Resumo
Entrevista realizada com o crítico e professor na Columbia University, Estados Unidos, Jonathan Crary, tendo como ponto central o livro mais recente dele publicado no Brasil: Terra arrasada: além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista (2023). O livro traz uma noção de gerenciamento do Olhar a partir do uso das mídias digitais e da plataformização da cultura. O texto de Crary questiona como o capitalismo tardio se apodera das possibilidades de existência subjetiva e objetiva, mediante o que ele chama de “complexo internético”, conjunto de dispositivos, lógicas e equipamentos ligados à internet que tem como sintoma mais gritante as redes sociais. O autor busca entender como a atenção é requerida, dispensada e moldada com o uso das mídias digitais e como ela é fornecida de maneira permanente no contexto contemporâneo. Para ele, este universo da informação a que estamos sujeitos estabelece as transformações do Olhar que afetam de maneira profunda e definitiva o nosso comportamento. Por tratar de temas contemporâneos urgentes e agregar ao debate acadêmico insights estimulantes, a revisão de suas ideias tornou premente a necessidade de conversar mais a fundo com Crary e explorar seus conceitos e percepções.
Palavras-chave
plataformização da cultura; economia da atenção; gerenciamento do olhar; complexo internético
Abstract
Interview conducted with critic and professor at Columbia University (USA), Jonathan Crary, focusing on his most recent book published in Brazil: Scorched Earth: beyond the digital age, towards a post-capitalist world (2023). The book introduces a notion of managing the Gaze through the use of digital media and the platformization of culture. Crary’s text questions how late capitalism seizes the possibilities of subjective and objective existence through what he calls the “internet complex,” a set of devices, logics, and equipment connected to the internet, with the most glaring symptom being social networks. The author seeks to understand how attention is required, dispensed and shaped with the use of digital media and how it is provided permanently in the contemporary context. For him, this universe of information to which we are subject establishes such transformations of the Gaze that profoundly and definitively affect our behavior. Due to addressing urgent contemporary issues and adding insights to academic debate that stimulate the revision of his ideas, it has become imperative to delve deeper into conversation with Crary and explore concepts and perceptions.
Keywords
platformization of culture; attention economy; gaze management; internet complex
Introdução
No cenário contemporâneo, no qual a tecnologia permeia todos os aspectos da vida cotidiana, a atenção tornou-se um recurso cada vez mais escasso e disputado. Nesse contexto, a disputa pela atenção e pela consequente distração do outro tem características de projeto e de um sistema cuidadosamente projetado para atrair o usuário para o ambiente da internet, tirando-o do seu plano pessoal. Assim, a plataformização tornou-se a espinha dorsal da cultura contemporânea, moldando não apenas nossas interações sociais, mas também nossas percepções, valores e comportamentos. E o que podemos entender como economia da atenção emerge como um campo de estudo crucial para compreendermos os padrões de consumo, produção e distribuição de informação e entretenimento na era digital.
É neste contexto que Jonathan Crary trabalha com a formação do Olhar, cooptado por meio da atenção ou do que vem antes da consciência da atenção. Autor de livros que tratam da formação do olhar contemporâneo desde a modernidade e de como esse olhar é usado pelo sistema da atenção dos meios digitais de informação, Crary escreveu Terra arrasada: além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista (2023), o principal assunto desta entrevista.
O autor já é conhecido no Brasil por trabalhos como Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX (2012) e Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna (2014a). Após um período de pesquisa que remete à sua formação em Belas Artes no tradicional San Francisco Art Institute e ao doutorado em História da Arte na Columbia University, onde leciona atualmente, publicou 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono (2014b), no qual traz para as questões do século XXI a preocupação com o gerenciamento do Olhar. Terra arrasada vem ao encontro de uma necessidade e demonstra coerência de pensamento e evolução em sua pesquisa ao tratar do momento contemporâneo e demonstrar as conexões nessa jornada da construção do Olhar desde a modernidade até os dias atuais, além das transformações constantes.
Embora concebida com base em pesquisas e debates acadêmicos focados em economia da atenção, a entrevista tem um tom coloquial e se adequa mais à ideia de preocupação social “panfletária”, como ele define o livro, do que a um trabalho acadêmico, por tratar de um assunto urgente. A importância de trazer ao debate os temas trabalhados por Crary aloca essas noções num espaço-tempo de questões contemporâneas que nos trazem muitas vezes menos respostas e mais perguntas.
Entrevista
Pergunta – Quando falamos a respeito de seus trabalhos anteriores, Técnicas do observador, Suspensões da percepção, 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono, e agora Terra arrasada, é possível estabelecer uma jornada da construção do Olhar desde a modernidade até os dias atuais, e também sobre as mudanças e usos do Olhar. O que você pode dizer sobre essa jornada?
Resposta – Eu poderia dizer muitas coisas porque está muito ligado ao que eu estava fazendo em outros momentos da minha vida. Acho que a primeira coisa — não sei quantas pessoas sabem — é que minha primeira formação de nível universitário foi na escola de artes. Minha primeira graduação foi o que se chama de BFA1, Bacharelado em Belas Artes. Então, eu tinha ido para uma escola na Costa Oeste, o San Francisco Art Institute, que era uma escola maravilhosa. E eu trabalhei com cinema e fotografia e me formei. Mas, ao mesmo tempo, eu era alguém que fazia muitas disciplinas.
Eu tinha alguns professores que eram profissionais das suas áreas, artistas, cineastas, mas que também me incentivavam a ler bastante, tanto história quanto teoria, e assim por diante. E, quando voltei para Nova York, estava motivado a entrar no mundo acadêmico. Então, acabei tendo dois diplomas. Obtive um bacharelado em Prática de Belas Artes e depois um bacharelado em História da Arte. Foi isso que me levou a ir para a pós-graduação na Columbia2, onde fiz meu doutorado em História da Arte. Isto foi há muito tempo, quando o campo da História da Arte era muito diferente do que é agora. Eu era ingênuo na época, não estava preparado para entender o quão limitado e conservador aquele campo era naquela época. E foi muito frustrante para mim, porque eu tinha assumido que seria capaz de fazer todos os tipos de projetos intelectuais que nenhum dos meus professores estavam interessados. Então, teve até momentos em que eu não tinha certeza se ia mesmo concluir o doutorado. Mas concluí.
Meu primeiro trabalho como professor foi na Califórnia novamente, na Universidade da Califórnia, em San Diego, e isso foi um ponto de virada na minha carreira, porque era um departamento em que havia historiadores da arte e artistas trabalhando juntos, o que foi muito estimulante. Era um ambiente em que artistas muito conhecidos estavam lá. Por exemplo, Allan Kaprow3. Tenho certeza de que alguns de seus leitores devem conhecer o trabalho inovador dele nos anos 50 e 60. O poeta David Antin4 estava lá, o crítico de cinema Manny Farber5. Então, foi lá fora que comecei a ter ideias para a dissertação, que acabou se transformando no livro Técnicas do observador — visão e modernidade no século XIX. Mas eu estava pensando dentro de um ambiente em que havia uma gama de pessoas trabalhando de maneiras diferentes com visualidade, com percepção, com ambientes sensoriais diferentes, em termos de instalações e arte de performance. Então, quando voltei para Nova York depois de dois anos por lá, eu estava pronto para começar a formular o projeto que se tornou o Técnicas do observador. E eu tive bastante apoio de pessoas com quem eu conversava na época, interlocutores, para que realmente abrisse uma nova área para mim, mas também para outras pessoas. Esse era o momento, foi no final dos anos 1980, quando, pelo menos na Inglaterra e na América do Norte, a História da Arte estava se tornando um campo muito mais interessante e aberto, em termos de exploração teórica.
Era uma época em que pessoas como T. J. Clark6 e Rosalind Krauss7, e uma série de outras pessoas, estavam realmente causando impacto. Então, o meu trabalho, eu acho, estava muito alinhado com aquele momento. Mas, quando o projeto começou, eu realmente comecei a pensar sobre o final do século XIX e sobre o que significaria procurar diferentes modelos ou instâncias, do que significaria ser um Observador. Essa foi uma palavra que comecei a usar de várias maneiras. Mas havia uma série de razões pelas quais eu já tinha identificado o problema do Observador em um sentido histórico. Senti a necessidade de — e outras pessoas sugeriram que eu deveria fazê-lo também — voltar mais atrás historicamente. E foi aí que esse livro se tornou algo diferente do que tinha sido no início. Em vez de algo focado exclusivamente no final do século XIX, ele voltou ao século XVII, século XVIII para procurar algumas dessas origens.
E foi assim que me envolvi no estudo da formação intelectual e filosófica da câmera escura. Foi através da pesquisa que eu fiz sobre esse livro que eu cheguei, de certa forma, às descobertas, pelo menos à hipótese de que houve uma ruptura ou descontinuidade importante entre um modelo clássico de visualidade nos séculos XVII e XVIII, e depois algo significativo, uma transformação significativa que começou no início do século XIX. Esse é o pano de fundo. Essa é a longa história de como esse livro tomou forma. Mas era algo que eu não tinha nenhum tipo de ideia mais abrangente (sobre o livro) de antemão, era algo que surgiu através da minha imersão nos arquivos e na biblioteca. E ela tomou forma como uma dissertação, e então tomou forma em outra direção, à medida que eu a expandi para o livro que se tornou.
Pergunta – É como uma viagem do Olhar, não é? Você traz a ideia de começar com a modernidade como um divisor de águas. Algo que mudou a ideia de Olhar para as coisas. E depois, com o capitalismo e a atenção que temos de ter para responder às demandas da contemporaneidade. Então você trouxe isso para o livro 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono e então agora você traz isso para Terra arrasada – além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista, como uma ideia muito importante em seus livros.
Resposta – A minha intenção, o tempo todo, os meus interesses eram muito sobre realidades contemporâneas. Então, de certa forma, eu estava fazendo a pré-história do que obviamente era mais premente para mim, que era uma investigação do nosso mundo contemporâneo. Eu meio que via meu trabalho como uma espécie de arqueologia do presente.
Então, no livro seguinte, Suspensões da percepção – atenção, espetáculo e cultura moderna, decidi mudar para o final do século XIX e ver que tipos de transformações estavam ocorrendo naquele momento. Esse foi um livro que se concentrou praticamente nas décadas de 1870, 1880 e 1890. Um período de cerca de 30 anos. E, novamente, foi através da pesquisa arquivística. E estou usando essa palavra arquivo em um sentido amplo, ou seja, de olhar para discursos contemporâneos e artefatos e práticas que aquele problema de atenção me evidenciou. Não era necessariamente algo com que eu tinha começado, mas foi através do meu próprio tipo de imersão naquele período em particular que se tornou inevitável. Foi tipo, uau(!), foi algo que de repente tomou forma em um campo amplo de esferas de investigação, experimentos e pesquisas, e minha intenção era seguir esse livro, que eu iria avançar mais para o século XX.
E nesse momento eu percebi que não tinha como fazer uma espécie de volume monolítico sobre a visão no século XX. E notei que minha própria prática se tornaria de certa forma mais dispersa do que mais aberta, de modo que eu queria me aproximar da forma ensaística para fazer algo mais provisório e menos autoritário no sentido acadêmico. Mas, olhando para trás, uma das coisas que eu faria diferente com Técnicas do observador, e também com o meu trabalho quando comecei, teria sido deixar muito mais claro que eu estava falando de uma cultura visual especificamente ocidental. Não estou me culpando aqui, mas estava trabalhando em um momento específico nos anos 1980.
Vejo, em retrospectiva, que não deixei claro que eu estava realmente falando de algo que aconteceu dentro da Europa e dentro de um mundo intelectual filosófico e social ocidental em que a visualidade assumiu um significado e um tipo de prioridade que simplesmente não existia em outras tradições ou culturas de outras civilizações. O meu problema agora está muito definido em torno do que aconteceu pós 1500 e se pudermos usar isso como uma espécie de ponto de partida para todas as catástrofes e calamidades que experimentamos desde então.
Assim, o privilégio dentro da cultura da Europa Ocidental, o privilégio da visão, é inseparável de tantos outros aspectos do mundo europeu, de um mundo eurocêntrico que tomou forma nos anos 1600, 1700, e que até hoje este privilégio ocidental de visão é, num certo sentido, também a separação de um mundo sensorial e perceptivo muito mais integrado e teve consequências enormes e destrutivas. Então, muito do meu ensino e escrita tem sido, de certa forma, amplificar alguns dos meus trabalhos anteriores nesse sentido.
Pergunta – E o livro Terra arrasada? Como se estabelece essa jornada do Olhar?
Resposta – É interessante. De certa maneira, é um livro que segue meio que diretamente o 24/7. E, de fato, os títulos dos dois livros pelo menos têm uma... [pergunta], ou seja, qual é a consequência de um mundo que funciona sem parar? O que acontece quando há um mundo que não pode ser desligado? Isso é basicamente um mundo 24 horas por dia, 7 dias por semana. E a consequência é uma Terra arrasada. Então, houve uma maneira em que [...], é curioso, porque realmente não é há muito tempo, mas eu olho para trás para o 24/7 e, em certo sentido, sinto que não foi forte o suficiente. Eu poderia ter amplificado algumas das críticas naquele livro. Mas isso é olhar em retrospectiva, porque parecia o tipo apropriado de linguagem e retórica para aquele momento. Mas ficou claro que oito, nove anos depois, algo mais radical, eu precisava ter uma voz mais categórica.
Então, a ideia de que era um livro sobre o sono era quase como se eu não estivesse criando um cenário mais macro que eu tentei em Terra arrasada. O título do livro, algumas pessoas interpretaram erroneamente que seria um livro sobre o aquecimento global, sobre o meio ambiente, e assim por diante. E é de certa forma, mas eu quis mesmo usar esse título para descrever como um mundo social pode ser devastado. Como um mundo social de comunidades e de inter-relações entre pessoas pode ser irremediavelmente danificado pelas mesmas forças e instituições que estão devastando o meio ambiente do planeta.
De modo que, quando chego ao terceiro capítulo desse livro, começo a falar muito especificamente sobre as diferentes dimensões das capacidades e habilidades perceptivas humanas. Não a ponto de elas serem eliminadas ou completamente transformadas, mas eu falo sobre a diminuição e o enfraquecimento de possibilidades perceptivas que cada vez mais se tornam marginalizadas ou transformadas de maneiras terríveis.
Então, tento deixar claro que não estou falando de vigilância. Falo sobre rastreamento ocular e outras tecnologias biométricas, não tanto pelas informações que são extraídas dele, mas das maneiras pelas quais todas essas ferramentas empobrecem muitas das formas mais duradouras de realidades e possibilidades inter-humanas. E é interessante porque eu terminei o livro, escrevendo-o por volta de 2020, durante o início da pandemia. Então, de certo modo, já está datado, porque eu não abordei o que aconteceu durante a pandemia, em termos das novas formas de isolamento social e até formas de solidão impostas, distanciamento social que tomaram forma a partir desses eventos.
Pensei em abordá-los, mas não quis adiar, sabe, o livro realmente foi produto de outro momento. Mas logo depois que o livro saiu, fomos confrontados com o tipo massivo de disponibilidade de tecnologia de inteligência artificial [IA]. Quer dizer, não é que não existisse antes. Mas algumas das novas aplicações da IA de que ouvimos tanto falar obviamente estão abrindo outro limiar, uma espécie de deterioração da criatividade humana de uma forma que podemos pensar na criatividade que entra em alguns dos tipos mais básicos de recursos e possibilidades comunicativas.
Então, eu vejo a promoção de algumas dessas novas ferramentas como outro tipo de Terra arrasada, em termos de degradação de algumas das maneiras simples pelas quais as pessoas poderiam escrever e formular apenas ideias muito simples ou esperanças e possibilidades tanto para a vida individual, mas também para a vida da comunidade. Então estamos diante de toda uma outra camada, com outra camada de falsificação, um tipo de fraude em massa, de uma forma que se torna econômica e socialmente aceitável em tantos lugares.
Pergunta – Você acha que esses são os tempos de emergência que estamos vivendo, como falou em Terra arrasada? Agora com a IA e tudo o que você acabou de mencionar?
Resposta – O que eu quero dizer é que estamos vivendo em estado de emergência há muito tempo, que pode até remontar ao final da década de 1930. Devo dizer que Terra arrasada, a edição em língua inglesa, saiu há cerca de um ano [2022]. Mas tenho que dizer que a resposta ao livro tem sido diferente na edição espanhola e na edição brasileira, e agora na edição italiana. Não quero quantificar, mas acho que houve uma gama mais ampla de pessoas respondendo ao livro. Nos Estados Unidos, o livro se saiu bem entre um certo tipo de leitor, mas, ao mesmo tempo, há algo que, para muitas pessoas, parece que eu fui longe demais em minha crítica.
Há uma espécie de crítica à tecnologia nos Estados Unidos e há um certo ponto que se torna inaceitável para publicações e instituições estabelecidas. Então, para mim, é gratificante ver o tipo de resposta ampla ao livro fora dos Estados Unidos.
Não quero dizer que não tenha havido respostas críticas, mas é um livro menos integrado no diálogo e no discurso. Pode mudar, mas estar nos Estados Unidos agora, é um lugar muito estranho, em termos da ausência de vozes críticas sobre tantas coisas, o medo por parte de muitas pessoas de sair de alguns dos tipos estabelecidos de estruturas institucionais, de como se pode interpretar o que está acontecendo globalmente.
Pergunta – A falta de ética é consequência de tudo isso? A ideia de que você não precisa responder por nada, você só faz e pronto. Principalmente como a vida nas redes sociais ou viver no fluxo da internet.
Resposta – Houve muitas pessoas que escreveram sobre mídias sociais e tecnologia. Mas, como eu digo no livro, quase tudo é sobre como podemos reformá-las e, de certa forma, torná-las mais eficientes para nós, sabe? Então, a única crítica aceitável às mídias sociais e tecnologia é o que eu chamaria de uma crítica instrumental que nunca questiona, nunca faz questionamentos fundamentais ao sistema, na verdade, o que estamos discutindo é que a única coisa aceitável é uma crítica reformista.
Assim, você nunca questiona as bases do sistema, mas todas as pequenas maneiras pelas quais podemos melhorar as coisas. Então, o que eu tentei fazer foi uma concepção muito mais radical de como a crítica pode ser conduzida. Mas também estou meio que abandonando parte da minha formação acadêmica. Em outras palavras, estou escrevendo um texto que é uma escolha retórica que fiz. É abandonar a posição distante do acadêmico.
Há uma maneira pela qual sinto os limites de um certo tipo de discurso acadêmico. Em outras palavras, eu não quero essa posição objetiva distante, onde, de certa forma, eu me sinto na obrigação de apresentar os dois lados de uma questão. Isso, de certa forma, é uma armadilha. Não quer dizer que seja unicamente assim, mas essa é uma das maneiras pelas quais todas as formações burguesas de produção de conhecimento retiram da linguagem qualquer tipo de potencial insurgente. Então é por isso que, no início de Terra arrasada, eu digo basicamente que me identifico com a tradição do panfleto político de uma forma retórica que é sobre incitar, é querer produzir algo, em vez de apenas contribuir para uma maneira já existente de falar sobre as coisas.
Não estou dizendo que vou fazer isso com tudo o que escrevo, mas eu quis usar essa voz. Ao mesmo tempo, eu estava dizendo que eu também queria evitar simplesmente fazer uma crítica instrumental da tecnologia, das maneiras pelas quais ela aceita esta tecnologia como uma espécie de realidade dada, e que você fala sobre ela como algo que se pode modificar ou usar dessas várias maneiras. Seguindo a nossa ideia aqui, o que eu queria fazer era mais uma crítica ética. E às vezes penso na sobreposição entre uma crítica ética e uma crítica estética. Refiro-me à estética no sentido mais amplo dessa palavra, sobre a maneira como podemos responder a respeito do modo como sentimos as realidades externas. E é aí que a questão do belo é relevante, quando as maneiras como podemos pensar em algo no mundo como belo no sentido de responder a ele de alguma maneira primária ou fundamental? E são precisamente esses aspectos da nossa resposta que estão sendo destruídos, que estão sendo corroídos.
É interessante que as pessoas costumam usar o livro 1984, de George Orwell (2023), como algo que antecipa de alguma forma todos esses diferentes aspectos do que aconteceu nos últimos 20 anos. Mas, para mim, uma das coisas interessantes sobre o livro de Orwell, 1984, é que há um episódio no livro — mesmo que menor — em que Winston Smith, o personagem principal, entra no que é como uma loja de antiguidades, uma espécie de loja de curiosidades que meio que sobreviveu de alguma época anterior. E ele encontra um pequeno pedaço de coral que foi, recebeu, um tipo de revestimento de vidro como uma espécie de ornamento.
E ele está tão impressionado com essa pequena quase bugiganga inútil de qualquer forma utilitária. Mas esse objeto isolado tem algo que está fora do mundo em que ele está vivendo. E, mais tarde no livro ou, na verdade, logo depois, quando ele é preso e os policiais chegam ao seu apartamento e fazem questão de quebrar o que ele havia preservado. Mas esta foi apenas uma indicação de como o tipo de sociedade opressora que ele [Orwell] traçou em todas essas outras formas institucionais e repressivas também tem essa ausência ou a intolerância à possibilidade de ter essas respostas, o que representa a brutalidade e a crueldade daquele mundo.
Pergunta – Refletindo sobre este cenário que vivemos, modelado por fluxos tecnológicos, você argumenta muito no livro que os objetivos e fins que perseguimos não são mais aqueles que realmente escolhemos para serem nossos. Essa ideia está em consonância com outros livros como Stand Out of Our Light, de James Williams (2018), que é um ex-executivo do Google, e também em The Merchants of Attention, de Tim Wu (2016). Eles também falam sobre esses assuntos, e, quero dizer, cada um na sua perspectiva, claro, o que significa que isso se tornou uma preocupação clara. Então, eu gostaria de lhe perguntar como o complexo da internet molda essa biopolítica na contemporaneidade, que tipo de sujeitos emergem desse complexo que estamos vivendo, como você pensa isso, esse assunto?
Resposta – Bem, é difícil para mim dizer qualquer coisa muito conclusiva sobre isso. Eu posso falar principalmente sobre o que vejo aqui na América do Norte, porque sou meio cauteloso em fazer qualquer tipo de caracterização universalizante ou monolítica. Mas eu acredito que a internet, como ela tem sido globalmente disponível nos últimos 20 anos em certos aspectos, de maneiras importantes, é sobre a imposição de um modelo de comportamento, um modelo de consumo, um modelo de socialidade, que eu não tenho certeza como expressar isso, mas que há algo muito americano sobre o próprio sistema. Ou seja, de um sistema que tem a pretensão de atribuir ao usuário uma espécie de autonomia e uma espécie de independência que, no fim das contas, não é real. Mas pressupõe a possibilidade de uma espécie de autonomia que, em última análise, é falsa. Isso basicamente torna a pessoa mais dependente, mais isolada e menos capaz de toda uma gama de outras possibilidades, em termos de como viver.
Pergunta – Eu peço licença para compartilhar uma percepção de que estamos vivendo dentro do mundo das big techs e não dentro do nosso próprio mundo, porque o ambiente das big techs está dizendo o que vai acontecer com a sua vida. Esse tipo de individualidade, esse tipo de autonomia que dita o que não está certo não é bom.
Resposta – Moro em Nova York há muitos anos e ando de metrô em Nova York há muitos anos. E eu fico espantado com a trajetória, com a forma como os ocupantes de um vagão de metrô quase, ou seja, quando eu estou no vagão do metrô agora, é quase cem por cento das pessoas nele olhando para seus telefones. Há cinco anos, podia ter sido metade das pessoas. E é só ano a ano, é o agora que você sabe que é tão avassalador em termos de conformidade, e é quase como se houvesse uma espécie de ansiedade em não participar desse comportamento.
Eu me sento no metrô e fico ali só como observador desse tipo de imersão obrigatória daquela postura de estar absorto em algo, excluindo qualquer consciência de outras pessoas. É uma espécie de proteção, é como se você não tivesse essa possibilidade dessa relação com uma tela, [é] como se isso te deixasse mais vulnerável, te fizesse parecer de alguma forma uma espécie de outsider. Não sei ao certo quais são todas as motivações, mas é surpreendente em termos de mundo social homogêneo ou um tipo de mundo social.
Pergunta – Como é que está tudo bem para a sociedade?
Resposta – Bem, não está bem. Quer dizer, acho que o que está acontecendo nos Estados Unidos agora é que a situação nesse país é muito desastrosa em termos da ausência de qualquer liderança política séria e, ao mesmo tempo, do colapso combinado da infraestrutura física do país, da ausência de qualquer tipo de regulamentação ou proteção do meio ambiente, dos trabalhadores. E depois, ao mesmo tempo, a horripilante escalada da violência armada, dos tiroteios em massa, porque chegou a um ponto agora que se tornou algo que passa despercebido. Em outras palavras, não é mais algo fora do comum. E é difícil dizer quando exatamente isso aconteceu, mas eu diria que em algum momento nos últimos 12 meses que a frequência de tiroteios em massa, em que três ou quatro pessoas são simplesmente baleadas aleatoriamente ou o que quer que seja, tornou-se, de certa forma, comum. Tornou-se uma notícia menor como todos os outros tipos de notícias.
Então é a integração no tipo de realidade cotidiana de um colapso completo de uma sensação de segurança, uma sensação de apoio mútuo, ninguém realmente quer falar sobre isso porque há algo tão perturbador, e não acontece em outros países do jeito que acontece aqui. Não é isso por si só, mas é parte desse tecido maior que está caindo aos pedaços. E você sabe que estamos diante de uma eleição em que, você sabe, aconteça o que acontecer, não será um bom resultado.
Pergunta – Já que você falou sobre o Olhar, o processo político e tudo mais, com base nessa perspectiva histórico-política, você poderia analisar esse processo de financeirização ou monetização do Olhar?
Resposta – Claro, é algo que sabemos que acontece em termos do projeto corporativo de financeirização da atenção. Isso é acurado. Parece ser muito mais sobre no que você está envolvido É o que significa ter uma economia da atenção em que não se trata tanto de encorajar ou persuadir alguém a comprar determinada mercadoria ou determinado produto como consumidor. Mas, simultaneamente, é sobre criar e motivar um sujeito humano, um observador humano, a consumir imagens visuais e conteúdo visual. Acho que também poderíamos dizer auditivo. É quase sempre um tipo de som e visão que se é incitado a consumir. E o interessante é que 99% das pessoas que estão olhando para uma tela, seja um telefone, seja um laptop, ou o que for, ninguém está realmente ciente desse mecanismo primário de financeirização, realmente [ciente] do que estão participando, em termos de como esse comportamento visual é transformado em dados, é transformado em mercadorias comercializáveis, como as informações sobre a maneira como olhamos, o que olhamos, como olhamos, quanto tempo passamos olhando para algo, sobre como todas essas informações têm um valor de mercado.
Então, há uma maneira que — ao sermos direcionados para essas atividades que, de certa forma, aumentam as horas diárias que passamos como observadores passivos manipulados — reduz o tempo que podemos dedicar ao uso dessas capacidades perceptivas a algo muito diferente em termos de como interagimos em um nível humano com as pessoas próximas a nós. Como interagimos, em certo sentido, para acumular conhecimento sobre o ambiente, sobre o mundo natural, sobre viver com animais, sobre toda a riqueza do mundo em que estamos e como, basicamente, estamos sendo direcionados para esse mundo incrivelmente empobrecido.
É um mundo do que chamo de eletroluminescência, onde mesmo as condições luminosas que agora assumimos serem normais são sobre uma experiência muito diferente da própria luz e uma experiência muito diferente da cor. Falo brevemente sobre isso em Terra arrasada, sobre esse estranhamento de uma relação com as cores da terra, as cores de outras pessoas. E, novamente, trata-se da diminuição e da inocência, da espoliação de nossas habilidades perceptivas em um sentido muito amplo.
Pergunta – É uma espécie de colonização da sensibilidade?
Resposta – Acho que se poderia descrevê-lo assim. Estou sempre hesitante em usar a palavra colonização. Não tenho certeza se isso seria apropriado. Mas acho que isso também pode fazer algum sentido. Isso significaria que, em certo sentido, algum conjunto exterior de forças está exercendo alguma forma de relação coercitiva. Eu também pensaria que colonizar envolveria algo de extrativista. Não sei exatamente o que é isso.
Pergunta – Talvez não colonização, mas mais essa força que se manifesta na atitude.
Resposta – Eu também acho que todo o surgimento dessas novas IA generativas — eu não sou um especialista nisso, eu realmente só sei o que li na mídia popular —, mas é esse um dos efeitos, e não acho que seja completamente acidental ou uma espécie de subproduto, mas é realmente parte da imposição da inteligência artificial, do que é chamado de IA generativa. É muito mais sobre uma humilhação do ser humano, e uma humilhação das capacidades meramente humanas para o comportamento inteligente, sabe? Então, em outras palavras, para mim, é absurdo fazer qualquer tipo de comparação entre a chamada inteligência de máquina com a inteligência humana. Estamos usando a mesma palavra, mas o absurdo é tentar afirmar que elas são comparáveis e são dois fenômenos totalmente diferentes. No entanto, o efeito do uso dessa linguagem, em certo sentido, trata-se de uma forma de desencorajamento, de desânimo, em que o esforço humano é sempre classificado como inferior a essas outras possibilidades extraordinárias de criação de conhecimento que estão agora disponíveis.
Como professor, alguém que lida com alunos, eu percebo uma verdadeira espécie de desmoralização entre alguns dos meus alunos em relação à disponibilidade dessas ferramentas para escrever, para fazer algo do tipo, a atitude deles é meio que: “Bem, qual é o sentido de eu sequer tentar mais se há outros alunos que são capazes de usar essas ferramentas para fazer algo que é quase indistinguível do que eu vou fazer?” Mas acho que é importante encontrar maneiras de rejeitar isso, é ver o dano que está envolvido e, de certa forma, resistir. Na verdade, acabei de receber um e-mail de um dos departamentos da universidade, e era sobre as novas ferramentas de bate-papo de IA. E dizia: “A promessa e os perigos dessas novas tecnologias”. Então isso é uma formulação. Há coisas boas, mas também há coisas ruins. E essa é a armadilha. E, quando é colocado dessa forma, é como se fosse inevitável, este é o mundo em que vivemos, vamos tentar encontrar as coisas boas e evitar as ruins. E, simplesmente, isso nunca vai acontecer dessa maneira.
Pergunta – Em Terra arrasada, você fala da música como algo disruptivo, algo que proporciona o encontro com o inesperado, e você mencionou isso no livro. Pelo que você está dizendo, esse encontro com o inesperado, a ideia de encontrar pessoas, a empatia, o ser com o outro, o rosto, o olhar, o encontro que você mencionou, eu gostaria de perguntar sobre as redes sociais, principalmente aquelas com vídeos curtos, como o TikTok, e a ideia de que elas estão mudando a forma como a gente se olha, a forma como nos relacionamos uns com os outros. Você poderia comparar a ideia que você descreve como algo que estamos vivendo em um mundo onde não somos capazes de encontrar o inesperado, que não temos a chance de estar com o esperado? E de como essas plataformas estão nos fazendo entrar nesse mundo e confinar o potencial humano ao não dar a oportunidade ao inesperado.
Resposta – Sim. É uma ótima pergunta. Teve uma parte em que falei sobre música. E era sobre os jovens. Era sobre isso que [...] um dos fenômenos da Terra arrasada que eu estava tentando evocar era a maneira pela qual os jovens são, de certa forma, proibidos de, em certo sentido, experimentar seu próprio potencial em meio à sua própria juventude. Mas, no contexto de falar sobre todas as formas pelas quais os jovens são colonizados, para usar a palavra que você mencionou, eu disse que a música é algo que ainda não é controlável, que a música ainda mantém sua força como uma espécie de singularidade. Essa foi a palavra que usei. E disse ainda que, apesar de todas as formas pelas quais a música foi submetida à mercantilização e, como parte de corporações globais de entretenimento e assim por diante, eu disse que, para os jovens, a música ainda tem a capacidade de permitir que eles imaginem as coisas além do que são em determinado momento, em certo sentido, e projetem um conjunto de possibilidades. E eu baseio isso no trabalho de Felix Guattari8. Foi ele quem teve essa ideia de singularidade. Não quero tentar explicar exatamente o que ele quer dizer com essa palavra, mas era a ideia de alguma forma de identidade e conjunto de experiências que, de alguma maneira, resistem à padronização, resistem à mercantilização. Foi aí que eu vi a música como transformada em mercadoria, mas há aspectos nela que ainda são sobre liberdade, que são sobre abertura para algumas outras esferas de possibilidade.
Mas quanto ao seu comentário sobre as redes sociais, de todas as novas formas, quer dizer, parece que todo ano agora há alguma nova plataforma que parece abrir possibilidades para esta ou aquela pessoa. Estamos falando de uma das características fundamentais do que pensamos livremente como modernidade. E esse é o fenômeno do novo, da novidade. Isso remonta a Baudelaire e outras pessoas no século XIX, em que a ideia do novo por um tempo manteve algum tipo de possibilidades emancipatórias.
Em outras palavras, foi uma resistência de todo o tipo de instituições ossificadas e dos códigos de comportamento. O que aconteceu no segundo seguinte ao século XX é o remake completo da novidade em simplesmente um ritmo do consumo. Então, em certo sentido, o papel obrigatório que todos nós temos ao sermos consumidores é essa atividade circular de acreditar que há algo novo, mas, na verdade, trata-se de uma sequência predeterminada de uma forma entorpecente e sem propósito de consumir.
E é interessante, alguém com quem aprendi muito, não concordo com muito do que ele diz, é o filósofo francês Alain Badiou9. E uma das maneiras como ele caracteriza o momento em que vivemos agora é com uma palavra carregada de significados — que eu meio que admiro que ele ainda seja capaz de continuar usando — e a palavra é niilismo. Ele diz que estamos vivendo em um mundo de niilismo penetrante. E, novamente, o que acho valioso sobre ele usar essa palavra é que, para ele, o niilismo não tem nada a ver com a escolha de uma atitude ou postura individual. Não se trata de indivíduos decidindo serem niilistas. Mas é sobre a realidade sistêmica das instituições globais que nos rodeiam e que nos impuseram uma espécie de niilismo. E esse é um mundo sem nenhum outro propósito, a não ser essa sequência obrigatória de se tornarem consumidores vitalícios, no sentido de recusar qualquer abertura além disso. E ele vai ao ponto de ver isso mesmo em algumas das chamadas democracias de mercado na Europa e nos Estados Unidos, onde a política também foi reduzida a escolhas entre alternativas indistinguíveis.
Em outras palavras, é meio como a situação que existe nos Estados Unidos, em que você recebe o que parece ser uma escolha, mas, na verdade, há algo niilista em ter que participar de um sistema que, num sentido, exclui a possibilidade de algo diferente acontecer. Então ele está dizendo, você sabe, quero dizer, ele não está dizendo que há [algo de] Badiou, uma espécie de ex-comunista, maoísta, seja o que for, entende? O que ele está dizendo é que estamos diante de ter que encontrar uma saída. Então, ele não está colocando isso como uma realidade sombria e imutável. Mas ele disse que, se alguém não aceita isso como o que estamos lidando, esse alguém, de certa forma, tem ilusões sobre, digamos, o que é possível por meio da política eleitoral, pelo menos em algumas circunstâncias.
Pergunta – Em Terra arrasada você também fala muito sobre o sufocamento da esperança, o cancelamento da possibilidade de restauração ou cura do mundo. Não se trata tanto de uma pergunta, mas mais de um pensamento sobre ela. Essa ideia de cancelar a possibilidade de restauração ou cura não abriria novas possibilidades para o sujeito, para nós mesmos?
Resposta – Acho que deveria e acho que em muitas partes do mundo é isso que está acontecendo. Eu estou na América do Norte, onde eu acho que há menos abertura, quer dizer, as pessoas estão tão acostumadas com essas possibilidades políticas restritas. Simplesmente não é o caso em outros países, e acho que essa questão da esperança é crucial, porque não é apenas em termos de realidades políticas, mas certamente é verdade para as pessoas que são ativistas ambientais, para qualquer pessoa que esteja trabalhando em torno das mudanças climáticas e trabalhando para resistir à devastação ambiental, é essa decisão sobre como se pode ser honesto sobre as realidades que estamos enfrentando sem que as pessoas respondam: “Ah, você está sendo tão pessimista”. Eu ouço o tempo todo pessoas dizendo: “Bem, isso não parece muito esperançoso”. E é só aquela ideia de como você pode evitar dar às pessoas algo esperançoso, que simplesmente esteja permitindo a perpetuação da complacência? Num certo sentido, as pessoas dizem: “Não podemos ouvir algo mais esperançoso?” O que elas querem dizer é: não há alguma maneira de eu simplesmente continuar fazendo o que estou fazendo sem ter que tomar algum tipo de decisão existencial sobre o que eu sou, sobre o que eu poderia estar fazendo com o meu tempo?
Então eu não tenho uma resposta muito boa porque eu sinto essas mesmas pressões. Eu tenho dois filhos e estou sempre pensando em querer acreditar que há um futuro habitável e humano para eles. Mas também sinto que, se alguém sabe, não pode continuar a articular delírios sobre as realidades que não estão apenas à nossa frente no futuro, mas as realidades do presente. Então, é realmente um conjunto difícil de escolhas.
Pergunta – Considerando que vivemos nessa rotina digital e que ela é uma norma da sociedade, como já falamos, que perspectivas de interação social e possíveis ações coletivas você considera possíveis para esse mundo pós-digital que menciona no livro Terra arrasada?
Resposta – Bem, eu gostaria de ter algumas sugestões concretas. Estou animado com o que sei sobre o que está acontecendo em muitas partes diferentes do mundo hoje, de pessoas engajadas em vários tipos de lutas, diversos tipos de formas de preservação de comunidades. Eu vejo isso muito menos no meu mundo imediato, mas, mesmo aqui em Nova York, eu sei de pessoas que formaram coletivos que têm tipos informais de configurações familiares estendidas em diferentes bairros da cidade, como isso se aglutinaria em alguma escala maior de transformação.
Estamos em um momento em que nada vai ficar parado por muito tempo. Então, isso é parte do que eu estava colocando em Terra arrasada: a crença, quero dizer, há uma frase que eu uso no livro sobre a maneira como as pessoas costumam dizer, oh, “Isso veio para ficar”, ou a suposição de que diferentes aspectos da realidade contemporânea estão aqui para ficar. E é mais ou menos isso que eu disse sobre o complexo da internet em si, sobre todo o mundo das redes digitais, é essa fantasia de que este é o mundo em que estaremos para sempre. E não é, é um mundo frágil, vulnerável, que não vai desaparecer, mas certamente vai sofrer muitas contrações e transformações, além de diferentes formas de desintegração social e ambiental.
Mesmo quando terminei o livro, em 2020, àquela altura, parecia impensável que, apenas alguns anos depois, a ideia de globalização desse tipo de mercado global unificado se fragmentasse e, de certa forma, se fragmentasse em um mundo que era a Europa, a União Europeia, a Otan, os Estados Unidos de um lado, e depois a Rússia, China, Irã, de outro lado, com crescente desmembramento do que antes se pensava ser este planeta integrado. Então, isso é apenas um prenúncio das maneiras pelas quais todas essas fantasias sobre este mundo tecnologicamente unificado eram apenas isto: fantasias que destacavam realidades políticas e pressões simplesmente insustentáveis.
No entanto, também é verdade que a internet é dramaticamente diferente do que era há 20 anos em termos das maneiras como a censura, o controle e a exclusão podem operar. Agora é uma zona que é controlada de alto a baixo. Não estou dizendo que não existam pequenas partes em que as pessoas possam fazer o que quiserem, mas, em um sentido mais amplo, agora é uma espécie de arena disciplinar na qual as apostas são muito altas em termos de quem é permitido participar e quem é impedido de ter algum tipo de participação ativa e uma voz. E acredito que isso só vai piorar.
Pergunta – Você acha que os próximos textos, manifestos e panfletos, e tudo o que viria de qualquer outro lugar do mundo, como o Sul Global, ou pensa que existe a possibilidade de o Sul Global ser um lugar onde podemos tentar mudar as coisas de uma certa maneira?
Resposta – Espero mesmo que sim. O que está acontecendo na Europa, acho extraordinário que as pessoas estejam menos preocupadas com isso. Quero dizer, as pessoas ao meu redor, onde estou nos Estados Unidos, há quase uma cegueira intencional para as mudanças dramáticas que são consequência de uma guerra territorial no continente europeu. Conheço pessoas para quem é quase como se fosse apenas uma perturbação menor, que não terá qualquer consequência para a forma como vivem suas vidas. Onde milhares de jovens soldados estão sendo mortos de uma maneira que não acontecia desde a Segunda Guerra Mundial. E, ainda assim, há apenas essa cegueira intencional, uma exclusão intencional disso.
Então, ah, “Os russos são ruins”, “Eles vão perder”. As pessoas querem essas explicações e soluções simplistas. E é meio que esse recurso do bem contra o mal. E acho que realmente não sabemos quais serão as consequências desse conflito. Mas o que é interessante é quantas nações, de certa forma, estão recuando, meio que não estão apoiando nenhum dos lados. Então, isso é algo que gostaríamos que não estivesse acontecendo. E as suas nações, que estão fora da Europa, que pressionam por uma solução pacífica, que pressionam pela negociação, só podemos esperar que consigam fazê-lo.
Mas acho que uma das outras perturbações que surgirá da guerra na Europa é que os problemas do aquecimento global parecem ter sido deixados de lado. Eu percebi isso, especialmente nas instituições com as quais estou envolvido. De certa forma, tornou-se um problema secundário agora, enquanto, pelo que leio, o colapso planetário está se intensificando em termos de todos os indicadores diferentes. E, ainda assim, mais uma vez, ninguém quer ouvir más notícias. Ninguém quer ouvir, em certo sentido, o toque de despertar. Então, com certeza, os próximos anos serão interessantes. Mas acho que, fora dos Estados Unidos, há muito mais consciência de quão urgentes são algumas dessas questões.
Pergunta – Você mencionou isso na introdução da edição brasileira do livro como uma possibilidade ideal de, não uma rebelião, mas de algum tipo de mudança ou a maneira que queremos mudar. Então isso seria esperançoso também.
Resposta – Quero dizer, só para voltar àquela questão das redes sociais e da economia da atenção, em certo sentido, o modelo corporativo de um consumidor ideal de tecnologia e redes sociais é um consumidor 24 horas por dia, 7 dias por semana, a extraordinária incitação ou persuasão para que as pessoas estejam envolvidas com uma tela de maneira constante.
É apenas a ideia de streaming, de produzir incessantemente conteúdo que somos instigados a assistir. Na verdade, há um slogan publicitário que promove uma dessas redes que diz: “Você não pode não assistir”. Significando que os filmes, ou o que quer que estejam mostrando, são tão empolgantes, tão cativantes, que você tem que assistir a eles. Caso contrário, você perderá algo extraordinário. Mas é apenas a ideia dessa sequência completamente vazia de tipos quase intercambiáveis de mercadorias.
Não são apenas esses serviços de streaming, mas são todas as intermináveis formas pequenas de atração ou estimulação que levam de um clique para outro. Assim, a consequência é a eliminação de qualquer intervalo de tempo significativo em que alguém poderia realmente estar, de certa forma, consciente de si mesmo. Então, essa sequência de consumo de mídia, em certo sentido, é uma maneira de evitar o pensamento. É uma maneira de impedir as formas de reflexão que poderiam levar a escolhas fora desses fluxos e formatos.
Obviamente, eles não são monolíticos e todos, na verdade, têm esses intervalos de tempo em que percebem que estão infelizes, solitários, ou que têm dívidas a pagar, sabe. Então, novamente, é um mundo que tem essas diferentes camadas e níveis. Não estou tentando ser redutivo ao caracterizar a natureza da experiência. Mas, em certo sentido, isso cria uma situação em que a esperança por um futuro diferente é muito difícil, porque nos é apresentada com as nossas próprias realidades das quais ninguém consegue escapar. Mas, ao mesmo tempo, a alternativa é uma espécie de imersão quase narcótica nesses streamings. Então, está impondo às pessoas uma vida em que qualquer senso de propósito que vá além de simplesmente ser um participante neste — no que Badiou chama de — “este mundo de niilismo” é muito difícil de ver.
Pergunta – E a sustentabilidade no mundo é muito difícil, não é? Com toda essa tecnologia? Eu me lembro que essa era uma preocupação que você tinha há algum tempo, de que não vamos conseguir produzir toda a energia que precisamos. Não vamos conseguir produzir tudo o que precisamos para sustentar esse mundo, não é mesmo? A tecnologia não está ajudando.
Resposta – Muitas pessoas não querem ouvir isso. Para mim, toda a indústria de veículos elétricos é apenas um exercício completamente sem sentido que, na verdade, está intensificando os padrões de consumo que, no final das contas, terão um impacto negligenciável nas emissões. Não sou realmente um especialista nesse campo, mas vejo a recusa de que, em vez de construir veículos elétricos, poderíamos ter direcionado esses recursos para formas de transporte público que teriam sido muito mais eficazes do que essa nova indústria que depende da extração de tantos recursos de tantas partes diferentes do planeta.
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1
Bachelor of Fine Arts.
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2
Columbia University, em Nova York.
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3
Allan Kaprow (1927-2006) foi um artista plástico norte-americano. Foi pintor, escultor, ilustrador e um dos responsáveis pelo que ficou conhecido na arte como Performances e Happenings.
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4
David Antin (1932-2016) foi um poeta, crítico de arte, artista performático e professor universitário norte-americano.
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5
Emmanuel “Manny” Farber (1917-2008) foi pintor, crítico de cinema, professor universitário e escritor norte-americano.
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6
Timothy James Clark (1943-) é historiador de arte e escritor britânico.
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7
Rosalind Epstein Krauss (1941-), norte-americana, é crítica, teórica e professora de História da Arte na Columbia University.
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8
Félix Gattari foi um filósofo e psicanalista francês (1930–1992), um dos fundadores dos campos da esquizoanálise e ecosofia. Colaborou amplamente com outro filósofo francês, Gilles Deleuze, construindo uma das mais importantes obras da filosofia do século XX.
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9
Alain Badiou é um filósofo franco-marroquino. Militante maoísta, defende as causas dos trabalhadores em situação irregular na França. Questiona a metafísica clássica e critica as democracias liberais.
Referências
- Crary, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
- Crary, Jonathan. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura Moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2014(a).
- Crary, Jonathan. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014(b).
- Crary, Jonathan. Terra arrasada: além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista. São Paulo: Ubu, 2023.
- Orwell, George. 1984 São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
- Williams, James. Stand Out of Our Light Cambridge: Cambridge University Press, 2018.
- Wu, Tim. The Merchants of Attention: The Epic Scramble to Get Inside Our Heads. New York: Knopf, 2016.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
21 Maio 2024 -
Aceito
27 Jun 2024