RESUMO
Este trabalho problematiza a noção de hegemonia na construção do conceito de desqualificação da política, com base na análise de produções audiovisuais ficcionais seriadas brasileiras contemporâneas. No seu percurso teórico-metodológico, o papel da noção de hegemonia na elaboração do conceito de desqualificação da política será organizado pela articulação entre discussão teórica e objeto empírico, por meio, respectivamente, da revisão bibliográfica e da análise pontual de três seriados. Estruturamos o texto em três partes, além da introdução e das considerações finais. Na primeira parte, é desenvolvida uma discussão sobre a formação conceitual da hegemonia no âmbito das suas relações com o campo da comunicação. Na segunda parte, por sua vez, os conceitos de hegemonia e desqualificação da política são relacionados ao cenário produtivo e estético-narrativo do audiovisual ficcional seriado brasileiro contemporâneo, enquanto a terceira desenvolve uma breve análise de três produções seriadas nacionais. Em um movimento de diálogo entre marco teórico e objeto empírico, destacamos que um estudo complementar dessas três obras audiovisuais permite compreender a multiplicidade de formas de uma construção hegemônica, cujo foco central está na desqualificação da política, em um contexto de transformação e complexidade das mudanças sociais e um sentimento de descrença e revolta com a política, especialmente enquanto atividade institucional, vista de forma preponderante como corrompida, corruptora e ineficiente.
PALAVRAS-CHAVE
hegemonia; comunicação política; movimentos políticos; cultura contemporânea; materiais audiovisuais
ABSTRACT
This work problematizes the notion of hegemony in the construction of the concept of disqualification of politics, based on the analysis of contemporary Brazilian serial fictional audiovisual productions. In its theoretical-methodological path, the role of the notion of hegemony in the elaboration of the concept of disqualification of politics will be organized by the articulation between theoretical discussion, based on the bibliographical review, and empirical object, through the brief analysis of three series. We structured the text into three parts, in addition to the introduction and final considerations. In the first part, a discussion is developed about the conceptual formation of hegemony within the scope of its relations with the field of communication. In the second part, the concepts of hegemony and disqualification of politics are related to the productive and aesthetic-narrative scenario of the Brazilian contemporary fictional audiovisual series, while the third develops a brief analysis of three national serial productions. In a first movement of dialogue between theoretical framework and empirical object, we highlight that a complementary study of these three audiovisual works allows us to understand the multiplicity of forms of a hegemonic construction, whose central focus is on the disqualification of politics, in a context of transformation and complexity of social changes and a feeling of disbelief and revolt with politics, especially as an institutional activity, predominantly seen as corrupt, corrupting and inefficient.
KEYWORDS
hegemony; political communication; political movements; contemporary culture; audiovisual materials
INTRODUÇÃO
Em estudo sobre o contexto sociopolítico brasileiro dos últimos anos, Rosana Pinheiro-Machado (2019) destaca a sua relação com um panorama mundial de reações políticas e econômicas extremas a uma insatisfação social generalizada, dentro de um movimento constante de disputas. Tendo como ponto de partida temporal da sua análise os movimentos de junho de 2013, Pinheiro-Machado define esse cenário como marcado, de um lado, por um processo de inclusão social e econômica, com aumento da parcela da população com acesso à saúde, educação e moradia e diminuição expressiva de pobreza, fome e desemprego. Por outro lado, ele também foi pautado pela não resolução de impasses sociais e democráticos, expressos na frustração de grande parte da população, cujo cotidiano ainda era marcado por uma grande precariedade.
Reforçando sua defesa de uma leitura complexa do quadro sociopolítico brasileiro, Pinheiro-Machado ressalta que, ao mesmo tempo em que foi atravessado pelo assassinato de Marielle Franco e pela eleição de Bolsonaro, 2018 também foi o ano de um aumento expressivo no número de parlamentares negras eleitas. Relacionando esse aumento ao que define como “onda feminista relativamente espontânea”, a autora (2019) destaca exemplos das parlamentares eleitas, como as deputadas federais pelo PSOL Áurea Carolina, Sâmia Bomfim e Talíria Petrone, além de Joênia Wapichana, da Rede, primeira mulher indígena a ocupar uma cadeira na Câmara Federal.
Essa ampliação de minorias2 na participação política se conecta a um contexto mais amplo de transformações em diversos setores da sociedade brasileira, como o cultural, com a efervescência que marca a emergência nos últimos anos de um grande número de realizadoras e realizadores oriundos de segmentos populares. Tal efervescência, que, no caso do audiovisual, possibilitou o florescimento de filmografias indígenas, negras e LGBTQIAP+ e também se relaciona à popularização da internet e das plataformas transnacionais, como o YouTube e os serviços de streaming, é uma das marcas de um processo de grandes mudanças sociais que não foi acompanhado no mesmo compasso pela política institucional. Neste cenário de transformações, o audiovisual se tornou um espaço importante para a elaboração de construções narrativas e estéticas sobre a temática política, participando do debate público nacional sobre questões sociopolíticas pungentes e complexas.
Considerando esse complexo contexto político-midiático, este trabalho, que se configura como um diálogo entre dois projetos de pesquisa, tem por objetivo compreender como se articula a noção de hegemonia na construção do conceito de desqualificação da política, realizada com a análise estético-narrativa e extra fílmica de três produções audiovisuais ficcionais seriadas brasileiras contemporâneas, a minissérie O brado retumbante (2012, oito episódios, de Euclydes Marinho) e os seriados Sintonia (2019 – presente, quatro temporadas, de KondZilla e Johnny Araújo) e O mecanismo (2018-2019, duas temporadas, de José Padilha, Felipe Prado e Marcos Prado). A pesquisa desenvolve a sua questão em uma análise de produções audiovisuais ficcionais seriadas brasileiras contemporâneas, investigando características centrais das suas construções sociopolíticas hegemônicas, partindo da seguinte pergunta: qual é o papel da noção de hegemonia nas especificidades da constituição do conceito de desqualificação da política?
No percurso teórico-metodológico pretendido pelo trabalho, o papel da noção de hegemonia na elaboração do conceito de desqualificação da política será organizado pela articulação entre discussão teórica e objeto empírico, por meio, respectivamente da revisão bibliográfica e da análise narrativa das três produções seriadas, valorizando a quebra de hierarquia entre questões teóricas e analíticas, por acreditar que ambas são fundamentais para o desenvolvimento do conceito, em um modelo analítico que valoriza a articulação entre os níveis de produção material e simbólica da realidade (Almeida e Bastos, 2021). Considerando o estágio inicial em que o trabalho se encontra, no nível deste artigo, a análise das três produções será feita de forma pontual e relacionada à discussão teórico-conceitual do texto, que, por sua vez, será priorizada.
Em sua problematização teórica, a elaboração do conceito de desqualificação da política pode ser inicialmente compreendida dentro de um marco que envolve o desenvolvimento da noção de hegemonia. O trabalho parte da hipótese de que seriados brasileiros – como também ocorre em outros países em produções da história recente – desqualificam a política como atividade institucional, democrática e associada à produção de sentidos de comunidades imaginadas, ajudando assim a desacreditar instituições e reforçar preconceitos, que, em última instância, podem aumentar a distância entre Estado e sociedade civil. Por outro lado, a análise das produções audiovisuais com base na noção de hegemonia nos possibilita discutir as nuances desse contexto de crise política por meio do papel desempenhado pelo complexo sistema de aparelhos de hegemonia que estrutura e circula a produção audiovisual contemporânea.
A perspectiva de crise em Gramsci (2007) está relacionada diretamente com as noções de crise de autoridade e de hegemonia, que por sua vez estão em articulação com um processo de estilhaçamento ou instabilidade nos aparelhos de hegemonia. Contextualizando o debate das produções audiovisuais aqui analisadas, os aparelhos privados de hegemonia que realizam essas produções não somente representam simbolicamente a crise política, mas também se constituem como agentes da crise em processo de maior autonomização dessas instituições em relação ao Estado em sentido restrito, em contexto de midiatização e plataformização das lutas sociais (Bastos, 2022). Essa hipótese inicial também considera que as construções preponderantes desses seriados sobre a política como fenômeno social e institucional estão inseridas em um contexto de práticas dominantes e efetivas, constituindo uma cultura hegemônica e dialogando com os debates voltados para o papel dos meios de comunicação na construção de uma concepção contraditória de cidadania3 (Gramsci, 1999; Williams, 1979, 2005).
Organizamos o texto em três partes, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira parte, é articulada uma discussão sobre a formação conceitual da hegemonia no âmbito das suas relações com o campo da comunicação, com base em Gramsci (1999), Bastos (2022, 2023), Williams (1979, 2005) e Martín-Barbero (1997). Na segunda parte, os conceitos de hegemonia e desqualificação da política são relacionados ao cenário produtivo e estético-narrativo do audiovisual ficcional brasileiro contemporâneo, com base em Hamburger (1998), Bahia, Butcher e Tinen (2022), Almeida e Rossini (2020, 2023), Morozov (2018), Bolaño (2000) e Bastos (2023), enquanto a terceira parte desenvolve uma breve análise das três produções seriadas.
DEBATES EM TORNO DA RELAÇÃO ENTRE HEGEMONIA E COMUNICAÇÃO
Conforme recorda Bastos (2023) ao relacionar os conceitos de hegemonia e cidadania no âmbito da comunicação comunitária, popular e alternativa, a cultura tem importância fundamental nas reflexões de Antonio Gramsci (1999) sobre a formação conceitual da hegemonia, sendo, contudo, indissociável das demais dimensões do conceito – a filosófica, a econômica e a política. Segundo Gramsci (1999, p. 48), “se a hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também econômica, não pode deixar de ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica”.
Bastos (2023) aponta que, por ter sido fortemente influenciado pelos estudos culturais latino-americanos, o desenvolvimento conceitual da hegemonia dentro dos estudos de comunicação por vezes ignorou os sentidos econômico e de classe presentes nas formulações de Lênin e Gramsci do conceito. Defendendo a valorização destes sentidos, o autor destaca que a origem conceitual da hegemonia em Lênin, muitas vezes desconhecida ou escamoteada pela comunicação, lançou as bases teóricas e políticas para as formulações de Gramsci acerca do conceito, especialmente as ligadas ao trabalho teórico-intelectual, às relações entre partidos e formação dos intelectuais, à organização da luta política e às noções de aliança de classes ligadas à hegemonia. Além disso, como destaca Bastos (2022), é de Lênin a ousada tese da comunicação como instância organizadora da política, ou mais precisamente, naquele contexto histórico de início do século XX, o revolucionário russo se refere ao uso do jornal como organizador coletivo, perspectiva posteriormente adotada por diversos partidos e movimentos sociais do campo progressista.
Apesar da influência decisiva de Lênin, Bastos ressalta que Gramsci, embora se baseie no revolucionário russo, adota uma concepção diversa de hegemonia. Se Lênin valoriza sobretudo a função dirigente dentro do conceito, Gramsci também o relaciona às noções de direção e dominação, referentes às distintas funções da sociedade civil e da sociedade política, dos aparelhos privados de hegemonia e do Estado, passando em seguida a expandi-lo e dotá-lo de características específicas enquanto categoria analítica.
Raymond Williams (1979, 2005), por sua vez, destaca a evolução conceitual da hegemonia dentro do marxismo: o sentido clássico do termo, relacionado ao poder ou ao domínio político, é substituído por uma concepção de caráter relacional em nível de classes sociais, especialmente no que diz respeito ao estabelecimento de uma classe dominante. Com base na obra de Gramsci, que considera central dentro da teoria cultural marxista, Williams defende que essa evolução conceitual foi acentuada especialmente pela compreensão do autor italiano a respeito da profundidade da hegemonia. Tal profundidade se relaciona à acepção gramsciana do conceito enquanto processo em que a consciência de determinada sociedade está totalmente presente.
Essa profundidade também se dá nas diferenciações conceituais feitas por Gramsci, distinguindo a hegemonia de termos como domínio – presente em mecanismos diretamente políticos e, em tempos de crise, pela coerção direta – e ideologia – enquanto conjunto de ideias e crenças. Contudo, vale lembrar, segundo Guido Liguori (2007, p. 90-91), que Gramsci desenvolve nos Cadernos do cárcere “uma teoria ‘materialista’ da ideologia”, pois a luta ideológica não se resume a “batalha de ideias”, ou disputa de narrativas, como se popularizou na cotidianidade, pois essas ideias se sustentam em base material, “articulam-se em aparelhos”. Voltaremos a este debate adiante.
A hegemonia, por sua vez, diz respeito à universalidade do processo social, com sua complexa e ambígua equação de movimentos políticos, sociais e culturais. Para Williams (1979, p. 115), dessa forma, Gramsci dotou a hegemonia de um caráter de totalidade, sendo um processo completo e vivido, pois se trata de “um complexo realizado de experiências, relações e atividades, com pressões e limites específicos e mutáveis”.
Já para Jesús Martín-Barbero (1997), a consolidação das relações entre comunicação, cultura e hegemonia, no contexto da América do Sul, está centrado em um processo híbrido de diversidade, marcado por descontinuidades culturais e deformações sociais, no desenvolvimento da sua Teoria das Mediações. A teoria de Martín-Barbero passa pela compreensão de que o processo de socialização ligado à mudança de estilos de vida, marcado pela substituição de núcleos como família e escola pelos meios de comunicação em massa como mediadores principais, está inserido primeiramente no âmbito da cultura. Esses mediadores se tornaram, então, o espaço central de socialização, pautando transformações amplas nos parâmetros morais.
O autor relaciona esse processo com a consolidação da cultura de massa, pioneira em facilitar a comunicação entre diferentes camadas sociais, bem como a circulação de informações, além da discussão acerca da formação conceitual da hegemonia segundo Gramsci e Williams. Martín-Barbero ressalta como Gramsci tanto conferiu à hegemonia um caráter de reconstrução permanente, com forte influência da força, do poder e da sedução, quanto relacionou a cultura popular à fragmentação e à resistência, transformando-se de acordo com as condições sociopolíticas existentes. Sobre Williams, o autor aponta a busca por um modelo que englobe a complexidade do funcionamento dos processos culturais, detectando a formação das práticas da cultura popular relacionadas a uma elaboração teórica. Esta elaboração desenvolve as relações entre a cultura e a hegemonia gramsciana, considerando a primeira como âmbito de transformações sociais.
Apesar de destacar as contribuições de Martín-Barbero aos estudos culturais latino-americanos, Bastos (2023) critica a apropriação do conceito de hegemonia, enfatizando o papel das mediações culturais da comunicação em detrimento da ênfase leninista e gramsciana no popular como forma e espaço de construção do que denomina como hegemonia popular. Essa apropriação, para o autor, leva muitos estudos de campo a reduzirem hegemonia a um processo de disputa de narrativas, ignorando sua materialidade e especificidades enquanto formação conceitual.
Ao refletir sobre as especificidades da discussão sobre a hegemonia no campo da comunicação, Bastos (2023) defende a importância de as análises contemplarem a perspectiva da totalidade, pois, ao se destacar um dos aspectos de uma formação hegemônica, como a dimensão cultural ou comunicacional, incorre-se no erro de ocultar a amplitude do processo, sua dimensão filosófica, econômica e política. Conforme o autor (2023, p. 16), “seria como analisar a imagem de um quebra-cabeça a partir de uma peça, reduzindo ou negando a complexidade dialética da integração e múltipla determinação entre as partes constitutivas e sua totalidade”.
Bastos (2022) defende que a hegemonia, como conceito, precisa problematizar a constituição coletiva dos sujeitos, especialmente em termos de articulações políticas, com base na noção marxiana de práxis, relacionada à capacidade humana de criar e transformar ao mundo e a si próprio. Essa problematização, dentro de um contexto social de midiatização e plataformização, insere as relações entre hegemonia e outros conceitos:
[...] a partir da base material, tecnológica, em que se estrutura a produção, circulação e consumo de mercadorias, serviços, bens simbólicos, capital, comunicação, lutas (a plataformização), e a ambiência interacional em que os sentidos e discursos são produzidos, reproduzidos ou transformados, fortalecendo ou tensionando a hegemonia (a midiatização)
(Bastos, 2022, p. 02).
Centrando suas pesquisas no estudo conceitual da hegemonia, o autor defende a compreensão dela tanto a partir de seus principais formuladores, especialmente Lênin e Gramsci, quanto pela sua atualização com base nas mudanças históricas, estruturais, econômicas e produtivas, sempre em diálogo com teorias do campo da comunicação. Dentro desta compreensão, Bastos (2023, p. 116) também relaciona a hegemonia com a noção de comum, considerando-a inerentemente ligada a “processos de construção do poder ou de contrapoder que necessitam continuamente vincular os sujeitos, engajá-los em determinada noção do comum que sustente, reflita e refrate projetos ético-políticos”. Com forte teor político, a noção de comum comporta tanto a sustentação da hegemonia vigente como a compreensão do engajamento dos sujeitos em torno de um mesmo projeto alternativo ou de oposição contra a exploração e expropriação da classe trabalhadora, permitindo traçar um caminho para a superação dessas condições.
Em relação ao debate deste artigo, também vale destacar o papel desempenhado pelo sistema de aparelhos, responsável pelas produções audiovisuais selecionadas para a nossa análise, em engajar a sua audiência em uma perspectiva de política que a desqualifica em suas formas institucionais. Ainda que não seja possível mensurar o real alcance político dessas produções no cenário político recente, em diálogo com Maria Lourdes Motter (2003) e seus estudos sobre telenovela e cotidiano, que partem principalmente das contribuições teóricas de Bakhtin, é possível afirmar que essas produções audiovisuais são produtos culturais que refletem e refratam a realidade e, dessa forma, contribuem com a modificação ou ratificação de valores, princípios e ideologias. E, contraditoriamente, ao negar a política, defendem uma forma de se fazer política baseada na negação do Estado como regulador e instância de transformações sociais. Concepção que parte do cotidiano e a ele retorna, reforçando e sustentando essa perspectiva ideológica.
UM CONCEITO E SEU CONTEXTO: DESQUALIFICAÇÃO DA POLÍTICA, HEGEMONIA E AUDIOVISUAL FICCIONAL SERIADO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
A popularização da internet e das plataformas transnacionais, como o YouTube e os serviços de streaming, que apontamos na introdução, está relacionada às mudanças na formação de um espaço público virtual, conforme definido por Esther Império Hamburger (1998), o qual passou por diversas mudanças estético-narrativas, de modos de produção e de diálogos com o público. Atualmente, portanto, ele é mais diversificado, mesmo com suas limitações, e talvez tenha maior força do que nas décadas anteriores, durante o auge comercial e cultural das telenovelas e, em menor escala, das minisséries, sendo formado tanto pelo cinema e pelos canais de televisão pagos quanto pelos serviços de streaming, pelo YouTube e pelas redes sociais.
Neste mesmo cenário de democratização dos discursos e de ampliação das visibilidades de sujeitos antes não captados por suas próprias lentes, observa-se o aumento de narrativas que põem em dúvida o sistema político, as instituições governamentais e a eficácia das suas ações, bem como os avanços conquistados por esse sistema. Assim, nas últimas décadas, séries, minisséries, filmes e telenovelas tornaram-se espaço importante para a elaboração de construções narrativas e estéticas sobre a temática política. E, desse modo, mesmo que sutilmente, o audiovisual toma partido no campo das ideias e da política (Rossini e Almeida, 2021).
Dentro de um contexto de onipresença global de tempo e espaço do neoliberalismo, com práticas e instituições democráticas sendo colocadas em risco, o espaço público virtual está diretamente relacionado ao modelo hipercapitalista de monopólio/plataforma adotado pelas grandes empresas de tecnologia, concentradas no enclave californiano do Vale do Silício, conforme aponta Evgeny Morozov (2018). Lia Bahia, Pedro Butcher e Pedro Tinen (2022), por sua vez, destacam o processo de reconfiguração do campo do audiovisual gerado pelos serviços de streaming, que consolidaram um cenário de competitividade e de mudanças profundas no conjunto do ambiente midiático, em termos de modelos de consumo e produção. Os autores destacam a liderança da Netflix no processo de plataformização no audiovisual, investindo em produções seriadas próprias e estimulando o consumo imediato delas.
Dessa forma, apesar de uma alta competitividade e fragmentação entre grandes grupos, o audiovisual de streaming conta com a presença dominante da Netflix, que se beneficia do seu pioneirismo no setor e de uma estratégia agressiva de priorização de investimento em conteúdos com determinados perfis. Bahia, Butcher e Tinen também destacam que, ao mesmo tempo que realiza grandes investimentos na produção de conteúdos locais4, a Netflix valoriza obras de determinados padrões narrativos.
Os autores destacam que esse processo de plataformização do audiovisual, com o crescimento do vídeo sob demanda, da sigla VOD (video on demand, em inglês), e do streaming, alterou de forma drástica todas as etapas relacionadas ao setor, desde a produção até a distribuição e o consumo. As companhias que pautam essas mudanças, por sua vez, separadas das estruturas tradicionais de cinema e televisão, se pautam pela captura e exploração de dados comportamentais e pela busca permanente por manter a atenção do espectador.
Possibilitada pela expansão da internet e pelo desenvolvimento das tecnologias de transmissão e armazenamento de dados, a captura de dados comportamentais permite que as companhias monitorem de forma detalhada o comportamento do seu público. Conforme Poell, Nieborg e Van Dijck (2020) argumentam em seu debate sobre o conceito de plataformização, a expansão das infraestruturas de plataforma, com destaque para os smartphones, possibilita às empresas extrair e organizar dados de todas as interações humanas passíveis de plataformização.
Como pioneira do processo de plataformização no audiovisual, a Netflix passou, em cerca de uma década, da locação de DVDs ao streaming, tendo 2013 como marco do investimento em suas produções próprias. Nesse ano, com o lançamento de House of Cards, a companhia começou a privilegiar narrativas seriadas com estreias globais, com todos os capítulos disponíveis no mesmo dia, dentro do estímulo ao consumo do conjunto dos episódios de forma contínua.
Na análise aqui proposta, a Netflix se destaca como principal aparelho privado de hegemonia. A empresa é responsável por distribuir dois seriados que compõem o nosso corpus de análise: O mecanismo, produzido pela empresa Zazen Produções, da qual o diretor José Padilha é um dos sócios, e Sintonia, que tem Kondzilla, nome artístico de Konrad Cunha Dantas, como um dos criadores e diretores da obra em suas três primeiras temporadas. Kondzilla é produtor, empresário e apresentador de televisão. Também é o fundador da produtora e selo musical KondZilla, cujo canal no YouTube é um dos mais assistidos no mundo. Já a minissérie O brado retumbante foi produzida e distribuída pelo Grupo Globo, sendo exibida tanto na TV aberta como em seu canal de streaming, o Globo Play. Devido ao escopo do artigo, não cabe maior aprofundamento na análise específica dos três objetos, que será feita na próxima parte do texto, mas buscamos estabelecer bases conceituais para melhor compreender como eles se localizam nas relações de hegemonia da história política recente do Brasil.
Em Gramsci, desde os primeiros escritos dos Cadernos do cárcere, há articulação conceitual entre as noções de hegemonia, aparelhos de hegemonia e crise. O filósofo sardo aborda o estilhaçamento ou a desagregação do aparelho hegemônico que sustenta a classe dominante, ocasionando crise da hegemonia, no contexto de crise política pós-guerra, em sentido estrito.
Nesse contexto, recrudescem os esforços por monopólio da opinião pública. No período das análises de Gramsci, o autor destaca os jornais, os partidos e o parlamento como principais órgãos da opinião pública. Atualizando o argumento, todo o ecossistema midiático, incluindo as plataformas digitais controladas por big techs, têm forte influência na formação da opinião pública (Bastos, Miani, Engelmann, 2023), incluindo a dinâmica de aparelhos responsáveis pela produção e distribuição do audiovisual.
A noção de aparelho hegemônico é que possibilita o elo conceitual com o de Estado Integral (Liguori, 2014), constituindo a base da compreensão materialista gramsciana acerca da hegemonia. Conforme Gramsci (2011), há um equilíbrio entre sociedade política (o Estado e seu aparato coercitivo) e sociedade civil, por meio da qual um grupo social ou uma coalizão de classes constrói sua hegemonia sobre a sociedade nacional, por intermédio de organizações privadas e seus intelectuais, em espaços como igreja, sindicatos, partidos políticos, movimentos sociais e escolas. Por isso, a desagregação dos aparelhos privados de hegemonia em período de crise provoca tensões de autoridade e de hegemonia. Contudo, embora a articulação conceitual entre hegemonia, aparelhos de hegemonia e crise permaneça fundamental, no processo de transformações políticas da história brasileira recente, os próprios aparelhos de hegemonia, com destaque para o sistema midiático, tiveram papel de destaque para engajar a opinião pública em uma perspectiva de desqualificação da política institucional.
A força da Netflix como aparelho privado de hegemonia está em sua estrutura de distribuição como maior empresa de streaming do mundo. Cabe aqui novamente o diálogo com Bolaño (2000) e sua análise sobre a relação entre produtores independentes e a hegemonia das grandes empresas da Indústria Cultural. Em debate sobre as noções de invenção, inovação, renovação e popularidade na Indústria Cultural, que não cabe nos aprofundarmos aqui, Bolaño defende que uma invenção realizada de forma independente se torna de fato inovação, ou seja, é incorporada pelos setores produtivos, quando logra ultrapassar seus limites e alcançar os processos produtivos de uma indústria oligopolizada e de consumo massificado.
Com isso, emerge a necessidade de a empresa independente acessar os circuitos de distribuição monopolizados por pequeno grupo de grandes capitais. Essa situação demanda ao produtor independente alguma forma de aliança com o grande capital para sustentar e capitalizar a sua inovação, o que acaba também mantendo a hegemonia dos grandes produtores. Trazendo para o nosso debate, é o que aconteceu principalmente no caso da série Sintonia. Embora Kondzilla seja um dos maiores produtores do funk nacional, precisou dessa parceria com a Netflix para poder acessar a sua gigante estrutura de distribuição.
No caso da Rede Globo, é reconhecido o seu protagonismo na história política nacional desde os primórdios da emissora. Para nos atermos à história recente e a exemplos que analisamos, a Globo teve papel fundamental na criminalização de movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (Bastos, 2021a), e de partidos de esquerda, associando com frequência o PT a casos de corrupção (Bastos, 2021b). A série O brado retumbante foi transmitida pela primeira vez no início do segundo ano do primeiro governo Dilma na presidência do Brasil, momento em que a popularidade do governo e a avaliação pessoal da presidenta batiam recordes positivos5.
A seguir, desenvolveremos breve análise narrativa das três produções audiovisuais selecionadas.
O AUDIOVISUAL E A DESQUALIFICAÇÃO DA POLÍTICA EM TRÊS ATOS
A escolha do corpus se justifica por acreditarmos que esses objetos se incluem em um conjunto de obras seriadas ficcionais brasileiras contemporâneas que maximizam características negativas acerca da política institucional, tanto de seus agentes quanto de suas instituições, ao mesmo tempo que dialogam de formas diversas com o contexto midiático e sociopolítico brasileiro e mundial de grandes transformações das últimas décadas. O estudo dessas três obras se mostra pertinente por sua multiplicidade, com as diferenças e semelhanças entre os objetos, possibilitando vê-los de forma complementar e permitindo desenvolver uma reflexão aprofundada sobre as especificidades das relações estéticas e sociopolíticas presentes em cada um deles.
Dirigida por Gustavo Fernandez e escrita por Euclydes Marinho com a colaboração de Denise Bandeira, Nelson Motta e Guilherme Fiuza, a minissérie O brado retumbante foi exibida pela Rede Globo em janeiro de 2012. Além do enfoque na representação negativa da política enquanto atividade corruptora e palco da luta do bem contra o mal, a minissérie realiza, em oito episódios, por meio da trajetória política e pessoal do presidente Paulo Ventura (Domingos Montagner), símbolo nacional de combate à corrupção, uma diluição das fronteiras entre as esferas pública e privada.
A trama é centrada na transformação do então deputado federal Ventura, presidente da Câmara dos Deputados, em herói nacional, quando o presidente e o vice morrem em um acidente de helicóptero. Dedicado a moralizar a vida política brasileira, Ventura se impõe como paladino da luta contra a corrupção, sofrendo ataques mil, mas sempre sobrevivendo, fortalecendo sua personalidade heroica e honesta.
Centrada em uma representação melodramática da política enquanto luta do bem contra o mal, O brado retumbante se passa em um Brasil fictício, que tem o Rio de Janeiro como sede do governo federal. Enquanto recria o espaço em que ocorre a trama, o enredo mantém muitas das questões e disputas políticas do país ao qual efetivamente se refere. É nesse mundo invertido que a atividade política é transformada em sinônimo de corrupção, de vilania, de interesses escusos.
Com sua construção política eminentemente negativa, a minissérie possibilita que suas representações sobre a atividade e aqueles que a exercem sejam visualizadas também sob uma ótica privada, especialmente no caso do seu protagonista (Almeida e Rossini, 2020). Essa construção está inserida em um processo sociopolítico de valorização do indivíduo em detrimento da sociedade, que opera dentro da construção da imagem individual das pessoas públicas, colocando em segundo plano suas personalidades políticas, em termos públicos e coletivos, muitas vezes valorizando questões privadas no lugar de processos relacionados a grupos.
Estreando em ano eleitoral, 2018, e partindo de uma livre representação de fatos para explicar os antecedentes e os desdobramentos da Operação Lava-Jato, que causou impactos profundos no cenário político nacional, O mecanismo, por sua vez, faz um retrato apressado, porém sintomático, das turbulências que marcaram esse cenário a partir de meados dos anos 2010. A trama do seriado enfoca as ações dos policiais federais envolvidos na investigação da Operação, especialmente a delegada Verena Cardoni (Caroline Abras), e seu mentor, o ex-delegado Marco Ruffo (Selton Mello), que tem papel central nas investigações.
A narrativa da série fortalece a ideia de descrédito da política institucional, vendo-a como um irremediável caso de polícia, que, por sua vez, só pode ser resolvido por determinados policiais: os honestos e idealistas, com força de vontade incessante, que sobrevivem às armadilhas da própria corporação, a qual, como toda instituição de Estado, é necessariamente incompetente e corrompida.
Agindo sozinho e contrário às leis, Ruffo, na verdade, se iguala aos vigilantes que fazem justiça com as próprias mãos. E esse perfil é adequado à personagem e à sua forma de compreender a política, a justiça, a administração do Estado e todos os seus aparatos. Ao se considerar um cidadão de bem que tem a obrigação de, sozinho, vencer o mal – que é a corrupção endêmica –, a personagem abre espaço para as ações autoritárias e fascistas (Almeida e Rossini, 2023). Também esvaziados são os sentidos de política, em especial das instituições que dão sustentação à atividade em um sistema democrático.
O elogio ao indivíduo, nesta crítica inclemente ao sistema político, portanto, é a contraparte da impossibilidade da construção de uma sociedade com valores culturais comuns (Almeida e Rossini, 2023). Ao insistir nessa forma de desqualificação da política nacional, justamente em ano de eleição, a série exibida na Netflix esvazia o discurso de crítica à política institucional, reforçando ideias do senso comum sobre ela e as instituições em si.
Já o seriado Sintonia apresenta os diferentes caminhos escolhidos por três amigos de infância da periferia de São Paulo, Nando (Christian Malheiros), Rita (Bruna Mascarenhas) e Doni (Jottapê), relacionados ao narcotráfico, à religião e à música, respectivamente. Centrado nos motivos e nas consequências das escolhas dos três jovens, o seriado dialoga tanto com uma crítica original à ausência do Estado (e consequentemente, à política institucional), especialmente em comunidades de baixa renda, quanto com o processo de efervescência sociopolítica e cultural, sendo fruto direto dele.
Ausente o Estado, na favela paulistana fictícia de Sintonia, Vila Áurea, os conflitos e as complexidades da vida em comunidade são representados pelas trajetórias de Nando, Rita e Doni. Do desejo do primeiro de deixar o crime organizado, ao mesmo tempo que ganha cada vez mais poder dentro dele, passando pela imaturidade de Doni ao lidar com o sucesso vertiginoso e pelos desafios amorosos, religiosos e políticos de Rita, o pessoal e o coletivo estão constantemente entrelaçados. Apesar desse entrelaçamento, a ênfase nas trajetórias individuais dos três protagonistas é privilegiada em detrimento de uma preocupação mais aprofundada com as problemáticas coletivas, especialmente nas primeiras três temporadas6.
Acionando as categorias de Raymond Williams (1979) para pensar a hegemonia e seus tensionamentos com base na noção de práticas culturais, embora possamos identificar algumas inovações estéticas e políticas com o potencial de práticas alternativas, como o protagonismo de jovens negros e as críticas à ausência do Estado nos bolsões periféricos do país, o que se destaca são as práticas dominantes. E isso está presente desde a parceria comercial entre a maior produtora audiovisual do gênero funk no país, a Kondzilla, com a maior empresa de streaming do mundo, a Netflix, em uma forte conexão de aparelhos de hegemonia, até o conteúdo da série, cuja perspectiva de que a Favela venceu, hashtag utilizada pelo seu criador7, expressa hegemonicamente o resultado exclusivo do mérito individual.
Considerações finais
Ao longo do texto, foi possível avançar, ainda que dentro de um estudo inicial e, portanto, com resultados parciais, na compreensão do papel do conceito de hegemonia na construção de outro conceito, o de desqualificação da política, dentro da análise de três produções ficcionais seriadas nacionais. Sob um olhar atual acerca de seriados contemporâneos, o desenvolvimento conceitual da hegemonia, em diálogo com o campo da comunicação, é fundamental para compreender como essas produções fazem ressoar os sentidos negativos da política como atividade institucional e social em um contexto brasileiro e global de crise da democracia.
Dentro do estágio inicial da pesquisa e, consequentemente, da análise das três produções seriadas, é possível destacar que o diálogo desta análise com o conceito de hegemonia e a formação de uma noção de desqualificação da política potencializa os aspectos culturais, filosóficos, econômicos e políticos das reflexões de Gramsci (1999) sobre a elaboração do conceito, como aponta Bastos (2023). Além disso, considerando, conforme Williams (1979, 2005), a profundidade conceitual da hegemonia para Gramsci, enquanto processo em que a consciência de determinada sociedade está totalmente presente, podemos afirmar que as três produções dialogam com uma interpretação hegemônica da política institucional como atividade eminentemente negativa, ainda que por diferentes vieses.
Esta interpretação se insere em um processo de fixação de determinados sentidos na consolidação da cultura de massa, conforme ressalta Martín-Barbero (1997), fazendo com que ela circule com maior potência. É uma interpretação, portanto, com determinadas intenções e efeitos, que dialoga com um contexto nacional e mundial de crise da democracia e de distância cada vez mais acentuada entre Estado e sociedade. De outra maneira, como discutimos no artigo, em uma perspectiva de estado integral ou ampliado em Gramsci, há um complexo sistema de aparelhos privados de hegemonia que estrutura materialmente a produção e circulação dessas produções audiovisuais, desempenhando deste modo um relevante papel como agentes da crise, engajando a opinião pública em uma perspectiva de política cuja forma institucional é negada, enquanto se valoriza a meritocracia e a narrativa heroica de alguns indivíduos.
Dessa forma, em um primeiro movimento de diálogo entre marco teórico e objeto empírico, destacamos que um estudo complementar dessas três obras audiovisuais permite compreender a multiplicidade de formas de uma construção hegemônica, com seus aspectos interdisciplinares e valorização da totalidade em nossa perspectiva de análise, cujo foco central está na desqualificação da política. Essa construção leva em conta tanto um contexto de transformação e complexidade das mudanças sociais quanto um sentimento de descrença e revolta com a política, especialmente enquanto atividade institucional, vista de forma preponderante como corrompida, corruptora e ineficiente.
Assim, identificamos em O brado retumbante e O mecanismo uma forte tendência de esquematismo, que fortalece as saídas individuais e flerta de forma cada vez mais concreta com uma visão antipolítica. Na primeira, esse esquematismo está presente no diálogo entre demonização da política institucional e valorização do indivíduo em detrimento da sociedade, privilegiando questões privadas no lugar de processos relacionados a grupos. O mecanismo, por sua vez, vê a política enquanto caso de polícia, esvaziando os sentidos de política institucional em um sistema democrático, legando a sua salvação a poucos indivíduos com honestidade, força e coragem sobrenaturais.
Já a crítica política de Sintonia é concentrada na demonstração da ausência de Estado em uma favela fictícia de São Paulo, priorizando a trajetória de crescimento pessoal e profissional de três amigos de infância. Ainda que entrelaçando o público e o privado ao apresentar essas três trajetórias, ao longo das quatro temporadas do seriado, cuja temporada final está confirmada, o individual ganha maior destaque do que o coletivo, assim como as práticas dominantes se sobrepõem às alternativas.
Tal tendência ao esquematismo e ao privilégio ao indivíduo na crítica política, além de não ser fortuita, demonstrando como o audiovisual, ao tematizar a política, defende posições e fortalece sentidos sobre ela, assumindo portanto posições políticas, também precisa ser relacionada a um contexto de plataformização monopolista adotado por grandes empresas de tecnologia, que, no caso do audiovisual de streaming, apesar da fragmentação, conta com a presença dominante da Netflix, pioneira no setor que investe em estratégias específicas de produção e modelos narrativos em suas obras. Além do Grupo Globo, hegemônico há muitas décadas no sistema brasileiro de televisão, e que vem investindo em conteúdos próprios também para a sua plataforma de streaming. A hegemonia, neste caso, portanto, é estética, narrativa e estruturalmente econômica e política.
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Uma versão inicial do texto foi apresentada em encontro acadêmico em setembro de 2023.
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Este estudo foi financiado pela FAPERJ - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, Processo SEI-260003/019696/2022.
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Pesquisador com projetos de pesquisa, alguns resultados foram apresentados neste artigo, financiado pelos seguintes editais: Programa Jovem Cientista do Nosso Estado (JCNE-FAPERJ), Processo E-26/201.291/2021, Período 2021-2025, Programa de Apoio ao Jovem Pesquisador Fluminense com vínculo em ICTs do Estado do Rio de Janeiro – 2024, Processo SEI-260003/004521/2025, Período 2025-2028, Bolsista de Pós-doutorado no Exterior (PDE) do CNPq, com período na Universidade de Westminster (2024), Processo 441758/2023-1, Bolsista de Produtividade (PQ) do CNPq Nível C, Processo 310362/2025-3, Período 2025-2028.
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Quando nos referimos ao conceito de minorias, temos como base a argumentação de Muniz Sodré (2005), em que a noção contemporânea de minoria consiste na possibilidade de frações de classe e setores sociais, comprometidos com distintas perspectivas de lutas sociais, terem voz ativa e intervirem nas instâncias decisórias de poder. Para o autor (2005, p. 1), minoria não consiste em uma “fusão gregária mobilizadora”, mas, principalmente, em um “dispositivo simbólico com uma intencionalidade ético-política dentro da luta contra-hegemônica”.
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Sylvia Moretzsohn (2011) discute a ampla disseminação e vulgarização do conceito de cidadania, que vai do conservadorismo radical a formulações emancipadoras, embora por vezes contraditórias. De acordo com Moretzsohn (2011, p. 141), a cidadania passaria a ser vista “através do espelho”, não como resultante da participação e da luta política, mas como sinônimo de caridade do Estado, por isso defende a necessária “repolitização da luta por direitos sociais”, tarefa obstaculizada pelo sistema midiático hegemônico, incluindo aqui a estrutura hegemônica de produção audiovisual.
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Esse processo de valorização da produção nacional já havia sido apontado por César Bolaño (2000) na análise da Indústria Cultural no Brasil, com foco principal no mercado de televisão e nas relações de concorrência. O que o autor chama de “função programa” é o elemento da Indústria Cultural responsável por criar empatia com o público, por isso a importância dos trabalhadores da cultura e do conteúdo nacional. Embora no streaming não se tenha a “função programa” nos termos analisados por Bolaño, a formulação do catálogo pelas operadoras segue estratégias mercadológicas semelhantes, com o diferencial de utilizar os recursos tecnológicos das plataformas, que possibilitam identificar ininterruptamente padrões de consumo, que, por sua vez, proporcionam a indicação e criação de conteúdos sob medida para diferentes segmentos da sua audiência.
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Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2012/12/14/segundo-ano-de-dilma-tem-recorde-de-popularidade-apesar-de-avancos-discretos.htm>. Acesso em: 27 maio 2024.
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Importante destacar que o seriado foi analisado, no âmbito deste trabalho, em um caráter inicial, e um novo estudo será realizado na próxima etapa da pesquisa, a fim de considerar com mais profundidade as suas construções sociopolíticas, que envolvem pontos como mudanças de enfoque narrativo, especialmente na quarta temporada, além da análise da quinta e última temporada, lançada em 2025.
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Disponível em: <https://kondzilla.com/videos/favelavenceu-kondzilla-na-disney-sea-do-japao/>. Acesso em: 27 maio 2024.
Disponibilidade de dados de pesquisa
Os dados de pesquisa estão disponíveis no corpo do documento.
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Editado por
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Editores responsáveis:
Adriana TeixeiraFábio Fonseca de CastroMaurício Ribeiro da SilvaNorval Baitello
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
04 Jul 2024 -
Aceito
09 Jun 2025




Fonte: DVD de O brado retumbante (2012).
Fonte: Divulgação/Netflix.
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