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O espectador sonolento e o cinema da lentidão: Serra, Kiarostami, Apichatpong

Slumber spectator and cinema of slowness: Serra, Kiarostami, Apichatpong

Resumo

Este artigo analisa efeitos de sonolência construídos no interior três filmes recentes: Honra dos cavaleiros (Albert Serra), Tio Boonmee (Apichatpong Weerasethakul) e Five (Abbas Kiarostami). Nossa hipótese aponta como o sono, assumido como uma reação possível do espectador ante a lentidão de tais filmes, aparece como subproduto de uma nova relação entre espectador e tela, que, por sua vez, performa novas torções em um problema subjetivo já reconhecido por Deleuze em A Imagem-Tempo: a ruptura na ligação entre homem/mulher e mundo.

Palavras-chave
cinema contemporâneo; espectoralidade; cinema de lentidão; imagem-tempo

Abstract

This paper examines the effects of sleepness built inside three recent films: Honor of the Knigths (Albert Serra), Uncle Boonmee (Apichatpong Weerasethakul) and Five (Abbas Kiarostami). Our hypothesis points to the way sleep, which is assumed as a possible reaction to the film’s slowness, takes the form of a byproduct of a new relationship between spectator and screen, which, in turn, performs new twists on subjective problem recognized by Deleuze in The Time-Image: the rupture of the connection between man/woman and the world.

Keywords
contemporary cinema; spectatorship; slow cinema; time-image

Sempre durmo quando estou vendo filmes. Fui condicionado, desde pequenino, a associar a escuridão com o sono. Quando apagavam a luz, eu tinha de dormir: Por isso hoje em dia, quando estou vendo televisão com a luz acesa e chega alguém e apaga, durmo profundamente, num instante. No cinema, é a mesma coisa: assim que começa a sessão e a luz é apagada, durmo.

(Gabriel García Márquez, 2004MARQUEZ, G. G. Como contar um conto. Niterói, RJ: Casa Jorge, 2004., p. 57)

Sleep, sleeping

Quando Andy Warhol exibiu as mais de cinco horas de seu vídeo de um homem dormindo, na primeira sessão de Sleep, em janeiro de 1964, sob o olhar pouco interessado de não mais do que nove pessoas, ele nos ofereceu uma imagem bastante fértil para pensarmos certa condição da relação entre o olhar e a tela que começava a se constituir como um dos centros nervosos do cinema: a imagem já não depende de um olhar, cujas demandas cognitivas, de prazer ou de atenção ela teria a função de satisfazer, de modo que a relação entre o espectador e a tela admite toda ordem de desvios na atenção, como o sono ou mesmo sua ruptura definitiva, com o abandono da sala. O homem que vemos dormindo na tela (John Giorno, companheiro de Warhol) parece convidar o espectador a fazer o mesmo, como se o filme fosse, de certa maneira, indiferente à presença ou não de um olhar com que manter uma relação consistente e duradoura. Ao criar um filme que resiste a ser assistido de modo completo e contínuo, mas que, ainda assim, é exibido em sala de cinema, Warhol punha em evidência a incompatibilidade entre a obra e o dispositivo no qual ela se inscrevia: a arquitetura de uma sala, organizada para que a atenção esteja inteira e permanentemente concentrada no que é projetado.

Quatro ou cinco décadas depois, alguns dos mais celebrados diretores do circuito de cinema autoral, como Abbas Kiarostami e Apichatpong Weerasethakul, assumiriam, em distintas situações, que o sono ou simplesmente a desatenção do espectador são reações possíveis, às vezes até desejáveis, a seus filmes, pois o estado de dormência ou dispersão não caracterizariam modos menores de espectoralidade (QUANDT, 2009QUANDT, J. (org.). Apichatpong Weerasethakul. Vienna: Synema, 2009., p. 189; REMES, 2016REMES, J. The sleeping spectator: non-human aesthetics in Abbas Kiarostami’s Five: Dedicated to Ozu. In: JORGE, N.; DE LUCA, T. (orgs). Slow cinema. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2016., p. 42). Tais diretores são alguns dos expoentes de tendências das cinematografias contemporâneas em que o filme encena uma lentidão desconcertante, em cuja extensão as conexões entre olhar e imagem são postas em risco de ruptura. Experimentos como Five (2001) e 24 frames (2017), de Kiarostami, ou os trabalhos do norte-americano James Benning, feitos de quadros estáticos e longos de paisagens com pouco ou nenhum movimento; os filmes de longuíssima duração de Lav Diaz ou Béla Tarr, com 3 a 8 horas, que extravasam o limite usual do longa-metragem; a poética enfaticamente sonolenta dos filmes de Apichatpong, como Tio Boonmee (2010) e Hotel Mekong (2012), são obras com frequência descritas como de difícil fruição, não por alguma complexidade do discurso, que exigiria do espectador acuidade intelectual, mas por apresentarem um desafio ao corpo em manter a atenção concentrada em conteúdos aparentemente evasivos.

O sono aparece como uma reação espontânea do olhar diante da temporalidade fílmica, de modo que a sonolência do espectador não contraria ou diminui o efeito das imagens, mas, pelo contrário, ela concretiza uma nova tensão entre o vivente e a matéria sensível, reivindicada por tais criações estéticas. Tal tensão desenvolve um problema já anunciado no seminal livro de Gilles Deleuze sobre o cinema moderno, Cinema 2 – A imagem-tempo: a crise na relação entre homem/mulher e mundo, agora performada pelas ameaças de desligamento na conexão entre olhar e tela.

Este artigo pretende discutir experiências cinematográficas contemporâneas em que o estado de sonolência ou de desatenção é ativamente suscitado pelo filme, observando, nesse gesto estético, a colocação em cena de um problema que atravessa a subjetividade da última virada de século. Qual o estatuto de uma imagem que parece prescindir do olhar atento do espectador que absorve a obra do começo ao fim, percebendo a totalidade de seus estímulos visuais e sonoros?

Segundo a hipótese que construiremos à frente, o cinema contemporâneo faz circular um impulso de emancipação da imagem frente ao olhar, quando aparece desobrigado de atender os fluxos de atenção de um sujeito espectador. Analisaremos obras de dois diretores marcadas pela inserção de um olhar sonolento no interior da narrativa ou da construção cênica, a saber, Honra dos cavaleiros (Albert Serra, 2006), Tio Boonmee (Weerasethakul, 2010) e Hotel Mekong (Weerasethakul, 2012), passando também por Five (Abbas Kiarostami, 2003), cujas imagens efetivam — como apontaremos — a utopia de uma radical igualdade ontológica entre homens e coisas, entre o material e o imaterial. Nesse percurso, encontraremos nos conceitos de percepto e afeto, desenvolvidos por Gilles Deleuze e Félix Guattari, a descrição de uma das forças motrizes da arte contemporânea, com forte potencial de aplicação ao problema do sono posto ao cinema da lentidão.

Sancho contemporâneo contra o velho Quixote

Em Honra dos cavaleiros, Albert Serra faz sua adaptação da estória de Dom Quixote. Como uma espécie de dupla beckecttiana, Quixote e Sancho deambulam solitários por uma zona desértica, à espera de que se revele algum inimigo, ou mesmo Deus, por entre as paisagens morosas dos sutis movimentos do vento nas folhas e dos cantos de insetos. Logo no começo, temos uma cena que se repetiria ao longo do filme: os dois companheiros, eretos, em posição de alerta, miram as copas de árvores cujos galhos poderiam guardar o motivo de uma aventura heroica, fosse um inimigo escondido, fosse um sinal divino.

Mas o tempo escorre sem que nada de extraordinário emerja da paisagem, que não deixa ver senão o movimento vibratório das folhas e as oscilações da luz solar de acordo com a condição atmosférica. Sancho, então, cochila em pé, balançando o corpo para a frente e para trás, enquanto Quixote acusa-o de dormir demais, o que o deixaria desatento aos fenômenos ao redor. Sancho ouve sempre calado as acusações, como quem sabe que, ali, de alguma maneira, o silêncio exerce um poder cortante.

Os personagens sintetizam dois tipos de relação com as paisagens: o visível e o audível — Quixote, com sua ilusão de poder, é fiel a um modo de atenção que demanda do corpo a permanente vigília, esperançoso de que, a qualquer momento, seus olhos flagrarão o descortinar de uma experiência plena de sentido; Sancho, porém, já descrente de que seu campo visível lhe reserve algo de arrebatador, experimenta o gesto de contemplar o tempo morto da paisagem como se o ato de olhar tivesse se confundido com o puro existir do corpo. Diante das copas das árvores, enquanto assistem ao longo filme dessas folhas que dormem mansas sob o balanço dos galhos, a figura de Quixote é marcada pela crença de que, por trás do imediatamente visível, refugia-se o mistério que somente um olhar atento e alerta seria capaz de flagrar, motivo pelo qual tudo deve ser visto, se possível, em sua inteireza; já Sancho deixa-se dormir sem sentimento de culpa, não por desinteresse pela paisagem, mas por saber que as coisas vistas são indiferentes à presença de um olhar que as flagre.

Da parte de Quixote, a relação entre olhar e imagem é orientada pela crença de que os objetos ao redor encobririam algo de mais profundo, e que bastaria escavar minuciosamente com os olhos para descobrir; ou como Deleuze elabora, em carta a Serge Daney, ao sintetizar a orientação de sua leitura da imagem-movimento, encara o visível guiando-se pela questão: “o que há por trás [da imagem]?” (1992, p. 60). Serra faz de Quixote a loucura dos que creem que a expectativa-do-olhar e o mundo-visto são, por definição, coisas que, mais hora ou menos hora, se conciliariam em um acoplamento eficaz, como se a revelação do fenômeno extraordinário — o surgimento do inimigo ou o sinal de Deus, que serão, aqui, a mesma coisa — servisse à satisfação de uma demanda pelo preenchimento da experiência, proveniente do sujeito que olha. Do outro lado, a postura silenciosa de Sancho, oposta à falante de seu amo, traz no corpo um estado de descrença, em que toda expectativa tomou a forma de uma espera sem objeto, de modo que olhar e visível aparecem reiteradamente desencaixados, cada qual implicado em seu curso próprio.

Se associamos o olhar de Quixote à elaboração de Deleuze na carta a Daney acerca da imagem-movimento, seríamos, agora, tentados a completar o par, associando o olhar de Sancho à formulação que logo em seguida esse mesmo autor atribuiria à imagem-tempo, guiada pela pergunta, “o que há para ver na imagem?” (idem, ibidem), em que o quadro contém, já em seu interior, a virtualidade que corta o visível. Mas aí residiria o erro, pois o que Serra nos propõe — um dos centros de força no cinema da lentidão e seu espectador sonolento das últimas décadas — está algo além da imagem-tempo — e esta é a hipótese que gostaríamos de esboçar neste artigo.

É certo que os dois aventureiros de Serra guardam linhas de analogia com os deambulantes que povoam os primeiros capítulos do livro A imagem-tempo. Se as personagens de Ingrid Bergman, nos filmes de Rossellini, eram lançadas de diante das visões traumáticas que jorram do ínfimo cotidiano para lhes tomar de assalto o corpo — das quais o vulcão de Stromboli (1950) ou a fábrica de Europa 51 (1952) seriam as melhores sínteses (DELEUZE, 2019b______. Cinema 2 – A imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2019b., cap. 1) — Quixote, por sua vez, estaria marcado pela espera eterna de que algo da mesma força lhe arrebate o olhar, observando o areal extenso como quem espreita um gigante tectônico, que a qualquer momento explodiria sua erupção. Nosso herói, então, seria um espectador frustrado de um mundo cujas paisagens já não performam um espetáculo que ofereça, ainda que de maneira trágica, alguma forma de arrebatamento.

Mas, o que é do corpo sonolento de Sancho, oposto ao corpo alerta de Quixote, em certa medida um regime de atenção do servo contra um regime de atenção do amo? Como gostaríamos de apontar à frente, o olhar de Sancho sintetiza uma relação entre vivente e matéria sensível que o cinema contemporâneo põe em circulação, a aparecer como o reconhecimento de uma emancipação das imagens e sons ante as demandas por sentido oriundas do olhar humano.

Encontros acidentais entre imagem e olhar

Podemos dizer que, em Five dedicated to Ozu (2003), Abbas Kiarostami põe-nos diante de imagens muito semelhantes àquelas que Quixote e Sancho, por suposto, assistiam nas copas das árvores: em quadros fixos e longos, vemos paisagens ao redor de uma praia composta de objetos em movimentos, às vezes, oscilatórios, variações de luz, fluxos de velocidades e volumes. Os cinco planos poderiam ser vistos sob os dois regimes de olhar que caracterizamos atrás: como Quixote, esperaríamos pelo instante em que a imagem satisfaria a expectativa que o olhar lhe dirige; como Sancho, reconheceríamos que aquilo que vemos e ouvimos segue um curso próprio, de maneira que seu encontro com nosso olhar poderá ser, no máximo, um alegre acidente.

Por um lado, os planos de Five entregam-nos uma certa graciosidade, como na bem-humorada correria dos patos, ou uma tensão humana personificada nos objetos, como no drama do toco de madeira que, dividido em dois pedaços, tem suas partes separadas pelo galeio das ondas, a enterrar uma na areia enquanto lança a outra ao mar, diante do que não seria difícil ver uma narrativa de separação e solidão. Por outro lado, as coisas que constituem a paisagem, e a própria paisagem em si, parecem já emancipadas das categorias com que mensuramos e nomeamos a experiência humana, mas às quais elas poderão convergir de maneira casual: é acidental que o toco de madeira inscreva-se em uma narrativa de aventura entre a terra e o mar, que as variações de velocidades e cores dos patos adquiram um humor capaz de encantar, que a queda gradativa da luz transforme os cachorros na praia em pontos escuros parecidos a insetos, ou que a alternância entre ruídos de trovões e coaxar de sapos harmonizem-se em uma cadência quase musical.

As imagens e os ruídos habitam uma zona limiar entre, de um lado, a convergência acidental em direção às expectativas humanas que organizam o sensível por meio das categorias de sua própria experiência e, de outro lado, o impulso que, já não reconhecendo no homem um centro diretivo, reivindica, às coisas que constituem o campo sensível, o seu curso de liberdade — não a liberdade para vê-las e ouvi-las ou tampouco para criá-las, mas a liberdade das coisas mesmas, e, entre elas, a imagem e o som. Como elabora Justin Remes, em Five, o visível/audível “existe e performa sua função, mesmo (ou talvez, especialmente) se o espectador não o puder ver ou ouvir” (REMES, 2016REMES, J. The sleeping spectator: non-human aesthetics in Abbas Kiarostami’s Five: Dedicated to Ozu. In: JORGE, N.; DE LUCA, T. (orgs). Slow cinema. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2016., p. 236). Se as imagens de Five mobilizam uma ruptura com o antropocentrismo, isso dirá menos respeito, aponta ainda Remes, ao conteúdo ou à representação — nos quais as figuras humanas estariam ausentes ou escassas, em favor de elementos da natureza — do que a uma performance da imagem diante do olhar do espectador, diante do qual ela insinua romper o compromisso de uma ligação estável para deixar que toda a conexão se dê sob a forma de encontros casuais e parciais. Isto é, a liberação da imagem — como gostaríamos de chamar esse processo — não está suposta “apenas ao fato de que os humanos estão presentes de maneira somente marginal nos filmes [...], mas também porque o filme se satisfaz sem sequer um observador consciente” (REMES, 2016REMES, J. The sleeping spectator: non-human aesthetics in Abbas Kiarostami’s Five: Dedicated to Ozu. In: JORGE, N.; DE LUCA, T. (orgs). Slow cinema. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2016., p. 236, tradução nossa).

Há uma desmesura no sensível que parece exceder a capacidade de percepção de um indivíduo, como se faltassem olhos para tanta imagem e, ao mesmo tempo, isso já não mais importasse. Esse excedente da imagem já comparecia, com efeito distinto, nos conceitos que povoam a leitura deleuziana do cinema moderno, em A imagem-tempo. Quando “alguma coisa tornou-se forte demais na imagem” (DELEUZE, 2019b______. Cinema 2 – A imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2019b., p. 36) — o que é simbolizado, conforme já apontamos, pelo vulcão de Stromboli, visto pela personagem de Ingrid Bergman —, o mundo sensível foi fraturado pela tragicidade do insuportável, do intolerável, do impensável1 1 Sobre tais categorias, pode-se ver, em A imagem-tempo, por exemplo: o insuportável, p. 13 e 35; o intolerável, p. 35, 246-248 e 257; o impensável, todo o capítulo 8. , categorias cuja negatividade acusa o limite do olhar e do corpo que olha/escuta, ao mesmo tempo em que aponta para algo que, no interior da imagem, resta como inapreensível diante de um sujeito que já não pode estar à altura da inteireza das coisas que apreende.

O cinema moderno, de maneira geral, encenou reiteradamente, sob variadas formas estilísticas, o choque do corpo que flagra esse excedente a saltar do visível carregado de um efeito traumático. Os deambulantes de Rossellini, De Sica, Antonioni, Godard, Bresson, trazem no gesto o impacto desse mundo para o qual já não existe mais resposta adequada, como se o corpo não tivesse repertório para reagir à altura daquilo que ele presencia, e a percepção tivesse perdido o seu centro de orientação diante de uma matéria perceptual que transborda sua capacidade de perceber — o que, nas palavras de Deleuze, é sintetizado pela “ruptura do esquema sensório-motor”.

Porém, os deambulantes dos cinemas contemporâneos — a começar por Sancho, mas aos quais se poderiam somar os suicidas de Gosto de cereja (Abbas Kiarostami, 1997) e Japão (Carlos Reygadas, 2002), o documentarista de O vento nos levará (Abbas Kiarostami, 1999), o operário de Em busca da vida (Jia Zhangke, 2006), personagens de Lisandro Alonso e Sharunas Bartas — parecem desafetados de qualquer efeito traumático.

Dessa maneira, diríamos que o sensível, nas paisagens de Honra dos cavaleiros ou nos quadros de Five, ao perder o centro de orientação da apreensão, convoca um inapreensível que surge na forma do excesso de tempo e de micromovimentos ou microrruídos espalhados pela superfície da imagem. A duração desmesurada dos planos sugere, portanto, a abertura de um desencaixe entre o olhar e a tela, povoando o filme por agitações moleculares da imagem, a pôr-se no, ou além do, limite do apreensível. O cinema da lentidão aparece como uma forma de trabalhar o excesso, não de códigos ou de sentimentos, mas o excesso de tempo ou o excesso de imagens e sons puros, carregando para o filme o risco do imperceptível. Sob esse regime, a matéria fílmica é revelada justamente no movimento de exceder a capacidade de percepção do sujeito, porém, sem que, como ocorria na imagem-tempo, esse excedente converta-se à forma de um choque, isto é, sem que seja preciso condensá-lo no corpo anestesiado (como em personagens neorrealistas) ou na encenação hiperteatralizada (como de cinemanovistas), para se perpetuar, então, na forma de uma relação de casualidade e acidentalidade entre o corpo e a tela.

Portanto, dizemos que o espectador sonolento é o subproduto de um estatuto da imagem a despontar no cinema contemporâneo, segundo o qual a possibilidade de não ver e não ouvir aparece como efeito do reconhecimento de que o visível e o audível já não precisam de nós e de nossa atenção, já não convergem para nossa percepção, desobrigados de atender às expectativas de um sujeito que se quer ontologicamente superior às coisas.

Da percepção ao percepto

Seria em O que é a filosofia que Deleuze e Guattari nos ofereceriam um par de conceitos com potencial descritivo acerca dessa condição do sensível que aqui atribuímos ao cinema contemporâneo e de que o espectador sonolento aparece como um subproduto. Para isso, gostaríamos, então, de fazer um breve desvio em direção à filosofia, a fim de comparar duas redes de conceitos com que o pensamento deleuziano abordou o cinema e a experiência estética, apostando que essa comparação guarde uma homologia com a transformação no estatuto da imagem que colhemos em Albert Serra e Kiarostami.

De um lado, lembremos a tríade de conceitos que estrutura a taxonomia do livro A imagem-movimento: a percepção, a afecção e a ação; de outro lado, tomemos o par que, em O que é a filosofia, é atribuído às artes: afecto e percepto. O que se altera entre a primeira e a segunda cadeia de conceitos? Não devemos nos preocupar com a redução de três para dois conceitos, mediante a exclusão da ação, mas sim com: o que muda entre os substantivos de final pção/cção e os de final ecto/epto? Como elaboraremos a seguir, centrando-nos na distinção entre percepção e percepto, ambas as redes de conceitos não designam apenas objetos diferentes, mas acionam regimes distintos de relação entre o vivente e a matéria sensível.

Percepção tem uma história pregressa na fenomenologia, bem como na filosofia bergsoniana, fonte assumida de Deleuze nos livros sobre cinema. O conceito carrega consigo o peso da experiência, indicando um encontro eficaz entre o corpo, suas capacidades de perceber e sentir, e a matéria que o rodeia. Dessa maneira, no pensamento fenomenológico, em linhas bastante gerais, a percepção supõe a coalização entre olhar e imagem, que se desdobra no repertório constituído na ordem do vivido. Em síntese, diríamos que a percepção e a afecção, aqui, estão fundadas pela zona de intersecção entre a capacidade de absorção do corpo e aquilo que a matéria apreensível lhe oferece, de maneira a fundar-se no acoplamento ajustado entre o visível e o vivente. Nesse regime, o objeto é apreendido por meio de sua adequação ao corpo, o que não quer dizer que isso se dará sob a forma de harmonias desobstruídas, mas, ao contrário, advirá com frequência como uma conciliação custosa, que o pensamento fenomenológico não cansou de dramatizar.

Esse encontro dramatizado entre o visível e o vivente comparece no exemplo primordial tomado por Deleuze ao conceitualizar a imagem-percepção, extraído do filme Não matarás (Ernst Lubitsch, 1932). Na cena, um desfile militar é assistido por uma plateia em pé, quando um aleijado encaixa seu olhar pelo vão da perna que falta a um amputado (DELEUZE, 2019a______. Cinema 1 – A imagem-movimento. São Paulo: Editora 34, 2019a., p. 34 e 115)2 2 “[U]ma imagem-percepção exemplar: a multidão vista de costas à altura de meio homem deixa um intervalo que corresponde à perna que falta a um mutilado; é por este intervalo que outro mutilado, um homem-tronco, verá o desfile que está passando.” (DELEUZE, 2019a, p. 115). . A dramaticidade do encontro entre o olhar e o show tensiona os limites desse ajuste improvável, de modo que o acoplamento eficaz entre o visível e o sujeito da visão — o desfile e o olhar de uma pessoa sugestivamente em cadeira de rodas, encontrando um vão inesperado — precisa ser encenado com certo humor.

No pensamento de Henri Bergson, por sua vez, a percepção funciona como um aparelho seletor que, dentre a infinidade de estímulos ao redor do corpo, filtra aqueles com que a vida possa compor alguma relação interessada. Nesse sentido, o autor pode enunciar que a percepção seria já a manifestação nascente, e dotada de alto grau de virtualidade, da ação com que o corpo responderá ao estímulo externo. Assim, entende-se o porquê de Deleuze mobilizar a percepção como categoria definidora de um dos tipos de imagem-movimento: ela implica uma relação de encontro consistente entre o corpo e o estímulo que somente poderia ser central em um sistema de imagens orientado pela continuidade sensório-motora. Paola Marrati, comentadora de Deleuze, chamaria a atenção para tal aspecto da percepção em Bergson e Deleuze ao apontar que ela “me dá a ver a face utilizável das coisas de modo que a ação aprende a utilizá-las. A percepção é sempre sensório-motora e pragmática, sempre orientada para e em direção às necessidades e aos interesses da vida”. (MARRATI, 2003MARRATI, P. Gilles Deleuze. Cinéma et philosophie. Paris: Presses Universitaires de France, 2003., p. 48, tradução nossa).

Portanto, seja na acepção fenomenológica, seja na bergsoniana, o conceito de percepção designa o momento feliz em que surge um ajuste entre imagem e olhar, atuando como um dispositivo conciliador, mediante o que qualquer desencaixe aparece como um problema ou uma falha nessa relação de troca entre corpo e mundo. Sob um regime de trocas fundamentadas pela percepção, a matéria sensível que não se orienta para o encontro com o corpo do percipiente (aquele que percebe), dimensionado por sua estatura humana, adquire a forma de um déficit ou excesso cuja existência careceria de justificativa. Em outras palavras, em uma experiência estética balizada pela noção de percepção, o espectador que adormece ou desvia a atenção ou a imagem que não se faz perceber interditariam a conexão entre receptor e obra, logo um obstáculo no curso da espectoralidade.

De outro lado, porém, temos o percepto e o afecto, conceitos desenvolvidos por Deleuze e Guattari em 1992, quase dez após o lançamento de A imagem-movimento, de 1983, que surgirão, conforme propomos aqui, a fim de caracterizar uma condição da matéria sensível já desprovida da força conciliadora que a levaria em direção à sua apreensão. Tal par de conceitos procura dar conta de descrever uma cisão na experiência, a ponto de tornar as categorias de sujeito e objeto obsoletas diante de um mundo sensível que se desdobra prescindindo — e à revelia — de uma instância subjetiva que lhe reconheça os predicados; trata-se, então, do aparecimento de uma matéria sensível que já não precisa de um corpo que a apreenda e para o qual ela deveria convergir, matéria que somente poderá aparecer na forma de movimento emergente a reivindicar uma emancipação.

Por isso, Deleuze dirá que os perceptos, distintamente das percepções, que estão obrigatoriamente cravadas na comunhão entre a matéria apreensível e o vivente que a percebe, “são pacotes de sensações e de relações que sobrevivem àqueles que os vivenciam” (DELEUZE, 1992DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992., p. 171). O percepto, ao contrário da matéria sensível implicada nas relações orientadas pela forma da percepção, comporta o visível que possivelmente jamais encontrará — ou que encontrará de forma breve e acidental — um olhar com que componha algum tipo de arranjo, sem que esse desencontro implique um déficit de existência.

Certamente o próprio conceito de imagem desenvolvido por Bergson, em Matéria e memória (2010), já induzia a pensar certa indiferença do sensível diante do alcance de apreensão dos corpos e daquilo que eles efetivamente apreendem na concretude da experiência. Na definição desse autor, a imagem pode ser considerada a dimensão perceptível das coisas, cravada, portanto, em sua materialidade, independentes de serem ou não percebidas. Desse modo, haverá um intervalo multi-habitado entre a imagem e a percepção.

É verdade que uma imagem pode ser sem ser percebida; pode estar presente sem estar representada; e a distância entre estes dois termos, presença e representação, parece justamente medir o intervalo entre a própria matéria e a percepção consciente que temos dela. (BERGSON, 2010______. Matéria e Memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 32.)

Há para as imagens uma simples diferença de grau, e não de natureza, entre ser e ser conscientemente percebidas. (BERGSON, 2010______. Matéria e Memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 35.)

A noção bergsoniana de imagem prenunciava, portanto, a condição sensível que seria, quase cem anos depois, descrita pelo conceito de percepto, porém, agora substancialmente nutrida pelas experiências artísticas das últimas décadas. Mais do que isso, o percepto traz consigo, ainda, o drama de uma tensão, na qual é preciso recusar o ajuste eficaz entre o sensível e o corpo que o apreende, para que o primeiro conquiste o direito a uma existência não convergente, mas aberta a encontros acidentais com os aparelhos perceptivos.

Em vez de indicar uma componente da percepção, o percepto nomeia aquilo que circula entre os mundos e submundos da matéria apreensível, seja porque é passível de exceder a capacidade de percepção do vivente, seja porque é o próprio vivente quem, ao reconhecer a existência de tais submundos, permite-se desviar a atenção. Quando adquire a espessura do percepto, a imagem cinematográfica já não se conforma aos olhares que investigam, interpretam ou demandam satisfação, preferindo os olhares que lhe dão espaço, que algumas vezes se retiram em definitivo ou apenas parcialmente, como os de um espectador sonolento, a acompanhar o filme sabendo que toda experiência estética que se queira potente é fraturada pela latência de um desencontro.

Os submundos do visível: Apichatpong

Em filmes como Tio Boonmee e Hotel Mekong, Apichatpong Weerasethakul faria do estado de sonolência um caminho estético que orienta de maneira transversal a criação fílmica, aparecendo como um componente interno à narrativa e, em outra instância, um flexionador do tempo dos planos e das transições da banda sonora. O sono dirige-se tanto ao corpo do espectador, como um efeito sensorial, quanto aos dos personagens, como um elemento narrativo. A sonolência comparece nos planos alongados e quase meditativos e, de maneira ainda mais enfática, em recursos bem demarcados da edição de som, como a música tocada ao violão por um personagem, em Hotel Mekong, a permanecer como uma trilha constante que embala quase a totalidade do filme, ou pelos ruídos de cigarras e insetos noturnos, que se prolongam para além dos cortes da imagem, em Tio Boonmee, criando uma ronronância regular que acalenta a atenção.

Em Tio Boonmee, três moradores de uma casa na floresta são visitados por fantasmas de pessoas próximas que há anos morreram ou desapareceram, entre eles Boonsong, o sobrinho do protagonista, que um dia sumira sem explicações. Boonsong, agora na forma de um macaco-fantasma, revela que, logo antes de desaparecer, começara a ver as criaturas da floresta reveladas em fotografias que ele tirava de paisagens, até que, encantado, decidiu juntar-se a elas. As imagens das fotografias tiradas por Boonsong no passado, bem como os próprios planos de paisagens da floresta que compõem o filme desde sua abertura, fazem ver um mundo povoado por criaturas que põem em cena o maravilhoso e o encantado, como se, em qualquer lugar, tudo o que desaparece pudesse ser reacessado, dependendo apenas de um alargamento do alcance de nossa apreensão.

Por um lado, o problema elaborado pelo sobrinho de Boonmee assemelha-se ao que reconhecemos no Quixote de Albert Serra: como ver, nas paisagens sombreadas da floresta e do bosque, aquilo que está além do imediatamente visível? Contudo, em Apichatpong, isso que haveria para ser visto já não se trata de qualquer evento extraordinário donde poderia despontar uma experiência plena de sentido, mas daquilo que habita uma espécie de submundo da existência. Ou, em outras palavras, o problema anunciado por Boonsong seria como apreender, com nossos aparelhos sensoriais, as criaturas e forças que perderam a forma de uma matéria opaca, para circular, agora, em uma zona fronteiriça do existente, recuada para um pouco aquém do nosso alcance perceptivo? Os personagens de Apichatpong, bem como a própria natureza de suas imagens, parecem desconfiar que qualquer encontro eficaz entre o olhar e o visível, entre a escuta e o audível, deixará de fora as existências evanescentes ou emergentes, aquilo que não goza do privilégio de uma presença consistente.

Por isso, Apichatpong encontraria na sonolência da imagem meditativa uma forma de alterar o regime de apreensão, e enxergar, ainda que de maneira duvidosa, aquilo que — tal como os perceptos descritos por Deleuze e Guattari — salta do quase-inexistente para reivindicar um lugar no mundo sensível. A certa altura de Tio Boonmee, o personagem título, após receber os cuidados de Jen, deita-se para dormir, levando todo o filme a devir sono (e, em certa medida, sonho): segue-se uma sequência de imagens enfaticamente meditativas, sob trilha sonora não diegética, em que os planos alongados, feitos de paisagens quase estáticas, agora explicitam o efeito de sonolência que, porém, marcava os quadros e a montagem desde o início do filme. Revela-se que as criaturas da floresta, conforme já dito pelo macaco-fantasma incorporado por Boonsong, somente se tornam apreensíveis diante de um olhar expandido, que suspende a funcionalidade do tempo para fazer com que, do excesso de duração, surjam vias de ligação com um submundo do campo perceptível ou, conforme dirá Lutz Koepnick, eclodam portais para “diferentes tempos e espaços, para diferentes ordens de temporalidades” (KOEPNICK, 2017KOEPNICK, L. The long take. Art cinema and the wondrous. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2017., p. 207).

O cinema de Apichatpong seria, então, não o acesso direto ao maravilhoso ou ao encantado, mas, assim como proposto por Koepnick, trata-se de uma máquina de encantar a operar a abertura de portais para outros mundos que, contudo, devem permanecer sempre nascentes e inexplorados. O autor nota que as cenas de aparecimento da criatura de Boonsong, o macaco- fantasma, em Tio Boonmee, são introduzidas por planos longos e aparentemente injustificados, como se esse excesso de tempo esticasse a membrana da imagem, tornando-a permeável a novas entidades que passam a fazer parte, de maneira contingente, da matéria visível (idem, ibidem p. 209-211).

Ao povoarem a imagem, as criaturas aparecem como indícios dos submundos que estão à margem de nosso campo sensível, cuja existência independe de nossa capacidade ou não de reconhecê-los. Por isso, Koepnick dirá ainda que, em vez de suscitarem medo, assombro ou choque, as aparições podem, no máximo, excitar uma curiosidade pelo desconhecido, mas sempre deixando claro que o universo do existente excede o alcance do olhar humano. Essa efemeridade ou casualidade do mundo visível aberto pelas criaturas em aparição exige da sensibilidade do observador um desapego em relação aos objetos sensíveis, de modo que “os planos longos de Weerasethakul ensinam-nos a arte de deixar ir” (KOEPNICK, 2017KOEPNICK, L. The long take. Art cinema and the wondrous. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2017., 2011ZABUNYAN, D. Du choc à l’hypnose. In: Les cinémas de Gilles Deleuze. Paris: Bayard, 2011.), como uma pedagogia em que o campo perceptual está liberado dos tempos e espaços da nossa percepção.

Em A imagem-tempo, como sabemos, a ruptura do esquema sensório motor já operava um alargamento da capacidade de apreensão das coisas pelo corpo do vivente, o que Deleuze (2019b, p. 71)______. Cinema 2 – A imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2019b. nomeava pela alteração de um regime de reconhecimento automático para um regime de reconhecimento atento, recorrendo ao repertório conceitual de Bergson. Isto é, neste aspecto, o problema, ali, seria: como o olhar é capaz de ampliar seu alcance, a fim de ver os movimentos discretos ou as nuances que não obedecem à ordem de conexões entre causa e efeito? Contudo, o que descrevemos neste artigo é uma transformação de outra natureza, já não mais voltada para a expansão dos limites da capacidade de apreensão do vivente — embora este possa ser um de seus efeitos — mas da liberação da matéria apreensível ante a quem a apreende.

É nesse contexto que poderíamos ler as elaborações de cineastas, entre os quais Apichatpong, de que o sono é uma reação bem-vinda aos filmes, pois ele pode incorporar, de modo explicitamente sensório, a própria tarefa dessa nova pedagogia da sensibilidade, em que uma desligadura entre o vivente e a matéria perceptual é o requisito para o reconhecimento desta última em sua condição de existência. Nesse cinema da lentidão, a imagem pode se comportar como as criaturas de Apichatpong: algo com que fazemos breves contatos visuais, desde que estejamos dispostos a fluir por uma temporalidade que nos é estranha, mas certos ainda de que elas — as imagens ou as criaturas — continuarão existindo em toda a sua espessura, mesmo quando fecharmos os olhos.

A performação da ruptura

Se marcamos, até aqui, certa distinção entre o cinema contemporâneo e o moderno, sobretudo nas definições deste último fundadas no conceito de imagem-tempo, gostaríamos, porém, de recuperar o impulso político que animava os estudos de cinema de Deleuze, para apontar como a estética da lentidão e o espectador sonolento, que temos apreendido neste artigo, apresentam uma nova torção na mesma corrente de problemas lá identificados. Para isso, devemos notar que as leituras de Deleuze acerca do cinema moderno, como parte de um projeto filosófico mais amplo, partiam do diagnóstico de um estado do mundo pós-Segunda Guerra, diante do qual a imagem viria a reagir. Pois a ruptura do esquema sensório-motor reportava a uma crise que ressoava motivos muito além daqueles internos a estilos de cineastas ou tradições cinematográficas, dizendo respeito, antes, a uma tensão histórica na constituição do pensamento e da sensibilidade, que atravessavam a vida subjetiva da segunda metade do século XX. A crise do esquema sensório-motor incorporava esteticamente o curso da “perpétua ruptura da ligação com o mundo” (DELEUZE, 2019b______. Cinema 2 – A imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2019b., p. 248), de modo que o cinema moderno aparecia como reposta ao colapso das categorias que dariam consistência à apreensão das coisas e estabilidade aos modos de ver, pensar, sentir. Ou, como elabora Dork Zabunyan, o esforço do conceito de imagem-tempo concentrava-se em “mostrar direta ou indiretamente a ruptura da ligação do homem e do mundo como a condição mais elevada para a interrupção do esquema sensório-motor” (ZABUNYAN, 2014ZABUNYAN, D. Du choc à l’hypnose. In: Les cinémas de Gilles Deleuze. Paris: Bayard, 2011., p. 163).

Diante da decomposição dos critérios pelos quais a relação entre o vivente e o sensível pode ser orientada, as situações ópticas e sonoras puras funcionavam como a tentativa de operar uma religação, pela via de uma possível refundação da crença no mundo. E Deleuze seria explícito ao dizer, por exemplo, que “somente a crença no mundo pode religar o homem com o que ele vê e ouve. É preciso que o cinema filme não o mundo, mas a crença nesse mundo, nossa única ligação” (DELEUZE, 2019b______. Cinema 2 – A imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2019b., p. 249). A imagem- tempo, em vez de suturar a ferida, ascendia-lhe a latência, suspeitando de que de dentro dessa zona de fratura poderiam emergir modos de reconexão casuais e minoritários, que retirassem da categoria mundo o peso de sustentar a crença.

Tanto as situações ópticas e sonoras puras do início do cinema moderno, quanto as dobras do tempo que seriam amplamente exploradas nas vanguardas dos anos 1960 e 70, verão, no texto de Deleuze, surgirem maneiras pelas quais o cinema se aproveita da ruptura na ligação entre homem/mulher e mundo para impulsionar uma liberação da matéria sensível — como o forte demais dos planos de Rossellini, em que o visível aparece em desconformidade com as capacidades de apreensão do corpo, ou, como em Resnais, em que o tempo é plataforma de criação de um leque de conexões cuja infinitude solapa as relações de causa-efeito.

Porém, Sancho, de Honra dos cavaleiros, ou a família de Tio Boonmee, já não estão mais no coração dessa crise, desse momento quente de ebulição do forte demais que saltava de dentro da imagem. O sono diante do visível parece ter substituído o choque, como o afeto que resta para pôr em cena essa separação. Os cochilos de Sancho ou o devir-sono das montagens e dos quadros de Apichatpong incorporam um respeito à distância entre o vivente e as paisagens, como quem se abstém de exigir da matéria sensível alguma forma de ajuste.

Reconhecemos, então, uma dramatização da ruptura entre homem/mulher e mundo, que aparece nos filmes aqui discutidos sob a forma narrativa de personagens, em alguma medida, desencaixados da matéria apreensível com que estão confrontados. Mas, haveria, no cinema contemporâneo, ainda uma segunda forma de pôr em cena tal processo de ruptura, que se trata, não mais de dramatizá-la, mas de performá-la como efeito no desligamento provisório, ou às vezes definitivo, da conexão visual entre espectador e tela, o que diz respeito ao modo como as imagens mobilizam o conceito com o qual o percepto formava par, o afeto. O sono do espectador surge como sintoma possível do reconhecimento de uma autonomia de imagens e sons, cuja existência implica toda ordem de desencaixes ante a centralidade do humano, o que pode parecer uma afronta à própria natureza da situação implicada por uma exibição cinematográfica.

Quando se fala de um vínculo sensório-motor, posto em queda na imagem-tempo, deve-se entender não somente as conexões de causa e efeito internas ao filme, que efetuam o prolongamento da percepção em ação sob a forma do encadeamento de planos e tecem narrativas, mas também a própria qualidade da relação entre o corpo do espectador e a imagem. Isto é, o esquema sensório-motor define um sistema de ligação entre estímulo fílmico e resposta corporal que confere eixo à experiência de espectoralidade. Dessa maneira, o conceito de afecção, fazendo par com o de percepção, inscreve-se em um regime de conciliação entre espectador e tela, de modo a descrever a correspondência — ainda que comportando desvios e desajustes pontuais — entre o que as imagens e os sons lançam em direção ao aparelho sensorial e o que, neste último, entra em movimento.

Mas, nos filmes citados aqui, as ressonâncias do corpo em confronto com as imagens e os sons — o que é atravessado pela possibilidade de uma fratura definitiva — são já da ordem do que chamamos afeto, como uma relação de saída fendida pelo negativo. Categorias como a lentidão, o esvaziamento da narrativa ou das zonas de identificação, convocam o risco da indiferença ou da frustração, sem o que o investimento estético desses filmes seria compreendido, quase forçosamente, como frágil em sua tarefa de suscitar respostas eficazes no espectador. Submetê-los a uma análise fílmica plano a plano ou a um destrinchamento da cena, por exemplo — tal qual se faz com obras clássicas3 3 E assim como empreende, por exemplo, David Bordwell (2005), ao analisar obras que poderiam, em alguma medida, ser somadas à lista do slow cinema, como de Theo Agelopoulos e de Hong Sang-soo. — seria supor que tais filmes esperam por uma espectoralidade integral e segura.

Tampouco, por outro lado, bastaria ver nesses filmes a versão cinematográfica de uma relação parcial e incompleta com a matéria sensível, que encontraríamos no centro das experiências de recepção nas artes instalativas e nos cinemas expandidos. Poderíamos nos perguntar por que cineastas como Serra, Kiarostami, Apichatpong — aos quais se somariam outros como Tsai Ming-Liang, James Benning, Béla Tarr, Lav Diaz, para citar alguns — escolhem o aparato cinematográfico como suporte e destino de suas obras, embora seja razoável supor que a radicalização da lentidão ou do efeito de fragmentação da experiência do espectador poderiam encontrar condições mais favoráveis de realização nas formas expandidas de cinema. Five, por exemplo, originara-se como obra de galeria, assumindo somente depois a materialidade de um longa-metragem para sala de cinema. As videoinstalações, por exemplo, propiciam pela natureza da situação móvel do observador, que flana pelo espaço sem um tempo certo para dedicar a cada obra, justamente a potencialização dessa conexão mais dispersiva e afrouxada com a integralidade das imagens.

Contudo, é na sala de cinema que o efeito estético dos filmes pode adquirir a qualidade de uma contradição — entre, de um lado, o aparato cinematográfico (tela grande, sala escura seguindo o modelo do palco italiano), cuja organização espacial e sensória conduz a uma concentração da atenção na tela e na inteireza do filme, e, de outro lado, a natureza de uma imagem que resiste à sua absorção pelo olhar. Como teria notado Jonathan Romney, acerca de Five, o que surpreende é que “não é nem obra de galeria, nem uma coleção de peças separadas, mas um longa-metragem de 74 minutos, destinado a exibições em cinemas, para um público sentado, preparado para assisti-lo do começo ao fim” (apud DE LUCA, 2012______. Realism of the senses in world cinema. The experience of physical reality. London, New York: Tauris, 2012., p. 16). Nesse contexto, toda forma de desvio da atenção do espectador carrega-se do efeito da frustração de um pacto, como se a imagem forçasse a quebra do contrato segundo o qual ela, como matéria sensível, seria posta em curso de encontro com as demandas do olhar de indivíduos.

Tais experiências cinematográficas, então, elevam as imagens à condição de perceptos e sua relação com o espectador à condição de afetos, no sentido que colhemos atrás, alterando o estatuto da matéria apreensível e do trabalho do espectador diante dela. O regime perceptual das imagens, não mais orbitando a experiência justa da percepção, exerce uma resistência contra a força possessiva do espectador. De maneira pareada, o afeto diz respeito à conexão entre corpo e mundo, que, contudo, não se opõe à ruptura da ligação, mas, ao contrário, deixa-se atravessar por ela como uma energia movente e um risco que constituem a qualidade da experiência. O espectador sonolento é subproduto desse processo, no sentido de que o sono aparece como uma reação sensória que, tal qual um efeito colateral, acompanha a produção de outra relação com o mundo, expandida na latência de sua própria crise.

O espectador sonolento das novas telas

Mas não seriam somente a sala de cinema e seu aparato que favoreceriam o impulso possessivo do espectador, contra o qual as imagens do cinema da lentidão vêm a travar embate. Laura Mulvey (2006)MULVEY, L. Possessive spectator. In: Death 24x a Second. Stilness and the moving image. London: Reaktion, 2006. foi quem cunhou o termo espectador possessivo, referindo-se a uma condição subjetiva da relação com a matéria fílmica eclodida no final do século XX, movida justamente pela saída do filme da sala escura para aportar nos dispositivos caseiros. Segundo a tese da autora, desde o controle-remoto do videocassete — que avançaria até o touchscreen do smartphone —, os novos suportes de exibição audiovisual permitem ao espectador controlar o ritmo do fluxo fílmico, pausando, voltando ou avançando a reprodução, estabelecendo novas conexões afetivas com a imagem. Como possuidor do suporte material ou virtual no qual o filme está registrado, o espectador torna-se um sócio das imagens, das quais poderá extrair os efeitos desejados.

Mas, como apontaria Tiago de Luca (2016, p. 37 e 38)DE LUCA, T. Slow time, visible cinema: duration, experience, and spectatiorship. Cinema Journal, v. 56, n. 1, p. 23-42, 2016., a valorização das composições internas do plano e das nuances de montagem, nas obras como as aqui analisadas, favoreceria o aparato do cinema, em detrimento das tecnologias individuais. O autor argumenta que os filmes do slow cinema manejam a continuidade duracional dos planos longos, de maneira a favorecer a precedência da tela grande e da sala escura, de modo a demandar do espectador a relação com uma temporalidade externa a si e sobre a qual ele já não exerce controle.

Por esse caminho, poderíamos notar que a temporalidade que sugere um efeito de sonolência no cinema contemporâneo, antes de expressar um apego à lentidão como paixão aos códigos cinematográficos ou mesmo um abandono da política, faz circular o desejo pela criação de dispositivos que performem a ruptura da ligação entre homem/mulher e mundo, sem resolver tal contradição na forma de uma individualização da experiência de tempo, que faria do sujeito o proprietário do ritmo e gestor das durações. A lentidão, então, menos do que uma diminuição na grandeza escalar da velocidade, aparece como o descompasso entre o tempo do vivente e o tempo da matéria apreensível.

O espectador sonolento surge como uma condição subjetiva produzida pelas imagens que procuram desativar a posição de poder cognitivo do espectador, a reivindicar que, na qualidade de perceptos, elas têm o direito de se desencaixar das balizas do olhar e da expectativa humanas, existindo em um tempo que excede o tempo da experiência de apreensão. Como apontou Jonathan Crary, o sono, na medida em que impõe intervalos à consciência, adquire, para o homem, o sentido de última das barreiras à efetivação de um projeto de controle sobre a matéria e a natureza mesma do tempo (CRARY, 2016CRARY, J. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu, 2016., p. 27), uma vez que o ato de dormir suspende a atividade produtora da cognição, pela qual o sujeito maneja e modela o mundo racionalizando meios e fins.

Nesse contexto, Five, de Kiarostami, apresenta uma proposta radicalmente utópica, pois fabula, em seus quadros, a condição de plena igualdade ontológica em que tudo o que compõe a matéria sensível aparece disposto sob um mesmo nível: — a velocidade dos patos, seus jogos de cores e formas, a luz e a sombra que variam na composição das silhuetas dos cachorros, a cadência ou a intensidade dos ruídos da noite — não somente os personagens, como a madeira, os patos, as pessoas, os cachorros, os trovões, como também seus próprios corpos estão nivelados aos vetores não materiais que lhes condiciona a aparição.

Já o sonolento Sancho Pança, de Albert Serra, resta como o resíduo da igualdade ontológica pretendida pelo cinema, representando uma subjetividade resultante dessa nova condição em que o ser, o sujeito, o homem já não situam valores privilegiados a subordinarem a matéria inumana, assim como o corpo do vivente foi destituído do lugar de centro da órbita de circulação do sensível. Por isso, ao contrário de Five, Honra dos cavaleiros é atravessado por uma subtração e uma falta, sem que, contudo, desencadeie um colapso do corpo — como dissemos acerca dos cinemas modernos. A ruptura aparece na forma de uma subtração sem violência e uma falta sem trauma; resta, talvez, o desamparo dos olhos que se fecham como quem ensaia despedir-se do seu lugar privilegiado em um sistema de hierarquia: não o desamparo freudiano daqueles que perderam o vínculo com a autoridade externa, mas de quem perdeu, ele mesmo, o eixo de sua identidade a constituir-se à maneira de uma autoridade sobre o mundo.

  • 1
    Sobre tais categorias, pode-se ver, em A imagem-tempo, por exemplo: o insuportável, p. 13 e 35; o intolerável, p. 35, 246-248 e 257; o impensável, todo o capítulo 8.
  • 2
    “[U]ma imagem-percepção exemplar: a multidão vista de costas à altura de meio homem deixa um intervalo que corresponde à perna que falta a um mutilado; é por este intervalo que outro mutilado, um homem-tronco, verá o desfile que está passando.” (DELEUZE, 2019a______. Cinema 1 – A imagem-movimento. São Paulo: Editora 34, 2019a., p. 115).
  • 3
    E assim como empreende, por exemplo, David Bordwell (2005)BORDWELL, D. Figures Traced in Light. On cinema staging. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 2005., ao analisar obras que poderiam, em alguma medida, ser somadas à lista do slow cinema, como de Theo Agelopoulos e de Hong Sang-soo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Mar 2022
  • Aceito
    26 Maio 2022
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