Open-access Justiça visual: imagens violentas entre a necessidade de ver e a dificuldade de mostrar1, 2

Visual justice: violent images between the need to see and the difficulty of showing

RESUMO

Este artigo explora a complexa intersecção entre política, ética, raça e representação em vídeos de violência policial. Para tanto, toma como objeto as imagens do homicídio de Harith Augustus cometido pela polícia em Chicago em 2018. Selecionamos dois objetos empíricos. Primeiro, a incorporação de vídeos do incidente em um grupo de reportagens das emissoras de TV ABC e CBS. O segundo objeto é a obra visual Six durations of a split second (Forensic Architecture e Invisible Institute, 2019), que mescla retórica contra-forense e técnicas do cinema documentário no combate à versão oficial. Demonstramos como as matérias de TV endossam sutilmente a narrativa policial por meio da repetição de cenas violentas, que servem também de apelo sensacionalista. Já o filme, apesar de efetivo no esforço de provar a responsabilidade do policial, enfrenta dilemas éticos ao reexibir ostensivamente imagens da morte de um homem negro, arriscando-se a gerar retraumatização e uma segunda ordem de violência.

PALAVRAS-CHAVE
Cultura visual; violência policial; mídia e violência; políticas de representação; contra-forense

ABSTRACT

This article explores the intersections of politics, ethics, race, and representation in footage depicting police violence. It centers on the case of Harith Augustus, killed by police in Chicago in 2018. The study draws on two main objects: first, the use of video recordings from the incident in reports by the ABC and CBS networks, and second, the visual piece Six Durations of a Split Second (Forensic Architecture and Invisible Institute, 2019), which merges counter-forensic rhetoric with documentary film techniques to challenge the official narrative. The analysis reveals how TV coverage subtly reinforces the police account by repeatedly showcasing violent scenes, often with sensationalist undertones. Meanwhile, although the film effectively substantiates the officer’s accountability, it faces ethical dilemmas in its stark re-exhibition of a Black man’s death, risking both retraumatization and a troubling second order of violence.

KEYWORDS
Visual culture; police violence; media and violence; politics of representation; counter-forensics

Introdução

O vídeo foi gravado em julho de 2018. O barbeiro Harith Augustus caminha por uma avenida no sul de Chicago, região conhecida por abrigar a vasta comunidade negra da cidade. Ele carrega uma arma lacrada no coldre, hábito lícito para quem possui autorização. Um grupo de policiais o aborda. Ele estanca o passo e puxa a carteira do bolso. Tenta mostrar um documento, provavelmente a licença de porte. A agente Megan Fleming surge pelas costas de Augustus e tenta agarrá-lo pelo braço. É um movimento brusco, que o surpreende. Ele tenta se desvencilhar, cambaleia em direção à rua. Depara-se com uma viatura e gira mais uma vez o corpo. Ao virar, encosta uma das mãos no coldre que guarda a arma. Neste instante, o policial Dillan Halley dispara cinco tiros contra o barbeiro, que desaba no asfalto. Ele é socorrido por uma ambulância, mas morre logo que chega ao hospital (Lee, Gorner e Greene, 2018).

Na versão da polícia, Augustus ia puxar o revólver e o agente agiu em legítima defesa. Esse argumento estaria demonstrado no vídeo da câmera corporal de Halley, descrito acima, que a prefeitura divulgou no dia seguinte. No entanto, ativistas do movimento negro e representantes legais da família apontaram o viés racista dos procedimentos policiais desde a abordagem inicial até os disparos do agente. Além disso, alegaram que as imagens da bodycam não provam a intenção do barbeiro de usar a arma, pois o movimento do corpo indica a tentativa de se equilibrar e não de abrir o coldre. Halley3 não foi processado criminalmente pelo homicídio. Recebeu apenas uma suspensão de dois dias por erros no protocolo de abordagem (Civilian Office of Police Accountability, 2021).

Embora não tenha alcançado a mesma repercussão de outros escândalos de violência racial nos Estados Unidos, como o de George Floyd, o incidente envolvendo Augustus teve o impacto ampliado graças a uma investigação conduzida pelo grupo inglês Forensic Architecture4 em parceria com o Invisible Institute, uma organização não governamental de Chicago com foco em direitos humanos. A investigação originou a obra Six durations of a split second, misto de videoarte e documentário exibido pela primeira vez no contexto da III Bienal de Arquitetura de Chicago, em setembro de 2019. Lançado treze meses após a morte de Augustus, o trabalho artístico recolocou o incidente em pauta, atraindo a atenção de veículos de comunicação e de públicos que ignoraram o caso na época de sua ocorrência. Six durations… incorpora técnicas forenses com o objetivo de desmontar a versão oficial endossada – ainda que tacitamente – pela imprensa local. Por meio de tecnologias de simulação e computação gráfica, busca demonstrar que a decisão de Dillan Halley de atirar no barbeiro foi excessiva e, portanto, criminosa.

Neste artigo, analisamos os modos de apropriação das filmagens do homicídio de Augustus em diferentes objetos audiovisuais. A análise engloba dois objetos empíricos. Na primeira parte, cujo foco é o uso dos vídeos na construção do acontecimento por veículos jornalísticos, observamos um grupo de telerreportagens produzidas pelas filiais das redes de televisão ABC e CBS em Chicago (a lista das matérias consta no final deste artigo). O segundo objeto é a obra visual Six durations of a split second5, que, por meio da retórica forense e de métodos típicos do documentário, combate a versão oficial. Além do contraste na apropriação das evidências originais e dos resultados em termos estéticos e discursivos, dirigimos a ambos os objetos indagações envolvendo a ética na representação da violência. O texto compõe os resultados de uma pesquisa mais ampla sobre a eficácia política e as políticas de representação em vídeos de violência policial6. Por meio do estudo de casos particulares, abordamos alguns problemas cruciais envolvendo o potencial e os limites do uso de imagens violentas em denúncias de violação de direitos humanos.

Vídeos de evidência têm explicitado a extensão da brutalidade policial em todo o mundo. Nos Estados Unidos, essa prática de natureza racista, que atinge desproporcionalmente afro-americanos, indígenas e latinos, tornou-se pauta constante no espaço público desde pelo menos o surgimento do movimento Black Lives Matter7, em 20138. No entanto, a taxa reduzida de agentes condenados e a persistência de uma cultura policial violenta têm ampliado o ceticismo quanto à efetividade dessas imagens cruas. Em um regime visual no qual as imagens violentas são mercadoria em constante valorização, crescem também os argumentos contrários à exibição explícita de atrocidades contra corpos racializados – mesmo com fins de denúncia. O impasse entre a necessidade de fazer justiça e o incômodo de exibir imagens de sofrimento será um dos elementos norteadores das análises a seguir.

EXPLORAÇÃO DO REALISMO TRAUMÁTICO NA TV

O homicídio de Augustus provocou reação imediata da comunidade local e de outros ativistas que, indignados com mais um caso de brutalidade contra um homem negro, realizaram um protesto naquele mesmo dia. Em menos de 24 horas, o Departamento de Polícia de Chicago divulgou o registro da câmera corporal de Dillan Halley, que corroboraria a decisão de atirar em legítima defesa (Lee, Gorner e Greene, 2018). O vídeo, editado e sem som, inicia quando Augustus já foi abordado por outro agente e tenta pegar a carteira para mostrar a licença de porte de arma9. A edição realizada pelo DPC busca fortalecer a versão oficial. No frame em que a arma aparece por baixo da camiseta de Augustus, os editores congelaram e aproximaram a imagem.

As reportagens das filiais das redes de televisão CBS e ABC afiançaram a narrativa oficial de modo sutil. A operação discursiva fundamental envolveu o enquadramento do debate nos segundos dos disparos, tendo como única evidência pública o vídeo da bodycam. A versão predominante reduz a relevância de outros momentos-chave da cadeia causal, como o motivo da abordagem original, a intervenção abrupta da policial que chega pelas costas, o aparecimento súbito de uma viatura que bloqueia o caminho de Augustus e o obriga a, já desequilibrado, retorcer uma vez mais o corpo. Essa cena vai sempre retornar em reportagens posteriores, ativando a memória do enquadramento inicial e restabelecendo a versão de legítima defesa. Portanto, é sobretudo no encadeamento das imagens, com a repetição dos instantes violentos, que prevalece um percurso narrativo que reafirma o risco representado pelo homem armado.

A CBS e a ABC também destacaram o ciclo de protestos da comunidade negra e de ativistas antirracismo. As telerreportagens priorizam os momentos de conflito – manifestantes disparando garrafas de plástico, gritos de protesto, a multidão enquadrada de longe – repisando o clichê da massa vândala. Uma matéria da ABC sobre uma reunião com a vereadora Leslie Hairston, ali representando a prefeitura, traz o sugestivo título: “Ânimos inflamam-se em reunião da comunidade sobre tiroteio fatal da polícia em South Shore” (Horng, 2018, tradução nossa). As intervenções do público soam sempre exaltadas, em contraste com a calma da vereadora que discursa em um palco. O momento mais marcante aqui se dá na passagem do repórter, que fala ao vivo, para a reportagem gravada. O plano de entrada mostra uma moça da plateia, uma mulher negra e jovem de cabelo curto, aos gritos. Portanto, a edição apresenta um dos personagens, o público de ativistas afro-americanos do sul de Chicago, na pessoa da moça agressiva, beirando o descontrole.

Um mês depois, em 16 de agosto de 2018, a prefeitura libera mais vinte registros de câmeras corporais e dispositivos de vigilância. As filiais da CBS e da ABC repercutem as novas imagens, enfocando: novas cenas da abordagem inicial, sem áudio; falas do agente Halley logo depois de atirar; o momento em que outro policial retira a arma do coldre de Augustus já inerte no chão (Horng, 2018; Goudie, 2018; Koslov, 2018). Os jornalistas expressam dúvidas sobre os detalhes da conversa de Augustus com os policiais e criticam outra vez a divulgação seletiva. No entanto, a repetição do vídeo da bodycam com ênfase na arma do barbeiro reafirma a versão oficial. As falas de Halley na continuidade do incidente (“...tiros disparados contra a polícia…”; “...ele ia atirar na gente…”; “...por que ele tinha que puxar uma arma?”), seguidas da cena em que um policial retira o revólver de um Augustus estirado, sublinham o risco representado pelo homem negro armado (Horng, 2018; Goudie, 2018).

Harith Augustus corresponde ao estereótipo violento associado aos homens afro-americanos em séries e filmes estadunidenses. Esse sentido criminalizante está potencializado, por exemplo, pelas fotos que as emissoras usam como vinheta. A assinatura visual que a ABC sempre repete nas matérias do caso exibe, em close, a foto de um Augustus de touca na cabeça e óculos escuros. Um personagem esquivo, sem olhos com os quais se identificar. A CBS usa outra fotografia, ainda mais fechada, de um rosto com semblante mal-encarado. Aqui não há óculos de sol, mas um olhar ameaçador.

Esses estereótipos racistas – que habitam um espaço paranoico, sedimentado ao longo de gerações (Mbembe, 2017) – prevalecem sobre as falas dos repórteres que atribuem a Augustus a reputação de calmo e pacífico. O que as imagens mostram reiteradamente é um homem negro que, tocado por uma mulher branca de uniforme, reage com força, luta e “aparentemente” (Pathieu e Garcia, 2018; Brackley, 2018) tenta puxar a arma da cintura. A construção desse outro perigoso, representação que sempre associou a percepção de risco de imagens evidenciárias à esfera de emoções arcaicas como desejo e pavor (Feldman, 2005), acaba impondo o sentido de ameaça a uma figura como Augustus mesmo em notícias sobre direitos humanos. Neste prisma, o policial pode ter baleado um inocente, mas agiu movido pela função primordial de defender a sociedade de um outro percebido como ameaçador – um olhar racista que projeta no oprimido a agressividade do opressor (Mbembe, 2017).

Para Feldman (2005), a cobertura da violência pela mídia estadunidense é dominada por um olhar atuarial10 que busca trazer ao campo de visão inimigos camuflados nas grandes cidades. Trata-se de uma visualidade forense que vigia e criminaliza, operando em sinergia com os sistemas estatais e privados de segurança. Historicamente voltado a controlar populações vulneráveis a partir de uma perspectiva racializada, esse regime visual ganhou ainda mais força depois dos atentados de 11 de setembro de 2001. A ampliação do imaginário de medo justifica a proliferação de câmeras e outros dispositivos de vigilância, cujo sentido ancora-se na promessa de trazer o inimigo, cada vez mais difuso e geralmente racializado, ao campo de visão. As câmeras vigilantes – e podemos incluir aí equipamentos pessoais como os smartphones – espalham-se com a dupla função de dissuadir o crime e flagrar suspeitos. Quando exibidas, sua visualidade embute a priori um sentido de perigo nos espaços urbanos. Assim, mais do que registrar objetivamente, as imagens vigilantes produzem a atmosfera de risco em torno de regiões e sujeitos marginalizados.

O modo como produtos audiovisuais do jornalismo e do entretenimento enquadram as cenas de violência tende a favorecer a necropolítica das forças de segurança. Tendo em vista que o efeito traumático dessas imagens resulta principalmente de sua repetição (Foster, 1996), a multiplicação de canais por onde circulam e são compartilhadas potencializa a atmosfera de alarme. Para Feldman (2005), a estética do trauma, especialmente atrativa ao espectador contemporâneo, vem sendo cada vez mais operacionalizada pela mídia mainstream e pelas plataformas digitais, seja para angariar audiência, seja para sedimentar os necropoderes. Assim, cabe ao analista de imagens observar como as diferentes narrativas visuais manejam os instantes traumáticos. Quais efeitos de sentido constroem em termos de narrativa factual – mas também nas dimensões mais recônditas de desejo, pavor e paranoia?

O olhar atuarial, em contradição com a promessa de transparência total, de fato classifica e filtra sujeitos, lugares e situações. Não revela, pura e simplesmente, mas “cria zonas de visão editadas, invisibilidade estrutural e cordão sanitário” (Feldman, 2005, p. 213). Esforça-se em distinguir e destacar os sujeitos perigosos; registra suas ações e dá visibilidade àquelas que confirmam as expectativas de violência arquivadas na memória coletiva. Isso aliado a um estado de emergência difuso que escapa aos sentidos e à consciência imediata dos sujeitos que, assim, projetam essa perturbação indeterminada em produtos midiáticos.

Neste sentido, a apropriação do realismo traumático pela mídia hegemônica consiste em poderosa ferramenta de organização de narrativas e de um espaço visual calcados no binômio segurança/insegurança. A reapresentação dos instantes mais violentos estrutura as narrativas de produtos audiovisuais e o enquadramento desses acontecimentos no espaço público. Feldman (2005) cita o exemplo das imagens dos atentados de 11 de Setembro: as emissoras de TV construíram narrativas nas quais a repetição dos choques dos aviões contra as torres do World Trade Center situou nesses instantes o ponto original de uma nova ordem global a demandar respostas incisivas do governo estadunidense.

As telerreportagens sobre o caso Harith Augustus concentram a ação nos segundos que vão da abordagem dos policiais aos disparos do agente. Mesmo com a divulgação de novos vídeos, um mês depois, a montagem baseada em repetições faz a atenção sempre retornar ao mesmo intervalo temporal. Isto é, o curto trecho no qual Augustus tenta pegar a carteira, é cercado e tocado pela agente Megan Fleming, reage com aparente agressividade, tenta escapar para a rua, gira e se desequilibra ao deparar-se com uma viatura em movimento, encosta a mão no coldre e então cai ao ser atingido pelos disparos.

Eis como aparecem as cenas traumáticas mais apelativas ao espectador contemporâneo. Um percurso narrativo curto que se destaca, se repete e – apesar dos discursos de incerteza também proferidos pelos jornalistas – surge como principal evidência capaz de elucidar o incidente. O ponto crítico é o instante em que Halley dispara e o corpo de Augustus desaba, testemunho de morte em direto. O arco temporal que integra a linearidade intrínseca à narrativa jornalística ao retorno do curto trecho decisivo (retorno no interior da estrutura das próprias telerreportagens, mas também na relação entre uma reportagem e outra) tende a justificar o desfecho com os tiros de Halley.

A reexibição dos conteúdos violentos e de morte, mesmo no noticiário sóbrio das grandes redes de TV, apela também às pulsões mórbidas da espectatorialidade contemporânea. Não há aqui a estética abjeta das feridas abertas e do corpo coberto de sangue comum nos noticiários sensacionalistas. Mesmo com os cinco tiros, nem neste nem em qualquer outro vídeo divulgado depois, se vê uma única gota de sangue da vítima. No entanto, o realismo da câmera corporal em primeira pessoa transforma o próprio espectador no autor dos disparos. Ainda que em um plano inconsciente, a experiência dialoga com pulsões violentas. Não se trata apenas de um espectador que revê o homicídio entre o fascínio e o horror, mas que simula virtualmente o ato de matar uma e outra vez.

Essa dimensão fetichista tem levado pesquisadores que estudam as relações entre violência, raça e cultura visual a questionar a pertinência de exibir atrocidades contra corpos racializados, ainda que com o objetivo de denunciá-las. Uma das críticas comuns mira o modo como essas imagens circulam velozmente na mídia tradicional e nas redes digitais, em que “imagens de afro-americanos mortos e morrendo são frequentemente o objeto excitante de um persistente espetáculo midiático” (Noble, 2018, p. 147, tradução nossa). Como comentamos acima, cenas traumáticas são mercadorias valiosas no atual ecossistema midiático, no qual há uma “linha incerta” entre os papéis de “testemunha e espectador” (Hartman, 2022, p. 2, tradução nossa).

No caso de Harith Augustus, as telerreportagens analisadas não apenas se apropriam e exibem os registros explícitos da bodycam e de outras câmeras de vigilância, mas também os repetem compulsivamente. É como se buscassem na reexibição extrair o máximo de valor possível. Aqui, nem o caráter de denúncia se sustenta, tendo em vista a cobertura que tacitamente absolve o policial atirador. Qual o sentido de mostrar tantas vezes Augustus sendo baleado? Que tipo de espectatorialidade está em jogo? Refletindo sobre seu método contra-histórico de escrita da escravidão, Hartman (2020) questiona o porquê de “sujeitar os mortos a novos perigos e a uma segunda ordem de violência?” (p. 19). A autora relembra a facilidade com que o sofrimento negro foi e é narrado, representado e exibido ao longo da história.

Ainda mais obscena do que a brutalidade liberada no pelourinho é a exigência de que esse sofrimento seja materializado e evidenciado pela exibição do corpo torturado ou pelas intermináveis repetições do macabro e do terrível. À luz disso, como dar expressão a essas atrocidades sem exacerbar a indiferença pelo sofrimento que é a consequência do espetáculo entorpecedor, ou enfrentar a identificação narcísica que oblitera o outro, ou a excitação que muitas vezes é a resposta a tais exibições? [...] O que está em questão aqui é a precariedade da empatia e a fronteira incerta entre testemunha e espectador

(Hartman, 2022, p. 2, tradução nossa).

São questões de grande complexidade, se levarmos em conta que, em alguns casos, a repercussão desencadeada por vídeos de evidência foi determinante para a obtenção de resultados concretos. Em contrapartida, dada a taxa quase insignificante11 de condenações de policiais e a continuidade de uma cultura da violência na segurança pública, cresce a suspeita de que fotografias e vídeos de sofrimento têm servido principalmente para os ganhos das corporações de mídia e das plataformas digitais. É neste contexto que despontam grupos de ativistas que, calcados em tecnologias digitais e no ecossistema das redes, buscam ir além da viralização de denúncias. Partindo de dados abertos e de imagens disponíveis ao público, buscam edificar evidências e narrativas mais efetivas na responsabilização do Estado – um movimento que alguns denominam contra-forense (Weizman, 2017; Keenan, 2018; Smith e Watson, 2023; Smith e Crawford-Holland, 2022). O próximo objeto a ser analisado, Six durations of a split second, é um exemplo eloquente dessa corrente.

ESTÉTICA CONTRA-FORENSE

O caso Augustus volta ao noticiário treze meses depois, em setembro de 2019, graças à exibição de Six durations... no contexto da III Bienal de Arquitetura de Chicago12. Devido às cenas de violência, os realizadores optaram por expor a obra na sede do Invisible Institute e não no espaço principal da Mostra. O trabalho é composto de seis vídeos, cada qual exibido em uma tela independente. Ou seja, pode-se assistir a um de cada vez, não necessariamente na ordem sugerida. Cada segmento tem um título que alude a diferentes temporalidades: “Dias”, “Horas”, “Minutos”, “Segundos”, “Milissegundos”, “Anos”. O conteúdo vai do escrutínio de cada instante ínfimo do incidente até a contextualização no presente e no passado. Usa os vídeos disponibilizados pela polícia de Chicago, imagens pessoais de ativistas, fotografias, trechos de telerreportagens. Traz também entrevistas com amigos de Augustus, ativistas locais, pesquisadores da história da comunidade negra da cidade. Recupera inúmeros documentos oficiais da polícia. Agrega tecnologias de processamento de imagens, simulação em três dimensões e outros recursos de animação e espacialização para investigar o que de fato ocorreu quando os policiais abordaram o barbeiro.

Six durations... funda-se no mesmo paradigma científico das técnicas e discursos forenses usados pelo sistema jurídico estatal. Situa-se no já citado movimento contra-forense, que tem como um dos atores mais conhecidos a agência Forensic Architecture (FA). Trata-se de uma tendência de ativistas, jornalistas, profissionais do direito e outros agentes políticos empregarem as mais variadas tecnologias contemporâneas no sentido de robustecer as evidências originais, cientes de que a “mera visibilidade não é mais suficiente” (Smith e Watson, 2023, p. 41, tradução nossa)13. Aqui, vídeos e outros fragmentos de evidência funcionam como um ponto de partida para a edificação de:

Assemblages de mídia de maior porte (modelos digitais em 3D, interfaces interativas online, simulações em realidade virtual e aumentada, instalações artísticas, entre outros) com o objetivo de aprimorar tanto a capacidade de sustentar a verdade quanto a potência política e jurídica

(ibidem, p. 37).

A corrente contra-forense combina a farta disponibilidade de evidências nas redes (imagens amadoras e de câmeras de vigilância, documentos e outros materiais que as instituições estatais são obrigadas a divulgar, dados públicos etc.) com a capacidade colaborativa de investigação. Ativistas espalhados pelo mundo cooperam em uma “perícia forense mediada” (ibidem, p. 36, tradução nossa). A Forensic Architecture emprega principalmente técnicas de espacialização em três dimensões herdeiras da arquitetura. Seus modelos de simulação digital reconstituem com precisão determinado acontecimento, contestando as versões fabricadas pelo Estado. De acordo com Eyal Weizman, líder da FA, projetos calcados na lógica contra-forense não se limitam a atuar nos espaços clássicos da justiça, mas, para terem efetividade, devem criar “novos fóruns de envolvimento público, abrindo práticas cruciais de testemunho e ativismo a audiências mais vastas e promovendo novas formas de ação e pressão política (Weizman apud Smith e Watson, 2023, p. 37, tradução nossa)”. Esses trabalhos são apresentados e debatidos nos veículos de comunicação hegemônicos, nas redes sociais, nas plataformas de vídeo, em exposições de arte, museus, galerias, encontros científicos, reuniões políticas etc.

Na criação de Six durations…, a FA valeu-se da farta quantidade de vídeos que a prefeitura de Chicago disponibilizou na internet14. Portanto, partiu de dados abertos à visualização e processamento a qualquer usuário com acesso à web. Parte desses dados só veio a público em decorrência de processos judiciais, um deles liderado pela FA e pelo Invisible Institute. Ao expor o trabalho na Bienal de Arquitetura de Chicago, os realizadores deslocaram o debate para uma nova esfera, repercutindo inclusive nos veículos de comunicação que haviam liderado a cobertura do caso um ano antes. Atraíram também a atenção de outros veículos alheios ao jornalismo informativo diário15.

Exemplo típico de retórica contra-forense, o filme apresenta-se como uma peça de acusação contra o policial e de defesa da vítima. Busca convencer a audiência de que não havia elementos suficientes para avalizar a iniciativa do policial de disparar cinco tiros. Com base nos protocolos procedimentais do DPC, as ações do barbeiro não invocariam a percepção razoável de risco que justificaria a ação letal. A obra denuncia também a natureza racista do procedimento policial – não por meio de palavras de ordem e, sim, apontando o preconceito inscrito na movimentação de Halley. A acusação de racismo vem reforçada pelos trechos de contextualização mais ampla e pela remissão aos reincidentes casos de violência contra afro-americanos na região.

O enredo construído pelos produtores alia técnicas do documentário com a argumentação em tribunal, visando provar uma tese contrária à versão da outra parte. É uma construção que parte das alegações da polícia para em seguida desmontá-las. O discurso forense, de natureza científica, toma uma posição diante dos fatos e, explorando o efeito de objetividade que emana da exposição das evidências, defende a versão de um dos lados da disputa. No filme, a retórica evidenciária é acentuada pelos efeitos discursivos da modelagem espacial e temporal das ocorrências por meio de computação gráfica. Essas simulações ao mesmo tempo indicam precisão infinitesimal e impressionam visualmente – a retórica da exatidão maquínica encontra a imaginação artística, combinação-chave nos métodos da FA.

Six durations… desconstrói não só factualmente a alegação de legítima defesa por parte da polícia, mas também a temporalidade instituída após a divulgação inicial dos vídeos das câmeras corporais e de vigilância. Como o título já sugere, a temporalidade centraliza temática e estruturalmente a obra. As seis durações aludem aos seis segmentos de vídeo, cada qual concentrado em uma unidade temporal. A intenção é simultaneamente elucidar e questionar o foco excessivo na fração de segundo na qual Halley decidiu atirar. Assim, ao recontar a história, leva ao limite as operações de compressão e dilatação do tempo. Tomamos aqui como referência a ordem de visualização que a FA indica em seu site: “Dias”, “Horas”, “Minutos”, “Segundos”, “Milissegundos”, “Anos”. Nota-se um movimento contínuo de divisão temporal, sempre em relação à duração do incidente específico que eclode na abordagem de Augustus e se encerra nos cinco tiros. Ao final do percurso de fragmentação até a partícula mínima do milissegundo, o segmento “Anos” dilata novamente a história até encontrar as origens da segregação de Chicago e os sucessivos casos de abusos policiais contra a comunidade negra.

A apresentação do caso concentra-se nos primeiros dois segmentos, “Dias” e “Horas”. Os produtores se preocupam em evidenciar a versão oficial, apontando desde logo os jogos de manipulação: a divulgação seletiva e espaçada dos vídeos de evidência, o relato peremptório de que Augustus tentou puxar uma arma, a justificativa da decisão em uma fração de segundo, a condenação dos protestos violentos. Nesses segmentos, acompanhamos uma narrativa visual dos protestos muito diferente das que circularam anteriormente. Imagens registradas pelos celulares dos manifestantes mostram, desde os momentos iniciais, uma atitude hostil dos policiais em relação à comunidade que logo se aglomerou na área onde Augustus morreu. As fileiras de guardas atravessam as fitas de proteção instaladas pela própria polícia e atacam os manifestantes. Nesses vídeos, são os guardas os corpos descontrolados a distribuir bastonadas. Um deles se aproxima de um cinegrafista e golpeia a câmera. A reviravolta na perspectiva inverte também os estereótipos: a comunidade negra recua, defende-se, é agredida gratuitamente por policiais ferozes, irracionais.

Essa viragem já operada nos segmentos iniciais apoia-se também nos efeitos da narração por uma personagem diretamente envolvida no incidente. Trina Reynolds-Tyler nasceu e cresceu no sul de Chicago, é ativista contra a violência racial e participou dos protestos já no dia da morte de Augustus. Trabalha no Invisible Institute e envolveu-se na produção de Six durations…16 Além da perspectiva testemunhal a reforçar o ponto de vista da comunidade – em alguns momentos ela aparece na posição de entrevistada, quando então demonstra emoção ao revelar o pavor que sentiu durante os protestos –, a cadência lenta e o tom de voz baixo que perpassam toda a narração de Reynolds-Tyler ajudam a desconstruir a imagem agressiva que a polícia e as telerreportagens associaram à população local, repisando antigos preconceitos.

Os segmentos posteriores, “Minutos”, “Segundos” e “Milissegundos”, fecham gradativamente o foco nos instantes que culminam com os disparos. É aqui que a FA aplica as tecnologias contra-forenses de modo mais contundente. O filme expõe detalhes sobre os procedimentos técnicos, como a elaboração de maquete eletrônica do espaço do incidente e a modelização dos personagens envolvidos, tornados figuras capazes de revelar detalhes de cada movimento e, nas palavras da narradora, “a coreografia de todo o evento”. Na reconstituição simulada, é possível ver o acontecimento por qualquer ângulo. Pode-se reproduzir o ponto de vista de cada um dos personagens e não apenas da bodycam policial. Pode-se analisar em detalhes os movimentos de Halley em relação ao corpo de Augustus. Pode-se comparar as reações de cada agente. Pode-se ver a cena toda do ponto de vista de Augustus.

Enquanto Halley tomou a iniciativa de mirar e disparar, os outros quatro jamais apontaram a arma para Augustus (dois sequer a tiraram do coldre), numa evidente divergência na avaliação de risco. Para demonstrar as diferentes percepções, os editores do filme reconstituem a cena por meio de uma animação em três dimensões. A tela aparece em dez quadros, nos quais vemos a movimentação de cada policial em duas perspectivas: de frente e do alto. Articulado com a narração, esse tratamento das evidências prova a ação destoante de Halley.

O cerne da argumentação do filme reside no segmento “Milissegundos”. Aqui chegamos à fração de segundo invocada pela polícia. Não apenas um segundo dividido em dois, como indica a expressão split second, mas por mil. A análise das imagens fragmentadas pela simulação – e com o apoio de um equipamento de detecção precisa de som – permite isolar o horário exato do primeiro disparo: 17h30min40seg971milisseg. A animação tridimensional consegue exibir, da perspectiva do atirador, a posição do corpo de Augustus neste instante: iniciando o giro para desviar da viatura em movimento. Para isolar o instante infinitesimal em que Halley decidiu disparar, o filme entrevista o neurocientista português Thiago Branco, da University College London, apresentado como “especialista na temporalidade de decisões instintivas e tempo de resposta”. Conclusão: o ciclo completo que parte do estímulo visual e segue com o processamento da imagem no cérebro, a decisão mental de atirar, o comando para os músculos puxarem o gatilho e o disparo propriamente dito tem duração de cerca de 300 milissegundos. Assim, Halley decidiu disparar com Augustus ainda de costas para ele. “É impossível saber se Augustus está tentando puxar a arma, como a polícia afirma, ou estabiliza [o coldre] enquanto gira”, diz a narradora.

Para o neurocientista Thiago Branco, mais do que uma decisão em uma fração de segundo, o que a análise mostra é uma escalada na qual o policial encontra-se já em um limite e espera apenas um sinal mínimo para atirar. Essa situação de um limite a ser atravessado a partir de um sinal ínfimo revela, conforme Branco, um viés no comportamento de Halley, que contrasta com o movimento dos demais guardas. Ele chama a atenção ainda para o quinto tiro, disparado dois segundos após o anterior e quando Augustus já caiu no chão, uma decisão mais consciente em relação aos disparos anteriores. O viés em questão é o racismo, tema aprofundado no último segmento, “Anos”.

Nessa parte final da obra, a retórica forense dá lugar ao discurso testemunhal na forma de entrevistas com habitantes da comunidade do sul de Chicago, ativistas da causa negra e amigos da vítima. Sentados de frente para a câmera, os entrevistados mesclam depoimentos sobre o caso Augustus com contextualização histórica e da realidade cotidiana local. Há um único especialista, o professor Adam Green, da Universidade de Chicago, um homem negro e pesquisador do processo de formação urbana que gerou a hipersegregação racial da cidade.

Desse sexto segmento, chamo a atenção para dois aspectos. Primeiro, a dilatação temporal até o início do século XX, quando dos primeiros incidentes de violência policial contra a comunidade. A continuidade da tensão entre as forças de segurança e de uma população que se percebia perseguida pela polícia (violenta com a comunidade, mas incapaz de coibir crimes) levou à cultura de autodefesa. Nessa recuperação do passado, há remissão a outras pessoas negras assassinadas pela polícia na cidade (Laquan McDonald, Eugene Williams, os Panteras Negras Fred Hampton e Mark Clark), uma memória traumática acionada em cada novo caso. Desse modo, evita-se a descontextualização histórica tão comum no jornalismo tradicional. A cobertura da brutalidade policial tende a abordar os episódios de violência policial como fenômenos isolados. No máximo, citam um ou dois casos recentes. Dificilmente os situam no longo percurso de violências contra pessoas racializadas nos Estados Unidos. Essas notícias adotam também um tom de espanto diante de fatos que são corriqueiros, “narrativas de surpresa” que se adequam à “sensibilidade do agora espetacular” (Ward, 2018, p. 85) em vigor no circuito das mídias.

Muitos no público mais amplo dos Estados Unidos cedem a uma perigosa amnésia histórica ao não rejeitarem narrativas que retratam o nosso momento contemporâneo de violência extrema contra pessoas negras como algo excepcional

(ibidem, p. 85, tradução nossa).

O segundo aspecto a destacar são as falas de moradores locais que narram histórias sobre o barbeiro querido pela comunidade. Um amigo que trabalhava com ele, Rev The Barber, conta detalhes sobre o último trabalho de Augustus. O cliente era um bebê que, acompanhado do pai e do avô, cortou o cabelo pela primeira vez. “Ele foi capaz de dar uma nova vida, antes que sua vida fosse tirada”, diz The Barber quase no final. É um depoimento cujo apelo emocional funda-se na identificação com Augustus por meio da fala e da imagem do seu melhor amigo. O efeito testemunhal produz uma ruptura com os segmentos anteriores, dominados por uma estética centrada na dissecação tecnológica das imagens. Aqui, no relato humanizante de The Barber, finalmente Augustus surge como um personagem com história e personalidade. Um contraste com o corpo-vítima fantasmático que tantas vezes morre nas imagens documentais realistas e do avatar computacional puxado, agredido e baleado por todos os ângulos.

O filme reexibe exaustivamente as cenas brutais. Do primeiro ao quinto segmento, o movimento de fragmentação temporal anda em paralelo com um olhar cada vez mais detido no corpo baleado. O vídeo da bodycam aparece incontáveis vezes nesse percurso. Vemos o corpo morrer e reviver e morrer novamente – depois renascido na forma do avatar que também entra em um looping de morte e vida. Uma das animações reproduz a cena ancorada no ponto de vista de Augustus. Vemos o que ele enxergava enquanto morria, uma inversão em relação ao ângulo da bodycam do assassino. No percurso narrativo, essa reviravolta na perspectiva – transição do olhar do carrasco para o da vítima – coaduna com o objetivo de desmontar a versão policial. No entanto, ainda que a obra traga o ponto de vista de Augustus, a política de transparência não recai novamente nas ambiguidades típicas da gramática da violência? “Somos testemunhas que confirmam a verdade sobre o que aconteceu [...]? Ou somos voyeurs fascinados e repelidos por exibições de terror e sofrimento? O que a exposição do corpo violado produz?” (Hartman, 2022, p. 2, tradução nossa).

Portanto, a dimensão problemática da representação de Six durations… reside na insistência meticulosa do olhar atuarial e do discurso forense, necessários no empenho de provar o crime de Halley. São imagens fundamentais na batalha das partes em um julgamento – onde familiares e amigos estão cientes de que a exposição crua pode ser decisiva para a vitória. Deslocada para outros fóruns, ainda que com boas intenções, a estética forense corre o risco de, nas palavras de Saidiya Hartman, “replicar a gramática da violência” ao “reiterar discursos violentos e representar novamente rituais de tortura” (2020, p. 18).

Em seu site, a equipe da FA envolvida no projeto explica as decisões relativas à exposição de violência gráfica. Informa que, ao longo da contra-investigação, deparou-se com a “contradição entre a necessidade de olhar e a dificuldade de mostrar” (Forensic Architecture, 2019, s.p., tradução nossa). Dado o receio de “apresentar cenas gráficas de violência policial contra um homem negro no contexto de uma exposição” [...] e “impor imagens difíceis a visitantes que não consentiram em vê-las” (ibidem, s.p.), os realizadores optaram por exibir a obra na sede do Invisible Institute e não no espaço de exposição da Bienal de Arquitetura de Chicago. Além disso, os vídeos foram disponibilizados no site da agência.17 A FA também teve o cuidado de informar que a família de Augustus e seus representantes apoiaram e cooperaram com a investigação. “Após a conclusão do projeto, enviamos os arquivos para eles. Eles nos pediram para torná-los amplamente acessíveis” (ibidem, s.p., tradução nossa).

Eis a encruzilhada dessa decisão: ao disponibilizar a íntegra de Six durations…, ainda que com a anuência da família, FA e Invisible Institute dão acesso às cenas da morte – realista e simulada, acelerada e em câmera lenta – a qualquer espectador. A decisão dos familiares de Augustus remete à história de Emmet Till, também de Chicago, um jovem negro assassinado em 1955, aos 14 anos. Dois homens brancos torturaram e mataram Till depois de acusá-lo de assobiar para uma mulher branca – o crime foi no estado do Mississipi, onde o jovem visitava parentes. A mãe de Emmet, Mamie Till Mobley, autorizou a imprensa a fotografar o corpo de seu filho no caixão aberto. A foto do rosto desfigurado suscitou um escândalo que hoje é considerado um marco na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos (Hartman, 2020).

O fato de Mammie Till ter intencionalmente exibido o corpo de seu filho e controlado a produção e a circulação das imagens garantiu às fotografias o estatuto de contra-narrativa (Ward, 2018). Evitou, assim, que fossem usadas como souvenirs por supremacistas brancos, destino comum de fotografias de linchamentos, em que as vítimas apareciam como objetos e não como sujeitos (Apel, 2007). Dessa forma, Mamie Till “reivindicou efetivamente e afirmou enfaticamente o direito de olhar na arena pública mais ampla, onde o indivíduo negro humilhado foi novamente dotado de dignidade e humanidade em um ritual público diferente” (ibidem, p. 64, tradução nossa). Isto é, um ritual de luto, no qual, ao lado das imagens brutais, a imprensa publicou fotos de Emmet vestido como estudante e de Mamie Till em sofrimento durante o velório. A cobertura do caso “reposicionou o sujeito negro no imaginário americano e transformou a morte de um garoto negro em um evento digno de luto” (ibidem, p. 61, tradução nossa). Historicamente, cenas de luto público, especialmente protagonizadas por mulheres, estiveram associadas ao confronto de injustiças e à reparação de sofrimento (Celeste, 2018). Neste sentido, o luto público seria uma espécie de antídoto contra a espetacularização da violência e a desumanização da vítima. Foi esse o papel de Mamie Till e de outras tantas mães de vítimas de violência policial ao longo da história.

O último segmento de Six durations… se encerra exatamente com cenas de luto. A violência e os protestos ficaram para trás. Agora vemos uma pequena multidão cantando, um ritual de lamento pela perda. Uma série de fotografias mostra arranjos fúnebres em frente à barbearia de Augustus. Em uma das imagens, uma senhora usa um chapéu preto, segura flores, e é amparada por um rapaz jovem, o semblante expressando cansaço e sofrimento. Será a mãe de Augustus? O filme não informa. “A mulher que lamenta é uma figura poderosa. Em muitas culturas ao redor do mundo e ao longo do tempo, ela desempenha um papel importante no luto e na cura da comunidade” (Celeste, 2018, p. 119, tradução nossa). O filme acaba com uma tela preta, o canto elegíaco ao fundo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos ao longo do texto articular algumas questões cruciais sobre a incorporação de vídeos de evidência em narrativas de acontecimentos violentos, especialmente incidentes de violação de direitos humanos. Para tanto, realizamos um estudo de caso envolvendo o homicídio de Harith Augustus, em 2018, um homem negro baleado pelo policial Dillan Halley na região sul de Chicago. Vimos como duas emissoras de TV, ABC e CBS, ao se apropriarem das imagens da bodycam, construíram uma versão favorável à polícia – ainda que os jornalistas tenham criticado a divulgação seletiva dos arquivos. O endosso se deu pela repetição da cena dos disparos, em que Augustus realiza um movimento ambíguo em direção ao coldre fechado. A representação do acontecimento pelas redes de TV revelou-se, assim, duplamente problemática. Primeiro, por deixar em segundo plano a duração completa da ocorrência, pois o racismo dos policiais se expressa sobretudo na abordagem abrupta e agressiva, cuja cadeia causal redundou na morte da vítima. O segundo aspecto reprovável é a repetição descuidada dos instantes violentos, acarretando em um apelo sensacionalista.

A obra Six durations of a split second foi lançada com o objetivo deliberado de desmontar a versão oficial. Trata-se de um objeto visual singular e expressivo de uma nova forma de atuação de ativistas da área de direitos humanos, que denominamos contra-forense. A retórica tecnocientífica empregada pelos realizadores, articulada em certos momentos com métodos tradicionais do filme documentário, originou uma narrativa convincente sobre a responsabilidade do policial que matou o barbeiro. Lançada mais de um ano após o incidente, renovou a atenção aos procedimentos racistas do DPC. Além disso, a obra permanecerá como uma memória da injustiça cometida contra Harith Augustus. No entanto, não contribuiu para consequências efetivas no âmbito judicial.

Quanto à representação da violência em Six durations…, a obra encarna exemplarmente os dilemas sobre o uso de vídeos explícitos na luta por justiça. A necessidade de destrinchar o acontecimento até a unidade mínima e de provar o assassinato reconstituindo meticulosamente a coreografia dos corpos leva à repetição quase obscena da morte. Embora traga o ponto de vista de Augustus, a política de transparência total contraria o resguardo com a memória da vítima e, uma vez disponível a qualquer espectador, pode retraumatizar a comunidade envolvida. Assim, ao estender a visão da morte no tempo e no espaço, arrisca-se a violar, nas palavras de André Bazin (1983), “o único dos nossos bens temporalmente inalienável” – aqui até a unidade mínima do milissegundo.

  • 1
    Este artigo compõe parte dos resultados do projeto de pesquisa “Visualidade e violência repressiva nas Américas – Um estudo sobre o papel da videografia no debate público sobre abusos das forças de segurança no Brasil, México e Estados Unidos”, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a quem agradeço.
  • 2
    Este artigo é uma versão substancialmente revista e ampliada de um trabalho anteriormente apresentado no 33° Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação – Compós.
  • 3
    A família de Augustus abriu um processo civil contra Dillan Halley e o Departamento de Polícia de Chicago alguns meses após o incidente, em 2018. Em julho de 2023, o júri deu um veredito favorável aos policiais (Heather, 2023).
  • 4
    A Forensic Architecture (FA) se apresenta como uma agência de investigação com foco em direitos humanos. Já desenvolveu projetos com denúncias de violação de direitos humanos, genocídio e destruição ambiental envolvendo a ocupação de Gaza por Israel, tortura de prisioneiros na Síria, assassinato movido por racismo pela polícia dos Estados Unidos e da Inglaterra, brutalidade contra manifestantes no Chile e na Colômbia, violência contra refugiados na Alemanha e na Itália, mineração ilegal na Amazônia brasileira, entre muitos outros. O grupo lista e detalha todos os projetos de investigação no seu site. Disponível em: https://forensic-architecture.org. Acesso em: 30 out. 2024.
  • 5
    Os seis vídeos que compõem a obra estão disponíveis em uma mesma página do site da agência. Disponível em: https://forensic-architecture.org/investigation/the-killing-of-harith-augustus. Acesso em: 30 out. 2024.
  • 6
    O objetivo geral da pesquisa é efetuar uma análise comparativa de episódios de violência policial registrados em vídeo. O trabalho inclui casos de três países das Américas: Brasil, México e Estados Unidos. Este artigo integra a etapa estadunidense do projeto, realizada durante os meses de agosto de 2023 e fevereiro de 2024, no âmbito do Comparative Media Studies/Writing do Massachusetts Institute of Technology.
  • 7
    “Vidas negras importam”, em tradução livre.
  • 8
    O site oficial do movimento informa que o Black Lives Matter foi criado pelas ativistas Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi depois que a justiça absolveu o assassino do jovem negro Trayvon Martin, o segurança privado George Zimmermann. O caso aconteceu em fevereiro de 2012, em Sanford, estado da Flórida. Já o julgamento que absolveu Zimmermann foi realizado em junho de 2013 (Black Lives Matter, 2017). Disponível em: https://blacklivesmatter.com/herstory/. Acesso em: 30 out. 2024.
  • 9
    A versão bruta do vídeo divulgado pelo Departamento de Polícia de Chicago pode ser vista nesta reportagem do site da ABC: https://abc7chicago.com/chicago-police-shooting-body-camera-video-protests/3974290/. Acesso em: 30 out. 2024.
  • 10
    Feldman (2005) usa indistintamente os termos “atuarial” e “forense” na sua análise da cultura visual contemporânea. Assim, aqui também trataremos os conceitos como sinônimos.
  • 11
    Conforme Richardson (2020), um estudo do Washington Post concluiu que, apesar de a polícia estadunidense ter matado milhares de pessoas entre 2005 e 2014, apenas 54 policiais foram condenados no período.
  • 12
    Six durations… circulou também no formato de filme de curta-metragem em mostras de cinema. Integrou, por exemplo, a programação da 15a edição do CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte, em 2021.
  • 13
    Há outros grupos que se destacam na paisagem contra-forense: Witness, ONG global que capacita sujeitos a captar imagens em situações de brutalidade e utilizá-las em denúncias; Belingcat, um coletivo altamente capilarizado pelo mundo, com projetos de inteligência colaborativa em ferramentas de código aberto e processamento de dados públicos; o Citizen Evidence Lab da Anístia Internacional, também apoiado em fontes de informações espalhadas e com voluntários em várias partes do mundo; Situ Research, que empreende projetos apoiados em design e em ferramentas tecnológicas abertas; Mnemonic Group, cujo objetivo principal é criar – ou apoiar a criação – de arquivos com vídeos e fotos de violações de direitos humanos tomadas sobretudo em regiões com acesso limitado à internet e a tecnologias digitais. Além disso, veículos tradicionais de imprensa gradualmente incorporam as mesmas tecnologias de processamento e visualização de dados nas suas próprias investigações, como New York Times, The Guardian, Washington Post e The Intercept .
  • 14
    Quem disponibilizou os vídeos foi o órgão da prefeitura de Chicago que fiscaliza o trabalho da polícia, o Civilian Office of Police Accountability (Escritório Civil de Accountability Policial, em tradução livre). A criação do COPA, em 2016, foi consequência direta do acúmulo de denúncias de violência policial e da pressão de ativistas e de organizações como o Invisible Institute.
  • 15
    O site do grupo lista uma série de notícias e outros conteúdos midiáticos produzidos na esteira da exibição da obra: da revista digital Artnet, com foco no mundo das artes, a títulos fortes no mercado financeiro, como Financial Times e a agência Bloomberg. (Forensic Architecture, 2019). Disponível em: https://forensic-architecture.org/investigation/the-killing-of-harith-augustus. Acesso em: 30 out. 2024.
  • 16
    As informações constam no próprio filme.
  • 17
    Os vídeos que integram a obra Six durations of a split second foram publicados no canal da FA no YouTube em 21/10/2020, treze meses após a abertura da III Bienal de Arquitetura de Chicago. Disponível em: www.youtube.com/@forensicarchitecture1967. Acesso em: 30 out. 2024.

Disponibilidade de dados de pesquisa

Os dados de pesquisa estão disponíveis no corpo do documento.

REFERÊNCIAS

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OBJETOS AUDIOVISUAIS ANALISADOS

Filme/vídeo

Editado por

  • Editores responsáveis:
    Adriana Teixeira
    Fábio Fonseca de Castro
    Maurício Ribeiro da Silva
    Norval Baitello

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2024
  • Aceito
    24 Maio 2025
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