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Isso não é um palhaço! Joker (2019), o artista sob a sombra do morcego

This is not a clown!: Joker (2019), the artist beneath the shadow of the bat

Resumo

O presente artigo tem como objetivo apresentar uma leitura de Joker (2019), de Todd Philips, como uma proposta de desconstrução de uma história hegemônica. Com um arcabouço conceitual fundamentado em algumas obras de Michel Foucault, procuramos uma compreensão de diversos mecanismos de poder na instauração de uma identificação da vilania enquanto visão maniqueísta da complexidade sociopolítica e econômica da fictícia Gotham City. Assim, essa investigação vai adentrar alguns debates sobre as condições de possibilidade de construção de verdades em narrativas clássicas. Este trabalho busca, não somente, uma análise do protagonista do filme, mas também sua utilização como objeto de estudo que sirva como demonstração de algumas abordagens teóricas que apresentam um questionamento de determinadas estruturas dominantes.

Palavras-Chave
Joker; cinema; Foucault; narrativa; política

Abstract

This paper aims to present a reading of Joker (2019), by Todd Philips, as a proposal for the deconstruction of a hegemonic history. With a conceptual framework based on some of Michael Foucault’s works, we seek an understanding of various mechanisms of power in the establishment of an identification of villainy as a Manichean vision of the socio-political and economic complexity of the fictional Gotham City. Thus, this investigation will enter some debates about the conditions of possibility of building truths within classical narratives. This work seeks an analysis of the film’s protagonist, and also its use as an object of study that serves as a demonstration of some theoretical approaches which question certain dominant structures.

Keywords
Joker; cinema; Foucault; narrative; politics

Introdução

Em 2019, o diretor de cinema Todd Philips apresentou uma nova versão da história do clássico vilão das histórias em quadrinhos (HQs) de Batman. Joker tem uma proposta diferente daquela que o lucrativo mercado das transposições cinematográficas de HQs explorava em nosso cenário contemporâneo. Enquanto as duas maiores empresas — Marvel e DC Comics — se dedicavam ao universo compartilhado dos super-heróis com produções de grandes orçamentos que exploravam o aspecto mais fantasioso das narrativas, o filme de Philips (apesar de ser baseado em um personagem da DC Comics) procurava uma história com uma estética mais realista e um forte elemento de crítica social.

É importante explicar, rapidamente, o que seria essa concepção mais realista — visto que o debate sobre o realismo fílmico perpassa uma longa tradição da teoria cinematográfica, como podemos ver em Andrew (2002)ANDREW, J. D. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2002., Suppia (2015)SUPPIA, A. Revendo bipartidarismos no contexto da teoria clássica do cinema: formalismo e realismo, identificação e essencialismo. Revista Matrizes, v. 9, n. 2, 2015. e Elsaesser e Hagener (2018)ELSAESSER T.; HAGENER, Malte. Teoria do cinema: uma introdução através dos sentidos. Campinas: Papirus, 2018.. Aqui estamos nos afastando da corrente teórica realista de autores como Bazin (1991)BAZIN, A. O cinema: ensaios. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. para pensarmos meramente no grau comparativo entre o pictórico das HQs e o fotográfico do filme. Tendo uma concepção de imagens em movimento como seu processo de experiência óptica (ou ilusão), fundamento pelo qual compreendemos a arte cinematográfica, sua observação da experiência visual tem proximidade ontológica com a fotografia. A linguagem das histórias em quadrinhos remete a uma compreensão da ligação entre os quadros como sequencial, portanto, mais dependente de um processo imaginativo para compor a movimentação e/ou ligação entre as imagens. McCloud (1995)MCCLOUD, S. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995. aponta que a utilização de ícones menos realistas e mais abstratos permite uma maior aproximação dos leitores com uma amplitude de possibilidades e ideias. As histórias em quadrinhos, nesse caso, transitam por uma tríade entre o realismo, a linguagem e o plano das figuras; ou seja, a similaridade com a natureza e o mundo físico, o simbolismo e as possibilidades de abstracionismo que o meio permite.

Dessa forma, essa perspectiva apontada como mais realista, indica, na verdade, uma proposta que se afasta do diálogo com uma estética mais cartunista presente na maioria das histórias em quadrinhos — sobretudo as estadunidenses que versam com o tema do super-herói. Em termos diegéticos, talvez a aproximação com a concepção de verossimilhança seja mais compatível, indo ao encontro de propostas fílmicas anteriores, como na franquia de Batman de Christopher Nolan (2005, 2008, 2012). Nesse sentido, a forma como sugerimos conceber Joker (2019) se encontra sob uma óptica que compreende sua aproximação maior com a ontologia fotográfica do meio e de uma narrativa que adota uma diegese fílmica mais efetivamente próxima dos costumes apresentados no cinema dramático hollywoodiano.

Muniz Sodré, em seu livro A ficção do tempo: análise da narrativa de science fiction (1973), apresenta o conceito de verossimilhança como uma forma de identificar determinados elementos da compreensão literária em uma espécie de acordo implícito a que o leitor adere. Embora Sodré utilize essa ferramenta conceitual em uma análise da relação entre arte e ciência nas histórias literárias de ficção científica, podemos propor uma utilização de sua concepção de verossimilhança para identificar alguns traços narrativos do filme. “Como a autonomia da obra a exclui da prova de verdade (uma obra não pode ser verdadeira nem falsa com relação ao mundo), a credibilidade da narrativa repousa na lógica estética, que é interna, e não na científica, que é extra-artística, externa” (SODRÉ, 1973SODRÉ, M. A ficção do tempo: análise da narrativa de science-fiction. Petrópolis: Vozes, 1973., p. 58-59).

Assim, em termos narrativos, a concepção de verossimilhança pode indicar uma aproximação com uma espécie de verdade fílmica que o cinema propõe. Uma série de acordos inconscientes de regras de funcionamento da história dentro dos padrões hollywoodianos em seus arcos mais dramáticos — e que aderem menos aos recursos mais fantasiosos de outras obras cinematográficas. Podemos também propor uma aproximação ao que Tânia Pellegrini (2008)PELLEGRINI, T. Realismo: postura e método. Letras de Hoje, v. 42, n. 4, 2008. indica como realismo por meio de duas formas: postura, que dialoga com a concepção de Sodré (1973)SODRÉ, M. A ficção do tempo: análise da narrativa de science-fiction. Petrópolis: Vozes, 1973. sobre a adoção de um universo narrativo e suas determinadas regras de funcionamento descritivo; ou método, que demarca a forma como esse universo é apresentado — nesse sentido, podemos ampliar aqui, para além da metodologia descritiva da história, também o componente ontológico da fotografia.

Dessa maneira, o filme de Todd Philips adota um caminho contrário à tendência das transposições de HQs mais mainstream predominantes na indústria hollywoodiana atual, que parece procurar uma aproximação maior das linguagens entre os meios, desenvolvendo obras com o aspecto visual e narrativo cada vez mais próximos das histórias em quadrinhos. Entre algumas características, podemos citar filmes com cores mais fortes, uniformes mais similares aos quadrinhos etc.1 1 Para mais detalhes sobre a relação entre as linguagens dos meios em questão e a aproximação que os filmes hollywoodianos têm procurado alcançar, conferir nosso trabalho Transposições fílmicas de histórias em quadrinhos: uma teorização da relação entre duas linguagens (2021). Assim, percebemos que enquanto os grandes blockbusters apostam em narrativas que se apoiam crescentemente em uma maior hibridização entre as linguagens, Joker se apresenta com uma proposta diferente em que, apesar de baseado em um personagem das HQs, se aproxima de uma estética cinematográfica de películas hollywoodianas da década de 1970 — sobretudo de Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese.

Além disso, a produção apresenta um debate sociopolítico sobre desigualdade social, institucionalização e cultura patriarcal com um viés mais direto do que os filmes de super-heróis contemporâneos como Black Panther (Ryan Coogler, 2018) e Captain Marvel (Anna Boden e Ryan Fleck, 2019) costumavam abordar. Dessa maneira, Joker parecia uma aposta arriscada ao propor se apropriar da tendência de transposições fílmicas de histórias em quadrinhos sob uma nova óptica, repleta de críticas sociais, diretamente relacionáveis à sociedade estadunidense e ao cenário sociopolítico atual. Além disso, oferecia uma nova visão sobre Batman, um personagem de enorme repercussão financeira e aceitação do público, problematizando sua construção enquanto herói e seu real posicionamento na esfera social como solução ou problema.

Ao final, o filme acabou se tornando um grande sucesso, com a atuação do protagonista, vivido por Joaquin Phoenix, sendo extremamente elogiada e com sua história se tornando uma importante forma de procurarmos compreender a real complexidade por trás da construção de nossos vilões. Joker (2019) dialogava com nossa sociedade e com nossos medos e culpas. Abordava a história não contada dos menos privilegiados e dos marginalizados.

O filme recebeu nove indicações ao Oscar, e ganhou em duas categorias: Melhor Ator para Joaquin Phoenix e Melhor Trilha Sonora para Hildur Guðnadóttir. A polissemia e complexidade proposta à nova leitura do vilão das histórias em quadrinhos alavancaram a publicidade da produção, que também se tornou um sucesso de bilheteria2 2 O filme alcançou US$ 1.074.251.311 de bilheteria total. . Este artigo procura investigar essa obra com base em uma aproximação com alguns trabalhos de Michel Foucault, auxiliada por outras perspectivas que promovem uma desconstrução de sistemas dominantes de pensamento e narrativas classicamente instauradas. Assim, pretendemos promover uma leitura de Joker que não apenas evidencie as críticas sociopolíticas mais presentes em sua narrativa, como também implique em uma possível (ou talvez necessária) reavaliação da compreensão de um imaginário em que os heróis e vilões são apresentados de forma tão binária e simplista.

O cachimbo do palhaço

Em 1929, em meio à efervescência das experiências vanguardistas na Europa, Paris se encontrava como epicentro do movimento surrealista. No cinema, o ano fora marcado pelo lançamento de Un chien andalou, de Luis Buñuel e Salvador Dalí. No campo das artes visuais, o belga René Magritte problematizava a concepção artística de representação imagética com seu célebre A traição das imagens (La trahison des images), uma pintura realista de um cachimbo acompanhado de um texto com as palavras “Ceci n’est pas une pipe” — em português: “Isso não é um cachimbo”. A obra colocava em xeque convenções linguísticas e pictóricas que relacionam o objeto em si com suas representações. A influência da psicologia freudiana no surrealismo transparece a crítica ao racionalismo que a imagem indicava. De uma forma geral — e possivelmente bem mais simplista do que, talvez, diversas interpretações mais atentas podem indicar por meio de análises mais detalhadas (contudo, não necessárias para este trabalho) — estamos diante de um quadro que nos diz que nem tudo é o que parece ser.

A obra ganhou uma interessante repercussão no cenário artístico, gerando uma série de explorações que o próprio artista continuou desenvolvendo em torno de sua representação do cachimbo até 1966, com sua última versão intitulada Os dois mistérios (Les deux mystéres). Além disso, de uma forma bem interessante, serviu como um elemento ensaístico também no âmbito acadêmico. Foucault dedica seu livro Isto não é um cachimbo (1988)______. Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988., escrito em 1973, a essa série de quadros de Magritte. Passando por algumas análises sobre as possíveis interpretações, assim como evidenciando algumas armadilhas que o artista oferece ao espectador, o filósofo perpassa proposições sobre a proximidade com um caligrama, traça paralelos com outros artistas e até com outras obras de Magritte. Ao final, percebemos que as articulações do teórico têm uma crescente sintonia não só com sua admiração pelas contestações que a efervescência artística experimentava desde as vanguardas, como também com todo seu processo de pensamento pós- estruturalista, que evidencia condições hegemônicas em variadas estruturas de nossa sociedade — nesse caso, mais fortemente articulado com a questão das condições de possibilidade de formação de uma episteme ocidental moderna, analisada em seu mapeamento arqueológico de seu famoso tratado As palavras e coisas (2000), de 1966.

O que temos diante de nós é um complexo emaranhado de referências e inspirações entre arte e o debate acadêmico, que tem como foco essencial a crise representacional e a desconstrução de compreensões condicionadas pelas atuações de elementos como tecnologia, cultura e contextos sociopolíticos e econômicos. Obviamente, a polissemia de ambas as esferas (arte e epistemologia) possibilita uma amplitude de novas interpretações e reelaborações, assim como o desvelamento de outras questões menos evidentes na breve explanação de Foucault e Magritte acima.

Todavia, o que nos serve para esta investigação proposta é a própria desconstrução da concepção de realidade. Talvez menos evidente na obra de Magritte, mas, sublinhado ao longo da escrita de Foucault (sobretudo em sua fase de investigações pelo método genealógico), a questão do poder tem um local evidente na construção da noção de realidade de nossa cultura. E assim chegamos ao recorte central do artigo: um filme feito 90 anos após o quadro de Magritte e 46 anos após o livro de Foucault. Joker (2019) tem em sua proposta central uma total desconstrução de nossas realidades — nesse sentido, fazendo referência mais direta ao universo narrativo das histórias em quadrinhos, em que o personagem tem uma longa tradição como vilão de natureza sádica, perversa etc. Contudo, não podemos indicar a produção hollywoodiana assinada por Todd Philips como pioneira nesse âmbito do audiovisual a abordar tais temáticas. Temos como exemplos anteriores — talvez mais evidentes no âmbito do mainstream — a série de produções que investiga o lado mais humanizado de vilões populares da Disney, como Maleficent (Robert Stromberg, 2014), figuras da literatura, como Dracula untold (Gary Shore, 2014), ou até histórias que justificam o desenvolvimento de determinadas personas responsáveis por ações mais mórbidas em prequels, como Hannibal Rising (Peter Webber, 2007). O que transfere talvez mais importância a Joker e pode ser visto como um maior diferencial da obra — por ser uma elaboração mais complexa da questão dentro de uma tendência mercadológica contemporânea que predomina em nossa cultura — são as narrativas cinematográficas oriundas dos universos de histórias em quadrinhos3 3 É importante destacar que a centralidade que apontamos para o filme de Phillips não é devido a qualquer pioneirismo visto por uma determinada óptica, mas pelo complexo emaranhado de elementos que a obra constrói de uma forma mais bem desenvolvida. Mesmo entre os filmes baseados em HQs, a exploração de alguns vilões como heróis já havia sido feita em casos como Suicide squad (David Ayer, 2016) e Venom (Ruben Fleischer, 2018). O diferencial em Joker seria mais endereçado à forma como essa reapresentação do personagem é feita, desenvolvendo de forma mais eficiente e complexa as múltiplas possibilidades narrativas da história. .

Apesar de se tratar de um universo de extrema popularidade em nossa cultura que, sem dúvida, tem como objetivo central o grande retorno financeiro que tal tendência tem assegurado, estamos diante de um fenômeno que também transita por um cenário de crescente aceitação crítica. Nesse sentido, Joker parece ter encontrado um local de destaque por conseguir unir boa bilheteria com boa repercussão crítica. O filme tem a seu favor a possibilidade de tratar um diálogo com um grande público utilizando-se de variadas referências que atribuem camadas de complexidade a sua narrativa.

Joker dialoga diretamente com a frase do quadro de Magritte: nem tudo é o que parece ser. Sua narrativa onírica, que confunde elementos factuais e sonhos ou delírios, tem a psicanálise como um importante pano de fundo e se alinha com uma pequena dose de surrealismo cinematográfico — apesar dessa construção narrativa também ter características bem típicas do que Bordwell (2005)BORDWELL, D. O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos. In: RAMOS, F. P. Teoria contemporânea do cinema. v. II. São Paulo: Editora Senac, 2005. indica como cinema clássico hollywoodiano. Em Cinema mundial: realismo, evidência, presença (2015), Thomas Elsaesser indica uma tendência do cinema contemporâneo que coloca em xeque determinadas certezas e validações de uma estrutura fílmica clássica para uma forma de desconfiança perceptual. O autor atenta para um novo tipo de realismo que se apoia em uma compreensão da perspectiva narrativa dentro de uma relação com os componentes diegéticos da obra e de suas possíveis incertezas — a relação com o pensamento foucaultiano é um ponto importante no desenvolvimento de sua proposta.

Um dos elementos que Elsaesser aponta descreve essa forma narrativa adotada no cinema contemporâneo que se torna um dos elementos essenciais de Joker. Abandonando uma centralidade de uma visão humana cartesiana e de um emprego de determinados padrões normativos, temos um personagem que conta sua história por um canal em que sonho, delírio e realidade se encontram esfumaçados. Segundo o autor: “[...] as atuações da personagem, espaços narrativos e situações dramáticas desfiam a suspensão de descrença do espectador, apresentando protagonistas cuja visão de mundo é diferente, marcada pelos limites colocados nas suas faculdades físicas ou mentais [...]” (ELSAESSER, 2015ELSAESSER, T. Cinema mundial: realismo, evidência, presença. In: MELLO, C. (org.). Realismo fantasmagórico. [S.l.]: Coleção Cinusp, 2015., p. 45)

Assim, uma das formas que o filme adota em seu desenvolvimento narrativo aborda a desconfiança dos eventos como elemento essencial que traz para o espectador uma experiência em que a própria validade do que é visto se encontra em constante questionamento. Além disso, o desvelamento das ocorrências em Joker não incide apenas no tensionamento das fronteiras com os componentes oníricos e/ou alucinatórios da trama. A produção apresenta temas como o poder do discurso hegemônico, as mazelas sociais da cidade, a dificuldade econômica das classes mais baixas, o pouco apoio estatal aos necessitados (nesse caso, com forte ênfase inicial na questão médica) etc. Por ser uma história cujo desenrolar trata de variadas questões sociopolíticas se atrelando com uma constante desconfiança sobre a veracidade dos eventos, temos uma indicação (talvez não proposital do diretor) do pensamento foucaultiano ecoando em sua tessitura fílmica.

Foucault goza de uma popularidade no âmbito intelectual que perpassa a área acadêmica, também permeando a cultura contemporânea em espaços mais populares. Um dos exemplos mais pragmáticos e (por que não?) visual seria a popularidade que o teórico trouxe ao modelo do panóptico, apresentado em 1785 por Jeremy Bentham (1987)BENTHAM, J. Panóptico: memorial sobre um novo princípio para a construção de casas de inspeção e, principalmente, prisões. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 7, n. 4, p. 199-229, mar./ago., 1987.. Como uma solução arquitetural para a necessidade de constante vigilância que Bentham propunha em determinadas instalações, seu exemplo de aplicabilidade descritiva no campo prisional tem como meta a possibilidade de vigilância permanente (ou, pelo menos, a sensação) como forma de anulação da ação não supervisionada por medo de punição. Nas palavras do autor, “[...] a faculdade de ver, com um olhar, tudo o que aí se passa.” (p. 202)

Em 1975, FoucaultFOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. publica Vigiar e punir (1987), estendendo a aplicabilidade do panoptismo para uma forma operante da sociedade contemporânea que teria o modelo de Bentham como base para uma ampla variedade de construções arquitetônicas europeias e uma forma de agir baseada em uma relação entre vigiar e ser vigiado e nas formas punitivas e disciplinadoras de nosso sistema sociopolítico. Com uma aproximação evidente com o livro 1984 (2003), publicado em 1949 por George OrwellORWELL, G. 1984. São Paulo: Ibep, 2003., as inúmeras releituras e reapropriações do Big Brother ganharam crescente popularidade midiática, sobretudo nos reality shows atuais, e trouxeram longevidade ao modelo de Bentham e ao debate político foucaultiano em meios mais diversos do que talvez suas propostas iniciais almejavam.

Dessa forma, o tema da vigilância foucaultiana tem essa ressonância com o romance futurista distópico que Orwell já havia publicado e encontra terreno fértil no cenário contemporâneo em uma série de debates que colocam em xeque temáticas da sociedade e de sua relação com a internet — como nos estudos de Mager (2012)MAGER, A. Algorithmic ideology: how capitalist society shapes search engines. Information, Communication & Society, v. 15, 2012. sobre mecanismos de busca ou Harsin (2015)HARSIN, J. Regimes of posttruth, postpolitics, and attention economies. Communication, Culture & Critique, 2015. sobre regimes de pós-verdade. Em exemplos mais populares, percebemos documentários como The great hack (Karim Amer e Jehane Noujaim, 2019) e The social dilemma (Jeff Orlowski, 2020) abordando o assunto da vigilância — que já se encontravam em evidência, também em território brasileiro, como apontado em Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade (2013), de Fernanda BrunoBRUNO, F. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2013..

Obviamente, temas como a vigilância foucaultiana ou a estrutura prisional de Bentham servem para aproximações com o universo narrativo originário de Joker, se pensarmos no personagem como um vilão que será preso pelo vigilante mascarado. Contudo, propomos ir além dessa constituição inicial do personagem e desenvolvermos uma articulação em torno da nova proposta apresentada pelo filme — que foge das clássicas narrativas que apresentam o binarismo entre herói e vilão. Temos como ponto inicial a relação entre loucura e marginalidade que Foucault investiga em História da loucura na idade clássica (2003). Publicado em 1961, o livro aponta uma construção histórica do louco como uma pessoa que, por ser desprovido de razão (em um sentido cartesiano da palavra), é localizado à margem da sociedade, tendo a institucionalização como forma terapêutica em uma estrutura hierárquica que isola seus direitos e inserção no corpo da cidadania biopolítica.

A proposta foucaultiana de compreensão da loucura também aponta para um elemento presente em toda a sua obra: a formação de uma espécie de normalização coercitiva que determinados aparelhos institucionais promovem. Assim, surge uma determinação de cidadania não só ditada pela lei, mas também pela norma (vista aqui como a adequação a um padrão instaurado por uma forma de senso comum da microfísica política). O filme de Todd Philips apresenta seu protagonista como um deslocado ou um outsider da normalização da sociedade. Não como um vilão caricato de uma história de herói, mas como um indivíduo complexo envolto em diversas estruturas de poder. O modo como a narrativa de Joker se desenvolve é exatamente dentro dessa concepção da relação entre a marginalização do corpo biopolítico com a construção do discurso de insanidade — assim como da abordagem socioeconômica em que o personagem se encontra.

Inserido, desde o início, em uma história que aborda as mazelas sofridas pelas pessoas que se encontram em uma situação socioeconômica de subsistência, o personagem apresenta diversas características que o inserem nessa margem desigual da sociedade — pobre e dependente de auxílio do governo para seus medicamentos. Além disso, encontra-se em uma tênue linha que separa a possibilidade de enclausuramento psiquiátrico manicomial e a liberdade e direito de cidadania devido à sua condição mental. Se Foucault (2003)______. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2003. aponta a constituição da loucura em sua positividade com base em determinadas condições históricas e configurações de poder existentes, temos Joker como uma forma de compreender a relação hegemônica e suas estruturas socioeconômicas atuantes na determinação de quem se encontra preso e quem se encontra livre — nesse caso, a narrativa da mãe do personagem se torna exemplar.

Ao atribuir o pensamento foucaultiano à leitura do filme de Philips, percebemos que o posicionamento marginalizado do personagem em uma estrutura social hegemônica aponta para o questionamento não somente de sua vilania, mas de toda a narrativa que centraliza a persona heroica da família Wayne. Assim, a versão mais consagrada do arco do homem-morcego é realçada como uma espécie de cachimbo de Magritte, em que nem tudo é o que parece ser. Visto por todos como vilão, poderia o famoso palhaço ser mais uma vítima dos ricos e poderosos e suas ferramentas invisíveis de construção de verdades? Ou melhor, sequer uma vítima ou um vilão, mas apenas uma figura de anarquia dentro de mecanismos de controle? As possibilidades são variadas e, assim como a arqueologia de Foucault (2008)______. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., talvez Joker aponte menos para uma resposta e mais para as condições de construção dos discursos dominantes.

Esta parte inicial do texto procurou estabelecer a relação inicial proposta para uma leitura do filme de Todd Philips. Aqui, a metáfora do artista surrealista e sobretudo as articulações que Foucault propõe ao longo de sua obra — tanto em seu momento inicial arqueológico, quanto em seu posterior desenvolvimento de uma proposta que passa a examinar a genealogia das configurações de poder em suas estruturas dominantes — auxiliam o norteamento das possibilidades interpretativas da narrativa de Joker. A seguir, retomaremos a investigação em torno do personagem e de seu arco dramático para conseguir identificar de forma mais descritiva algumas das articulações apresentadas acima.

Joker: complexidade narrativa e críticas sociais

Não podemos deixar de mencionar a influência que o romance de 1869 O homem que ri (2014), de Victor Hugo, e a atuação de Conrad Veidt na versão fílmica de Paul Leni, em 1928, tem na construção do vilão das HQs. Em termos narrativos, O homem que ri e o Coringa das histórias em quadrinhos não tinham qualquer ligação. É apenas no aspecto estético da apresentação de Gwynplaine e do Coringa que essa relação se torna visível. A obra literária e o filme de Leni traziam humanização e sofrimento como cargas essenciais do personagem Gwynplaine, enquanto o personagem das HQs representava a loucura e a vilania antagônica ao heroico Batman.

Por outro lado, o filme Joker parece ir ao encontro mais direto com o livro de Victor Hugo e o filme de Paul Leni. Todd Philips propõe um retorno à investigação das questões sociais, da miséria humana das menos afortunadas e da vida artística que a obra de Hugo e a versão fílmica tinham. Além disso, podemos perceber que a atuação de Phoenix tem uma relação direta com a de Veidt — sobretudo em suas impactantes expressões faciais. O personagem principal não se mostra apenas como mais uma reconfiguração de um clássico vilão. Na verdade, estamos diante de um cuidadoso estudo que referencia a fonte de inspiração do personagem das histórias em quadrinhos, propondo ir mais a fundo em suas questões psicológicas e críticas sociais.

A desconstrução em Joker não é apenas a desconstrução de um personagem, mas se dá também por um questionamento das hierarquias sociais e das narrativas históricas. A primeira cena do filme já revela algumas de suas pautas centrais: diante de um espelho, se maquiando de palhaço para trabalhar, Todd Philips enquadra a imagem de forma a isolar Arthur Fleck naquela ação específica, mesmo estando em um vestiário com outras pessoas. Temos a apresentação do seu personagem principal, a imersão no processo artístico do ator/palhaço, a dedicação laboral da classe mais baixa e a preparação para um espetáculo. Depois, temos as inúmeras metáforas que o andamento da cena nos permite, algumas mais evidentes, como o espelho e a questão de identificação e a necessidade de olhar para si, assim como as ideias de duplas ou múltiplas personalidades e a (ir)realidade que as imagens nos passam — o que nos permite voltar novamente à obra de Magritte. A maquiagem pode representar a máscara que usamos para o trabalho ou até para a vida, assim como pode desvelar a noção de maquiar algo — em seu sentido maquiavélico, ludibriador ou performático.

Tudo isso perpassa uma interpretação possível e, quem sabe, necessária para o completo aproveitamento de tudo que essa obra tem para oferecer. Arthur Fleck pode ser um personagem bem específico, com suas questões bem exclusivas, mas traz sensações de identificação e de proximidade. Seu lado oprimido se rebelando contra seu opressor traz à tona a noção de cidadão comum que sofre as mazelas dos mais poderosos. A dramaticidade do filme apresenta uma pessoa que trabalha, assiste à televisão, tem sonhos, se apaixona, se frustra e sofre ao longo da repetição de um cotidiano comum a todos. Além disso, reflete o debate sobre empatia e seus desdobramentos sociopolíticos mais latentes em nossa sociedade, ao apontar a visibilidade do próximo enquanto um humano com dificuldades.

Joaquin Phoenix nos permite uma identificação e uma empatia com uma das mais perversas personas da cultura popular. Por meio da reinvenção e/ou desconstrução dessa figura, entramos em um dos maiores méritos do roteiro e da direção de Phillips: colocar em xeque a própria narrativa oficial das histórias em quadrinhos.

Essa estrutura permite uma maior abordagem polissêmica à interpretação da obra. Podemos compreender a mãe do protagonista como uma vítima (de todas as formas) do poderoso Thomas Wayne, que, com seu dinheiro e influência, consegue oficializar uma narrativa que o exime de qualquer culpa, apontando a mulher como louca e institucionalizando-a. Aqui podemos retomar a argumentação já indicada sobre a loucura vista como uma forma de marginalização, ou como uma patologia que se encontra deslocada da normalização da sociedade, com apontada por Foucault (2003)______. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2003.. Diagnosticada com um quadro de insanidade, a personagem é isolada em uma instituição asilar e perde seus direitos enquanto cidadã comum — assim como a possibilidade de sua história ser aceita em qualquer interpretação que suponha algum tipo de veracidade.

Em outro viés, podemos interpretar o filme por meio de visões de uma mente ensandecida, fruto da educação de uma mulher com problemas psicológicos e delírios sobre um amor proibido. Essa versão da história instauraria a loucura não apenas como uma forma de perder o poder da oficialização da narrativa, mas também como uma justificativa para as ações em um quadro de explicação psicológica que indica uma cronologia de eventos que levariam à catarse final — como um surto e não como um ato anárquico.

Apesar das possibilidades interpretativas que este texto pretende abordar, a repercussão crítica e de público do filme gerou respostas até mais variadas do que as dimensões que este artigo direciona. De forma geral, um primeiro elemento — talvez o mais superficial da obra — desencadeou uma divisão de opiniões negativas de diferentes posicionamentos no espectro político: a violência e suas possíveis motivações, repercussões e incitações. De um lado, um indicativo da possibilidade de incentivo a episódios como o Massacre de Aurora, do dia 20 de julho de 2012, em que um jovem (de cabelo pintado de vermelho dizendo ser o Coringa) matou 12 pessoas e feriu outras 70, com um fuzil AR-15, em um cinema que exibia The dark knight rises (Christopher Nolan, 2012). Com uma reação similar a essas críticas, a especulação quanto a Joker ter um potencial de inspiração para incels4 4 O termo significa jovens celibatários involuntários e vem da junção das palavras involuntary e celibates, em inglês. Os incels são indicados por um comportamento que pode ocasionar situações catárticas que resultam em incidentes como os do Massacre de Aurora. Ver: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-58300599>. ganhou forma. Outra repercussão de posicionamento contrário (mais aproximado à extrema direita) indicava o perigo oriundo da apresentação de uma história que culmina em uma revolução proletária contra o capitalismo (e os valores tradicionais e as pessoas de bem).

Interpretações mais variadas são endereçadas a uma amplitude de elementos discursivos do filme. Desde análises sobre a indiferença do homem branco (nesse caso, o próprio protagonista) ao sistema como retrato sintomático da sociedade até a importância de manutenção da ordem devido à conduta desviante que alimenta o caos urbano, servindo como uma espécie de combustível para um ethos fascista de massa, percebemos que a apropriação de Joker permite não somente as interpretações propostas ao longo do texto, como também uma reverberação extremamente paradoxal sobre seu posicionamento político. Essa ambivalência permite um atravessamento reflexivo que se apresenta como essencial na leitura dessa obra dentro de suas possibilidades. Neste artigo, apesar de propor um direcionamento específico para o desvelamento das camadas de sentido por uma óptica mais contra-hegemônica, essa breve descrição de alguns exemplos sobre a ambiguidade de sua recepção se torna um ponto forte para identificar justamente o propósito exposto sobre a polissemia narrativa que o filme demonstra.

A narrativa onírica de Joker é uma das características que reforça essa forma de apresentar o desenrolar ambíguo da obra. Aqui, pretendemos reforçar que essa multiplicidade interpretativa demonstra a própria possibilidade de reconstruir histórias já classicamente instauradas, como a do personagem Batman. Deleuze e Guattari (1995)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995., por meio de sua metodologia rizomática, apontam para a complexidade de compreensão de um fenômeno e suas inúmeras formas de abordagem. Em contraposição ao vetor arborescente (que os teóricos relacionam com a psicanálise freudiana), percebemos que a construção simplista do trauma como motivador da justiça heroica ou a psicopatia como causadora da vilania perdem sua capacidade de única explicação do cenário criminal da ficcional Gotham City.

Joker atenta para a visão do desfavorecido, da vítima de uma estrutura sociopolítica desigual. A história deixa de ser relatada pelo justiceiro mascarado — nesse caso, ainda uma criança — para assumir a complexidade de um fenômeno com caráter rizomático. Ao final, sua narrativa destaca uma polissemia de versões, mas indica que as que prevalecem são sempre as hegemônicas, como destacado nas leituras sobre o pensamento de Foucault — ou até em demonstrações mais direcionadas de seu processo metodológico, como podemos ver em A arqueologia do saber (2008) — e em obras de teóricos como Walter Benjamin (1996)BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996. e sua noção de escovar a história a contrapelo. Susan Buck-Morss (1989)BUCK-MORSS, S. The dialectics of seeing: Walter Benjamin and the Arcades project. [S.l.]: The MIT Press, 1989. analisa o pensamento benjaminiano destacando que a compreensão de história e natureza são concepções humanas, baseadas em narrativas vistas por ópticas específicas. Assim, a proposta, por compreender a produção em seu viés de desconstrução narrativa, se fundamenta em um arcabouço teórico que procura colocar a própria concepção de história por meio de uma estrutura de poder que molda a narrativa a seu favor.

Apesar de seu protagonista central ser Joker, o filme trata de uma exploração das possibilidades de releituras do universo de Batman. Assim, mesmo indiretamente, o Homem-Morcego continua habitando a narrativa. Seja pela rápida aparição do personagem ainda criança, seja pela estrutura que Phillips cria para nos levar a perceber o crescente descontentamento dos menos favorecidos, vemos, no final, uma Gotham tomada por uma revolta do povo, em que a anarquia reina e abre espaço para a inserção de uma figura restauradora da ordem. Assim, fica o questionamento sobre as próprias ações de Batman serem não heroicas, mas parte de um processo de extermínio — ou (por que não?) genocídio — dos menos afortunados, que já era percebido no inegável elitismo e aversão ao povo que o pai de Batman demonstrava.

Podemos compreender essa crítica sociopolítica do filme sob a óptica do pensamento de Achille Mbembe em Necropolítica (2016). O autor aponta uma política de produção de mortos como um fenômeno de recorrência em variadas partes do mundo e em variadas épocas — com destaque para elementos constituintes de governos democráticos (ou aparentemente democráticos) do cenário contemporâneo. Apesar de o foco do teórico ser o indicativo desse processo de extermínio como uma ação eugênica de intuito, sobretudo, racial e colonialista, podemos compreender esse processo também na esfera socioeconômica. Mbembe não ignora a amplitude de seu conceito que aponta como uma extensão da noção de biopoder de Foucault, indicando a necessidade de compreensão do corpo que pode ser morto. “Nesse caso, a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é “descartável” e quem não é” (MBEMBE, 2016MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder soberania estado de exceção política da morte. Arte & Ensaios, n. 32, dez. 2016., p. 135).

Nesse momento, o filme atrela essa possibilidade interpretativa com sua forte crítica social, pois o silenciamento de uma verdade é frequentemente substituído por uma narrativa hegemônica ao longo da história de nossa sociedade. Batman poderia ser uma persona elitista e reacionária, fruto de uma necessidade de vingança dos ricos; ou uma espécie de xerife que procura manter a ordem pela truculência, utilizando-se de seu enorme poder financeiro para se fantasiar (em todos os sentidos possíveis) de herói. Essas releituras se tornam possíveis, pois Philips indica um importante fato: a história é escrita pelos vencedores e pelos dominantes. O exemplo de Muniz Sodré em Pensar Nagô (2017)______. Pensar Nagô. [S.l.]: Editora Vozes, 2017., sobre a dominância filosófica eurocêntrica e judaico-cristã como predominante na construção do pensamento ocidental, demonstra essa questão do poder envolto nas narrativas de forma mais intrínseca do que aparenta.

A ideia de perspectivismo fica mais presente, pois assim podemos compreender que há sempre uma perspectiva específica por trás de cada narrativa. As classes hegemônicas costumam ser as donas das narrativas, e, quando não são, isso não se configura como um apagamento de sua versão, trata-se do aparecimento de um ou mais relatos dos abusos que infligiram sobre os demais.

Considerações finais

Nos últimos anos, o cinema parece almejar uma espécie de busca por uma desconstrução dos vilões, tornando-os mais humanos, com certa frequência. Esse fenômeno encontra ressonância com uma forma de domesticação da figura do monstro (também inserido como vilão das mais variadas narrativas) que ocorre em nossa cultura contemporânea5 5 Vale tomar como exemplo o estudo publicado no 31° Encontro Anual da Compós sobre a transformação de vampiros em heróis no cinema hollywoodiano (GARCIA; CÁNEPA, 2022). . Ao analisar Joker (2019) em sua proposta de apresentar outra narrativa ao arco da criação do famoso vilão de Gotham City, percebemos que a versão que centra o herói como protagonista reflete uma história de visões binárias e maniqueístas de noções como bem e mal. Nesse sentido, sua aproximação com a própria concepção do ser monstruoso está implicada também em uma visão hegemônica da história. Em Breve História do Corpo e de seus Monstros (1999), Ieda TuchermanTUCHERMAN, I. Breve história do corpo e de seus monstros. Lisboa: Editora Vega, 1999. destaca que a noção de corpo ocidental cria um padrão normativo, visto como uma espécie de forma de representação idealizada (e/ou aceita pela sociedade). O corpo monstruoso seria o desviante desse padrão ou o desafiador das leis instauradas pela nossa crença em uma “correta” formatação corpórea.

A monstruosidade da figura do palhaço (podendo ser mais obviamente exemplificada nas expressões faciais exageradas ou na pintura do rosto), vilão de Gotham City, é uma forma de desvio dos valores dos cidadãos que regem a cidade. Sua atitude anárquica é um desafio aos princípios de manutenção da ordem feito pelas classes mais ricas. O filme de Todd Philips adentra essas possibilidades apresentando não só essas questões, como também buscando desvelar as camadas que inserem seus personagens em suas posições sociopolíticas. Ao demonstrar a possibilidade de uma nova versão da narrativa — em que Thomas Wayne deixa de ser uma vítima da criminalidade para ser possível produtor da desigualdade que a fomenta —, Joker indica que a leitura foucaultiana sobre as condições de possibilidade de surgimento de uma narrativa (e/ou de estruturas de poder) aplicáveis aos personagens de histórias em quadrinhos.

A produção também atenta para uma cuidadosa demonstração da relação entre loucura, aprisionamento (hospitalar ou criminal) e poder. Os contextos e o vetor econômico narram os eventos de forma que os marginalizados são jogados em posições de desespero e/ou de fúria catártica — levando à anarquia proletária revelada ao final do filme. Joker mostra a versão da história não contada. Apesar do óbvio slogan recorrente em uma enorme variedade de releituras de vilões cinematográficos, a obra de Todd Philips nos apresenta essa nova versão e abre espaço para inúmeras outras possibilidades. O personagem deixa de ser um palhaço e passa a ser uma persona marginalizada pela sociedade e pelas classes hegemônicas (e seus supostos heróis), ou seja, um artista sob a sombra do morcego.

  • 1
    Para mais detalhes sobre a relação entre as linguagens dos meios em questão e a aproximação que os filmes hollywoodianos têm procurado alcançar, conferir nosso trabalho Transposições fílmicas de histórias em quadrinhos: uma teorização da relação entre duas linguagens (2021).
  • 2
    O filme alcançou US$ 1.074.251.311 de bilheteria total.
  • 3
    É importante destacar que a centralidade que apontamos para o filme de Phillips não é devido a qualquer pioneirismo visto por uma determinada óptica, mas pelo complexo emaranhado de elementos que a obra constrói de uma forma mais bem desenvolvida. Mesmo entre os filmes baseados em HQs, a exploração de alguns vilões como heróis já havia sido feita em casos como Suicide squad (David Ayer, 2016) e Venom (Ruben Fleischer, 2018). O diferencial em Joker seria mais endereçado à forma como essa reapresentação do personagem é feita, desenvolvendo de forma mais eficiente e complexa as múltiplas possibilidades narrativas da história.
  • 4
    O termo significa jovens celibatários involuntários e vem da junção das palavras involuntary e celibates, em inglês. Os incels são indicados por um comportamento que pode ocasionar situações catárticas que resultam em incidentes como os do Massacre de Aurora. Ver: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-58300599>.
  • 5
    Vale tomar como exemplo o estudo publicado no 31° Encontro Anual da Compós sobre a transformação de vampiros em heróis no cinema hollywoodiano (GARCIA; CÁNEPA, 2022GARCIA, Y; CÁNEPA, L. L. Fanged super-heroes: reconfigurações contemporâneas do vampiro em Blade e Underworld. In: 31° ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 2022, Imperatriz. Anais eletrônicos... Campinas: Galoá, 2022.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Ago 2022
  • Aceito
    30 Set 2022
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