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O método da cena em Jacques Rancière: dissenso,desierarquização e desarranjo

The method of the scene in Jacques Rancière: dissensus, nonhierarchical dispositions and disruption

Resumo

O conceito de cena é fundamental para a elaboração feita por Jacques Rancière de seu método da igualdade. A partir de montagens que reúnem imagens, gestos, textos, discursos e acontecimentos prosaicos, Rancière aposta em uma racionalidade ficcional, capaz de produzir uma composição fabuladora na qual múltiplas temporalidades surgem de uma série de intervalos, que se desviam da explicação consensual do mundo. Este texto destina-se a refletir acerca de três dimensões específicas e entrelaçadas na montagem da cena como método: o dissenso, a desierarquização e o desarranjo. Argumento que tais dimensões estão interligadas em três operações a serem evidenciadas neste artigo: a) a cena como método que requer uma escrita baseada na construção de montagens e intervalos; b) a cena como gesto de aparição do sujeito político, de sua corporeidade e vulnerabilidades, buscando sua emancipação; c) a cena como justaposição de tempos e espaços, configurando uma fabulação estético-política capaz de recolocar os vários elementos, que conferem a um momento singular um valor de ruptura com a cadeia interminável de condições, definindo as possibilidades de uma experiência. Essa operação coloca em marcha um tipo de emancipação em que Rancière associa o devaneio ao desvio e à desestabilização das relações de dominação.

Palavras-chave
método da cena; dissenso; tempo; fabulação; Rancière

Abstract

The concept of scene is fundamental to Jacques Rancière’s elaboration of his method of equality. Rancière uses a fictional rationality to produce montages that bring together images, gestures, texts, speeches and prosaic events in a fable-like composition of multiple temporalities that arise from a series of intervals which deviate from the consensual explanation of the world. This text intendeds to reflect on three specific and intertwined dimensions of the setting up of the scene as a method: dissensus, de-hierarchy and disruption. Such dimensions are interconnected in three operations to be highlighted in this paper: a) the scene as a method that requires a kind of writing based on the construction of montages and intervals; b) the scene as a gesture of apparition of the political subject, of his corporeality and vulnerabilities in search of emancipation; c) the scene as a juxtaposition of times and spaces, configuring an aesthetic-political fabulation capable of rearranging the various elements that give a singular moment its cognitive value, which is also a value of rupture with the endless chain of conditions that define the possibilities of an experience. This operation sets in motion a type of emancipation in which Rancière associates the daydreaming with the deviation and destabilization of relations of domination.

Keywords
method of the scene; dissensus; time; fabulation; Rancière

Introdução

A cena expõe as diferentes formas como uma mesma coisa pode ser percebida: ela é sempre para mim o momento no qual as coisas podem vacilar, ser sacudidas.

(RANCIÈRE, 2018a______. O desmedido momento. Serrote, n. 28, p. 77-97, 2018a., p. 31).

O conceito de cena é um dos eixos estruturantes para o pensamento metodológico que organiza a pesquisa e a escrita do filósofo francês Jacques Rancière. A cena é descrita como uma pequena máquina anti-hierárquica indicadora do que pode interromper determinada perpetuação de certa lógica de inteligibilidade e relação entre elementos singulares/heterogêneos, o que produz descontinuidades na aparição dos corpos, das demandas e existências.

A cena deriva da construção de “uma forma de racionalidade não hierárquica que não procura explicar um fato, um acontecimento, uma vez que a inteligibilidade deriva da singularidade escolhida e das redes identificadas em torno dela” (RANCIÈRE, 2020______. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, p. 828-840, 2020., p. 839). Assim, essa definição vem da importância que Rancière confere à tentativa de não representar ou explicar o mundo e os fatos de maneira causal, obedecendo uma linearidade consensual que busca apenas classificar, nomear, organizar, reforçar ordens e normas assimétricas (VOIGT, 2019VOIGT, A. F. O conceito de “cena” na obra de Jacques Rancière: a prática do “método da igualdade”. Kriterion, v. 60, n. 142, p. 23-41, 2019.). A representação, segundo Rancière, explica o mundo, evitando o trabalho crítico do sujeito que se interessa em conectar singularidades, articulando-as em atrito e em mosaico. É como se uma cena singular pudesse se transformar em “um aparelho através do qual podemos olhar outras cenas e ter uma percepção, um entendimento diferente de outras singularidades, lançando luz ao redor” (RANCIÈRE, 2020______. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, p. 828-840, 2020., p. 840).

Essa característica da cena, como operação de desmontagem de legibilidades hegemônicas e hierárquicas, é uma primeira dimensão que gostaríamos de destacar. Como interromper o fluxo explicativo interferente em nossa apreensão dos sujeitos e seus modos de aparecer e figurar no mundo? Rancière afirma que o que interessa a ele é justamente reorganizar, redefinir e alterar “a topografia do perceptível, do pensável e do possível” (RANCIÈRE, 2020______. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, p. 828-840, 2020., p. 830). A cena assume, assim, a forma de uma estrutura de racionalidade sensível, produzindo um modo de apresentação de diferentes objetos, situações e acontecimentos no qual eles se tornam inteligíveis, desviando de consensos já estabelecidos.

Uma das dimensões da dramaturgia da cena de dissenso é que ela pode mostrar acontecimentos, imagens, objetos, textos, vestígios sendo tensionados ou aproximados, não para produzir explicações causais e lógicas, mas sim para elaborar combinações inusitadas, que possam alterar padrões de julgamento e valorização, expondo a divisão e as desigualdades que fraturam o comum. É importante, então, ressaltar a aproximação que Rancière faz entre a cena de dissenso e a cena teatral. Para ele, ambas podem tematizar a relação assimétrica entre a instituição material do teatro e a questão do espaço no qual o povo pode se manifestar, estar presente. O teatro é o lugar, material e simbólico, no qual os papéis e as identidades se misturam e a fabulação permite uma redisposição das temporalidades e capacidades. A cena de dissenso, da mesma forma que a cena dramatúrgica, possibilita “dilatar os momentos singulares em uma temporalidade não hierárquica, impregnando-os da beleza e da potência de acontecimentos sensíveis, permitindo a coexistência de singularidades” (RANCIÈRE, 2020______. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, p. 828-840, 2020., p. 840). Ambas as cenas são estéticas e políticas, porque permitem “inventar, no sentido lógico e teatral — argumentos e demonstrações para colocar em relação o que não tinha relação, para dar lugar ao não-lugar em um novo espaço polêmico” (RANCIÈRE, 1995______. La Mésentente – politique et philosophie. Paris: Galilée, 1995., p. 29).

Ao definir a política como “o conflito sobre a existência de uma cena comum, sobre a existência e a qualidade daqueles que nela aparecem” (ibidem, p. 49), Rancière caracteriza o espaço da cena como operação por meio da qual a igualdade ou a desigualdade dos parceiros é negociada enquanto se colocam em conflito como sujeitos falantes (ibidem, p. 81):

A cena original da política é uma cena na qual aqueles que não são escutados, que não falam, fazem como se falassem e provaram que eles, na verdade, falam e que, nesse sentido, o que sai de suas bocas não é um ruído, mas sim a exposição de uma demanda por justiça.

(RANCIÈRE, 2019b______. El tiempo de los no-vencidos. Revista de Estudios Sociales, n. 70, p. 79-86, 2019b., p. 84).

Na cena, os sujeitos se constituem processualmente como emancipados, colocando em xeque uma ordem dominante que apaga conflitos, diferenças e resistências. A emancipação relaciona-se, portanto, à “capacidade de produzir cenas polêmicas, cenas paradoxais que revelam a contradição entre duas lógicas, que tensionam existências que são, ao mesmo tempo, inexistências e vice-versa” (RANCIÈRE, 1995______. La Mésentente – politique et philosophie. Paris: Galilée, 1995., p. 66).

Uma cena emerge quando expectativas não são atendidas, ou ao se alterar o funcionamento da máquina explicativa, e pode-se, então, mudar “a topografia do perceptível, do pensável e do possível, redispondo temporalidades e partilhas, que vão definir as formas de experiência possíveis” (RANCIÈRE, 2020______. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, p. 828-840, 2020., p. 829-830). A cena de dissenso é também uma máquina de interferir nas inteligibilidades, ela é “a construção de outro universo de aparências: faz aparecer o que não aparecia, ou faz aparecer de forma diferente o que já aparecia sob certo regime de visibilidade e inteligibilidade” (RANCIÈRE, 2018c______. Les temps modernes. Paris: La Fabrique, 2018c., p. 14). A cena de dissenso seria, para Rancière, “a construção de uma racionalidade exemplar, e o teatro seria como o lugar de um desenvolvimento, um desdobramento” (ibidem, p. 16).

A associação entre acontecimentos de maior abrangência e microacontecimentos sensíveis pode transformar o olhar e o modo como inteligibilidades são produzidas a partir de julgamentos e valores centrados no trabalho, por exemplo. Segundo Rancière, é essencial que a cena de dissenso seja produzida com base nesse gesto de montagem entre diferentes elementos, e que essa montagem evidencie “o hiato entre duas mise en scènes sensíveis e diferentes, [...] para mostrar a presença de sujeitos coletivos, plurais e antagônicos quanto ao sentido dessa presença” (idem, 2018a, p. 25).

A presença de corpos e enunciações antagônicas sobre a cena é algo vital para Rancière, pois revela “a cena enquanto conjunção, enquanto a operação de colocar juntos os corpos, olhares, palavras, gestos e significações” (ibidem, p. 29). Assim, é importante que a cena também seja um “espaço” no qual o aparecer seja associado a uma tomada de palavra, a uma construção de uma realidade, a partir da sedimentação dos elementos que permitem a criação de outro imaginário possível — “trata-se de constituir, com as coisas que aparentemente pertencem a registros diferentes, os vínculos de um mundo comum que está sempre no limiar da desaparição” (RANCIÈRE, 2020______. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, p. 828-840, 2020., p. 838).

Com base na leitura e sistematização de obras importantes e recentes de Rancière, essas dimensões a serem pensadas, citadas anteriormente, podem ser encontradas em três formas (também interligadas) de operação e de funcionamento da cena de dissenso: a) a cena como resultado de acontecimentos singulares, produzidos pela ação política de sujeitos que buscam tematizar desigualdades e alterar vulnerabilidades, reconfigurada pela escritura, tal como uma (re)montagem feita pelo pesquisador; b) a cena como pequena máquina óptica que altera as condições de visibilidade e a forma do “aparecer” de sujeitos políticos em busca de sua emancipação; e, por fim, c) a cena como trabalho fabulativo, que justapõe temporalidades, espacialidades e corporeidades, de maneira a instaurar outras possibilidades de experimentação e de experiência.

A seguir, explorarei detidamente cada uma dessas três dimensões de funcionamento da cena, detalhando suas relações com processos estéticos, políticos e comunicacionais. Acerca das relações entre a noção de cena e a comunicação, meu intuito é salientar a potencialidade da cena como método, por meio do qual um pesquisador pode compor um texto, por exemplo, que apresente uma liminaridade entre várias cenas que atuem umas sobre as outras, sem buscar explicações ou costuras entre diferenças. Isso implica em uma montagem constelar, que evita uma ordem narrativa linear causal: a potência política e estética do gesto tentativo de comunicação entre cenas reside nas relações inesperadas e nos microacontecimentos sensíveis que tal método pode engendrar. O pesquisador é convidado a criar uma semântica própria, na qual sua palavra se avizinhe da palavra dos outros, estabelecendo passagens entre territórios e elaborando apropriações, desvios e lampejos a partir de um jogo comunicacional movente, tramado pela dramaturgia do intervalo e dos deslizamentos fabuladores entre experiências que valorizam os imprevisíveis lampejos e desarranjos.

Ao mesmo tempo, o método da cena altera a condição do aparecimento político de sujeitos e coletividades. Como a construção teórica e metodológica da cena envolve a demonstração de um jogo conflitivo entre formas distintas de partilha de temporalidades, espacialidades, corporeidades e regimes discursivos, o aparecer pode ser evidenciado por meio da análise de acontecimentos sensíveis, que interrompem o ajuste dos corpos a ordens simbólicas opressoras. Mas, como veremos, a cena não é a descrição desses acontecimentos apenas, mas também a produção de arranjos e agenciamentos enunciativos que questionem a reprodução das hierarquias dentro das instituições e das práticas comunicativas cotidianas, a partir de transformações que possam ser feitas na “máquina explicativa”, definindo as vidas e os conhecimentos que contam e aqueles que não são considerados. A cena pode ser trabalhada de forma comunicacional para tornar visível e legível “a realidade material de uma separação das formas da experiência e o esforço para transgredi-la, para criar outro modo de tecer o comum, reconfigurando um universo sensível” (RANCIÈRE, 2020______. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, p. 828-840, 2020., p. 840).

Dito de outro modo, a montagem da cena de dissenso se relaciona com a comunicação em sua prática transformadora da experiência e das formas de organização e desorganização de territorialidades, temporalidades, corporeidades e vulnerabilidades. As combinações e articulações que esse método permite despertam condições que favorecem a relação de regimes de visibilidade e invisibilidade, ressaltando as brechas e as encruzilhadas como limiares nos quais identificações se desenham e revelam potencialidades emancipatórias, sobretudo quando a cena questiona um sensorium “que regula o estatuto dos corpos representados e o tipo de atenção que merecem” (RANCIÈRE, 2012______. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012., p. 96).

Montar a cena na escrita

Rancière (2018c)______. Les temps modernes. Paris: La Fabrique, 2018c. afirma que o grão que origina a cena é uma singularidade, um evento especial, que pode nos levar a perceber conexões antes não imaginadas com outras singularidades, em si mesmas, contidas em um valor específico e que não devem ser aproximadas, segundo a lógica de uma explicação causal e linear, pois coloca tudo em seu “devido” lugar: pessoas, modos de percepção, formas de vida e de pensamento.

Aqui o papel do sujeito que constitui a cena é essencial, seja ele um pesquisador, um filósofo, um professor, um operário, etc. Evitar uma escrita que produza uma máquina explicativa do real é o gesto político adotado por Rancière (2020, p. 829)______. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, p. 828-840, 2020., uma vez que é “essa rede de explicações que vem reforçar a ordem do mundo, duplicando-o a partir de sua racionalidade”. Para produzir uma escrita anti-hierárquica capaz de elaborar e montar a cena de dissenso, o pesquisador que junta os traços que configuram as redes de singularidades e definem uma cena precisa adotar uma postura ética. Uma cena é fruto do trabalho de tomada de posição por parte de quem a monta e de sua habilidade em produzir uma linguagem capaz de afirmar outra relação com o espaço e com o tempo. No livro O método da igualdade (2016), Rancière comenta que seu método de trabalho envolve aproximar diferentes materialidades e produzir um encontro, colocando para funcionar um sistema de relações, sendo um choque entre vários registros de discurso:

Há um núcleo de realidade em um encontro, o qual retrabalho do meu jeito: não de maneira a produzir uma ilustração ou uma explicação — a cena não é uma alegoria —, mas de maneira a entrelaçar o acontecimento e meus comentários. Ao ponto de não ser possível separar o que é apresentado como a história de algo real de minha reflexão sobre essa realidade ou de uma ficção que eu possa ter construído. O que constitui a cena, para mim, é esse entrelaçamento de diferentes níveis de sentido e discurso.

(RANCIÈRE, 2016______. The method of equality. Interviews with Laurent Jeanpierre and Dork Zabunyan. Cambridge: Polity Press, 2016., p. 68).

De fato, a cena é composta de vários materiais: partindo de um acontecimento, situação ou ação concreta, o pesquisador cria uma forma de escrita capaz de expressar seu pensamento, uma vez que transformar o modo como as coisas são apresentadas na escrita significa interferir em como elas são vistas e pensadas. Em entrevista concedida a Javier Bassas, Rancière (2019c)______. El litigio de las palabras: diálogo sobre la política del lenguaje. Entrevista a Javier Bassas. Barcelona: Ned Ediciones, 2019c. comenta que o papel da escrita na montagem da cena de dissenso é aproximar blocos de linguagem e blocos de pensamento, não para produzir explicações, mas sim tensões e choques, engendrando uma busca que produz sentidos, deslocando posições naturalizadas.

Escrevo, pois, situando-me no seio de um universo de linguagem existente, seja um texto filosófico, uma carta de um operário a outro, um romance, a descrição de uma obra de arte, em suma, todo pensamento que se apresenta sob a forma de bloco de linguagem, que pertence a um âmbito particular. Tento introduzir-me nesses blocos com o objetivo de deslocá-los para definir um plano em que possam se comunicar, um plano em que haja um objeto de pensamento comum que existe e que se expressa em uma linguagem comum. Trata-se de construir uma espécie de história comum a partir desses blocos de linguagem heterogêneos, de deslocamentos que culminam na constituição de um plano de igualdade.

(RANCIÈRE, 2019c______. El litigio de las palabras: diálogo sobre la política del lenguaje. Entrevista a Javier Bassas. Barcelona: Ned Ediciones, 2019c., p. 30).

Quando Rancière revela seu modo discursivo de articular a escrita, ele enfatiza que a desmontagem das operações verticalizáveis da lógica explicativa requer do pesquisador a habilidade de fabricar “operações de reformulação, de reordenação de frases, de condensação, comparação, deslocamentos que entrelacem diferentes textos na constituição de um objeto” (ibidem, p. 31). O efeito desse gesto de escritura é a produção de cenas que reagem umas com as outras e umas sobre as outras.

Construir uma cena com elementos singulares não quer dizer apenas colocá-los juntos, mas escolher a racionalidade que produzirá inteligibilidade a partir dos fragmentos. Rancière não opta pela ordem representativa, mas sim pela ordem igualitária. O trabalho da cena é permitir deslocamentos capazes de produzir novas relações entre o sensível e o legível, novas paisagens e caminhos inesperados de entendimento e de imaginação.

Para mim fundamentalmente uma cena não está jamais isolada. Um acontecimento pontual não é ainda uma cena: é meu trabalho transformar em cena este ou aquele acontecimento. A cena existe através da mise en scène discursiva e sensível que construo entre palavras de comentadores e acontecimentos sensíveis que eles se aplicam a captar. A cena não é jamais simplesmente um acontecimento empírico que eu me ponho a contar e analisar. A cada vez, há um conjunto de fios que são ligados, ressonâncias e harmônicos que a constituem. Eu constituo a cena tendo em mente a referência possível a outras cenas.

(RANCIÈRE, 2018a______. O desmedido momento. Serrote, n. 28, p. 77-97, 2018a., p. 121).

Transformar determinado acontecimento singular em uma cena de dissenso requer, portanto, essa busca por uma escritura liminar e não explicativa (que aproxime diferenças sem suturá-las, abrindo outros espaços e outros tempos na narrativa), além de também um investimento na identificação e entrelaçamento de redes de relação entre eventos, nas quais o “aparecer” é o motor ético, estético e político de transformação.

A aproximação conflitiva de diferentes tipos de textos ou enunciações pode revelar como determinada palavra é percebida, como um pensamento ou ponto de vista articulado e recebido como válido, enquanto outros dizeres podem ser vistos apenas como tematização de sofrimentos quando, na verdade, também revelam pensamentos e epistemes que não devem ser explicadas pela palavra institucional ou acadêmica.

A cena é uma entidade teórica que pertence ao método da igualdade, porque ela destrói, ao mesmo tempo, as hierarquias entre os diferentes níveis de realidade e discursos; e os métodos usuais que julgam se um fenômeno é ou não importante.

(RANCIÈRE, 2018a______. O desmedido momento. Serrote, n. 28, p. 77-97, 2018a., p. 123).

Quando Rancière (2019c)______. El litigio de las palabras: diálogo sobre la política del lenguaje. Entrevista a Javier Bassas. Barcelona: Ned Ediciones, 2019c. narra o modo como monta uma cena, ele destaca os aspectos e singularidades acerca dos quais o encontro com um conjunto de materiais o fez pensar. Trata-se de oferecer uma proposição de sentido a ser discutida, reconfigurada, revista, como uma constelação movente. “A questão é saber se o leitor aceitará mover-se com o texto, fazer algo com ele, inscrever-se nessa paisagem de pensamento anônimo e traçar aí seus próprios caminhos” (RANCIÈRE, 2019b______. El tiempo de los no-vencidos. Revista de Estudios Sociales, n. 70, p. 79-86, 2019b., p. 38).

Rancière também afirma que a cena não é uma ficção que se opõe a uma verdade ou que se contrapõe a um bastidor: ela é uma possibilidade de construir legibilidade acerca da experiência e dos quadros de sentido que direcionam nossa apreensão e entendimento do mundo. A ficção alimenta uma racionalidade sensível capaz de nos aproximar do que seria certa realidade.

O que me interessa não é o fora de cena como a verdade da cena, mas a cena enquanto conjunção, enquanto o fato de colocar juntos os corpos, gestos, olhares, palavras e significações. É a cena como tal que me interessa, enquanto ela é como a disposição visual de um modo de racionalidade que não deve ser explicado por um fora de cena. A cena de Althusser é sempre dividida entre aparência e realidade, enquanto a minha cena é uma cena de construção de uma realidade. O que torna uma cena possível não é o bastidor, o que está escondido, mas essa sedimentação que é preciso evidenciar, mas não sob a forma de um pano de fundo descortinado. E não é também o maquinário, a inteligibilidade que está do lado da constituição dos elementos que fazem parte da cena. Tento pensá-la dessa forma, e não em relação a um fora de cena que seria a razão da cena.

(RANCIÈRE, 2018b______. La Méthode de la scène. Paris: Éditions Lignes, 2018b., p. 29).

No trabalho da cena, a palavra do pesquisador toma para si a tarefa de montá-la, por meio de vários elementos, palavras, nomes, narrativas e imagens que deslizam uns sobre os outros, tornando a composição da cena uma tessitura mais complexa do que uma conexão explicativa entre fragmentos distintos. O processo igualitário que faz funcionar a cena não tem como objetivo eliminar a separação entre singularidades distintas, mas justamente tematizar, por meio da escritura autoral, a topografia que origina essa borda, esse espaço liminar produzido pela cena, deslocando as posições tidas como “normais”, que definem operações verticais e explicativas. A cena é uma “máquina igualitária”, uma “máquina ótica” que aproxima e tensiona momentos e materialidades, não sob a forma de um fio contínuo, mas por meio de “outras cenas que agem umas sobre as outras” (RANCIÈRE, 2019c______. El litigio de las palabras: diálogo sobre la política del lenguaje. Entrevista a Javier Bassas. Barcelona: Ned Ediciones, 2019c., p. 33).

[A cena é] a rede constituída em torno de um evento singular que inscreve os elementos em uma constelação movente na qual modos de percepção e afeto, e formas de interpretação tomam forma. A cena não é uma ilustração de uma ideia. É uma pequena máquina ótica que nos mostra o pensamento ocupado, tecendo juntos percepções, afetos, nomes e ideias, constituindo a comunidade sensível que torna essa tecelagem pensável. A cena captura conceitos em operação, em sua relação com os novos objetos que buscam apropriar, velhos objetos que tentam reconsiderar e os padrões que constroem ou transformam para este fim.

(RANCIÈRE, 2013a______. Aisthesis: scenes from the aesthetic regime of art. London: Verso, 2013a., p. 11).

A dimensão performativa da cena deriva de como o autor/pesquisador configura uma “constelação movente” a partir de textos, imagens, efeitos, nomes e conceitos que reconfiguram a comunidade e o imaginário sensível, permitindo-nos compreender determinada questão e nos afirmarmos enquanto sujeitos que participam de sua elaboração e resolução. Para os estudos em comunicação — em sua interface com a estética e a política —, a contribuição de Rancière reside na elaboração de um método movido por uma escrita intervalar, que escuta e abre espaço para o contato, de maneira a “falar com”. Ele expressa claramente que produz mosaicos, nos quais se posiciona em condição de igualdade para escutar, para se arriscar diante do desconhecido e se forçar a pensar no que contraria o curso usual de seu pensamento. Ele empreende um gesto que o impele a produzir uma escritura convidativa ao leitor para pensar por si mesmo, trazendo-o a participar da composição da cena, a contribuir com sua montagem, em vez de lhe oferecer um método ou caminho “seguro” para realizar uma pesquisa (MARQUES; OLIVEIRA, 2018MARQUES, A.; OLIVEIRA, A. K. L’écriture subversive: la performativité de la parole de l’homme ordinaire dans la méthode de l’égalité de Jacques Rancière. Revue internationale de psychosociologie et de gestion des comportements organisationnels, v. 24, n. 57, p.113-132, 2018.).

A pesquisa em comunicação pode se beneficiar do método empreendido por Rancière quando desenha uma forma de dispor o texto, ao recriar uma sintaxe e uma mise en scène argumentativas que combinam uma descrição detalhada de materiais, acontecimentos e vivências com um processo de nomeação e de dialética do sensível que questiona a naturalidade das coisas, destacando as ambiguidades e as vulnerabilidades que configuram formas de vida, quadros morais de julgamento das vidas e arranjos capazes de alterar modos hierárquicos de distinção. A cena que surge pelo trabalho da escrita, diz Rancière (1998)______. La Chair des mots: politiques de l’écriture, Paris: Galilée, 1998., reaviva as diferentes racionalidades presentes no trabalho dos vulneráveis que tematizam um dano, ao lado das racionalidades mobilizadas para pensar de maneira diferente o acontecimento criado por esse trabalho e daquelas que, configuradas pelos leitores, podem reconfigurar um imaginário político, questionando formas de exclusão, despolitização e redução totalizante das múltiplas temporalidades, espacialidades e corporeidades que (em suas coexistências e interseccionalidades) persistem em contrariar a imposição de uma única maneira de representar e tornar legíveis a topografia das experiências. É importante mencionar que o “dano pelo qual existe a política não é nenhuma injúria a ser reparada, mas a introdução de um incomensurável no seio da distribuição dos corpos falantes” (RANCIÈRE, 1995______. La Mésentente – politique et philosophie. Paris: Galilée, 1995., p. 33). A figura do dano expressa o enfrentamento de duas ordens de aparência: uma em que os sujeitos são vistos como falantes, e outra em que são silenciados.

Para um pesquisador em comunicação, é interessante ver como Rancière cria uma escrita e um método cuja finalidade não é prescrever ou impor uma explicação, mas sim oferecer cenas abertas à interpretação, renegociação e reinterpretação, acionando performativamente o que ele chama de pequena máquina de contestação das explicações, que apenas reproduzem aquilo que já está definido. A escrita desnaturaliza a partir da abertura de intervalos e não da construção de respostas articuladas: ela busca uma sintaxe inapropriada, excessiva, criada com base em elementos disponíveis, mas que, reagrupados e justapostos de outro modo, produzem uma visibilidade singular, forçando pesquisadores e leitores a se moverem constantemente.

A cena de aparecimento e desestabilização das hierarquias

Eu construo a cena como uma pequena máquina na qual o máximo de sentidos pode ser condensado em torno de uma questão central, que é a questão da partilha do mundo sensível.

(RANCIÈRE, 2018a______. O desmedido momento. Serrote, n. 28, p. 77-97, 2018a., p. 35).

Uma cena de dissenso, como vimos, produz montagens e mosaicos a partir de singularidades que supostamente não deveriam estar juntas. De acordo com Rancière, a cena é tecida em torno de uma intriga na qual noções, pensamentos, acontecimentos, textos, corpos, espaços e tempos vão sendo articulados e trabalhados, aparecendo a partir de materialidades específicas e personagens que elaboram sua aparência (seu aparecer) e, assim, sua emancipação e sua subjetivação. Aparecer não é apenas tornar-se visível, fazer-se notar; tampouco uma aparência indica superficialidade ou negação da realidade. A racionalidade que estrutura o aparecer é aquela que contrapõe várias formas de manifestação e enunciação diante dos outros. Materializar uma cena requer a elaboração de um aparecer, de uma tomada de palavra, que também inventa a cena de sua reverberação.

O aparecer sobre a cena é concomitante ao próprio processo de sua montagem, uma vez que, segundo Rancière, o sujeito não é a origem de um processo de insurgência, mas seu resultado. É por isso que ele se interessa pelo aparecimento tal como dinâmica que aciona “formas de subjetivação que produzem modificações efetivas em um campo de experiência, possibilitando a construção de um mundo alternativo em relação àquele no qual as posições já se encontram distribuídas” (RANCIÈRE, 2020______. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, p. 828-840, 2020., p. 833).

Segundo Rancière (2020)______. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, p. 828-840, 2020., a cena de dissenso valoriza uma singularidade menor, mas que pode valer muito quando se trata de alterar um campo de legibilidade para definir as formas de valorizar ou desvalorizar a agência e o aparecer político dos sujeitos. Aqui é importante destacar que subjetivação ligada à elaboração da cena de dissenso não se relaciona com o conceito de dispositivos de controle em Foucault — “a questão do poder e das normas não está em questão aqui: estou longe de Foucault e de sua concepção das normas que nos controlam e nos constituem” (RANCIÈRE, 2020______. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, p. 828-840, 2020., p. 835). Ele ainda destaca que a subjetivação não se alimenta de uma oposição entre instituição e espontaneidade, entre uma solidez que aprisiona e uma liberdade explosiva. Não se trata de culpar a rigidez institucional, mas de questionar a reprodução da hierarquia dentro das instituições por meio de mudanças possíveis de serem feitas na máquina explicativa, que define as vidas e conhecimentos que contam e aqueles que não são considerados.

O aparecer político convoca para a cena um indivíduo ou coletivo “que deve responder a uma interpelação quando, na verdade, não se reconhece que sua resposta seja um ato de fala” (RANCIÈRE, 2019a______. Le travail des images. Conversations avec Andrea Soto Calderón. Dijon: Les Presses du Réel, 2019a., p. 65). O aparecer implica a criação de uma dramaturgia que conecte plateia e palco, envolvendo todos nesse processo de deslegitimação de uma legibilidade consensual das formas de vida, produzindo uma chance de “colocar em cena a palavra dos incontados para que eles se imponham como seres falantes” (RANCIÈRE, 2019a______. Le travail des images. Conversations avec Andrea Soto Calderón. Dijon: Les Presses du Réel, 2019a., p. 77). Não se trata apenas de negar uma identidade imposta ou alterá-la, mas de montar uma cena na qual essa recusa seja visível e legível aos demais, ao mesmo tempo em que ela agencia identificações excessivas, intervalares e fabuladoras mais adequadas às corporeidades que alteram sua localização no jogo conflitivo da partilha do sensível.

A aparição é um trabalho político, estético e também comunicacional, uma vez que a produção do sujeito político sobre a cena de dissenso requer um deslocamento do corpo do lugar que lhe havia sido designado para transformar a rede material, simbólica e intersubjetiva sustentadora e modificadora de suas vulnerabilidades situadas. A relação entre o aparecer na cena e a emancipação tem, em Rancière, uma forte ancoragem no corpo e, mais precisamente, na maneira como os corpos são posicionados no espaço, no tempo e na sociedade. Assim, “a emancipação não implica uma mudança em termos de conhecimento, mas em termos de posição dos corpos” (RANCIÈRE, 2009______. Les territoires de la “pensée partagée”. Entretien a Jacques Lévy, Juliette Rennes et David Zerbib. In: ______. Et tant pis pour les gens fatiguées. Paris: Éditions Amsterdam, 2009, p. 572-586., p. 575). A localização de um corpo, nessas coordenadas, influencia o desenvolvimento de suas capacidades e pode amplificar suas vulnerabilidades por meio do impedimento que certas formas de vida enfrentam para transitar em outros espaços, abrir e habitar outras temporalidades, acessar outras cenas, desfazendo fronteiras e ampliando limiares nos quais um corpo pode transitar ou permanecer pelo tempo que desejar.

A dimensão estética e comunicacional da emancipação assume que é possível produzir “um modo de inscrição em um universo sensível no qual [...] o indivíduo possui um corpo definido por capacidades e incapacidades, e pelo pertencimento a certo universo perceptivo” (RANCIÈRE, 2009______. Les territoires de la “pensée partagée”. Entretien a Jacques Lévy, Juliette Rennes et David Zerbib. In: ______. Et tant pis pour les gens fatiguées. Paris: Éditions Amsterdam, 2009, p. 572-586., p. 575). A emancipação é construída como um processo estético, político e comunicacional, que envolve uma ruptura com corporeidades, afirmando a correspondência e a adequação entre “certo tipo de ocupação e certo tipo de equipamento intelectual e sensorial” (ibidem).

O aspecto comunicacional da criação de corporeidades não hierárquicas fica mais claro em Rancière (2019a)______. Le travail des images. Conversations avec Andrea Soto Calderón. Dijon: Les Presses du Réel, 2019a. a partir de sua reflexão sobre as imagens. O trabalho da imagem é abrir planos de conexões e desconexões, aproximações e distinções, fratura e recomposições que não realizam expectativas de legibilidade, trazendo ao olhar do espectador uma indecisão que o torna sensível a aspectos que antes não seriam objeto de contemplação ou consideração (RANCIÈRE, 2007______. Le travail de l’image. Multitudes, n. 28, p. 195-210, 2007., 2013a______. Aisthesis: scenes from the aesthetic regime of art. London: Verso, 2013a., 2010______. Les territoires de la “pensée partagée”. Entretien a Jacques Lévy, Juliette Rennes et David Zerbib. In: ______. Et tant pis pour les gens fatiguées. Paris: Éditions Amsterdam, 2009, p. 572-586., 2012______. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.). Fazer imagens (faire images) que se distanciem da representação implica escapar ao regime de sedução e banalização do fluxo midiático tradicional, agenciando novamente a mesma maneira de circulação e aparição daquelas inéditas formas de vida.

Assim, Rancière argumenta que a imagem produz “um tipo de operação que vai alterar a distribuição do visível e do pensável” (2019a______. Le travail des images. Conversations avec Andrea Soto Calderón. Dijon: Les Presses du Réel, 2019a., p. 50), pois, a potência política está tanto nas imagens (materialidade sígnica) quanto nas relações e operações que as definem. É pelas imagens — e nas redes que elas constituem com palavras, gestos, espaços e tempos — que vemos corpos se formando pela ação, articulações coletivas que criam cenas de identificação de danos, levantes e insurgências que fraturam a ordem perceptiva e apontam para como repensar materialmente e imaginar a experiência de outra maneira. As imagens são material importante para a produção e escritura da cena: o que aparece pela imagem tem grande chance de afetar as composições de sentido vigentes, pois ela “cria e abre brechas ao que nunca foi visto” (CALDERÓN, 2020CALDERÓN, A. S. La performatividad de las imágenes. Santiago de Chile: Ediciones Metales Pesados, 2020., p. 35).

O aparecer do corpo sobre a cena, potencializado pelo trabalho das imagens, reafirma desencaixes quanto às formas enunciativas dominantes e às representações redutoras. É um aparecer intervalar, no sentido de que o corpo transita entre nomes, entre outras imagens e entre outras sintaxes. Nesse trânsito, o corpo redescobre seus próprios movimentos, seus gestos singulares, sua mobilidade única entre espaços sociais, políticos e institucionais. O aparecer do corpo é uma das dimensões comunicativas e inter- relacionais do processo de reconfiguração no campo da percepção e do imaginário político de um indivíduo. Esse deslocamento do corpo modifica a topografia do que é tido como possível e pode ser estudado, por exemplo, a partir da maneira como insurgências, levantes e resistências evidenciam transformações menores e cotidianas dos corpos vulneráveis, alterando a partilha policial do sensível que insiste em regular e controlar os desejos, deslocamentos e aparências de corpos dissidentes, desviantes e abjetos.

A cena tecida com intervalos fabuladores e temporalidades desviantes

A cena opera por meio de uma racionalidade temporal que é ficcional e fabuladora, argumenta Rancière (2018c______. Les temps modernes. Paris: La Fabrique, 2018c.; 2019b)______. El tiempo de los no-vencidos. Revista de Estudios Sociales, n. 70, p. 79-86, 2019b.. Contudo, a ficção não é a invenção de seres imaginários: a ficção, enquanto uma forma de racionalidade, configura quadros em que sujeitos, coisas, situações e palavras são percebidos, identificados e ligados uns aos outros, produzindo um sentido de realidade. Assim, a ficção é uma das forças produtoras da cena, operando na desestabilização das relações de dominação e propondo outras formas de enfrentar a realidade e transformá-la por meio de um rearranjo do tempo. Por meio da racionalidade ficcional, “se produz toda uma série de intervalos possíveis com o tempo normal da reprodução dos fazeres e dizeres associados a uma dada ocupação. E esses intervalos deixam-se reunir em um encadeamento temporal desviante” (RANCIÈRE, 2018c______. Les temps modernes. Paris: La Fabrique, 2018c., p. 34).

A ficção fornece a estrutura de racionalidade necessária à elaboração de outra temporalidade possível para as experiências daqueles que, no esquema de pensamento capitalista, só teriam tempo para o trabalho e o descanso. Ela tensiona o tempo da coexistência e a temporalidade excludente da tradição narrativa causal. A palavra ficcional, a escritura e suas formas de elaboração podem transcrever a potência dos momentos benjaminianos de choque e lampejos, que se articulam de maneira conflitiva e agonística, aproximando linguagens, vozes, dizeres, ditos, evidenciando como são produzidas as separações e bordas entre aqueles que podem ou não falar e serem vistos.

Em um texto famoso, Walter BenjaminBENJAMIN, W. Obras escolhidas. v. I. Trad. Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. fala desses momentos que explodem o tempo contínuo — o tempo dos vencedores — e [...] produzem a abertura de um outro tempo, um outro tempo comum nascido das brechas operadas dentro do primeiro: não é um tempo do sonho, que nos faria esquecer do tempo sofrido ou projetaria um paraíso em devir. Mas é um tempo que se desdobra de outra maneira, que confere um peso diferente a esse instante desviante, ligando-o a outros instantes, permitindo outros acessos ao passado, construindo outra memória e criando, por isso mesmo, outros futuros.

(RANCIÈRE, 2018c______. Les temps modernes. Paris: La Fabrique, 2018c., p. 36 e 37).

Assim, segundo Rancière, a racionalidade sensível e fabuladora que organiza a cena opera a partir de momentos quaisquer, capazes de abrir espaço a “uma outra temporalidade, diferente daquela que encadeia e faz valer o que estava previsto” (RANCIÈRE, 2018c______. Les temps modernes. Paris: La Fabrique, 2018c., p. 36). Um momento qualquer é:

[...] o momento de tremor que se localiza na exata fronteira entre o nada e o tudo, o momento do encontro entre aqueles que vivem no tempo dos acontecimentos sensíveis partilhados e aqueles que vivem no fora do tempo onde nada se partilha mais e nada pode mais acontecer.

(RANCIÈRE, 2017______. Les bords de la fiction. Paris: Éditions du Seuil, 2017., p. 153).

A prática da montagem articuladora, via racionalidade ficcional desviante, promove uma espiral de temporalidades capaz de “transformar a sucessão de horas nas quais nada jamais deve acontecer em um tempo marcado por uma ampla gama de acontecimentos” (RANCIÈRE, 2018c______. Les temps modernes. Paris: La Fabrique, 2018c., p. 34). Tal produção de aproximações e constelações resulta em uma cena sobre a qual figura aquilo que antes não existia, alcança inteligibilidade e escuta. É por isso que “a emancipação é primeiramente uma reconquista do tempo, uma outra maneira de habitá-lo” (RANCIÈRE, 2018c______. Les temps modernes. Paris: La Fabrique, 2018c., p. 33). Reorganizar o tempo e as formas de habitá-lo é uma ação poderosa que redefine experiências e coloca em marcha um tipo de emancipação nomeada por Rancière como derivada do “poder do momento que cria um encadeamento temporal desviante” (ibidem, p. 36).

Ao explicar como a cena de dissenso pode se originar, Rancière (2019b)______. El tiempo de los no-vencidos. Revista de Estudios Sociales, n. 70, p. 79-86, 2019b. lança mão de um exemplo presente em sua obra desde a década de 1980. Ao investigar os arquivos da imprensa operária de meados do século XIX, na França, Rancière (1985)RANCIÈRE, J. Louis-Gabriel Gauny. Le philosophe plébéin. Paris: La Découverte-Maspero/Université de Vincennes, 1985. deparou com os escritos de Louis Gabriel Gauny, o marceneiro poeta, ou ainda, o filósofo plebeu, aproveitando-os para redigir A noite dos proletários (1988). Com base nesses documentos, ele produziu a seguinte descrição literária de um dia de trabalho do filósofo plebeu como taqueador em uma casa em construção:

Acreditando estar em casa, enquanto não acaba o cômodo onde coloca os tacos, ele aprecia sua disposição; se a janela dá para um jardim ou domina um horizonte pitoresco, por um momento deixa de movimentar os braços e plana mentalmente na espaçosa perspectiva para apreciar, melhor do que os proprietários, as casas vizinhas.

(RANCIÈRE, 1988______. A Noite dos Proletários. São Paulo: Companhia das Letras, 1988., p. 86).

O momento do devaneio, de largar ao solo as ferramentas e olhar a paisagem pela janela introduz uma linha de fuga em relação ao desdobramento horizontal de um tempo normal, no qual impera a causalidade consensual. O intervalo que permite a justaposição de temporalidades na jornada de trabalho de Gauny emancipa o olhar da necessidade do encadeamento causal, que conduz a um fim esperado, criando o entre como um movimento incessante de aproximação e distanciamento, mas não necessariamente linear.

No relato de Gauny, o cotidiano no trabalho é um tempo em que, a cada hora, acontece alguma coisa: um gesto diferente da mão, um olhar que se desvia e faz o pensamento derivar, um pensamento que aparece desavisadamente e que muda o ritmo do corpo, um jogo de afetos que faz com que a servidão sentida ou a liberdade experimentada se traduzam em gestos diversos e encadeamentos contraditórios de pensamentos. [...] Através de toda essa dramaturgia de gestos, de percepções, de pensamentos e de afetos, se torna possível para o taqueador criar uma espiral que inicia, no meio do constrangimento das horas de trabalho, uma outra maneira de habitar o tempo, uma outra maneira de sustentar um corpo e um espírito em movimento.

(RANCIÈRE, 2018c______. Les temps modernes. Paris: La Fabrique, 2018c., p. 34).

A potência do momento, que engendra um outro encadeamento temporal, não está apenas nas grandes manifestações revolucionárias, mas sobretudo nas insurgências cotidianas, pois nelas também as articulações entre acontecimentos rompem com a causalidade consensual da simples sucessão de coisas. Transformações políticas estruturais e menores criam forma de comunidade, produzem rupturas no regime perceptivo e alteram legibilidades. Contudo, uma não se reduz à outra (embora se tensionem constantemente). Elas têm escalas e formas operatórias diferentes de combinação de acontecimentos e agências sobre suas consequências.

A subjetivação produzida por Gauny nessa cena dissensual, aberta no tempo consensual de seu dia de trabalho, não se confunde com uma revolta contra uma sujeição ou assujeitamento, mas abrange, por exemplo, “a possibilidade de reconstruir um universo vivido”, o gesto político e estético “de falar ou agir de maneira diferente daquela que estava determinada” para interferir em um campo da experiência designado, o ato de “tomar posse de um espaço que é sinalizado como não pertencente a um dado sujeito” (RANCIÈRE, 2020______. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, p. 828-840, 2020., p. 835).

O marceneiro (que reinventa sua jornada de trabalho) e os insurgentes (que interrompem as agendas do poder e as rotinas da exploração) opõem a fragmentação que os mantém indefinidamente à distância de seu próprio tempo, à fragmentação que lhes devolve a capacidade de produzir e conduzir um novo possível.

(RANCIÈRE, 2018c______. Les temps modernes. Paris: La Fabrique, 2018c., p. 36-37).

A relação entre a cena de dissenso, a produção de intervalos temporais desviantes e a subjetivação, produz um aparecer no qual se relacionam a emancipação individual e a coletiva. A função polêmica da cena é possibilitar ao trabalhador um aparecer onde ele se afirme capaz de elaborar um modo de olhar sobre sua condição social, normalmente interdita, e “essa aquisição coloca-o no caminho da emancipação. Ele escapa do modo de ser que a dominação preparou para ele, construindo a relação entre o espaço material no qual trabalha e o espaço simbólico que lhe é negado como operário. (RANCIÈRE, 2018a______. O desmedido momento. Serrote, n. 28, p. 77-97, 2018a., p. 20).

O devaneio fabulador (rêverie) de Gauny não é uma operação de fuga de um real opressor, mas um trabalho de fabulação que se instaura com a abertura de um intervalo no espaço-tempo, dedicando-se a questionar o determinismo que fixa o destino dos indivíduos e de sua significação. Assim, sob o ponto de vista comunicacional, a fabulação consiste em produzir uma rede complexa, capaz de alterar a legibilidade de um corpo vulnerável, fazendo com que ele não seja mais percebido como “uma figura de desolação ou de exploração, mas como a figura de alguém que enfrentou uma história e tem uma palavra, uma memória, uma força de elocução, uma síntese de sua experiência (RANCIÈRE, 2018a______. O desmedido momento. Serrote, n. 28, p. 77-97, 2018a., p. 63). O espaço e o tempo desenhados pelo rêverie suspendem a maneira habitual de inscrição dos corpos e dos sujeitos nas relações intersubjetivas e a maneira consensual de dispor objetos, localizando-se em relação a eles.

É sob esse aspecto que o trabalho realizado pelas imagens, segundo a abordagem de Rancière (2019a)______. Le travail des images. Conversations avec Andrea Soto Calderón. Dijon: Les Presses du Réel, 2019a., se entrelaça, de modo singular, entre o intervalo aberto pelo desmedido momento e a fabulação advinda da rêverie e da ficção. O método da cena nos permite investigar, do ponto de vista comunicacional, como o desmedido momento (caracterizado pela quebra de expectativas, pela crise, pela urgência, mas também pela experiência estética ordinária) e a fabulação compõem uma operação de deslocamento e interrupção da maneira, por meio da qual o regime representativo reafirma hierarquias e desigualdades nas modalidades do aparecer dos sujeitos e de suas formas de vida.

O exercício de fabulação contraria o encadeamento de causas e efeitos, a previsibilidade, a relação entre o que estaria previsto e o que de fato acontece, criando uma narrativa experimental e dissensual desdobrada pela cena polêmica e seus arranjos temporais desestabilizadores (RANCIÈRE, 2018c______. Les temps modernes. Paris: La Fabrique, 2018c., 2019a; CALDERÓN, 2020CALDERÓN, A. S. La performatividad de las imágenes. Santiago de Chile: Ediciones Metales Pesados, 2020.). Assim, a abordagem de Rancière contribui com pesquisas em comunicação interessadas na montagem de cenas enquanto operações intervalares que dispõem as coisas de determinada maneira para imaginar outras realidades.

Considerações finais

A cena nem sempre é uma cena dissensual, mas é sempre uma cena de redisposição de modos de aparência. Vimos que o conceito de aparência não se restringe a algo superficial, ou ao modo como alguém ou algo se manifesta publicamente. Aparecer (apparaître) na cena é um gesto estético e político que promove outra forma de estruturação do pensável, envolvendo a alteração de um regime de percepção, de leitura e de escuta, por meio do qual elementos diversos se justapõem, deslizam uns sobre os outros e se atritam de modo a permitir um deslocamento de nossa posição em relação ao modo como apreendemos, percebemos e respondemos às demandas do outro e aos eventos do mundo.

De modo mais amplo, parece que Rancière está interessado em como a mise en scène nos faz pensar acerca de um reposicionamento dos corpos, de um deslocamento de avaliações muito apressadas e julgamentos fundados em pré- conceitos: como produzir deslocamentos, rachaduras e fissuras nos modos naturalizados de apreensão e explicação dos eventos? “Qual tipo de operação vai mudar a distribuição do visível e do pensável?” (RANCIÈRE, 2020______. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, p. 828-840, 2020., p. 834).

Para desmontar a máquina de explicação do visível e do pensável é preciso criar uma cena que vai reconfigurar as maneiras de se apropriar do tempo e do espaço, de deslocar o olhar e a apreensão sensível dos acontecimentos (RANCIÈRE, 2018c______. Les temps modernes. Paris: La Fabrique, 2018c.). E isso pode ocorrer com a ativação de um imaginário hegemônico, que desafia e interpela, evidenciando as incoerências, os excessos e as injustiças das representações hierarquizantes. O aparecer na cena envolve alterar o modo como temporalidades distintas são articuladas, reverberando na maneira como formas de vida, corporeidades e vulnerabilidades são apreendidas e reconhecidas.

O exercício do aparecer contraria o encadeamento de causas e efeitos, a previsibilidade, a relação entre o que estaria previsto e o que de fato acontece, criando uma narrativa experimental e dissensual. É na exploração desse processo que conseguimos distinguir brechas e intervalos que permitem as reconfigurações e os deslocamentos necessários ao olhar e à interpretação. É assim que a cena e sua dramaticidade igualitária operam na desmontagem das explicações previsíveis do mundo: elas tornam possível a invenção de outro imaginário político, outras chaves de leitura e compreensão, ativadas pela recusa da hierarquia e pelas constelações articuladas entre tempos, espaços e existências.

O trabalho da cena se associa, assim, à produção de intervalos e descontinuidades que impossibilitam uma roteirização da experiência dos sujeitos (RANCIÈRE, 2012______. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.). Isso envolve perceber a cena como uma trama complexa de outras cenas singulares, situando-as em uma rede de intriga que permite a comunicação entre múltiplos elementos e significações. O ponto de interseção entre estética, política e comunicação se traduz na cena polêmica de aparência e interlocução, na qual se inscrevem as ações, a palavra e o corpo do sujeito falante, e na qual esse próprio sujeito se constitui de maneira performática, poética e argumentativa a partir da conexão e desconexão entre os múltiplos nomes e modos de apresentação de si que o definem.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2021
  • Aceito
    18 Nov 2021
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