RESUMO
Este artigo trata de uma questão conceitual para os estudos das histórias em quadrinhos (HQs) contemporâneas, a saber, aquelas obras que são denominadas amplamente de histórias em quadrinhos abstratas ou abstract comics. Para tanto, faremos uma reflexão sobre esse tipo de produção, tendo como principal premissa a suposição que alguns desses trabalhos não podem ser enquadrados como HQs, mesmo se levarmos em consideração as citações, presentes em algumas dessas obras, recorrentes da linguagem das histórias quadrinhos: balões, requadros, sarjetas, onomatopeias e outros. Socialmente, há também o rótulo midiático – quadrinhos abstratos – que seus produtores, críticos e público deram a essas criações artísticas de maneira indiscriminada e que colabora com a problemática. Para sustentar nossas argumentações, citaremos, entre outros autores, Pierre Fresnault-Deruelle (1976), Scott McCloud (1995) e Thierry Groensteen (2013), que sustentam a ideia de que as HQs precisam mais do que uma mera justaposição ou sobreposição das matérias verbais e visuais para serem assim denominadas. Segundo esses autores, essas dimensões (visuais e/ou verbais) precisam ser minimamente articuladas para a produção de um sentido narrativo – legitimação sob a qual as sustentamos enquanto HQs.
PALAVRAS-CHAVE
Histórias em quadrinhos abstratas;
non sequitur
; artrologia das imagens; narratividade
ABSTRACT
This article addresses a conceptual issue for the study of contemporary comic books, namely, those works that are broadly called abstract comics. To do so, we will reflect on this type of production, having as a main premise the assumption that some of these works cannot be classified as comics, even if we consider the quotations present in some of these works, which recur in the language of comic books: balloons, frames, gutters, onomatopoeia and others. Socially there is also the media label – abstract comics – that their producers, critics and public gave to these artistic creations in an indiscriminate way and which contributes to the problem. To support our arguments, we will quote, among other authors, Pierre Fresnault-Deruelle (1976), Scott McCloud (1995) and Thierry Groensteen (2013), who support the idea that comics need more than a mere juxtaposition or overlap of verbal and visual materials to be called comic books. According to these authors, these dimensions (visual and/or verbal) need to be minimally articulated to produce a narrative meaning – legitimation under which we support them as comics.
KEYWORDS
Abstract comics; non sequitur; arthrology of images; narrativity
Introdução
É sabido que histórias em quadrinhos (HQs) têm temáticas diversas, públicos variados e diferentes modalidades expressivas. As histórias em quadrinhos ficaram mais conhecidas no final do século XIX, quando o ilustrador Richard Outcault (1895) criou uma obra que narra as aventuras de um garoto que vivia nas ruas nova-iorquinas trajando um camisão amarelo: The Yellow Kid (1895).
De lá para cá, esse modo de contar histórias – com imagens e textos escritos em regime solidário – se popularizou mundialmente graças às apostas dos editores dos suplementos dominicais de grandes jornais impressos, e, posteriormente, à repercussão de personagens que alcançaram grande sucesso, como Batman (1939) e Superman (1938).
Esses títulos, que praticamente inauguraram o gênero de super-heróis norte-americanos no final dos anos 1930, consolidaram as revistas periódicas, com grande apelo ao público juvenil, sobretudo masculino, e, mais recentemente, ao público geral, especialmente após as ondas de adaptações de suas histórias para o cinema e a televisão.
Nesse ínterim de mais de um século, os quadrinhos consolidaram um modo de comunicação próprio, por meio não só da visualidade e da articulação de suas ilustrações, mas também de seus balões, onomatopeias, sarjetas, entre outros elementos, que constituíram, com o tempo, um rol de ícones típicos, alusivos a essa arte, reconhecida como a nona.
Essa identidade das histórias em quadrinhos proporciona um diferencial perante outros tipos midiáticos de narrativa, como as histórias oriundas dos tradicionais livros impressos, em que o leitor não conta (ao menos não obrigatoriamente) com esses auxílios visuais – as ilustrações – e, quando conta, elas exercem papel secundário, porque são submetidas ao encadeamento narrativo literário, diferentemente do que comumente ocorre nos quadrinhos, nos quais os elementos verbais e os não verbais sugerem narrativa articulada e interdependente.
Com o passar do tempo, as HQs explodem em uma variedade de gêneros temáticos e plásticos, principalmente a partir das criações de artistas cuja liberdade de projeto foi menos pressionada pelos mandatários das grandes editoras.
Nessa trilha, no final dos anos 1950, surgem as histórias em quadrinhos underground, que tiveram como alguns de seus precursores artistas como Robert Crumb, Gilbert Shelton, Trina Robbins.
O movimento underground dos quadrinhos norte-americanos buscava alternativas aos grandes sindicatos e editoras que monopolizavam a produção, distribuição e venda das histórias em quadrinhos. Havia também liberdade temática, além de alguns experimentos gráficos importantes, que testaram as configurações mais comuns nos quadrinhos.
Andrei Molotiu (2009), em seu livro-coletânea Abstract Comics: The Anthology, aponta que Crumb foi um dos precursores das chamadas histórias em quadrinhos abstratas com sua HQ Abstract Expressionist Ultra Super Modernistic Comics, de 1967 (Figura 1). Segundo o autor, esta história em quadrinhos serve como marco inicial do recorte temporal para a antologia que propõe.
Porém, o próprio Molotiu admite que essa afirmação precisa ser relativizada, pois Crumb apenas insinua a abstração nessa HQ e, ademais, antes de Crumb já havia o artista russo El Lissitzky (2015). Para Molotiu, Lissitzky criou, em 1920, para o livro infantil intitulado About Two Squares (2015), um tipo de expressividade não figurativa que aponta para o que é chamado hoje de histórias em quadrinhos abstratas (Figura 2).
É esse tipo de não figuração mais extrema que alguns pesquisadores e artistas classificam como histórias em quadrinhos abstratas1. Tendo esse ponto de partida, este artigo procura se debruçar sobre o conceito de quadrinhos abstratos a fim de compreender o fenômeno com base em três questões. A primeira: se eles podem suscitar, ou não, narrativa. A segunda: se a eventual ausência de narrativa põe em xeque a premissa de que as histórias em quadrinhos, para serem consideradas como tais, devem, necessariamente, contar uma história. E por fim, em caso afirmativo, quais seriam as implicações teóricas disto?
Para respondê-las, estabelecemos enquanto método a mobilização crítica de trabalhos teóricos reconhecidos no âmbito dos estudos das HQs, alicerce para a reflexão e análise acerca da problemática conceituação das abstratas enquanto membros efetivos ou meramente alusivos ao fenômeno dos quadrinhos.
A fim de demarcar essas discussões, deixaremos de lado neste artigo outras implicações relativas às suas origens, trilha genealógica e possíveis temáticas que as HQs abstratas permeiam. Não por as considerarmos menos importantes, mas pela opção de nos concentrarmos nas questões que envolvem o conceito propriamente dito.
PERCURSO PARA COMPREENSÃO DE ALGUMAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS ABSTRATAS
Como ponto de partida desta discussão, autores como Andrei Molotiu (2009) e Tierry Groensteen (2013) afirmam que podem ser denominados “quadrinhos abstratos” séries de imagens não figurativas que apresentam, em sua constituição, um ou mais elementos normalmente relacionados às histórias em quadrinhos, tais como, vinhetas, requadros, balões etc., sem que, no entanto, haja encadeamento narrativo.
Groensteen (2013, p. 9-10) vai um pouco mais longe, subdividindo esse grupo de obras em (a) não figurativas e não narratológicas, e (b) figurativas, porém não narratológicas. Estas últimas, ele considera “histórias em quadrinhos infranarrativas”, as primeiras, “abstratas” de fato.
A principal questão que se coloca aqui é se devemos considerar que esse tipo de obra (infranarrativa ou abstrata) seja, de fato, uma história em quadrinhos, mesmo não apresentando qualquer encadeamento narrativo – independentemente da presença de figuração ou não. Ocorre que, diante da história da nona arte, bem como de suas conceituações mais consagradas, quando tomadas em perspectiva geral, e mesmo quando tomadas em seus espécimes mais arrojados, há algo que, entre as abstratas, destoa dessa história e dessas conceituações, que causa considerável estranhamento.
Cabe ressaltar que as críticas aqui expostas dizem respeito não ao valor artístico (no que se refere à produção) ou estético (no que se refere à recepção) das obras em questão, mas à sua classificação teórica enquanto histórias em quadrinhos – classificação esta que deve se valer, também, de dados relativos a ambos os polos (artístico e estético), desde que isentos de juízo de valor.
Em resumo, não nos interessa se esta ou aquela obra é boa ou ruim, se é relevante ou irrelevante para a história das artes, mas se deveria ou não ser tomada, em âmbito teórico, como história em quadrinhos.
Se pensarmos que toda HQ é dotada de uma intencionalidade promovida pelos seus produtores, não podemos conceber que a simples justaposição de imagens é pré-requisito para propor uma narração à recepção. Embora possamos admitir que, mesmo em caso de justaposições de imagens (de desenhos, de pinturas, de fotografias e até mesmo de esculturas), como aquelas que vemos nas exposições de uma galeria, é viável conceber sentido narrativo se a criatividade do leitor empírico o permitir, mesmo que à revelia das intencionalidades dos produtores.
No caso de exposições em geral, as intencionalidades quase sempre são para criar uma organização interna dessas imagens dentro de uma coerência, por temáticas ou estéticas inter-relacionadas com o espaço físico disponível. Existe ainda a possibilidade de compor uma cronologia que demonstre as evoluções artísticas em uma exposição. Menos frequentes são os casos em que uma exposição serve para contar histórias por sequenciamento.
Frisamos que o sequenciamento de imagens pode ser amplamente usado para proporcionar uma continuidade estética como, por exemplo, uma cor ou uma forma que se replica ou evolui de uma tela para outra (continuidade estética), mas que não existe nenhuma obrigação de narrar.
Portanto, existe sequenciamento sem narração, mas não existe narração sem sequenciamento, sem o suceder das ações de um ou mais sujeitos – o que, ao nosso ver, contraria a concepção proposta pelos assim denominados quadrinhos abstratos, facilmente confundíveis com quaisquer tipos de sequenciamento em geral, mesmo que haja um ou mais elementos normalmente relacionados às histórias em quadrinhos, tais como vinhetas, requadros, balões etc. Entendemos que, nas HQs, essa continuidade das imagens vai além do compromisso de uma iconografia compartilhada, a favor da estética, mas também de uma articulação (artrologia) dessas imagens no sentido de contar uma história.
Scott McCloud (1995) as classifica enquanto “imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou promover uma resposta no espectador” (p. 9). Neste momento, é bem verdade que ele não enfatiza o caráter narratológico das HQs, preocupando-se apenas em estabelecer vínculos entre as imagens justapostas em uma iconografia compartilhada e as diferentes transições entre os quadros que enumera.
Porém, cabe ressaltar que o próprio McCloud (1995, p. 10-17) deixa claro o que pode ser considerado histórias em quadrinhos ao longo da trajetória da humanidade, que vai desde um manuscrito pré-colombiano, passando por uma tapeçaria sobre a conquista da Normandia, até chegar às HQs que conhecemos, e que, em todos os casos, sempre implicam a narração.
Mesmo assim, é curioso ler ou até mesmo revisitar o que o autor chama de transição non sequitur (Figura 3), que, no primeiro momento, permite alguma aproximação com os denominados quadrinhos abstratos.
Cabe ressaltar que o non sequitur citado pelo autor nos dá o entendimento de que histórias em quadrinhos são sempre narrativas, premeditadas pelos seus produtores. Portanto, a simples justaposição de imagens, necessariamente, não narra. McCloud é categórico ao afirmar que:
[...] existe o non sequitur que não oferece nenhuma sequência lógica entre os quadros. Esta última categoria sugere uma questão interessante. Seria possível uma sequência de quadros totalmente desconexos entre si? Eu particularmente não acredito. Por mais que uma imagem seja diferente da outra, sempre há um tipo de alquimia nos espaços entre os quadros, que pode nos ajudar a descobrir o sentido até na combinação mais dissonante. Essas transições podem não fazer sentido de uma forma tradicional, mas algum tipo de relação acaba se desenvolvendo. Criando uma sequência de duas imagens, nós damos a ela uma identidade, forçando o leitor a essas imagens como um todo. Por mais diferentes que sejam, elas passam a pertencer a um único organismo.
(McCloud, 1995, p. 72- 73)
Curiosamente, a página 73, que contém essa afirmação, é configurada por elementos extratextuais e também pode ser enquadrada na categoria de estrutura infranarrativa citada anteriormente por Groensteen (Figura 3). Enquanto o autor expõe o seu ponto de vista sobre o non sequitur, notamos que McCloud insere imagens que estão fora do contexto linear da sequência de vinhetas, as quais contêm um cartum do próprio autor.
Portanto, existem intercalações de desenhos de um garfo, de mão que empunha um revólver e atira para o alto, de formas e linhas que lembram uma obra de Picasso, de uma esfera, de uma garota sorridente – que lembra em boa medida a personagem Mafalda, do quadrinista Quino –, retratada de cabeça para baixo, de pinguins e de uma suposta caricatura do ex-presidente norte-americano Abraham Lincoln com um típico tou tou de ballet, em que cita em um balão a imagem de um peixe.
Tudo isso é o esforço criativo do autor para compor uma página de quadrinhos com algumas imagens, supostamente estranhas ao contexto narrativo. Claro que no campo da visualidade das páginas esses desenhos dissonantes funcionam como hiatos gráficos. Porém relembramos o próprio McCloud, que afirma: “Criando uma sequência de duas imagens, nós damos a ela uma identidade, forçando o leitor a essas imagens como um todo. Por mais diferentes que sejam, elas passam a pertencer a um único organismo” (McCloud, 1995, p. 73)
Cabe entender, nas afirmações de McCloud, que o non sequitur, recorrente nas possíveis histórias em quadrinhos abstratas, origina-se de uma intencionalidade do autor de criar supostas implicações entre as imagens. Estas, por sua vez, podem ser compreendidas, ou não, pelo leitor, pois as instâncias da produção e recepção não são obrigatoriamente conectadas, cabendo à recepção fazer suas inferências diante da obra. Estas inferências são mais soltas, por assim dizer, quando se trata das histórias em quadrinhos abstratas.
De toda sorte, as imagens que parecem cair de paraquedas – aparentemente desconexas e absurdas – na já citada página 73 da obra de McCloud, não só têm uma contextualização, pois são exemplificações do tema que o autor aborda, mas estão contidas em um fluxo narrativo, em um caminhar das ideias expostas pelo próprio articulista. Portanto, reafirmamos: o sequenciamento narrativo é sempre necessário para que possamos atribuí-las como uma história em quadrinhos.
Corroborando com essa premissa, mesmo imagens aparentemente aleatórias precisam estar implicadas em um fluxo narrativo para que sejam caracterizadas como parte de uma HQ. Thierry Groensteen (2015) busca definir as histórias em quadrinhos por meio de um sistema constituído de três princípios: artrologia, solidariedade icônica e espaçotopia, dando grande ênfase ao caráter articulatório entre eles e, por consequência, entre todos os elementos constitutivos das histórias em quadrinhos. Quer dizer, é imprescindível que haja uma articulação suficiente entre as imagens para que as histórias em quadrinhos se constituam.
Embora seja contraditório que o mesmo Groensteen (2013, p. 9-10) crie uma variável classificatória de não narratológia para algumas histórias em quadrinhos abstratas, entendemos que essa articulação entre as imagens (a artrologia) não ocorre só na dimensão estética, mas também na dimensão narrativa. Afirmamos que essa dimensão narrativa tem a sua gênese no polo da produção, mesmo que a recepção faça outra apreensão da história.
Algumas histórias em quadrinhos abstratas tensionam bastante esse sistema, visto que a articulação entre suas imagens é demasiada tênue em relação aos quadrinhos em geral, praticamente se reduzindo à sua coexistência no suporte (espaçotopia), algo indicado pelo próprio Groensteen (2013, p. 19). A questão que se coloca aqui é: qual é a diferença entre as denominadas HQs abstratas e um mero conjunto de imagens – já que as histórias em quadrinhos, no geral, têm suas imagens fortemente articuladas, seja pela imagética compartilhada, seja pela estrutura narrativa?
De nossa parte, defendemos não apenas os elementos básicos constituintes, bem como sua articulação recíproca por meio do compartilhamento de aspectos formais, mas, sobretudo, sua articulação por meio de um encadeamento narratológico.
Ann Miller (2007), por exemplo, relaciona as histórias em quadrinhos, em sua definição, diretamente à narratividade: “A arte visual e a narrativa (nos quadrinhos) produzem significado por meio de imagens que estão em uma relação sequencial e que coexistem espacialmente, com ou sem texto” (tradução dos autores).
Ademais, entendemos que não apenas uma iconografia compartilhada e uma estrutura narrativa explícita são imprescindíveis, como também alguma figuração. Ocorre que, para que haja narrativa, se faz necessária a presença de figuração, quer dizer, de algum elemento actante, que age, em condições identificáveis, de ambientação e de caracterização de personagens. Neste sentido, podemos verificar narrativas mais ou menos realistas, isto é, cuja representação busca a máxima ou a mínima aproximação com o real2; mas todas, para serem, de fato, narrativas, devem figurar em algum grau. Figurar no sentido do sujeito da ação (deixemos claro) e não na ideia da figura humana estritamente. Ademais, se assumirmos a figuração explícita de uma obra de arte considerada abstrata, isto se constituiria em violação de seu próprio status abstrato na visão aristotélica. Deste modo, a figuração, seja qual for, será particularizada. Visará, portanto, seus aspectos personais – seu modo de agir e interagir narrativamente – e não o modo axiomático da sua representação, como pelo viés icônico – generalista, princípio imutável ou como modelo – daquilo que reconhecemos como formas.3.
Dito de outra maneira, o problema, ao nosso ver, não é de ordem estética, de formas mais ou menos figurativas; mas como essas formas, mesmo semelhantes àquelas encontradas nas obras de arte abstratas – como formas geométricas – assumem um grau de protagonismo no sequenciamento das ações em uma história/narrativa em quadrinhos. Se pensarmos que um quadrado ou um círculo se comportam, por exemplo, como personagens em uma narrativa (como na obra de El Lissitzky), isso já conotaria algum tipo de figuração (Figura 2).
A questão pode ficar mais complexa se refletirmos que para validar algumas composições como uma história em quadrinhos – independentemente do grau de figuração – é necessário que haja o desdobramento narrativo. Porém, não quer dizer que basta a obra conter elementos típicos dos quadrinhos (como prevê o não narratológico de Groensteen) para ser validada como HQs. Não tem como abdicar da narração no polo da produção, reafirmamos.
O cartum também se utiliza de elementos associados aos quadrinhos, como balões, requadros, onomatopeias etc., mas não é história em quadrinhos, pois não existem desdobramentos de fatos. É uma totalidade factual. Um episódio apenas. O acontecimento é único, embora o leitor possa inferir sobre o antes e depois desse acontecimento. Nessa mesma perspectiva, existem também alguns exemplos da pop art que fazem uso dos elementos gráfico-visuais das HQs, mas não são histórias em quadrinhos. Além disso, esses tipos de obras podem sugerir à recepção um antes e um depois em uma perspectiva narrativa. Para todos os casos, é apenas uma citação visual, ou uma homenagem, ou uma apologia, como vemos em algumas obras de Roy Lichtenstein (Figura 4).
Outros trabalhos relevantes, nessa perspectiva, podem ser acrescidos, por exemplo, algumas obras de Rivane Neuenschwander (2004) que chamam em causa a aparência das HQs, do ponto de vista estrutural, e que lembram páginas de histórias em quadrinhos, ainda que não o sejam (Figura 5).
Para todos os casos citados, além de afirmarmos que essas obras aludem e homenageiam, elas também operam a favor do reconhecimento da visualidade das HQs para a recepção, mas não são histórias em quadrinhos. O principal motivo é que não há uma sequência narrativa, não contam uma história, seja ao modo linear dos acontecimentos pensados na Poética, de Aristóteles (2004), ou até mesmo ao modo não linear, em que um ponto da narração desencadeia bifurcações de acontecimentos narrativos, como pensado por Fresnault-Deruelle (1976), tão recorrentes em alguns quadrinhos contemporâneos, especialmente aqueles exibidos em plataformas online.
A recepção na legitimação das histórias em quadrinhos abstratas
Como visto anteriormente, a interpretação se dá em interação com a materialidade da obra e é, em alguma medida, limitada por ela. Não existe liberdade total, mas uma miríade vertiginosa de experiências possíveis (inclusive em perspectiva histórica), sempre provocadas pelo objeto artístico e, por consequência, em parte, determinadas por ele.
Em uma pintura de Pollock (Figura 6), podemos enxergar, por exemplo, frutas, mas nunca será como as frutas de um exemplar figurativo, como em uma natureza morta. A natureza morta nos mostra objetos facilmente identificáveis; já em Pollock, em uma determinada atmosfera, sugerida por formas e cores, até pode, quem sabe, sugestionar em alguns observadores alguma ideia de frutas (e demais objetos típicos de natureza morta). Esse fenômeno associativo, qual seja, de enxergamos formas figurativas em superfícies abstratas e/ou aleatórias, não é novidade e é reconhecido pela ciência como pareidolia. Em suma, a materialidade da obra abstrata faz com que toda e qualquer figuração se torne muito difusa, em um movimento oposto ao que se propõem as obras figurativas.
Portanto, pesa contra os abstratos seu grande apelo à subjetividade. Groensteen (2013) comenta sobre esse fardo na obra Abstract Comics: The Anthology (1967-2009), (Figura 7) de Andrei Molotiu (2009):
Assim, as páginas da coletânea de Molotiu só podem ser tomadas como “quadrinhos abstratos” desde que o aparato seja identificado como pertencente ao domínio dos quadrinhos, o que está longe de ser evidente; é uma questão de contexto, de cultura pessoal, de percepção subjetiva.
(Groensteen, 2013, p. 14 – tradução dos autores)
Mais adiante:
Em outras palavras, é somente realizando um trabalho interpretativo que se baseia na formulação de hipóteses narrativas e tomando grande parte da iniciativa que o leitor poderá reduzir a aparente incoerência da tira. (Groensteen, 2013, p. 18-19 – tradução dos autores)
Portanto, o cerne da questão sobre algumas das supostas histórias em quadrinhos abstratas não é a aparência das representações, mais ou menos figurativas, previstas por McCloud (1995, p. 52-53) (Figura 8), mas sim: a) O compromisso ou descompromisso com o encadeamento narrativo de imagens justapostas de algumas supostas histórias em quadrinhos abstratas por parte da produção, e no caso do compromisso; b) Os requisitos necessários da obra, como as elipses temporais de um evento a outro. Eles precisam ser expressos pela autoria em um conjunto de intencionalidades dentro de um sequenciamento narrativo. E é por meio desses requisitos que é possível garantir o reconhecimento dessas intenções ou, ao menos, interpretações plausíveis pela recepção. É a recepção que legitima a narrativa.
Caso contrário, assim como, no polo da recepção, se enxergam frutas em algum quadro de Pollock, também é possível fazer associações entre as imagens não só por semelhanças formais ou cromáticas, mas também por presumir ou desejar que haja ali uma história. E, se for assim, tudo pode ser narrativo; o que, ao nosso ver, revela uma inconsistência conceitual.
CONCLUSÃO
Falta em algumas histórias em quadrinhos denominadas abstratas um reconhecimento social mais amplo. O tipo de estranhamento verificável na recepção de algumas histórias em quadrinhos abstratas dá testemunho de sua inadequação ao universo artístico dos quadrinhos.
Não se constata, por exemplo, o mesmo estranhamento nas histórias em quadrinhos não abstratas como as de vanguarda, underground ou de caráter experimental, mesmo que consideradas livremente ao gosto dos críticos e pelos diversos significados que essas terminologias podem suscitar. Essas HQs, apesar de sua qualidade subversiva ou provocante, são amplamente consideradas histórias em quadrinhos? E qual o motivo para as considerarmos HQs?
Não há dúvidas de que a premissa básica para definirmos qualquer história em quadrinhos como tal é que ela possa contar uma história por meio de articulações entre as matérias visuais e verbais, mesmo que elementarmente.
Pensamos, inclusive, que até a própria terminologia das histórias em quadrinhos abstratas sofre de uma imprecisão que dá margem para que obras de qualidades estéticas diferentes entre si se juntem em um grande balaio artístico, mas que, neste último caso, não se enquadram como histórias em quadrinhos.
Suspeitamos que algumas dessas obras que não são HQs entram nesse escopo motivadas por oportunismo em relação ao termo, seja no intuito de obter diferencial midiático em tempos de proliferação de temáticas e estilos nas histórias em quadrinhos, seja por falta de uma reflexão mais profunda dos seus comentadores (blogueiros, jornalistas especializados, youtubers e até mesmo alguns acadêmicos), sem a devida apuração se realmente são histórias em quadrinhos, já que, em tradução direta do inglês, comics abstract significa quadrinhos abstratos.
Para esta última suspeita, basta pensarmos na possibilidade de más interpretações quando anunciamos histórias em quadrinhos abstratas ou quadrinhos abstratos. Todas elas plausíveis a partir da tradução do termo. Aqui existe uma sutileza típica do universo das nomenclaturas, pelo menos na língua portuguesa.
No primeiro caso, a abstração refere-se à narrativa. Já no segundo, a abstração refere-se aos quadrinhos, especificamente aos desenhos geométricos desprovidos de figuração ou próximos a isso. Talvez esta última variável ficaria mais bem denominada de histórias com quadrinhos abstratos. Porém, mesmo assim, é restritivo e equivocado pensarmos em uma melhor tradução do inglês para o português.
O termo quadrinhos abstratos não cabe em uma tradução se formos mais rigorosos, mas, pasmem, é recorrente em uma busca coloquial no Google. Então ficaremos somente com a primeira possibilidade: histórias em quadrinhos abstratas.
Porém, não podemos conceber, como tentamos discutir ao longo deste artigo, que uma narrativa possa ser abstrata, no termo de vago ou de ilegível, pois sua estrutura parte da organização dos encadeamentos das ações advindas originalmente das reflexões da Poética de Aristóteles. Quando se trata de narrativas, essa estrutura conta com etapas bem legíveis e identificáveis, com encadeamentos de acontecimentos relevantes e imbricados, e que levam a alguma direção na cronologia dos acontecimentos.
Essas imbricações narrativas são independentes de temáticas e imagens que podem ser abstratas dentro de um tipo de abstracionismo em que tencionam as verossimilhanças das representações e dos acontecimentos do que chamamos de real, próximo ao mundo físico. Porém, elas estão sempre contidas dentro da estrutura dos encadeamentos narrativos praticáveis na nossa cultura contemporânea.
Nessa admissão das narrações chamadas de abstratas por alguns autores, editores e comentaristas, estão mais próximas do que se pode chamar simplesmente de acontecimentos fantásticos/oníricos e, mesmo assim, por mais absurdas que sejam, são legíveis por seus produtores e legitimadas pela recepção.
Um bom exemplo desse tipo de HQ que flerta com um aparente absurdo de eventos é o trabalho Desaplanar (2017), de Nick Sousanis. Porém, os acontecimentos narrativos ainda conservam os desdobramentos lineares de qualquer narração. Em Desaplanar, o quadrinista tenta dar conta da abstração de conceitos humanos e não os apresentar por meio de “narração abstrata”, já que não é possível. O figurativo e o encadeamento narrativo estão presentes, embora muitos os chamem de quadrinhos abstratos (Figura 9) devido aos desenhos menos figurativos em alguns trechos ou por causa de uma narrativa que nos leve ao onírico. Ademais, não encontramos, até o momento, nenhuma citação do autor que afirme que sua obra é uma história em quadrinhos abstrata.
Diametralmente, e a reboque do pretexto do abstracionismo, encontramos, supostamente, trabalhos rotulados de HQs. Essas obras sustentam pseudonarrativas fantásticas de desenhos que lembram as obras surrealistas e cubistas, mas que, mesmo assim, são denominadas, por vezes e no senso comum, de abstratas, na ideia de que o abstracionismo é um grande bloco estético no qual cabe tudo, se desejado pelos seus produtores e comentaristas.
Algumas dessas obras pseudonarrativas têm até representações visuais mais convincentes na criatividade das composições de manchas, pinceladas ou geometrias que nos fazem lembrar a estética recorrente do abstracionismo. Essas obras são, recorrentemente, também emolduradas por quadrinhos e algumas até têm balões. É o que acontece em quase todos os exemplos da coletânea organizada por Molotiu: Abstract Comics: The Anthology (1967-2009). Mesmo assim, não podemos considerá-las como histórias (narrativas) em quadrinhos.
Em Abstract Comics: The Anthology, encontramos belos trabalhos que citam as histórias em quadrinhos, mas não são HQs de fato, por ausência de actantes (sujeitos) do modo pensado por Tesnière (1959) na linguística e por Greimas (1966) na semiótica.
Por fim, se de um lado é verdade que as histórias em quadrinhos abstratas sofrem algum tipo de preconceito por parte da crítica e dos leitores justamente por não serem tradicionalmente figurativas, de outro, também é verdade que há aqueles que fazem todo o tipo de apologia às histórias em quadrinhos abstratas por as considerarem inovadoras esteticamente ao sugerirem, também e equivocadamente, uma vanguarda narrativa. O nosso alerta é: não devemos conceituar toda e qualquer justaposição e sobreposição de imagens – abstratas ou figurativas – como histórias em quadrinhos, mesmo que seus autores e alguns críticos passem essa ideia, pelo menos nos exemplos apontados neste artigo. É necessário cautela e uma análise de cada caso futuro sob a luz que rege a narrativa nos termos que conhecemos paradigmaticamente.
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1
É o que entende o comentarista Eduardo Nasi (2019) em sua coluna “Cada um no seu quadrinho”, do conceituado site Universo HQ, ou, ainda, o professor de filosofia Alexandre Linck no seu canal do YouTube Quadrinhos na Sarjeta (2020). Disponível em: https://universohq.com/cada-um-no-seu-quadrinho/quadrinhos-abstratos-e-os-nada-novos-novos-limites-dos-quadrinhos/ e https://www.youtube.com/watch?v=hscnrnKLOHQ. Acessos em: 16 fev. 2024.
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2
Para efeito deste artigo, não entraremos em discussões desnecessárias sobre o real. Tomamos aqui o sentido raso ou de senso comum do real como aquilo que apreendemos e interpretamos por meio dos nossos sentidos, e não como um tópico caro da filosofia.
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3
Aqui nos referimos ao segundo patamar de abstração visto na Metafísica, de Aristóteles (2012). Entendemos que pouco importa a figuração com suas particularidades, e, mais ainda, que estas particularidades são basilares para a constituição de um actante, um sujeito da ação. Nos referimos, portanto, aos aspectos modelares dessa figuração. Por exemplo, se são bidimensionais ou tridimensionais, ou se correspondem ao geometrismo de formas canônicas: triângulos, círculos quadrados etc.
Disponibilidade de dados de pesquisa
Os dados de pesquisa estão disponíveis no corpo do documento.
REFERÊNCIAS
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Editado por
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Editores responsáveis:
Adriana TeixeiraFábio Fonseca de CastroMaurício Ribeiro da SilvaNorval Baitello
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
29 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
08 Jul 2024 -
Aceito
22 Jun 2025










Fonte: Robert Crumb. In:
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Fonte: Roy Lichtenstein. In: Tate Modern, 2025.
Fonte: Rivane Neuenschwander. In:
Fonte: Jackson Pollock. In: National Gallery of Art.
Fonte:
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