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“Atlas Mnemosine”, que Aby Warburg deixou inacabado, renasce em versão “original”

“Atlas Mnemosyne”, which Aby Warburg left unfinished, is reborn in “original” version

WARBURG, A. Bilderatlas Mnemosyne – The Original. OHRT, R; HEIL, A. 176 págs. Berlim: Ed. Hatje Cantz, 2020.

Resumo

Ao final de 2020, foram lançados em Berlim a exposição e o livro Bielderatlas Mnemosyne – The Original, que reconstituem a obra monumental que o estudioso alemão Aby Warburg (1866-1929) deixou inacabada ao morrer. Até hoje, o trabalho só era conhecido pelas fotos em preto e branco, feitas por Warburg, dos 63 painéis que havia finalizado. Por 10 anos, dois estudiosos alemães buscaram encontrar as imagens que Warburg usou, e reconstituir a forma original, com cores e tamanho até então esquecidos.

Palavras-chave
Atlas Mnemosine; Aby Warburg; iconologia; imagens

Abstract

At the end of 2020, the exhibition and the book Bielderatlas Mnemosyne – The Original were launched in Berlin, reconstructing the monumental work that the German scholar Aby Warburg (1866-1929) left unfinished when he died. Until recently, the work has been only known for the black and white photos made by Warburg from the 63 panels he had finished. For 10 years, two German scholars sought to find the images used by Warburg so as to reconstruct the original form, with colors and size until then forgotten.

Keywords
Atlas Mnemosyne; Aby Warburg; iconology; images

Uma obra monumental do século XX, desaparecida há cerca de 90 anos, acaba de ser remontada, tendo como base seus elementos originais. É como se a Biblioteca de Alexandria fosse reconstruída usando a planta e os tijolos originais do prédio, tendo nas estantes os mesmos livros, a maioria intacta. Até o final de 2020, só eram conhecidas fotografias em preto e branco dos painéis do “Atlas de Imagens Mnemosine”, que o estudioso alemão de cultura Aby Warburg (1866-1929)ABY WARBURG: Bilderatlas Mnemosyne. Exposição no centro cultural HKW (Haus der Kulturen der Welt), em Berlim. De 4/9 a 1/11/2020. idealizou, montou parcialmente e deixou inacabado ao morrer, em Hamburgo.

O “Atlas Mnemosine” influencia gerações de estudiosos da imagem desde o final dos anos 1920, através apenas das fotos que Warburg mandava fazer quando um painel ficava pronto; em seguida, mandava desmontá-lo e arquivava as imagens usadas. Essas fotos sobreviveram à morte do autor, à mudança de toda a sua instituição cultural para a Inglaterra, em 1933, fugindo do nazismo na Alemanha, e às bombas despejadas pela aviação alemã sobre Londres durante a Segunda Guerra Mundial.

Já as fotos que compunham os painéis do Atlas, que eram dadas como perdidas, provavelmente foram deixadas em Hamburgo durante a fuga para a Inglaterra. Essa noção mudou dez anos atrás, quando dois estudiosos alemães, Roberto Ohrt e Axel Heil, começaram a vasculhar minuciosamente os imensos arquivos de fotografias do Instituto Warburg, em Londres. A coleção de imagens, iniciada pelo próprio Aby Warburg, contém hoje cerca de 400 mil imagens mal organizadas em dezenas de milhares de pastas nas gavetas de centenas de arquivos verticais, que ocupam todo um andar no prédio do Instituto Warburg, em Londres. O foco da coleção de imagens é a reprodução de obras de arte antigas. Suas entradas têm nomes, muitas vezes relacionados aos mitos ou às imagens tradicionais, explorados por Warburg em seus estudos.

Roberto Ohrt é historiador da arte, Axel Heil, artista plástico. Em entrevista por aplicativo de vídeo, no dia da apresentação do novo “Atlas”, em Berlim, eles contaram que começaram a frequentar a coleção de fotos em Londres no ano de 2010. Sua primeira intenção era recuperar o tamanho real dos painéis do Atlas; pensavam em ampliar as fotos mas, para fazê-lo nas proporções originais, queriam encontrar algumas das imagens usadas como referência. “À medida que começamos a pesquisar pelas pastas, fiquei admirado ao encontrar imagens originais. As primeiras, em pastas dedicadas a ‘Fortuna’ e ‘Dança’”, conta Roberto Ohrt em entrevista dada ao autor, usando Facetime, no dia da abertura da exposição.

Ao longo dos seis primeiros anos de pesquisa, eles encontraram na coleção de fotografias cerca de 80% das pouco mais de mil imagens originais usadas por Warburg no Atlas. Depois disso, conseguiram achar mais 10% das imagens em pastas do Arquivo Warburg, que é a parte da instituição que hospeda os manuscritos pessoais do estudioso alemão.

“O mais difícil foi reconstituir as cerca de 100 fotos que parecem realmente ter desaparecido. Nós tivemos até mesmo que seguir os passos de Warburg em sua viagem à Itália, pouco antes de morrer”, explicou Ohrt na entrevista. Na Itália, buscaram livros originais de que Warburg reproduziu páginas e fotografaram obras retratadas nos painéis, exatamente com o ângulo e o recorte do original usado nos painéis.

Em 2016, eles tinham conseguido todas as imagens dos painéis 32 e 48 do Atlas; fizeram uma remontagem e com ela obtiveram aprovação do Centro para Arte e Mídia de Karlsruhe (ZKM, a sigla em alemão) para realizarem em Berlim a exposição e o lançamento do livro. Mergulharam então na fase final de pesquisa, correndo atrás dos 10% ou cerca de 100 imagens que faltavam.

Completar 100% das imagens foi como seguir um fio de Ariadne por pistas labirínticas em cartas e outros documentos de Warburg. O resultado foi um novo “Atlas” que, paradoxalmente, os autores denominam “O Original”, pois concede ao observador uma experiência muito mais próxima e realista do que Warburg e seus discípulos viram no átrio de reuniões, localizado no andar térreo da grande Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg (KBW, ou Biblioteca Wargurg de Estudos da Cultura), em Hamburgo, a cada vez que Warburg concluía um dos painéis que explorava um aspecto da tradição visual da expressão humana.

O Nascimento de Atlas

Aby Warburg nasceu em Hamburgo, em 1866, filho de um casal que unia duas das mais ricas famílias da Alemanha, ambas judaicas e proprietárias de grandes bancos. O pai Moritz Warburg dirigia o banco Warburg; sua família de origem italiana migrou para a Alemanha no século 17 e morava na cidade de Warburg, da qual a adotou o nome como sobrenome. Charlotte Oppenheim era filha do controlador do Sal e também um dos maiores bancos do país.

Ainda pequeno, Aby (seu nome de registro, que é um apelido de Abrão) manifestou desejo de estudar artes e não se dedicar às finanças, como seria natural para o primogênito de uma família de banqueiros. Aos 13 anos, propôs um acordo ao irmão imediatamente mais novo, Max: ele abriria mão da primogenitura em benefício do irmão, desde que ele nunca em toda a vida recusasse a compra de um livro. Quando Aby morreu, em 1929, apesar de toda a riqueza da família, Max confessou que várias vezes na vida havia se arrependido da promessa, pela dificuldade de comprar alguns dos livros que Aby pedia.

Com essa dotação orçamentária sem teto, Aby Warburg estudou artes e imagens por toda a vida e formou a maior biblioteca de cultura e ciências antigas de sua época, com livros raríssimos, uma verdadeira Biblioteca de Alexandria particular, que ele deixou com cerca de 40 mil volumes e hoje tem cerca de três vezes mais.

Desde a tese de doutorado, aos 20 anos, sobre a presença de elementos da antiga cultura pagã na obra de Sandro Botticelli (1445-1510), Warburg dedicou toda a sua trajetória aos estudos da arte e da ciência antigas, interessado particularmente no que chamava Nachleben, a vitalidade de elementos da cultura arcaica presentes nas produções culturais contemporâneas.

Nas primeiras décadas do século 20, a Biblioteca Warburg de Estudos da Cultura se instalou em um prédio em Hamburgo especialmente desenhado para a estranha forma que o fundador escolheu para organizar os livros, não por ordem alfabética de autor e obras ou nem mesmo cronológica. A “regra da boa vizinhança” coloca lado a lado livros diferentes, por uma associação idiossincrática entre seus temas, que fazia sentido para Warburg mas, desde sua morte, frequentemente os sucessores na direção da instituição pensam em desfazer.

Já no final da vida, a partir de 1925, Warburg começa a pensar em um “Atlas” de imagens, que organizaria a tradição iconográfica da humanidade ao longo dos milênios, como uma espécie de árvore genealógica de componentes da cultura contemporânea.

O exemplo mais claro dessa forma de analisar imagens, identificando Nachleben, é o apontamento dos elementos centrais da obra “Déjeuner sur L’herbe” (1863), de Edouard Manet (1832-1883), reproduzidos de imagens míticas gregas, que Warburg fez em ensaio e depois em painel do “Mnemosine”.

A “árvore genealógica” é descrita em texto por Warburg em um ensaio denominado “O ‘Déjeuner sur l’herbe’ de Manet”:

Gustav Pauli comprovou que o grupo que desjejua sobre a grama de forma aparentemente tão descontraída [...] é possível identificar, com uma exatidão raramente desfrutada pela ciência da arte, o modelo na Antiguidade e seu mediador italiano: trata-se de um Julgamento de Páris desenhado por Rafael a partir de um relevo de um sarcófago antigo, que ainda hoje pode ser visto em Roma encrustado na fachada da Villa Médici, onde agora é a Academia Francesa de Arte. O desenho foi gravado por Marcantonio Raimondi, e no seu canto inferior direito se encontram três semideuses presos à terra, pousados e nus, que deram, no modo como estão situados uns em relação aos outros, o contorno dos movimentos das figuras que desjejuam na pintura de Manet

(WARBURG, 2015WARBURG, A. Histórias de Fantasma para Gente Grande. Org. Leopolddo Waizbort. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 350).

Ou seja: um escultor na Antiguidade fez para um túmulo romano um relevo em mármore com uma cena mítica pagã; o pintor Rafael fez um desenho, como um decalque exato, da cena que retrata o “Julgamento de Páris”. Assistindo ao julgamento, na margem direita da cena, há três personagens míticos nus. O desenho de Rafael foi produzido no momento do Renascimento em que a arte começa a se descolar do domínio férreo dos ditames católicos. Embora desaparecido, o trabalho de Rafael foi copiado em uma gravura de Marcantonio Raimondi que viria a inspirar diversas obras ao longo dos séculos posteriores; Manet isolou e reproduziu em seu “Almoço sobre a relva”, deixando a mulher nua e vestindo os dois homens com trajes contemporâneos.

Como outros tantos ensaios que escreveu ou pensou escrever ao longo da vida, o texto sobre a obra de Manet inspirou um dos painéis do “Atlas Mnemosine”, de número 55 (figs. 1 e 2).

Figuras 1 e 2
Painel número 55, sobre o quadro “Le Déjeuner sur l’herbe”, de Edouard Manet, fotografado em p/b (esq.) nos anos 1920 e na nova versão “original” / Fotos: Divulgação.

O formato desses quadros foi sugerido a Warburg por seu assistente, Fritz Saxl, que tinha servido ao exército austríaco na Primeira Guerra Mundial. Ele pegou a ideia dos quadros onde eram apresentados cenários de batalha nas discussões do exército: placas de madeira recobertas de feltro, onde se fixam imagens com pequenos percevejos ou alfinetes, que podem mudar de posição facilmente.

Warburg usou nos seus um tecido grosso e cinza bem escuro, como um feltro de trama larga; para fixar as imagens, ele usava colchetes, que eram fixados no tecido. Quando um painel estava “pronto”, Warburg reunia seus discípulos e ditava notas, como lembretes telegráficos de ideias sobre o conjunto das imagens e seu sentido no conjunto do Atlas. Essas anotações, feitas pela assistente Gertrude Bing, servem até hoje como legendas dos painéis, nas edições do Atlas. No fim do processo, o painel era fotografado em negativos de vidro, em alta resolução, e arquivados. Os quadros eram desfeitos, as imagens (agora se tem certeza) arquivadas na coleção de fotos, e a estrutura era usada para um novo conjunto de imagens e ideias, dando origem a um novo painel.

Ao morrer, Warburg deixou 63 painéis e planejava vários outros, como se nota pelo fato de que entre eles há várias lacunas: eles estão numerados, mas há saltos entre os números 9 a 19 e 65 a 69; há dois painéis 23 (23ª) e 41 (41ª) e outros mais, que contém mais de um número (28/29, 50/51 e 61/62/63/64).

O Atlas “Original”

O ressurgimento do “Atlas” se deu em uma grande exposição em Berlim, inaugurada no último 4 de setembro de 2020, no curto intervalo entre a primeira e a segunda onda da epidemia do novo coronavírus. O medo da Covid-19 e o rápido retorno à quarentena na Alemanha fizeram com que a exposição tivesse menos visitantes do que esperado no mundo presencial, mas logo o digital preencheu a lacuna: uma visita virtual à exposição pode ser feita com imagens em alta resolução.

O principal impacto da visão dos painéis remontados é certamente a multiplicação de cores: muitas imagens eram coloridas ou tinham diferentes matizes de cinza. Os autores também optaram por um cinza mais claro no tecido do fundo, com uma trama mais fina também.

Os autores também produziram uma nova edição em livro, em tamanho e preço maiores do que as edições existentes antes: 44 cm x 60 cm, tamanho dos antigos atlas geográficos do início do século 20. O livro custa 200 euros na Alemanha, caro para os padrões dos consumidores brasileiros em tempo de desvalorização da moeda Real. O livro conta com um artigo da chefe do Arquivo Warburg, Claudia Wedepohl, e textos dos dois pesquisadores, descrevendo sua epopeia. E o texto que E.H. Gombrich, que dirigiu o Instituto Warburg, produziu a partir das notas manuscritas por Warburg e serve sempre de apresentação do próprio Warburg para seu “Bilderatlas Mnemosyne”, ou “Atlas de Imagens Mnemosine”.

Uma curiosidade decorrente do processo de reconstrução do Atlas é uma prova da pertinência de remontar os painéis a partir das imagens originais: a literatura sobre a obra sempre apontou que os painéis tinham 1,70m x 1,40m (WARBURG, 2012______. L’Atlas Mnémosyne. Apresentação de Roland Recht. Paris: L’écarquillé, 2012., p. 60). Mas ao encontrar as imagens originais e tentar colocá-las em painéis com essas dimensões, os autores perceberam que a dimensão original era menor: os novos painéis apresentados na exposição de Berlim têm 1,50m x 1,25m.

  • Errata

    Na resenha “‘Atlas Mnemosine’, que Aby Warburg deixou inacabado, renasce em versão ‘original’“, com número de DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-2553202152153, publicado no periódico de publicação continuada Galáxia, nº 46, e52153, na página 1:
    Onde se lia:
    “Ecos do fim do mundo em três perspectivas”
    Leia-se:
    “‘Atlas Mnemosine’, que Aby Warburg deixou inacabado, renasce em versão ‘original’“

Referências

  • ABY WARBURG: Bilderatlas Mnemosyne. Exposição no centro cultural HKW (Haus der Kulturen der Welt), em Berlim. De 4/9 a 1/11/2020.
  • Virtual Tour – Aby Warburg: Bilderatlas Mnemosyne exhibition at Haus der Kulturen der Welt. Disponível em:<https://warburg.sas.ac.uk/virtual-tour-aby-warburg-bilderatlas-mnemosyne-exhibition-haus-der-kulturen-der-welt>. 2021.
    » https://warburg.sas.ac.uk/virtual-tour-aby-warburg-bilderatlas-mnemosyne-exhibition-haus-der-kulturen-der-welt
  • WARBURG, A. Histórias de Fantasma para Gente Grande Org. Leopolddo Waizbort. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
  • ______. L’Atlas Mnémosyne Apresentação de Roland Recht. Paris: L’écarquillé, 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    31 Dez 2020
  • Aceito
    22 Mar 2021
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