Resumo
O presente texto busca delinear o processo de midiatização dos mercados do sexo e as consequentes transformações nos serviços oferecidos. É realizada uma remissão aos desenvolvimentos de diferentes atividades dentro dos comércios sexuais, enfocando nas alterações ocorridas a partir do advento de uma diversidade de dispositivos midiáticos. Apontam-se também quatro traços distintivos do meta-processo: a) proliferação de novos ramos eróticos comerciais; b) aparecimento de outras formas de agenciamento; c) aumento dos trânsitos entre as diversas atividades; d) surgimento de novas estratégias de distinção dos trabalhos.
Palavras-Chave midiatização; mercados do sexo; erotismos mediados
Abstract
This paper aims to outline the process of mediatization of sex markets and the consequent changes in the services offered. A resumption of the development of different activities within the sex trade is made, focusing on the changes occurred since the advent of a diversity of media devices. Four distinctive features of the metaprocess are also pointed out: a) proliferation of new commercial erotic branches; b) the appearance of other forms of pimping; c) increase of transit between the various activities; d) the development of new strategies to distinguish the work.
Keywords mediatization; sex markets; mediated eroticism
Introdução
A discussão empreendida no presente artigo se insere na esteira de teorizações que buscam averiguar as consequências e os desdobramentos da ubiquidade dos dispositivos midiáticos no contexto contemporâneo, os quais reverberam em novas configurações socioculturais e práticas comunicativas. O lócus de investigação são os mercados do sexo, que sofreram diversas transformações em sua paisagem à medida que vários meios de comunicação foram popularizados e largamente empregados no cotidiano. Proponho compreender esse processo de mudanças de longo prazo como a “midiatização dos mercados do sexo”.
A empreitada proposta dialoga diretamente com duas áreas distintas de conhecimento – as pesquisas sobre sexo comercial e os estudos de mídia –, que ainda não possuem uma interlocução efetiva. No lado das investigações sobre meios de comunicação, recentes esforços analíticos são desenvolvidos, principalmente no que tange à construção da sexualidade. Os textos de Brian McNair (2002, 2013) são pioneiros nessa esteira, discutindo como os dispositivos tecnológicos-comunicativos foram responsáveis por distribuir e popularizar “expressões da sexualidade mediadas”, favorecendo uma cultura sexual mais diversificada e pluralista.
Um projeto mais ousado é empreendido por Sander De Ridder (2017), que centraliza como caminho investigativo a midiatização da sexualidade, buscando delinear o papel das mídias nas alterações sofridas nesse âmbito. Na perspectiva do autor, existe uma invisibilidade dos meios de comunicação na história da sexualidade, que aparecem apenas em momentos pontuais a título de ilustrações.
Se o esforço em abordar a midiatização da sexualidade é uma inovação em pleno desenvolvimento, o processo de midiatização dos mercados do sexo nem mesmo figura nas agendas de pesquisa. Tais mercados são uma esfera multifacetada e carente de organização formal, que condicionam as modalidades de sexo e erotismo comerciais disponíveis, influenciando nas representações dos gostos e desejos sexuais propagadas1.
Em significativa parcela da literatura sobre os mercados do sexo há apontamentos sobre a influência das tecnologias nesse universo, sobretudo da internet. Todavia, não há um aprofundamento no diagnóstico apresentado, revelando quais as principais alterações, como se configurou tal processo e qual a amplitude da intervenção. Um dos trabalhos que investem na abordagem das tecnologias de comunicação é o de Elizabeth Bernstein (2007), que investiga a estruturação dos mercados do sexo em relação às transformações na cultura e economia. Ela aponta como os dispositivos midiáticos colaboraram com a edificação de grandes indústrias do sexo2, principalmente a pornografia, mas sem fornecer detalhes sobre o fenômeno. Apesar de reconhecer a importância dos meios de comunicação, o tema não é plenamente explorado.
Mesmo em coletâneas que se propõem a abarcar a diversidade de investimentos analíticos sobre os mercados do sexo – tais como a produzida por Ronald Weitzer (2010), Marina Della Giusta et al (2008) e Melissa Ditmore et al (2010) – o tema das tecnologias de comunicação quase não aparece, sendo apenas aludido na discussão sobre reestruturação econômica das indústrias eróticas. No que tange à internet, diversos esforços foram desenvolvidos para analisar a reestruturação do mercado pornográfico (LYNN, 2007; JONES, 2015) e as modificações na estética do pornô, principalmente após a popularização de produções alternativas (ATTWOOD, 2007, 2010).
Embora as tentativas em compreender a participação dos meios de comunicação na configuração dos mercados do sexo sejam insuficientes, eles estão presentes tanto na diversificação dos serviços oferecidos quanto nas práticas eróticas disponibilizadas. Conforme será argumentado ao longo deste trabalho, a mútua implicação entre sexo comercial e dispositivos midiáticos pode ser compreendida enquanto “midiatização dos mercados do sexo”, revelando a passagem de um momento em que as mídias foram usadas para acelerar a produção e aumentar a lucratividade desses mercados para outro no qual as práticas eróticas se desenvolvem em interconexão com esses dispositivos.
Esta incursão ao fenômeno é de caráter exploratório, e visa compreender as principais consequências do processo de midiatização no interior dos mercados do sexo, desvelando um vasto programa investigativo. Pretende-se recuperar, sobretudo, a literatura3 sobre sexo comercial, predominantemente as coletâneas e esforços analíticos sobre serviços eróticos mediados por tecnologias de comunicação4.
Na primeira seção busca-se delinear os principais contornos do processo de midiatização dos mercados do sexo, retomando algumas das principais transformações nesse universo a partir do aparecimento de determinados dispositivos midiáticos, especialmente a imprensa, a televisão e a internet. A segunda metade do artigo apresenta as principais consequências do meta-processo em curso, apontando quatro elementos de reestruturação do comércio de sexo e erotismo.
A midiatização dos mercados do sexo
Os mercados do sexo são um complexo conjunto de produtos e serviços oferecidos por empresas (profissionais e amadoras) e por indivíduos, congregando uma vastidão de práticas e serviços eróticos. A definição apresentada por Laura Agustín (2000, 2007) considera-os como campos nos quais se estabelecem a venda e a compra de sexo e sensualidade, atividades situadas em contextos econômicos, sociais, culturais e históricos específicos e, por isso, caracterizadas por ambiguidades e tensões. Tais mercados englobam uma miríade de estabelecimentos/produtos como bordéis, linhas telefônicas eróticas, casas de massagem, saunas, revistas e filmes de sexo, cinemas eróticos, sexo na internet – e de atividades – algumas promovem o contato físico e outras a estimulação sexual indireta; podem permitir maior ou menor flexibilidade de horários/locais de trabalho; podem oferecer maior ou menor espaço para negociação com os clientes.
Esses mercados desenvolveram-se, ampliaram-se e sdiversificaram-se na medida em que passaram a fazer uso de determinados dispositivos midiáticos (BERNSTEIN, 2007), apropriados, em primeira instância, para a distribuição de novos produtos e serviços, tais como: fotos e vídeos pornográficos que poderiam ser vistos em mídias analógicas, como a televisão e, digitais, como na internet, revistas de entretenimento adulto, serviços de telessexo, sexo via internet, anúncios de acompanhantes ou de massagistas em jornais e sites da web.
Inicialmente, a profusão de produtos e serviços foi acarretada por uma apropriação instrumental dos media, atrelada às tentativas de expansão das indústrias do sexo, principalmente a pornografia (BERNSTEIN, 2007). A consequência desse processo foi a ampliação do diálogo com outros setores da economia “tais como cadeias hoteleiras, turismo, operadoras de telefonia de longa distância, companhias de cabos e tecnologia de informação, criando lucros crescentes para os empresários” (BERNSTEIN, 2007, p. 13). Posteriormente, as transformações proporcionadas pelo uso estratégico dos meios de comunicação afetaram a própria paisagem das trocas comerciais sexuais, revelando a mútua implicação entre dispositivos midiáticos e comércio de sexo e erotismo.
Um esboço desse cenário é oferecido por Elizabeth Bernstein (2007), que evidencia como a distribuição e o consumo de material erótico e pornográfico por meio de fitas cassetes, CD-ROM e DVDs, que podiam ser comprados ou alugados em lojas especializadas, aumentaram tanto a lucratividade das indústrias quanto o acesso a esses bens. Segundo a autora, tal processo foi sendo estabelecido paulatinamente e promovendo maior familiaridade com conteúdo sexual explícito, em concomitância com o crescimento das vendas de vídeocassetes e aparelhos com leitores de CD e DVD. A migração dessas produções para a televisão a cabo deu mais um passo na ampliação de seu consumo, promovendo sua parcial aceitação social (BERNSTEIN, 2007).
O diagnóstico apresentado por Bernstein (2007) evidencia a mútua influência entre tecnologias de comunicação e distribuição e consumo de produtos e serviços eróticos e sexuais. Sem avançar na explicação de como esses processos se instauraram, a autora nomeia dois fatores principais: de um prisma, há o barateamento e popularização de aparelhos de televisão, vídeo cassetes e leitores de CD e DVD, que passaram a povoar as residências; de outro, existe uma expansão das indústrias a partir de sua migração para plataformas acessíveis à maioria da população.
Segundo Bernstein (2007), a consequência mais direta desse processo se encontra na busca do entretenimento erótico, que se ampliou e se diversificou em linhas tecnológicas, espaciais e sociais. As alterações provocadas atingiram também as condutas de trabalhadoras e clientes, principalmente no que tange ao viés afetivo das ocupações, ampliando a oferta de uma “autenticidade demarcada”, que consiste na performance mediada de genuína conexão física e emocional (BERNSTEIN, 2007). A privatização do consumo erótico se destaca, uma vez que promove uma “ética sexual recreativa” (BERNSTEIN, 2007) – desdobramento direto da inserção de tecnologias de informação e comunicação nos mercados.
A internet, media que tem recebido grande atenção nos estudos sobre mercados do sexo, é reconhecida como responsável pela alteração da estruturação dos serviços eróticos e sexuais, ampliando as oportunidades de atuação: ela proporciona tanto novos ramos de comércio de sexo (tais como chats eróticos e práticas sexuais através de webcam), quanto renovadas possibilidades de divulgação de conteúdo e propagandas para as diversas trabalhadoras (JONES, 2015). Outras duas importantes transformações, para Angela Jones (2015), são as possibilidades de aumento de lucro tanto de empresários do ramo quanto de indivíduos autônomos e as renovadas formas de produção e distribuição de conteúdo.
A pornografia é o ramo dos mercados do sexo mais abordado quando se trata de pensar a influência da internet. De acordo com Feona Attwood (2007, 2010), o pornô foi completamente transformado no seu processo de migração para a web: houve possibilidades de redução de custos para a produção e distribuição de vídeos; uma diversificação das expressões de sexualidade, principalmente às relacionadas a subculturas (com atrizes e atores fora dos padrões convencionais e práticas sexuais de nicho); a ampliação de pequenas produtoras e cineastas independentes, que passaram a agenciar pessoas com pouca ou nenhuma experiência na pornografia; a estética das películas foi alterada e outros ângulos do sexo foram aproveitados (e não somente a filmagem da genitália e seios femininos e o orgasmo masculino), diversificando as imagens distribuídas.
Outro importante fator da intensa influência dos meios de comunicação nos mercados do sexo é a possibilidade de desenvolver a intimidade por meio dos dispositivos midiáticos, que forneceram às trabalhadoras e aos clientes novas possibilidades de trocas eróticas. Esse é o caso de atividades desenvolvidas por meio de computadores ligados à internet, e também das interações sexuais estabelecidas por telefone. A interlocução mediada permitiu que a troca de sexo por dinheiro não se restringisse aos encontros presenciais, e pudesse ser realizada por meio de outros media proporcionando um novo leque de serviço.
É possível delinear modalidades específicas de sexo e erotismos comerciais mediados por dispositivos tecnológicos-comunicativos: de meados do século XIX, quando as mídias impressas passaram a ser usadas em larga escala (KENDRICK, 1995), até o momento atual, no qual a internet está em plenos uso e expansão, viu-se surgir pelo menos três modalidades de serviços sexuais midiatizados: a pornografia, o disque-sexo e os chats/cammings5 eróticos. O aparecimento de outras tecnologias ou mesmo o avanço das antigas transformaram a paisagem desses ramos, abrindo espaço para renovadas possibilidades de produção, distribuição e consumo.
Conforme os meios de comunicação se tornaram parte integrante e essencial desses mercados, eles fundamentaram e consolidaram uma série de práticas sexuais mediadas tecnologicamente – que só foram possíveis a partir do advento das tecnologias –, e que passaram a ser largamente procuradas e realizadas no cotidiano. É exatamente na passagem do uso das mídias em função de determinadas finalidades para o momento em que elas passam a direcionar e formatar as interações comerciais erotizadas que se encontra o processo de midiatização dos mercados do sexo.
O fenômeno denominado midiatização diz respeito a um meta-processo que abrange um complexo rearranjo das interações comunicativas que transcorrem no âmbito de dispositivos tecnológicos. Trata-se, sobretudo, de mudanças “sócio-culturais-midiáticas-comunicativas” (HEPP, 2013) atreladas ao espraiamento e à onipresença dos meios de comunicação, e relacionadas às alterações nos formatos simbólicos e modos de comunicação mediada.
A midiatização procura capturar dois processos distintos: a) os modos através dos quais a realidade é construída por meio das interações comunicativas mediadas; e b) como as características específicas de certos dispositivos condicionam a edificação da realidade social através da comunicação (COULDRY; HEPP, 2013). Essas duas entradas refletem as consequências gerais ensejadas por múltiplos processos de mediação e as transformações que sofrem mediante o advento de variadas tecnologias – incidindo na correlação entre os diversos media e as mudanças comunicativas e socioculturais.
Avançando na compreensão do fenômeno, é possível qualifica-lo, conforme José Luiz Braga (2007), como um “processo interacional de referência”, que passa progressivamente a ser parâmetro central e prevalecente para a organização das interações em sociedade. De acordo com o autor, a midiatização trata do deslocamento entre um momento denominado “sociedade dos meios” (no qual os media teriam autonomia relativa em relação aos outros campos), para um estágio no qual a cultura da mídia se converte em referência para a edificação da estrutura “sócio-técnica-discursiva”, afetando vários níveis de organização do social. Juntamente com processos interacionais estabelecidos (a oralidade e a escrita), os processos midiáticos passam a definir padrões de comunicação e interação.
Considerando que os mercados do sexo sofreram amplas transformações ao longo do processo de sua midiatização, é possível perceber a passagem de um momento pré-midiático (em que começaram a se desenvolver), para outro no qual as mídias consideradas de massa despontaram; e culminando, por fim, no momento presente, em que as mídias digitais delineiam o horizonte. Tais alterações incidiram diretamente em quatro aspectos desses mercados, reconfigurando sua organização: a) ampliação dos serviços oferecidos; b) novas modalidades de agenciamento apareceram; c) aumento nos trânsitos entre os diversos ramos; e d) aparecimento de outra estratégia de diferenciação das atividades sexuais e eróticas.
Reestruturações dos mercados do sexo
A primeira consequência do processo de midiatização dos mercados do sexo é a diversificação do entretenimento adulto, possibilitada a partir do advento de determinados meios de comunicação, dentre os quais a imprensa (as revistas e jornais), a televisão (principalmente a cabo) e mais recentemente a internet. Serviços eróticos mediados por tecnologias passaram a ser oferecidos, tais como: contos pornográficos publicados em livros e jornais e imagens de nudez (fotos e ilustrações) foram produzidos e passaram a ser distribuídos, devido à popularização das máquinas de impressão e da fotografia (KENDRICK, 1995); o aparecimento de revistas especializadas em conteúdo adulto, principalmente a Playboy, em 1953; a reestruturação da pornografia a partir de sua interlocução com o cinema, a televisão e a internet; o inicio do disque-sexo, em 1980, nos Estados Unidos posteriormente espraiado pelo mundo (GUIDROZ; RICH, 2010); eclosão de chats online comerciais com finalidades eróticas e a atividade de camgirl.
Dentro de cada um desses ramos, existem clivagens que correspondem a: produção e distribuição dos conteúdos, que podem ser em larga escala, encabeçadas por empresas, ou em procedimentos artesanais manufaturados por indivíduos com pouca ou nenhuma estrutura organizacional e comercial; divisões quanto às práticas eróticas/sexuais apresentadas/realizadas, voltadas ou para penetração anal/vaginal e orgasmo (o mainstream) ou para fetiches diversos e BDSM. Esses processos são condicionados pelas mídias empregadas, ocasionando o uso de múltiplos dispositivos, dependendo do produto/serviço comercializado.
A segunda transformação relacionada à midiatização foi o aparecimento de novas relações de trabalho. Nesse universo sempre houve serviços oferecidos de modo autônomo ou mediados por agenciadores diversos (cafetões/cafetinas, olheiros na pornografia, contratadores nas agências de acompanhantes, etc.). No contexto de midiatização ocorreu uma expansão das possibilidades de trabalhos independentes (CHAPKIS, 1997; BERNSTEIN, 2007) devido à facilidade de divulgação dos serviços oferecidos: houve uma ampla difusão de anúncios de prostitutas, acompanhantes, massagistas e call girl em páginas amarelas de jornais, no interior de revistas especializadas (CHAPKIS, 1997; ALTMANN, 2001) e, contemporaneamente, na internet (em sites de distribuição de pornografia e redes sociais).
Muito embora os meios de comunicação proporcionem um público amplo para os anúncios das profissionais do sexo, os agenciadores continuam atuando, tanto à moda antiga quanto a partir de uma nova estrutura: cafetões e cafetinas tradicionais coexistem com divulgadores de serviços sexuais/eróticos no Twitter (postam fotos e contatos das mulheres e também promovem hashtags diárias para estimular a produção de conteúdo erótico); caça-talentos da pornografia, que buscam novas atrizes e atores em redes sociais e ambientes online de produção e distribuição de conteúdo amador; sites especializados, que atuam como ambiente de hospedagem de salas para camgirls ou que reúnem e publicam vídeos pornográficos caseiros; agências de modelos alternativas na internet6.
O terceiro aspecto de reestruturação decorrente do processo de midiatização dos mercados do sexo é a migração de pessoas que trabalham em ramos de sexo comercial presencial para dispositivos midiáticos, almejando alcançar objetivos diversos. Muitas prostitutas que trabalhavam nas ruas, em bordéis e hotéis e também strippers passaram a atuar como call girls (FLOWERS, 1998; GUIDROZ; RICH, 2010) e camgirls (SILVA, 2015; JONES, 2015), a fim de diversificar os serviços oferecidos e aumentar a lucratividade (como será discutido adiante, as modalidades de sexo comercial mediado tecnologicamente são mais rentáveis, principalmente se comparados à prostituição de rua).
A consequência mais direta desse trânsito é a intensificação da circulação de trabalhadoras por vários ramos: a pesquisa etnográfica desenvolvida por Wendy Chapkis (1997) demonstrava os fluxos dentro dos serviços sexuais, centrados sobretudo nas diversas formas de prostituição (na rua, em janelas, como acompanhantes); em relação à pornografia, as atrizes também costumavam circular por outros serviços (ou elas haviam começado a carreira em um setor de sexo comercial e migraram para o pornô ou o contrário). A investigação de Amy Flowers (1998) revela que muitas mulheres que atuavam em outras atividades, principalmente na prostituição e no striptease, também trabalhavam em empresas de disque-sexo ou individualmente como call girl. No universo das camgirls, os deslocamentos são amplos (SILVA, 2015; BLEACKLEY, 2014): muitas começaram como garotas de programa e atrizes pornográficas e passaram a ser webcam models à medida que a prática de camming se tornou lucrativa.
A quarta consequência do processo de midiatização dos mercados do sexo são as alterações nos modos de delimitação das posições dos sujeitos que oferecem sexo/erotismo em troca de dinheiro, colaborando para o desenvolvimento de novas fronteiras entre as distintas atividades e aprofundando as desigualdades instauradas nesses espaços. Nesse contexto, a prostituição aparece como a atividade mais estigmatizada, principalmente quando se trata de abordar as dificuldades físicas e morais envolvidas na troca de sexo por dinheiro, sendo situada como ponto de partida das distinções (CHAPKIS, 1997; FLOWERS, 1998; JONES, 2014).
Tipicamente, as estratégias acionadas pelas trabalhadoras de múltiplos ramos para se distanciar da prostituição (e de seu consequente estigma) são: a) definir o trabalho como hobby e diversão, em oposição a quem depende da prostituição como meio de subsistência (e por consequência, necessita do dinheiro pago pelos clientes). Em um extremo, faz-se sexo por prazer, enquanto, no outro, o sexo é uma forma de sobrevivência (CHAPKIS, 1997); b) o valor cobrado por programa influencia na demarcação de fronteiras entre as posições no mercado. Quanto mais caro o serviço oferecido, mais valor moral agrega à ocupação; c) o nível educacional da mulher também a diferencia das prostituas de rua; d) existe a separação entre aquelas que trabalham por conta própria e as que dependem de cafetões e cafetinas; e) a dicotomia estabelecida entre simular e fazer sexo (FLOWERS, 1998; JONES, 2014). Inclusive em determinados estabelecimentos que promovem a troca de sexo por dinheiro, tais como boates e bordéis, há tentativas de dissolver os papéis de prostituta e cliente, com o objetivo de melhorar a imagem do estabelecimento e aumentar a procura das atividades oferecidas por ele (FRANK; CARNES, 2010).
No contexto da midiatização dos mercados do sexo emerge uma nova estratégia de diferenciação entre as atividades, que corresponde à defasagem entre ter contato corporal ou somente mediado com os clientes. Contudo, desta primeira divisão se engendra uma segunda, qual seja: a existência de um sexo qualificado como real (em presença) e de outro compreendido como simulado (mediado tanto pela câmera e transmissão televisiva quanto pelo computador conectado à internet). A criação de uma personagem passa a ser significativa nesse contexto, na medida em que as interações mediadas são passíveis do encobrimento da identidade, dos aspectos corporais e do desejo. Essa realidade pode ser percebida nas práticas desenvolvidas por call girls e camgirls e, em alguma medida, por atrizes pornô.
As call girls, para Katleen Guidroz e Grant Rich (2010), comercializam fantasia, em oposição à venda de sexo. De acordo com suas entrevistadas, no disque-sexo as personas criadas por elas “discutem sexo pelo telefone” ou “conversam sobre sexo”: nesse sentido, trata-se de imaginação, porque nenhuma delas tocam os corpos dos clientes ou têm contato com genitais. Os autores afirmam que, em suas conversas com as call girls, o fato de trabalharem vestidas era um aspecto em relevo, em oposição a outros serviços eróticos nos quais as mulheres permaneciam nuas. Na compreensão de Guidroz e Rich (2010), esse conjunto de discursos é parte de um conjunto de estratégias de manutenção de uma “identidade positiva” mesmo estando em uma atividade estigmatizada. A distinção do disque-sexo para outros ramos eróticos comerciais é realizada por meio da ênfase no lucro das trabalhadoras: ganha-se mais nessa função, principalmente porque ela envolve um conjunto de aparatos tecnológicos e gerenciais para ser realizada.
Seguindo a mesma linha argumentativa, Flowers (1998) inicia seu livro sobre disque-sexo afirmando que o serviço é proporcionado pela “desencarnação da intimidade” e “fabricação de fantasia”, consequências de sua mediação tecnológica (permitindo uma interação independente da copresença). As linhas de disque-sexo estão permeadas por “personagens” que promovem uma sexualidade virtual. Ao longo de sua pesquisa, a autora demonstra que presença e ausência são acionadas nos discursos de suas entrevistadas, e aparecem, sobremaneira, no momento em que elas tentam diferenciar seu trabalho de outros serviços eróticos: a interação mediada permite que não haja exposição física do corpo e limita as possibilidades de sofrer violência e contrair doenças, facilita a dissimulação da identidade pessoal e permite a inexistência de contato corpóreo com os clientes.
Se as call girls afirmam oferecer apenas conversa sobre sexo, as atrizes pornográficas se distanciam da ideia de “fazer sexo” ao declarar que “performam o sexo para a câmera”7: dessa forma, a mediação da câmera permite a realização de algo que é menos-que-sexo. Essa estratégia discursiva é acionada, segundo Sharon Abbott (2010), para facilitar a permanência das atrizes nesse ramo, sem se sentirem alvos de preconceito. Ao contrário das prostitutas que possuem contato físico com clientes, as atrizes pornô contracenam com seus colegas de trabalho para produzirem um filme de ficção.
As alterações tanto na produção quanto na distribuição da pornografia proporcionadas pela internet, evidenciadas por Abbott (2010) e Attwood (2010), tornaram ainda mais difícil classificar as produções do pornô online como modalidades de sexo comercial. Uma grande quantidade de vídeos são realizados e distribuídos sem cobrança financeira, elaborados pelas próprias atrizes e modelos da indústria; outrossim, muitas dessas produções não envolvem sexo a dois, mas apenas atrizes e modelos se masturbando, usando vibradores e brinquedos e interagindo com o próprio corpo. Essa conjuntura facilita na distinção entre o sexo real (presencial) e a experiência erótica mediada.
Apesar da escassa literatura sobre a atividade de camgirl, alguns autores já demonstraram que a dicotomia entre fazer sexo e encenar o sexo perpassa esse universo. Na pesquisa de Weslei Silva (2015) sobre o cenário brasileiro de webcam models, suas nove entrevistadas procuram se afastar do sexo e da prostituição, afirmando suas práticas como strip-tease virtual. Alguns fatores coadunam para que essa estratégia de diferenciação seja possível: elas afirmam que criam personas para atuarem na webcam, fundamentando uma interação fantasiosa com seus clientes (não são elas mesmas diante da câmera); há também uma ênfase no papel dos mediadores tecnológicos, câmera e computador, que impossibilitam o contato corpóreo; por fim, afirma-se que a internet permite uma simulação de contato e intimidade que não tem a mesma potência que as relações estabelecidas face a face.
No contexto internacional da atividade de camgirl, também é enfatizado que por meio de webcam não há sexo, mas somente uma experiência erótica mediada. Paul Bleakley (2014) revela que as webcam models afirmam produzir “materiais pornográficos customizados” e não praticar cibersexo, apesar de estarem em contato com sua audiência e ser ela quem define as práticas exibidas. De acordo com o autor, os consumidores buscam compartilhar uma intimidade com as mulheres na câmera; contudo, elas pontuam que essa intimidade seria apenas uma simulação produzida por aparatos tecnológicos. Para as mulheres nesse ramo, a atividade é baseada somente na exibição do corpo. Bleakley (2014) explica que as fronteiras do engajamento sexual são desafiadas pelas camgirls, que disputam a ideia de sexo para se afastarem dela. São exatamente as mediações tecnológico-comunicativas que permitem a distinção entre sexo e erotismo mediado, já que o “sexo real” estaria atrelado ao contato físico, enquanto que experiência erótica mediada estaria relacionada à encenação do sexo.
Além de todas as estratégias acionadas existe, conforme evidenciam Chapkis (1997) e Angela Jones (2017), ideias de segurança e privacidade associadas às atividades que envolvem sexo mediado por tecnologias, tanto do ponto de vista das trabalhadoras como dos consumidores. O afastamento físico promovido pelos dispositivos midiáticos é compreendido como uma possibilidade de consumo de sexo e erotismo sem a eventual possibilidade de contaminação por doenças sexualmente transmissíveis e, especialmente, afastado da violência sofrida na rua; ademais, permite que as identidades não precisem ser reveladas e que os contatos possam ser estabelecidos apenas indiretamente.
Considerações finais
O presente texto buscou delinear o processo de midiatização dos mercados do sexo, revelando alguns aspectos gerais relevantes na passagem de um momento pré-midiático do comércio de sexo e erotismo para outro no qual ele passa a ser mediado por tecnologias de comunicação (tendo sua paisagem amplamente alterada). Longe de abarcar a completude do meta-processo em curso, esta reflexão exploratória tratou de delinear um mapa para futuras investigações, que possa estabelecer conexões profícuas entre as pesquisas sobre mercados do sexo e os estudos de midiatização, proporcionando uma compreensão sobre a imbricação desses universos teóricos.
Apesar de os mercados do sexo serem multifacetados, dificultando apreensões integrais de sua organização, a midiatização é perceptível em seu interior devido ao aumento progressivo da apropriação de tecnologias de comunicação em grande parte das atividades ofertadas, seja em maior ou menor grau. Compreender qual a efetiva participação das mídias e suas consequentes alterações (em grande ou pequena escala) foi um dos principais desafios para a empreitada investigativa delineada no presente texto. Ademais, tal investimento precisa se debruçar sobre os conjuntos de transformações proporcionados tanto nos ramos face a face (nos quais há poucas tentativas de compreender o papel dos dispositivos midiáticos) quanto nos serviços mediados por tecnologias (que já possuem amplos esforços analíticos, principalmente em relação à internet).
O estudo do processo de midiatização dos mercados do sexo revela sua pertinência e importância tendo em vista suas duas principais contribuições: primeiro, relaciona o desenvolvimento e a apropriação temporal e espacial de determinadas mídias em íntima relação com o sexo e o erotismo comercial (transformando alguns dos ramos e proporcionando o aparecimento de outros); segundo, revela a interrelação dos diversos meios de comunicação que incidem em variadas atividades, enfatizando o complexo conjunto de dispositivos midiáticos que condicionam processos de mediação tecnológica das interações eróticas/sexuais (promovendo uma reflexão integral, que supera a compreensão de mídias em isolado).
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1
Em pesquisa desse ano divulgada pela Pornhub.com, maior distribuidor de vídeos pornográficos e outras produções eróticas, foram reveladas as transformações nos gostos sexuais da população em íntima conexão com as mudanças na pornografia e no sexo comercial. Tanto em relação aos novos serviços disponíveis online quanto à renovação estética do pornô, a indústria do sexo colaborou largamente com a busca por variados fetiches e representações de sexo alternativas. Acessado em: https://www.pornhub.com/insights/10-years.
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2
Existe uma diferença entre indústrias e mercados do sexo: enquanto as primeiras são caracterizadas por sua organização empresarial, os segundos abrigam uma fatia maior dos serviços sexuais comerciais, abrangendo aqueles desenvolvidos de modo mais artesanal e sem estruturação formal. Além disso, compreende os diversos tipos de trocas possíveis nesse universo e não somente o intercâmbio de dinheiro (PISCITELLI, 2016).
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3
A literatura sobre mercados do sexo é formada por um conjunto de investigações, a maior parte composta por estudos de caso empíricos, focadas em diferentes ramos e serviços oferecidos. A complexidade e diversificação desses mercados, aliada à pouca estruturação formal, dificulta estudos globais sobre esses universos.
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4
Trata-se de textos sobre a vertente mainstream desses mercados, isto é, a fatia heterossexual na qual mulheres são as trabalhadoras.
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5
Trata-se de um serviço oferecido predominantemente por mulheres, mas também por homens e transexuais, que consiste na exibição da nudez e práticas sexuais em frente a webcam em troca de dinheiro. Os sujeitos que trabalham nesse ramo são conhecidos como camgirls e camboys.
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6
As observações realizadas neste trecho foram retiradas em pesquisa etnográfica em desenvolvimento pela autora sobre as transformações mais recentes nos mercados do sexo.
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7
Chapkis (1997) traz um depoimento de uma atriz pornô chamada Nina Hartley, que explica a diferença entre fazer sexo (caso das prostitutas) e representar o sexo (a pornografia): a principal habilidade das atrizes é ser fotogênica diante da câmera, principalmente porque elas “performam sexo para a câmera”; sua função é “fundir a realidade do sexo para a câmera com a intensidade do sexo real” (CHAPKIS, 1997, p. 33).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2018
Histórico
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Recebido
05 Abr 2017 -
Aceito
23 Ago 2017