e exigente, enquanto a televisão “feminina” continua sendo menosprezada.

Ao examinarmos o processo de estigmatização da televisão, concluímos que essa construção vai além do seu conteúdo, estética ou forma tecnológica, abrangendo também as disputas presentes em campos simbólicos, como os estudos de gênero e classe. Evidencia-se que a televisão considerada comum é associada a um público de classe mais baixa e a grupos sociais subordinados, como mulheres e crianças, enquanto as hierarquias culturais são frequentemente empregadas para valorizar certas formas e experiências televisivas, principalmente aquelas associadas ao gênero masculino e/ou aos gostos das elites (Levine, 2007). Tal constatação ressalta a existência de desigualdades e preconceitos arraigados que permeiam as percepções sobre a TV e sua recepção, revelando a complexidade dos fatores que contribuem para essa dinâmica de desvalorização e valorização seletiva.

O consumo televisivo na cultura do aconselhamento

A construção da televisão como um objeto ruim acompanhou a história desse meio desde o início de sua popularização. O foco, como vimos, esteve sempre atrelado a questões sociais mais amplas, que mobilizavam a sociedade como um todo. A TV, nesse sentido, significava, para o mundo da arte, a principal representante da cultura de massa à época, o indício de uma derrocada social, um sinal dos tempos. Ou seja, no domínio do campo artístico, ela se aproximaria da arte legítima apenas para rebaixá-la, e, por outro lado, traria para a tela pequena elementos da cultura popular, mas acabando por pasteurizá-los e transformá-los em algo destituído de sentido e valor. Irredimível, a televisão era enquadrada com base em um discurso sobre perda.

Do ponto de vista individual, o enunciado sobre o mal que a TV representava muitas vezes aparecia associado à saúde física dos espectadores. Para além do supracitado transe hipnótico, a TV também foi acusada de causar problemas oftalmológicos, circulatórios, de obesidade, entre outros. Todavia, aqui nos concentramos nos discursos que individualizam os males “mentais” causados pela televisão, observando, para isso, os discursos proferidos sobre o tema no âmbito da cultura terapêutica por meio da atuação de coaches no YouTube.

Em linhas gerais, definimos a cultura terapêutica como um quadro social que começou a se estabelecer a partir de meados do século XX, quando percebemos a disseminação de um imaginário que coloca a emoção e a subjetividade como elementos primordiais à compreensão de questões relativas a todos os aspectos da vida humana. De acordo com Frank Furedi (2004), um dos principais sintomas dessa fase pode ser medido pelo uso cada vez mais corrente do vocabulário terapêutico, que deixa de se referir apenas a problemas atípicos para se tornar corriqueiro em situações cotidianas. O uso de expressões como estresse, ansiedade, vício, compulsão, trauma, assim como a tendência ao autodiagnóstico de doenças mentais passam a fazer parte do imaginário compartilhado e revelam não apenas uma mudança idiomática, mas o surgimento de novas atitudes e expectativas culturais (Castellano, 2018).

Se no âmbito social mais amplo a influência da cultura terapêutica pode ser percebida na ênfase dada às explicações oriundas do campo das ciências psi para uma série de questões coletivas, na área da comunicação, um dos sintomas mais evidentes do alastramento dessa nova sensibilidade cultural é a profusão de aconselhadores sobre diferentes temas, que tem na difusão da autoajuda sua principal materialização. No mercado editorial, esse gênero é responsável por grande parte dos atuais best-sellers e, na mídia, podemos verificar um processo que Zygmunt Bauman, já em 1998, traduziu como o de um “surto do aconselhamento” (p. 222). Ou seja, a presença constante de experts (normalmente autoproclamados) dos mais variados tipos em programas de TV, de rádio e em colunas específicas de jornais e revistas que incorporam, com peculiares adaptações, o tipo de linguagem propalada pelos livros e que reproduzia os pressupostos da cultura terapêutica (Castellano, 2018).

Recentemente, a força das plataformas digitais, sobretudo de compartilhamento de vídeos como o YouTube, o Instagram e o TikTok, criou mais um espaço importante para a presença de especialistas em absolutamente tudo, muitos deles atuando, agora, sob o título de coach. Nesses espaços, esses sujeitos conseguem arregimentar em torno de si comunidades de seguidores que encontram em seus conselhos, dicas e reflexões uma espécie de guia de comportamento, o que é importante, sobretudo, em uma sociedade marcada pela pluralidade de possibilidades e escolhas, em todos os âmbitos da vida. Embora alguns atuem em nichos específicos, como saúde, relacionamentos, finanças, mundo corporativo etc., outros se apresentam de forma mais generalista, como aqueles que podem fornecer o caminho do sucesso ou da vida feliz. Partindo da premissa que a atual proliferação dos coaches é mais um desdobramento da cultura terapêutica e da autoajuda, nos dedicamos a avaliar o que esses onipresentes profissionais têm a dizer a respeito do consumo de conteúdo televisivo.

TV E VIBRAÇÃO: UMA MÍDIA BAD VIBES

A primeira categoria, que caracterizamos como TV e vibração, abarca três vídeos, produzidos por autointituladas terapeutas de autoconhecimento, que enfatizam a produção de energias negativas da televisão. Aqui, os raios catódicos que já foram ponto de pauta sobre os malefícios do meio são ressignificados com uma abordagem psicológica e mística. No primeiro vídeo analisado, intitulado “PORQUE NUNCA MAIS ASSISTI TELEVISÃO?”3 [sic], a influenciadora Taty Alencar, que se apresenta como “terapeuta e artista especialista em mandalas vibracionais”, começa perguntando ao espectador: “Você sofre de depressão, síndrome do pânico, tem ataques de ansiedade ou um negativismo muito grande que faz com que você se sinta uma vítima [...], um desespero que deixa sua vibração baixa e você nem sabe de onde vem?”. Depois de elencar o rol de possíveis sofrimentos com os quais o espectador pode se identificar, a youtuber encontra o culpado de sempre: a TV. E explica que sua mudança de perspectiva em relação ao meio veio com as aulas de feng shui, quando sua professora lhe explicou todas as influências negativas que a TV produziria nos sujeitos.

O problema central, segundo a mentora, seria você ser “uma pessoa de uma vibração mais alta, uma pessoa mais bem-sucedida, uma pessoa que consegue lidar melhor com suas emoções, sem que seja tão alienado, né, sem que seja tão influenciado...”. A energia eletromagnética emitida pela TV seria, então, a responsável por interferir no campo áurico dos indivíduos. Taty enumera os motivos pelos quais parou de ver TV. O primeiro seria o psiquismo, a mente coletiva que vibra o que a TV transmite e que, segundo ela, é majoritariamente negativo e geraria a somatização, no corpo, das emoções negativas.

O segundo motivo seria a alienação. Remontando a uma análise apocalítica (Eco, 1976), Taty elabora um argumento sobre esse termo, muito acionado ao longo dos anos 1960 e 1970 para se referir ao conteúdo da cultura de massa, sobretudo com base em uma visão (muitas vezes deturpada) do referencial marxista. O problema, aqui, estaria na propaganda, que aparece não apenas na programação comercial da TV aberta, mas também em filmes e séries, por meio da exibição de marcas que influenciariam os hábitos de consumo do espectador. O terceiro é apontado como a vontade de “tomar as rédeas da própria vida”, chavão bastante recorrente na literatura de autoajuda (Castellano, 2018).

A terapeuta usa expressões como “autorresponsabilidade da escolha”, “sair da vítima”, e afirma que “a TV acaba criando aquela pessoa que acredita que ela é vítima, que alimenta a escassez dela, alimenta o medo. Culpa o governo, culpa o planeta, o chefe, marido...”. Mais do que imputar a cada indivíduo a resolução de seus próprios problemas, a cultura da autoajuda costuma indicar questões ligadas ao self como causa para os mais distintos reveses da vida, o que serve, em última instância, a um processo de responsabilização dos sujeitos e diminuição da atribuição coletiva e política dos transtornos e aflições compartilhados socialmente. Atualmente, na vigência de um modelo neoliberal, é interessante que, cada vez mais, a responsabilidade sobre um enorme espectro de questões seja transferida para a esfera individual. Assim, os valores promovidos pela cultura da autoajuda, e que reverberam cada vez mais na atuação dos coaches, aparecem como um elemento fundamental da contemporaneidade. Trata-se, portanto, da criação de uma espécie de moralidade a partir da dinâmica circunscrita à vida privada. Ver televisão, então, um ato corriqueiro, doméstico, individual, pode ser apontado como definidor de questões importantes como o quão bem-sucedida será uma pessoa, uma vez que entendemos o indivíduo, seu self, como a única fonte de respostas e soluções.

O quarto ponto levantado pela influenciadora para sua decisão de não assistir mais à TV é que, mesmo desligada, ela emitiria ondas eletromagnéticas que reforçariam toda a negatividade exposta nos pontos anteriores. Taty afirma, então, que tem um televisor em casa que mantém desligado da tomada, e que liga quando quer assistir a alguma coisa que ela escolheu. “Nunca da TV aberta”, faz questão de reforçar. É interessante, nesse sentido, como a ênfase no poder de escolha é usado como principal argumento contra a TV aberta, uma vez que o modelo de distribuição no formato fluxo, elemento primordial do meio (Williams, 1974), é visto como incentivador de um comportamento passivo, em contraposição àquele oferecido, por exemplo, pelo streaming, que forneceria ao espectador a possibilidade de fazer uma curadoria do conteúdo, consumindo, na lógica do arquivo (Cannito, 2010), aquilo que estivesse mais ligado ao seu desejo.

Por último, o quinto motivo levantado pela terapeuta do autoconhecimento é associado à questão do tempo. A TV é apontada como algo que capta a atenção e vicia, gerando uma vontade incontrolável de continuar consumindo. “Quando você vê, você ficou horas e horas na frente da TV, e consumindo algo que não te educou em nada, não trouxe nada para o seu desenvolvimento pessoal, fazendo com que você fique ainda mais ignorante do que inteligente”. Entendido como um recurso finito, o tempo deveria ser investido em algo que faça crescer, se desenvolver, “ser bem-sucedido”. Embora adote uma linha new hippie good vibes, a influencer desenvolve uma ideia bastante conectada com os valores capitalistas neoliberais. E equilibra isso em seu discurso com a ideia de também ter tempo para encontrar as pessoas, estar na natureza.

É curioso como deve haver algo de muito específico na programação televisiva, sobretudo na TV aberta, que causa tamanho dano nos sujeitos, especialmente ligados à questão eletromagnética, uma vez que, aparentemente, o conteúdo distribuído pelo YouTube não estaria no grupo dos objetos maléficos, embora muitas vezes seus vídeos sejam assistidos em aparelhos de televisão. E todos os coaches anti-TV analisados neste artigo seguem toda a cantilena dos youtubers com a qual já estamos habituados: pedem para as pessoas se inscreverem no canal, acionarem o sininho de notificações, e alguns vendem diretamente cursos pela plataforma, como é o caso de Taty.

No segundo vídeo analisado, Barbara Moreira, life coach e coach holística, em um vídeo4 com mais de 25 mil visualizações, conta sua experiência de ficar mais de sete anos sem aparelhos televisores em casa. Faz questão de mencionar que adquiriu um apenas para PlayStation, ou seja, para jogar videogame. “Mas a televisão em si, que seria os canais abertos, fechados, TV cabo etc., a programação de TV, eu não consumo”, frisa. Com efeito, relatando as conclusões que tirou de seu afastamento dos produtos televisivos, ela diz que isso fez uma grande diferença na sua vida: “não estaria onde estou, eu não teria tempo, […] concentração, cabeça, […] inspiração e eu não teria paz (risos) pra ter chegado onde eu cheguei, de produzir o meu conteúdo”.

Os pontos levantados por Bárbara ao justificar sua escolha por banir a TV da sua vida passam pela quantidade de publicidade, que ela julga ser excessiva, afirmando não ter paciência para assistir a tanta propaganda. O que é curioso, vindo de uma pessoa que tem ativa inserção no YouTube e, também, no Instagram, espaços conhecidos por dispor um grande volume de conteúdo patrocinado. Sobre essa aparente contradição, ela diz que no YouTube “a propaganda é muito mais light, muito mais rapidinha, muito mais tranquila”.

Traçando mais uma comparação, afirma que o YouTube permite a presença de “pessoas reais, que me inspirem de verdade”. Esse argumento remonta às expectativas encontradas no início do YouTube, quando a plataforma se vendia como uma alternativa de transmissão audiovisual em que pessoas comuns poderiam fazer suas próprias transmissões (“broadcast yourself” era o slogan).

No início do terceiro vídeo5 desta categoria, Gabriela Stapff, coach e terapeuta de autoconhecimento, afirma que “talvez seja a televisão que esteja atrapalhando seu desenvolvimento pessoal e espiritual”. Sua explicação é que “a TV é dominada pela Matrix […], é uma ferramenta de criar pensamentos e emoções de forma inconsciente”. Com efeito, todas as porcarias e baboseiras que são transmitidas levariam a uma dificuldade em diferenciar o que é ficção do que é realidade. Assim, quando transmitem sentimentos como tristeza, raiva, indignação, ódio, traição tendem a incluir o espectador nesse processo, “reduzindo a sua energia espiritual”. Por conseguinte, pondo-o numa posição oposta aos seus desejos de abundância, felicidade, paz, saúde, entre outros.

Mais uma vez, o YouTube é apontado como contraponto à TV, como um lugar que fornece conteúdos que “realmente vão agregar em mudar sua vida”. Mas não só ele. Netflix e outros serviços de streaming também são citados como lócus de conteúdo de qualidade, como documentários e seriados, que permitem que as pessoas se entretenham enquanto podem continuar “evoluindo e expandindo”.

A linguagem desses vídeos parece ser baseada na “Lei da Atração”, que possui um longo histórico na cultura terapêutica, que começou com o movimento do Novo Pensamento (New Thought, em inglês). Surgida nos Estados Unidos em 1890, porém fortemente disseminada naquele país a partir de 1915, tal corrente preconizava a força do pensamento positivo, da mente como geradora de possibilidades infinitas, por meio da atração (ou seja, da capacidade de atrair o que se deseja apenas pela força do pensamento), que voltaria à moda no início do século XXI com o best-seller O segredo, e de práticas sincréticas que misturavam elementos do budismo, do cristianismo, do esoterismo, da psicologia e da filosofia.

Começava a se desenhar, naquele momento, um quadro social bastante significativo, de expansão da ideia de que estariam no interior dos indivíduos não apenas os caminhos para o sucesso, mas também a origem de seus infortúnios. A influência desse tipo de pensamento, ainda hoje, na atuação de coaches ligados à autoajuda permite compreender a conjugação, nesses discursos, de elementos psicológicos e místicos sobre os males da televisão. Com efeito, em todos os vídeos há uma busca por averiguar o controle exercido pela TV sobre suas emoções com base na noção de alienação, tratada como um controle que impede o sujeito de atingir seu verdadeiro potencial, numa perspectiva essencialmente individualista. É comum para essa abordagem tratar o hábito de assistir à TV como algo tóxico, semelhante à dependência química, que, se abandonado, permitiria aos sujeitos uma maior consciência de si, sobre ser dono de seu próprio destino e ter tempo para ler livros, assistir a conteúdos de autoconhecimento (no YouTube), passar mais tempo com a família etc.

TV E RIQUEZA: AS PERDAS DE TEMPO COM O OBJETO RUIM

No primeiro vídeo analisado nesta categoria, intitulado “PARE DE ASSISTIR TV IMEDIATAMENTE. ENTENDA POR QUE” [sic], Vinicius Tadeu argumenta que não se arrepende de ter parado de assistir à TV nos últimos dois anos, pois isso lhe teria gerado mais tempo produtivo. Sua retórica se baseia em uma pretensa pesquisa – que obviamente não é referenciada em momento algum – que mostra que “quase todas as pessoas milionárias, ricas” não têm o hábito de assistir à TV, em contraste com pessoas “abaixo da linha da pobreza” que teriam o hábito constante de “assistir TV, assistir novela, essa coisa toda...”. Depois de afirmar que ver TV é uma perda de tempo, Vinicius faz uma ressalva, afirmando que documentários e filmes não seriam um problema, apenas conteúdos como reportagens e novelas.

Assim, passar horas na frente do aparelho seria uma forma de “matar seu tempo”, “porque quando você está assistindo TV você fica sentado e não faz mais nada”. Desse modo, ele aconselha a substituição por hábitos como ler livros e comer, embora não especifique em qual posição, exatamente, ele sugere que essas coisas sejam feitas. Menciona, também, a prática de exercícios físicos.

No segundo vídeo, o Pastor Jorge, do Canal Jorge Motiva – Liberdade Financeira, explica “por que assistir Televisão pode ser muito perigoso para você ficar rico”. Seguindo na linha dos dados científicos freestyle, afirma: “A neurociência já provou que uma informação repetida com emoção é materializada em sua vida”. O argumento é o mesmo já verificado em vídeos anteriores: nosso cérebro não teria capacidade de diferenciar imagens vistas na TV daquelas experimentadas na vida real. Então, imagens de “desemprego, brigas, traições, assassinatos, roubos” gerariam esse mesmo tipo de situação em nossas vidas. “O que entra é o que sai, por isso Jesus falou ‘se o teu olho for ruim, todo seu corpo será ruim [...], o que você dá para sua mente consumir é o que você manifesta em sua vida”. Vale mencionar que o vídeo do pastor exibe como pano de fundo justamente imagens de violência que ele critica em sua fala. “Concentre-se em imagens de sucesso, de vitória, de dinheiro e é isso que você vai atrair para a sua vida”.

No terceiro vídeo, Ben Zruel, empresário, escritor e consultor financeiro, trabalha o discurso de que conhecimento pode ser uma benção e uma maldição, a depender da sua natureza: conhecimento profissional, útil, ou conhecimento inútil, basicamente, o que é transmitido pela TV aberta. Na sua retórica, surgem críticas ao telejornalismo, que costuma falar de crise econômica, desemprego, taxa de juros, criminalidade, o que, em sua perspectiva, não contribuiria para a visão de mundo individual de ninguém. Porque, uma vez consciente de que o cenário é desfavorável, o sujeito se sentiria desmotivado a tomar iniciativas para solucionar seus problemas. Sua conclusão é baseada na ideia de que se você acredita na crise, ela passa a existir, mas se você acha que está tudo bem, boas coisas acontecem. Ou seja, a crença na força do pensamento, na lei da atração, atravessa as duas categorias dos vídeos aqui analisados, embora seja mobilizada de formas distintas, uma vez que aqui aparece articulada a uma perspectiva ainda mais instrumental de consecução de uma vida bem-sucedida financeiramente.

Na sequência, como um padrão entre esses discursos, vem a articulação entre o tempo ocupado pela TV que deveria ser investido em livros e cursos que otimizem o desenvolvimento pessoal do sujeito: “tomar a decisão de desligar a televisão e pegar um livro na mão [...] é exatamente a diferença entre sucesso e fracasso”6. Embora não seja, certamente, a única formadora da mentalidade contemporânea, essa lógica da autoajuda desempenhou um papel importante na produção da subjetividade por meio da qual julgamos nossa própria performance no mundo e avaliamos os sucessos e fracassos dos outros. Ao ajudar a difundir uma problemática divisão da sociedade entre as figuras do vencedor e do fracassado, esse filão editorial ajudou a tornar ainda mais incisivo o discurso a respeito da responsabilização dos indivíduos sobre suas próprias trajetórias (Castellano, 2018).

No quarto vídeo analisado nesta categoria, o empresário e educador financeiro, James Doorman, se apropria de uma técnica bastante utilizada na TV para prender a audiência, e que é replicada por muitos produtores de conteúdo em plataformas digitais: “Você já parou para pensar por que os ricos não assistem TV? Quer descobrir um dos segredos que ajudam eles crescerem, enriquecerem muito mais rápido? Assiste esse vídeo até o final...”. Apesar do suspense, James reitera a ladainha já bastante conhecida: assistir à TV seria um mau uso do tempo. No vídeo, refere-se principalmente à TV aberta. Seguindo, ainda, o script verificado em grande parte dos vídeos com essa temática, o mentor de negócios afirma que a mudança de perspectiva em relação à TV vai ser responsável por uma transformação significativa na vida dos espectadores e constrói seu argumento baseado em uma experiência pessoal, assumindo que ele mesmo costumava ser consumidor de TV, o que teria mudado a partir do momento em que começou a andar com pessoas que tinham mais dinheiro e descoberto que elas não tinham esse hábito.

“A TV aberta derrama o conteúdo que ela quer para meio que programar a sua mente para pensar e agir como eles querem que você pense. A gente chama isso de o sistema né...”. É curioso como esse tipo de percepção sobre a mídia, que durante muito tempo foi associado às críticas empreendidas pela esquerda, vem sendo cada vez mais incorporado pelo discurso liberal de direita. Tradicionalmente, a avaliação feita sobre a questão ideológica que atravessa o conteúdo da grande mídia estava ligada à noção de que ela transmitia os valores que beneficiam as grandes corporações de comunicação e seus parceiros, logo, uma visão de elogio ao capitalismo. Porém, na percepção dos coaches que analisamos, a televisão seria uma inimiga do desenvolvimento econômico, um desperdício de tempo produtivo, uma desanimadora de empreendedores. “A grande mídia não quer que você enriqueça”, afirma James. A explicação é que quanto mais ricos existirem, mais difícil será dominar as pessoas.

Ressaltamos que, nesse discurso, assim como nos que falam sobre propaganda e se mantêm no YouTube, identificamos elementos de uma racionalidade cínica (Safatle, 2008). Essa forma de construção do pensamento permite que situações paradoxais ou contraditórias convivam sem grandes problemas de forma um tanto sistemática. Com efeito, possibilita que se utilizem da crítica já realizada às mazelas do capitalismo, sem necessariamente nomeá-la para sustentar um ethos normativo conectado à governabilidade neoliberal. Essa ironia acaba sendo característica das sociedades de controle, em que nada escapa das modulações que constroem as subjetividades (Deleuze, 2000). Por meio disso, é possível que o sujeito critique e tenha consciência dos problemas que identifica, mas tenda a reproduzir hábitos que ainda sustentam a ordem socioeconômica vigente, muita das vezes, de forma voluntária. Ou seja, a atitude cínica revelada por esses coaches pode ser percebida na medida em que eles convertem sua consciência crítica em uma performance que oblitera todas as contradições de seus discursos.

O coach também afirma que a TV não passa conteúdo para tornar ninguém melhor, apenas para prender a atenção da audiência (objetivo que ele mesmo demonstra ter ao longo do seu vídeo) e complementa sua argumentação dizendo que, nas novelas, normalmente os vilões são ricos e os mocinhos são pobres porque eles querem “instalar no seu subconsciente a ideia de que ser rico não é uma coisa boa”. Por questões de limitação espacial e foco, não podemos desenvolver aqui a crítica a essa ideia enviesada, mas vale mencionar que, ao dizer isso, o youtuber: 1) deturpa o fato de que a maior parte das telenovelas brasileiras estabelece um ethos de classe média, que naturaliza um estilo de vida que está longe de ser o experimentado por grande parte da população brasileira, o que pode ser percebido, por exemplo, na obra do autor Manoel Carlos, conhecido por suas Helenas moradoras do Leblon; e 2) convenientemente ignora o fato de que, quase sempre, a “pobreza” do(a) mocinho(a) das tramas existe para permitir uma posterior redenção, solucionada pela ascensão social, como nos casos das protagonistas Raquel (Vale Tudo) e Maria do Carmo (Senhora do Destino) (Ronsini, 2012). Em vez de vilanizar o enriquecimento, o que essas tramas fazem é propor uma visão de mundo em que se tornar rico e poderoso não só é possível como fortemente desejável.

No último vídeo7 analisado, intitulado “Tenha o controle do seu tempo – Não assisto mais TV”, Anderson Hernandes, conselheiro de finanças e contabilidade, começa dizendo que, na época da novela Império, percebeu que estava “aficionado”: “de assistir todos os dias, de não perder [...]”, e o quanto aquilo estava consumindo a sua energia: “[o] que eu poderia dedicar a coisas muito mais proveitosas, que eu poderia dedicar a fatores para a construção intelectual, para coisas que dariam um valor diferenciado”. Cita que percebeu que também tinha o tempo consumido por coisas como telejornal, Big Brother e Faustão. Então coloca a questão: “O quanto você vai evoluir na vida assistindo Faustão?”. O tom de testemunho é bastante comum não só nos vídeos que compõem o nosso corpus, mas na cultura do aconselhamento e serve para referendar um discurso que, na expressiva maioria dos casos, não tem nenhum respaldo além da pura experiência pessoal do narrador, contudo aparece afinado a uma sensibilidade contemporânea em que esses relatos adquirem valor e significado (Sacramento, 2018).

Nesta segunda categoria que propomos, analisamos cinco vídeos que buscam associar pobreza a consumo televisivo. Nesse sentido, de forma mais evidente, sua linguagem aciona argumentos de distinção de classe para explicar por que pessoas pobres passam mais tempo assistindo à programação da TV (aberta), o que justificaria sua posição na sociedade, em uma espécie de torção da teoria da homologia estrutural entre os espaços das posições sociais e os estilos de vida proposta por Bourdieu (2007), em que membros de uma classe compartilham esquemas de percepção e de apreciação cultural que refletem práticas. Ou seja, as preferências, o gosto e os costumes rotineiros de consumo dos indivíduos seriam determinados, de forma geral, “pela história e estrutura objetiva do seu mundo social; estas escolhas e hábitos, por sua vez, contribuiriam, de modo involuntário, para a manutenção da estrutura hierárquica existente” (Freire Filho, 2009, p. 153). No discurso dos coaches analisados, a lógica do consumo cultural não aparece como reflexo da posição ocupada por um indivíduo no quadro das classes sociais, mas, sim, como indutora da própria localização dentro de uma classe. Em outras palavras, as pessoas seriam pobres porque assistem à televisão.

Cabe ressaltar que a própria explicação proposta por Bourdieu (2007) em A distinção também encontra limitações, hoje, para pensarmos a lógica da fruição cultural no contexto de consolidação da cultura de massa. Peterson (1997), por exemplo, em investigações realizadas a partir de 1980, verificou que o comportamento das elites culturais estava mudando. Nos achados do autor, se, anteriormente, as elites se caracterizavam tanto pelo conhecimento das artes superiores quanto pelo desprezo pelas práticas culturais populares, hoje, cada vez mais, elas se caracterizariam por um consumo marcado pela diversidade e que, consequentemente, não estaria ligado à ideia de afastamento em relação aos produtos da cultura de massa. O argumento é que a mesma elite que frequenta museus, concertos, óperas, também, cada vez mais, vê TV, assiste a seriados, ouve músicas pop etc. A isso ele chamou gosto onívoro, que remete àquele que consome todo o tipo de coisa.

Assim, é curioso que os coaches que aqui analisamos reforcem uma ideia que a própria empiria já demonstrou, há décadas, ser ultrapassada. Eles mesmos, que se apresentam como pessoas bem-sucedidas, vitoriosas, exemplos a serem seguidos, expõem um regime de consumo cultural que envolve livros de autoajuda, séries da Netflix, documentários, vídeos do YouTube, ou seja, objetos absolutamente integrados à lógica da cultura de massa, quando não a seus mais baixos estratos. Nenhum relata estar lendo, por exemplo, a obra completa de Dostoiévski no original em russo, o que seria esperado de quem lança mão de argumentos elitistas de distinção. O fato de esses influenciadores julgarem que a prática de assistir a vídeos sobre mandala vibracional ou conselhos de coaches seja mais culturalmente legítima do que consumir qualquer conteúdo da TV aberta diz muito tanto sobre a atual sensibilidade contemporânea quanto sobre a forma com que esse objeto ruim é, até hoje, enxergado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse é um dos fenômenos mais curiosos e apaixonantes daquele fenômeno da indústria cultural, que é a crítica apocalíptica à indústria cultural. Como a manifestação, a duras penas mascarada, de uma paixão frustrada, de um amor traído; ou melhor, como a exibição neurótica de uma sensualidade reprimida, semelhante à do moralista, que, denunciando a obscenidade de uma imagem, detém-se tão demorada e voluptuosamente sobre o imundo objeto do seu desprezo que trai, naquele gesto, a sua real natureza de animal carnal e concupiscente

(Eco, 1976, p. 18).

Os vídeos examinados revelam uma abordagem comum entre os influenciadores, que desencorajam o consumo televisivo e promovem a busca por conhecimento e crescimento pessoal. Essa abordagem é sustentada por argumentos que enfatizam a importância de uma mentalidade positiva, a escolha cuidadosa do conteúdo consumido e a busca por atividades consideradas mais produtivas. Todavia, é importante ressaltar a tendência equivocada de atribuir à TV o papel de bode expiatório, transferindo a responsabilidade das adversidades enfrentadas pela sociedade brasileira e insinuando que questões sociais, educacionais, financeiras e outros desafios poderiam ser solucionados simplesmente com o fim do consumo televisivo, neste caso, como uma forma de supostamente levar o sujeito a tomar controle de sua própria vida.

A associação direta entre o consumo de TV e a posição social enfraquece a complexidade dos padrões de consumo cultural e não reflete as mudanças contemporâneas na forma como as elites culturais se engajam com a cultura de massa. Além disso, a própria prática dos influenciadores em consumir esse tipo de conteúdo coloca em questão a validade de seus argumentos de distinção. Em seus discursos, a predominância de elementos da cultura de autoajuda reforça a dicotomia entre vencedores e fracassados, que faz sentido para a racionalidade neoliberal. Suas críticas à TV, portanto, são formas inconsistentes de justificar que pessoas estão fracassando porque assistem à TV aberta.

A subjetividade que isso estimula replica a ênfase na responsabilidade individual em adquirir controle sobre o que não depende apenas dos indivíduos, isto é, tornar-se bem-sucedido. Isso serve ao capitalismo contemporâneo para obscurecer os fatores estruturais e sistêmicos que influenciam as trajetórias sociais e econômicas dos sujeitos. Por fim, destacamos a relevância em se observar esse discurso como outra forma de caracterizar negativamente a TV, associando-a à improdutividade e ao fracasso, o que é sintomático de uma sociedade capitalista que busca enfatizar a escassez do tempo e seu mau uso. Ademais, a constante estigmatização da TV como uma influência prejudicial implica uma simplificação excessiva de suas complexidades culturais e sociais, o que pode comprometer a compreensão mais abrangente de seu papel como uma das principais formas de entretenimento para muitos no Brasil.

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    Leal, ao defender a aplicação desse tipo de análise de discurso em pesquisas da área da comunicação, afirma: “uma análise de discurso foucaultiana enxerga os enunciados das mídias como acontecimentos que emergem em um solo histórico-cultural. Portanto, ao mesmo tempo, precisam ser pensáveis dentro de suas condições de possibilidade e de seus campos de saber-poder, e são capazes também de engendrar e de transformar essa realidade a partir de suas produções de sentido” (2019, p. 188).
  • 2
    No campo de buscas da plataforma, foram pesquisados os termos “pare de ver TV”. Encontramos um total de 14 vídeos em diferentes canais. Para a análise, recortamos 8 vídeos com base nas semelhanças entre seus conteúdos, que misturavam o aconselhamento voltado ao desenvolvimento pessoal e profissional com a recusa ao hábito de assistir à programação televisiva.
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  • 4
    O vídeo traz o mesmo título (e o mesmo erro de grafia) do anterior: “PORQUE NUNCA MAIS ASSISTI TELEVISÃO?” [sic].
  • 5
    Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cEifDpfj_h0. Acesso em: 15 out. 2023.
  • 6
    Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HMeIsTVnSE4&ab_channel=BenZruel. Acesso em: 16 jun. 2023.
  • 7

Disponibilidade de dados de pesquisa

Os dados de pesquisa estão disponíveis no corpo do documento.

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Editado por

  • Editores responsáveis:
    Adriana Teixeira
    Fábio Fonseca de Castro
    Maurício Ribeiro da Silva
    Norval Baitello

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2024
  • Aceito
    17 Jul 2025
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