Resumo
As primeiras décadas do século XXI foram marcadas por uma expansão significativa de zonas econômicas especiais (ZEE) no continente africano, haja vista que estas saltaram de 20 no ano de 1990 para 237 no ano de 2020, revelando a preocupação dos Estados africanos em promover uma nova rodada de industrialização. Partindo dos conteúdos conceituais e históricos contidos na Teoria dos Circuitos da Economia Urbana - desenvolvida por Milton Santos na década de 1970 -, este artigo busca caracterizar o processo de expansão dessas ZEE bem como investigar em que medida esse processo é responsável por uma consolidação do circuito superior da economia urbana nas cidades africanas. A metodologia da pesquisa está estruturada em uma abordagem exploratória que contou com o levantamento, sistematização e análise de dados qualitativos e quantitativos obtidos em fontes secundárias. Espera-se, com esse estudo, contribuir para os debates científicos interdisciplinares acerca da presença das ZEE nos territórios do Sul Global, além de contribuir para os debates geográficos postos na interface entre Geografia Econômica, Urbana e Regional.
Palavras-chave:
zonas econômicas especiais; circuitos da economia urbana; circuito superior; industrialização; continente africano
Abstract
The first decades of the 21st century were marked by a significant expansion of Special Economic Zones (SEZs) on the African continent, as their number increased from 20 in 1990 to 237 in 2020, revealing the concern of African states to promote a new wave of industrialization. Building upon the conceptual and historical content contained in the Theory of Urban Economy Circuits - developed by Milton Santos in the 1970s - this article seeks to characterize the expansion process of these SEZs as well as investigate to what extent this process is responsible for the consolidation of the upper circuit of urban economy in African cities. The research methodology is structured around an exploratory approach involving collecting, systematizing, and analyzing qualitative and quantitative data obtained from secondary sources. This study will likely contribute to interdisciplinary scientific debates regarding the presence of SEZs in territories of the Global South and to geographical debates at the interface between Economic, Urban, and Regional Geography.
Keywords:
Special Economic Zones; urban economic circuits; upper circuit; industrialization; African continent
Résumé
Les premières décennies du XXIe siècle ont été marquées par une expansion significative des Zones Économiques Spéciales (ZES) sur le continent africain, leur nombre étant passé de 20 en 1990 à 237 en 2020, révélant ainsi la préoccupation des États africains de promouvoir une nouvelle vague d’industrialisation. En partant des contenus conceptuels et historiques contenus dans la Théorie des Circuits de l'Économie Urbaine - développée par Milton Santos dans les années 1970 -, cet article vise à caractériser le processus d'expansion de ces ZES ainsi qu'à examiner dans quelle mesure ce processus est responsable de la consolidation du circuit supérieur de l'économie urbaine dans les villes africaines. La méthodologie de la recherche est structurée autour d'une approche exploratoire basée sur la collecte, la systématisation et l'analyse de données qualitatives et quantitatives obtenues à partir de sources secondaires. Cette étude espère contribuer aux débats scientifiques interdisciplinaires concernant la présence des ZES dans les territoires du Sud Global, ainsi qu'aux débats géographiques situés à l'interface entre la géographie économique, urbaine et régionale.
Mots-clés:
zones économiques spéciales; circuits de l'économie urbaine; circuit supérieur; industrialisation; continent africain
Introdução
Em julho de 2022 foi iniciada a construção de Dongo Kundu, uma zona econômica especial (ZEE) localizada nas adjacências do Porto de Mombaça, na dinâmica porção meridional do território queniano. Marcando a parceria estabelecida entre o governo do país africano e a Japan International Cooperation Agency (JICA), do Japão, essa ZEE terá aproximadamente 12 quilômetros quadrados que serão ocupados não apenas por um parque industrial, mas também por um porto - articulado a uma área de livre comércio - e por áreas residenciais e comerciais (Special Economic Zones Authority, 2024).
A criação de uma zona econômica especial não é um fato inédito na história desse país da África Oriental, que apresentava, até 2021, um total de 61 ZEE em seu território. Esse dado decorre do fato de que, desde 2008, os sucessivos governos quenianos vêm promovendo uma agenda de industrialização que integra o Kenya Vision 2030, um programa de desenvolvimento econômico de médio e longo prazo que tem como um de seus objetivos centrais a industrialização do país até o ano de 2030 (Kenya Vision 2030, 2024).
Desde o início do século XXI, as zonas econômicas especiais vêm sendo implementadas com cada vez mais frequência não apenas no Quênia, mas também na maior parte do continente africano, que passou de um total de 20 ZEE em 1990 para 237 em 2021 (Rodríguez‐Pose et al., 2022). Essa expansão só pode ser compreendida à luz de um conjunto de transformações pelas quais o continente vem passando ao longo das últimas décadas, transformações essas que pavimentaram diversas análises estruturadas nas perspectivas da “Afro-euforia” (Mkandawire, 2014) e do “Afro-Otimismo” (Mahajan, 2009; Moghalu, 2014). Dentre essas transformações, destacam-se: a elevação das taxas de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em um cenário de valorização dos preços das commodities no mercado internacional; a modernização das forças produtivas, especialmente das infraestruturas de transporte e energia; a liberalização das relações de produção, favorecendo a entrada de capitais e investimentos estrangeiros (diretos e indiretos); a ampliação da população urbana e dos investimentos públicos em educação, saneamento básico e serviços de saúde; e a estabilização política na maior parte do continente, com marcada tendência à democratização (Santos, 2022).
Diante dessa conjuntura, a implementação de zonas econômicas especiais integra uma renovada política de industrialização que vem sendo arquitetada pela maior parte dos países africanos nas últimas duas décadas. Essa política viabiliza a atração de empresas altamente capitalizadas - e integradas à múltiplas cadeias de valor global - para que atuem dentro das ZEE em função das vantagens econômicas que essas oferecem, como: acesso às infraestruturas e serviços entendidos como eficientes, acesso fácil à matéria-prima e mão de obra barata (e ajustadas às demandas de qualificação) e isenções fiscais. Muitos desses aspectos, inclusive, fazem parte da definição dessas zonas que, segundo a United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD), são “áreas geograficamente delimitadas onde o governo promove atividades industriais por meio de incentivos fiscais e não-fiscais, além de oferecer infraestruturas e serviços especiais” (UNCTAD, 2019, p. XII, tradução do autor).
A implementação de ZEE, sobretudo nos territórios do Sul Global, geram impactos econômicos nas mais diferentes escalas geográficas. Considerando as cidades desses países, Milton Santos explica como a chegada de grandes empresas pode ser interpretada também como a entrada de um vetor externo de modernização que acaba por rearranjar o espaço urbano e a sua economia. Desse rearranjo surgem então dois circuitos econômicos, distintos e complementares, que estabelecem múltiplas relações, tanto de cooperação quanto de conflito: o circuito superior, formado pelas empresas de maior capitalização, maior densidade tecnológica e que geralmente possuem uma abrangência nacional ou internacional; e o circuito inferior, formado por empresas de menor capitalização, menor densidade tecnológica e cuja abrangência das atividades se dá principalmente nas escalas local, regional e, eventualmente, nacional (Santos, 2004).
Historicamente, prevalece na economia urbana dos países africanos uma ampla variedade de atividades manufatureiras, de comércio e serviços que operam, na sua maior parte, segundo baixos níveis de capitalização e dentro de condições de informalidade que atingem em média 82,7% dos homens e 89,7% das mulheres em todo o continente (ILO, 2024). Essas atividades - que serão aqui entendidas como integrantes do circuito inferior - contam com pouco apoio do poder público e respondem às necessidades de trabalho e consumo das populações urbanas (Santos, 2004, 2021).
Na paisagem das multifacetadas cidades africanas, observa-se a predominância de pequenos estabelecimentos manufatureiros, oficinas de reparos, feiras, bazares, mercearias e pequenos mercados. Para além disso, há também o comércio ambulante, feito nas ruas e avenidas, onde homens e mulheres das mais diferentes idades vendem todos os tipos de mercadorias, desde frutas e verduras até produtos elétricos e eletrônicos de “segunda mão”. Bem menos frequente, embora também presente, está aquilo que será entendido neste artigo como o circuito superior, que pode ser identificado por meio da atuação de algumas grandes indústrias, redes de comércio varejista e bancos.
Considerando esse universo complexo da economia política e da economia urbana, pode-se pensar em uma série de questões a serem refletidas e investigadas: como vem ocorrendo a expansão das ZEE no continente africano? quais são as particularidades desse processo segundo aspectos macroeconômicos dos seus diferentes países? quais tipos de atividades econômicas as ZEE têm atraído? o que é oferecido pelos governos dos Estados africanos para atrair em seus territórios as empresas de elevado nível de capitalização e integradas a diversas cadeias de valor global? estariam as economias urbanas africanas diante da consolidação de seu circuito superior, ainda tão pontual, embora poderoso?
Diante desse conjunto de questões, este artigo tem o objetivo de analisar o processo de expansão das zonas econômicas especiais nos países do continente africano. Para além disso, a partir da teoria dos circuitos da economia urbana, desenvolvida por Milton Santos na década de 1970, o artigo também busca compreender o conjunto de transformações de ordem técnica e normativa que vem tornando atrativas parcelas extremamente circunscritas dos territórios africanos para grandes empresas multinacionais que operam nos mais diversos segmentos da produção, especialmente da produção industrial.
A pesquisa que deu origem a este artigo possui uma abordagem exploratória embasada em dados qualitativos e quantitativos obtidos em fontes secundárias. Nesse sentido, foram coletados, sistematizados, analisados e comparados dados referentes aos 38 países africanos que possuíam ZEE em seus territórios até o ano de 2021 (UNCTAD, 2021), com o intuito de construir uma compreensão panorâmica acerca da presença dessas zonas econômicas especiais no continente e da forma como elas - junto aos Estados Nacionais - viabilizam a consolidação do circuito superior da economia urbana nos territórios onde se instalam. Os dados em questão foram obtidos em: (i) artigos científicos e livros, que permitiram construir uma revisão da literatura acerca das ZEE nos campos da economia política e da geografia econômica; (ii) legislações nacionais de países africano que versam sobre a implementação e desenvolvimento de ZEE; e (iii) banco de dados, anuários estatísticos e relatórios setoriais de instituições que apresentam informações relativas à atuação das ZEE nos territórios do continente em questão. Dentre essas instituições, pode-se mencionar, principalmente: The United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD), The United Nations Commodity Trade Statistics Database (UN COMTRADE), The United Nations Economic Commision for Africa (UNECA), The African Development Bank Group (AfDB), a Zona de Livre Comércio Continental Africana, a União Africana (UA), o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), dentre outras instituições.
No próximo item deste artigo serão abordadas as principais características da expansão das ZEE no continente africano considerando algumas de suas particularidades territoriais. No item seguinte será realizada uma análise das ZEE e do perfil das empresas que nelas atuam. Então, na sequência, essa análise ganhará contornos a partir da questão central deste artigo: considerando o recente cenário de expansão das zonas econômicas especiais, estariam as cidades africanas diante de uma consolidação do circuito superior de suas economias urbanas? As Considerações Finais irão resumir o debate construído e apontar caminhos possíveis de investigações futuras.
A expansão das ZEE no continente africano
O abandono das políticas de industrialização por substituição de importações por parte da maioria dos países africanos ocorreu de forma gradual e como consequência da adesão dos seus governos aos Planos de Ajuste Estrutural nos anos 1980 e 1990 (Anyang’ Nyong’o, 1992, Amin, 1992; Watts, 1993). Nesse processo, as forças produtivas dos diferentes territórios do continente passaram a se organizar fundamentalmente em função da produção de gêneros agrícolas e da exploração de recursos naturais visando as exportações para o mercado de commodities. Com isso, tornou-se novamente reduzida a possibilidade de operar uma diversificação produtiva ao mesmo tempo em que se ampliou a dependência da importação de bens industrializados (Santos, 2022).
Contudo, o cenário da economia política no início do século XXI passou a colocar novos objetivos para os governos africanos: ao mesmo tempo em que o preço favorável das commodities no mercado internacional tivesse garantido uma expressiva entrada de divisas para boa parte dos países no continente, a memória econômica recente - de crise e recessão no final do século XX - impôs novamente a necessidade de reduzir a vulnerabilidade comercial por meio da diversificação produtiva, que, por sua vez, seria alcançada através da industrialização. Nesse cenário, as zonas econômicas especiais se consolidaram como o principal instrumento de industrialização no continente nas duas últimas décadas.
Por serem “áreas geograficamente delimitadas”, as ZEE se diferenciam dos “polos de crescimento” e dos “clusters industriais”. Pode-se, ainda, apontar para algumas outras particularidades - tanto normativas quanto técnicas - dessas áreas, como: (i) o estabelecimento de um regime regulatório distinto daquele que opera no restante do território e que, por sua vez, atende objetivamente aos interesses de investidores e empresas estrangeiras; (ii) a atuação de diversas empresas dentro da extensão espacial da ZEE, o que difere essas áreas das chamadas “zonas de uma única fábrica” ; (iii) o estabelecimento de uma unidade de gestão e administração, cujas tarefas incluem a coordenação das atividades na zona, garantindo que as infraestruturas e serviços cheguem às empresas da zona e que haja uma ponte de comunicação entre as empresas da zona e o governo; (iv) uma política fundiária específica que forneça, por exemplo, uma área aduaneira separada ou procedimentos de exportação facilitados; e (v) a oferta de infraestruturas melhoradas que se destinam a apoiar as empresas que operam na zona, incluindo imóveis, rodovias, ferrovias, eletricidade, água e telecomunicações (Baissac, 2011; Bost, 2019).
Haja vista os esforços dos governos dos Estado africanos em atrair para seus territórios grandes empresas operando em altos níveis de capitalização e integradas em diversas cadeias de valor global, essas zonas econômicas especiais podem ser interpretadas como uma manifestação categórica da seletividade espacial do capital (Santos, 2001; Smith, 2001; Harvey, 2005; Castells, 2008), ou ainda como uma manifestação inconteste do “uso corporativo do território” (Santos, 2001).
Entendida como um instrumento de desenvolvimento industrial, as ZEE começam a ganhar força no contexto da reestruturação produtiva dos anos 1970 (Harvey, 1992), embora até os anos 1980 elas tenham sido implementadas de forma esporádica. É nos anos 1990 e 2000, com a difusão e consolidação do neoliberalismo, que elas começaram a se propagar com mais tração, de modo que, em 2019, já havia 5,4 mil ZEE implementadas e em funcionamento no mundo, enquanto esse número era de apenas 80 em 1975 (UNCTAD, 2019).
A expansão das ZEE ocorre de forma perceptível em todo o mundo, mas sobretudo entre as economias do Sul Global. Pressionados a atrair investimentos externos, especialmente para o fomento de atividades industriais, diversos governos do outrora chamado “mundo em desenvolvimento” buscam implementar as ZEE como forma de induzir a diversificação produtiva e o crescimento econômico. As experiências da China e dos Tigres Asiáticos inspiraram o desenvolvimento dessas zonas em diversos países na própria Ásia, na América Latina e na África (Baldwin, 2011; Iammarino; Mccann, 2013).
Diante desse cenário, no ano de 2020, a África contava com aproximadamente 237 ZEE estabelecidas por lei, o que equivalia a aproximadamente 4% do total mundial. A implementação desse instrumento é recente no continente e, atualmente, 38 dos 54 países africanos possuem ZEE. Nesse sentido, Andrés Rodríguez-Pose e outros pesquisadores (Rodríguez‐Pose et al., 2022) apresentam um breve panorama da expansão das ZEE na África, chamando atenção também para algumas particularidades segundo os diferentes territórios do continente:
O número de ZEE no continente aumentou de apenas 20 em 1990 para 237 em 2020. Embora a África continue a ser o continente com a maior percentagem de países sem ZEE (16 no total), o ritmo de desenvolvimento das ZEE ocorreu a uma velocidade vertiginosa na década de 2010, quando 40% de todos os programas ZEE africanos foram criados, em parte graças ao maior envolvimento de países como a China no processo. A recente proliferação de ZEE pode ser atribuída a duas tendências. Por um lado, países que já tinham programas ZEE maduros, como Egito, Etiópia, Marrocos e África do Sul, buscaram estratégias de expansão e diversificação para seus portfólios [...]. Por outro, novas ZEE estão em desenvolvimento em países como a República Democrática do Congo, Botswana e Guiné, com o objetivo de impulsionar o investimento estrangeiro direto (IED) e facilitar atualizações industriais. ZEE na África estão se tornando uma das ferramentas de política industrial dominantes, já que o número de ZEE atualmente planejado (53) continua crescendo. (Rodríguez‐Pose et al., 2022, p. 459-460).
Assim, os autores evidenciam que os países africanos estão em momentos variados no que diz respeito ao histórico de incorporação das ZEE, e isso se traduz em um espectro que vai desde países que possuem programas já considerados maduros até países que não deram início a fase de planejamento das ZEE. No entanto, o que fica evidente é que esse instrumento de industrialização passa a se tornar mais difundido no continente a partir da década de 2010: das 20 ZEE no continente em 1990, passou-se para 155 em 2006, 180 em 2008 e 237 em 2020 (UNCTAD, 2021).
Deve-se salientar que a cartografia das ZEE no continente é marcadamente desigual. Considerando as cinco macrorregiões africanas, observa-se que a África Oriental, sozinha, abriga 52% de todas as ZEE africanas, seguida pela África Ocidental (23%), Norte da África (9%), África Meridional (8%) e, por fim, a África Central (8%). Considerando apenas as ZEE já em funcionamento (e desconsiderando aquelas que estão em construção), os países africanos com maior concentração de ZEE são o Quênia (61), seguido por Nigéria (38), Etiópia (18), Egito (10), Camarões (9), Botsuana, África do Sul, Tanzânia e Uganda (8 em cada país) e Marrocos (6) (Rodríguez‐Pose et al., 2022).
Diante da expansão das ZEE no continente, diversas análises vêm sendo elaboradas - sobretudo no campo da economia política - atentando aos impactos que esse instrumento de desenvolvimento industrial vem gerando nas dinâmicas macroeconômicas dos países africanos. Contudo, Rodríguez‐Pose et al. (2022) apontam que uma frente de investigação ainda pouco explorada diz respeito aos impactos dessas ZEE na economia urbana dos países africanos.
Nesse sentido, a teoria dos circuitos da economia urbana, desenvolvida por Milton Santos a partir da década de 1970, oferece, mais uma vez, um conjunto de conteúdos conceituais e históricos que permitem a construção de um percurso analítico voltado à compreensão das complexas relações que as diversas atividades econômicas estabelecem nas cidades africanas.
A economia urbana diante da expansão das ZEE
As economias das cidades africanas guardam em si um universo inumerável de aspectos particulares que, por sua vez, foram construídos ao longo do processo histórico que construiu os países e as regiões das quais fazem parte. Há também um conjunto de aspectos comuns na forma como essas economias urbanas se organizam, não apenas no continente africano como em todo Sul Global. Assim como as particularidades, os aspectos comuns também são produtos do processo histórico e dizem respeito às formas com os territórios africanos, latino-americanos e asiáticos foram inseridas na Divisão Internacional do Trabalho ao longo dos últimos séculos.
Buscando os caminhos para a construção de uma análise consistente sobre a economia urbana do então denominado “Terceiro Mundo”, Milton Santos desenvolveu a conhecida teoria dos circuitos da economia urbana em sua obra O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos, publicada originariamente em francês (“L’espace partagé: les deux circuits de l’économie urbaine des pays sous-développés”) no ano de 1975. Nas proximidades de seu segundo jubileu, as contribuições conceituais e históricas da obra se mostram bastante vigorosas para auxiliar as investigações acerca da contemporaneidade da economia urbana no continente africano.
De acordo com Milton Santos, a economia das cidades dos países do - outrora - “Terceiro Mundo” poderia ser interpretada a partir da formação de dois circuitos distintos e complementares: o circuito superior e o circuito inferior. A compartimentação da economia urbana nesses circuitos seria gerada justamente a partir da chegada de vetores externos de modernização (e eventualmente diversificação) das forças produtivas. Nesse sentido, para o autor, cada circuito se definiria: (i) pelo conjunto das atividades que realiza; (ii) pelos segmentos da população que a eles se vinculam pela prática do consumo; e (iii) pelas distintas formas de organização e comportamento das atividades econômicas (Santos, 2004).
Por um lado, entendido por Milton Santos como o resultado direto do processo de modernização das forças produtivas, o circuito superior (doravante CS) compreenderia as empresas caracterizadas por possuírem tecnologias de ponta e um elevado grau de organização e capitalização das atividades que realizam, independente do segmento econômico no qual operam. Em função dessas características, essas empresas são capazes de atuar em múltiplas escalas geográficas - desde a regional até a nacional e a internacional - segundo os seus interesses de mercado.
Deve ser destacado também que a utilização de tecnologias de ponta faz com que haja uma tendência de contratação reduzida de mão de obra nessas atividades. Ainda assim, os empregos oferecidos pelas empresas do CS geralmente são assalariados e formais, embora frequentemente opte-se pela terceirização de alguns serviços.
As empresas do circuito em questão se caracterizam também por possuir uma excelente relação com os governos dos países onde se instalam. A partir dessa relação, essas empresas se beneficiam pela oferta de isenções fiscais e pelo melhor acesso às infraestruturas de transporte e telecomunicação, tão necessárias às atividades desse circuito. Em função dessa relação com o Estado, o CS não enfrenta grandes dificuldades de acesso às políticas de crédito realizadas por instituições financeiras públicas e privadas, o que garante a entrada de capital de giro sempre que necessário (Santos, 2004).
Ao mesmo tempo, o CS se caracteriza por ser incapaz de absorver o montante de trabalhadores das cidades africanas, asiáticas e latino-americanas, dando origem, assim, ao circuito inferior (doravante CI). Nesse circuito estão as atividades econômicas de menor capitalização, de organização menos burocrática e que visam atender justamente as demandas de trabalho e consumo das classes sociais de menor poder aquisitivo (Santos, 2004). Esse circuito conta com o trabalho intensivo de seus empregados, com uma marcada flexibilidade no que diz respeito às horas e dias trabalhados ao longo da semana.
No que diz respeito às condições materiais - o meio construído - dessas atividades, observa-se uma baixa realização de estoques de matérias-primas ou mercadorias, haja vista o reduzido espaço físico dos estabelecimentos comerciais, de serviços ou de manufatura. É comum, até mesmo, que as próprias moradias dos trabalhadores sejam os seus locais de trabalho, funcionando como pequenas manufaturas, oficinas ou bazares.
No âmbito da precificação de mercadorias e serviços, observa-se no CI uma frequente possibilidade de negociação de valores, ao contrário do que acontece no CS. Nesse sentido, abre-se espaço, inclusive, para relações mais pessoais entre as partes - vendedor e consumidor -, o que representa um importante ganho econômico para essas atividades (Santos, 2004). Essas “relações mais pessoais”, que operam uma espécie de “marketing orgânico” das relações econômicas, são fundamentais para o CI, especialmente porque suas margens de lucro se dão mais pela unidade do produto ou serviço do que pelo volume total de vendas ou serviços prestados.
É fundamental ressaltar que as relações estabelecidas entre as diferentes atividades econômicas das cidades do Sul Global se dão de forma dialética, de modo que circuito inferior e circuito superior - por mais que possuam características organizacionais bastante distintas - podem estabelecer numerosas dinâmicas de cooperação e conflito no espaço urbano. Esse caráter relacional entre circuitos é expresso na obra de Santos quando ele afirma que há “bipolarização, mas não “dualismo” (Santos, 2004, p. 53). O autor assegura ainda que: “a existência de dois circuitos na economia das cidades é resultado de um mesmo grupo de fatores que, com a preocupação de simplificar, chamamos de ‘modernização tecnológica’. Assim, não há dualismo: os dois circuitos têm a mesma origem, o mesmo conjunto de causas e são interligados” (Santos, 2004, p. 56).
Embora a teoria tenha sido construída ao longo da década de 1970, diversos geógrafos da América Latina vêm revelando, no início do século XXI, o seu vigor interpretativo diante das complexidades e particularidades da economia urbana nos países do Sul Global. Nesse esforço de atualização da teoria, devem ser mencionadas as investigações conduzidas por María Laura Silveira: atenta à centralidade das técnicas, da ciência e da informação na organização do espaço geográfico em tempos de globalização, Silveira revela novas e complexas relações entre os dois circuitos, especialmente em cidades brasileiras e argentinas (Silveira, 2004, 2007, 2015, 2016, 2022). Outros geógrafos latino-americanos vêm contribuindo nesse exercício de atualização da teoria em questão, utilizando-a para estruturar suas análises sobre o dinamismo das atividades comerciais (Iamonti, 2009; Oliveira, 2009; Di Nucci, 2010; Miyata, 2010; Do Carmo, 2021; Antipon, 2019), industriais (Bicudo Junior, 2006; David, 2010; Alencar, 2019) e financeiras (Santos, 2007; Vanucchi, 2009; Da Silva, 2012; Medeiros, 2013; De Paula, 2015). Análises de ordem conceitual sobre a teoria também vem sendo desenvolvidas nos últimos anos (Sposito, 1983; 1999; 2023; Silveira, 2017; Montenegro, 2012).
Embora a maior parte dessas pesquisas tenha sido produzida no universo das cidades latino-americanas, estudos sobre os circuitos da economia urbana em países do continente africano foram publicados recentemente, revelando diversas particularidades nacionais e regionais acerca da organização das atividades econômicas em cidades ganenses (Santos, 2021) e angolanas (Afonso, 2022).
Diante dessa literatura, a expansão recente das zonas econômicas especiais no continente africano surge como uma possibilidade de estudo acerca das transformações pelas quais suas economias urbanas vêm passando. Estariam essas economias diante de uma consolidação de seu circuito superior, que se manifesta ainda de forma tão pontual e seletiva nos territórios?
As Zonas Econômicas Especiais como vetor de consolidação do circuito superior?
A ZEE é um instrumento de desenvolvimento industrial que se traduz, no espaço urbano, em “áreas geograficamente delimitadas onde governos promovem a atividade industrial por meio de incentivos fiscais e não fiscais, provisão de infraestruturas e serviços melhorados” (UNCTAD, 2019, p. XII). Uma vez implementadas, essas “áreas” passam então a atrair empresas altamente capitalizadas, dotadas de modernas tecnologias e que operam, fundamentalmente, na indústria ou em atividades vinculadas a esse setor (como empresas de logística, transporte, finanças, dentre outros). Não apenas no continente africano, mas em todo o Sul Global, os incentivos fiscais e não fiscais, bem como o acesso às infraestruturas e serviços de qualidade revelam, por si só, os esforços que os governos desses Estados fazem para atrair grandes volumes de capitais, especialmente de capitais estrangeiros. Deflagra-se, desse modo, a possibilidade de abertura dos territórios nacionais para vetores externos de modernização e diversificação das forças produtivas, possibilitando, portanto, a criação dos circuitos da economia urbana.
Na medida em que esses vetores adentram e se instalam nas cidades dos territórios africanos, o circuito superior começa a ganhar tônus. As empresas que constituem esse circuito necessitam, dentre outras coisas, acessar a força de trabalho do país - em seu mais amplo espectro de qualificação -, mobilizando, inclusive, fluxos migratórios em múltiplas escalas geográficas se for necessário. No que tange a criação de empregos diretos e formais, os dados coletados pela UNCTAD em 2021 revelam que: 12% das ZEE implementadas no continente geram menos de 1.000 empregos formais; 48,9% geram entre 1.001 e 10.000; 14,2% geram entre 10.001 e 20.000; e 24,4% das ZEE geram mais de 20.001 empregos (UNCTAD, 2021). Estimativas da mesma instituição revelam que as ZEE são responsáveis pela criação de algo entre 1 e 5% do total dos empregos no setor industrial dos países africanos.
Ainda que essas indústrias estejam, em sua maior parte, estruturadas tecnologicamente no uso intensivo de maquinários (Santos, 2004), pode-se observar que em determinados segmentos - como na indústria têxtil - seja mais frequente a geração de empregos formais: na Etiópia, por exemplo, a Bole Lemi Industrial Park, que concentra indústrias de tecido, roupas e couro, gerou aproximadamente 20.000 empregos nos anos seguintes de sua implementação. Outros exemplos bem-sucedidos em termos de geração de empregos diretos foram a Suez Free Zone, no Egito, a Chambishi multi-facility economic zone (MFEZ), na Zâmbia, o Morocco’s Atlantic Free Zone, no Marrocos e a Nigeria’s Calabar Free Trade Zone, na Nigéria (Rodríguez‐Pose et al., 2022).
De modo geral, entende-se que o circuito superior, em muitos casos, é capaz de gerar também um expressivo número de empregos indiretos, na medida em que o desenvolvimento de determinada atividade econômica pode induzir os chamados efeitos de aglomeração (Santos, 2004). No entanto, no que tange a questão da geração indireta de empregos a partir da implementação de ZEE, alguns estudos vêm mostrando resultados distintos globalmente: enquanto Scott Sanders e David Brown revelam que, nas Filipinas, essas zonas induziram a criação de empregos em áreas próximas, ao mesmo tempo em que adensam fluxos migratórios interregionais (Sanders; Brown, 2012); Xavier Cirera e Qursum Qasim assinalam que a geração de empregos indiretos em função da implementação das ZEE é mínima (Cirera; Qasim, 2014).
No que tange a extensão espacial das ZEE presentes no continente africano, pode-se identificar uma significativa variação de tamanhos, dado que se relaciona ao tipo de atividade econômica que essas zonas absorvem. A maior parte delas (39%) possui entre 101 e 500 hectares, um espectro de extensões que está alinhado ao que se observa na maior parte do mundo, sendo comum em países como Camarões, Etiópia, Gana e Marrocos. As zonas com extensões maiores representam percentuais menores: as ZEE com áreas entre 501 e 1.000 ha. correspondem a 12% do total e aquelas com áreas acima de 1.001 ha. correspondem a 18%.
Mais importante que caracterizar a extensão das ZEE como aspecto constitutivo de uma consolidação do circuito superior nas cidades africanas, é identificar as suas localizações dentro dos territórios nacionais. Invariavelmente, as empresas que atuam dentro das zonas econômicas especiais se encontram bem articuladas às infraestruturas de transporte, energia e telecomunicações. Tendo em vista os imperativos de fluidez territorial (Arroyo, 2018), observa-se também que, com frequência, essas zonas se encontram nas proximidades das principais regiões portuárias dos países onde estão instaladas. Milton Santos já sinalizava, na década de 1970, o papel ativo do Estado na criação de infraestruturas, visando atrair indústrias estrangeiras, de modo que o autor chega até mesmo a afirmar que “a criação de infraestruturas é uma maneira de financiar indiretamente a implantação das indústrias modernas” (Santos, 2004, p. 168). Assim, ao que tudo indica, esse padrão se manteve meio século depois e, desse modo, o circuito superior vai ganhando seu corpo na medida em que as empresas de maior nível de capitalização definem - junto ao Estado - as porções do território que são mais vantajosas para a realização de suas atividades produtivas.
A associação entre as empresas do circuito superior e o Estado não se verifica apenas na promoção de condições ideais para a atuação empresarial, mas também no âmbito da governança das ZEE. Nesse sentido, identificam-se no continente três modelos principais de gestão: as que são geridas por empresas estatais (43%), as que são geridas por empresas privadas (41%) e as que são geridas em Parcerias Público-Privada (16%). No caso do primeiro modelo, observa-se variações no que diz respeito a uma maior ou menor centralização da gestão, ou as diferentes escalas administrativas dessa gestão (nacional, regional ou municipal), como ocorre na África do Sul, onde a gestão é mais regionalizada. No caso das gestões feitas por empresas privadas ou em PPP, há a presença marcante de consórcios internacionais com países como a China, a Índia, Singapura, Japão e Estados Unidos (Rodríguez‐Pose et al., 2022).
Não há, na escala do continente africano, um determinado segmento da indústria que seja privilegiado para ser desenvolvido nas ZEE, pois cada governo de cada Estado elabora as suas políticas de industrialização por zona econômica especial segundo seus interesses políticos e segundo as condições de suas forças produtivas. Observa-se também que as ZEE podem possuir em sua extensão empresas de um mesmo segmento industrial (sendo, portanto, zonas especializadas) ou empresas de múltiplos segmentos (sendo, portanto, zonas diversificadas). Nesse sentido, Rodríguez-Pose et. al. explicam que:
A grande maioria das ZEE africanas (89%) são zonas de múltiplas atividades, ou seja, zonas que não se especializam num sector específico. Países com diferentes níveis de renda adotaram o modelo multissetorial. Zonas nos Camarões, em Gana e no Quênia abrangem uma grande variedade de atividades industriais [...]. Dito isto, alguns setores estão mais representados do que outros, sendo as indústrias de processamento de alimentos e intensivas em recursos naturais as mais difundidas (UNCTAD, 2020). Em contraste, apenas 10% das ZEE africanas visam setores ou indústrias específicas. Exemplos são a Casablanca do Marrocos Midparc Free Zone (aeronáutica) e Kilinto Industrial Park da Etiópia (farmacêutica). O 1% restante consiste em hubs logísticos, que prestam serviços comerciais, de armazenagem e logística próximos a aeroportos e portos marítimos. (Rodríguez‐Pose et al., 2022, p. 460).
Essa variável é fundamental para compreender as potencialidades da zona no que tange a diversificação e a especialização produtiva (ainda que ambos os aspectos não sejam excludentes, pois a especialização em um segmento industrial tido como novo em um país é capaz de operar a diversificação de suas forças produtivas). Assim, observa-se que a larga maioria das ZEE do continente (89%) promovem a diversificação produtiva por serem multissetoriais, enquanto 10% promovem a especialização de em uma atividade industrial específica. Dentre as zonas que promovem especialização, são mais comuns aquelas voltadas à produção de roupas e de eletrônicos (Rodríguez‐Pose et al., 2022).
No continente africano, as ZEE chegam a sediar diferentes quantidades de empresas do circuito superior dentro de sua extensão. Nesse sentido, prevalecem aquelas que possuem entre 1 e 10 empresas (30%) e as que possuem entre 11 e 50 empresas (37%). As que possuem entre 51 e 100 empresas correspondem a 19% das ZEE, as que possuem entre 101 e 200 correspondem a 8% e as que possuem mais de 200 empresas correspondem a 6%. A média de empresas por ZEE no continente está um pouco abaixo de 60. Embora essas variações no número de empresas dentro das zonas não sejam fundamentais para a reflexão sobre a potencial consolidação de um circuito superior nas cidades africanas, a origem dessas empresas é: a sede da maior parte dessas indústrias está fora do continente africano e localizam-se especialmente na China, na Índia, em Taiwan, no Reino Unido, na Bélgica e na Holanda (Rodríguez‐Pose et al., 2022). Esse aspecto é de grande valia sobretudo na reflexão sobre o processo de formação dos circuitos, processo esse que se inicia nas cidades do Sul Global absorvendo vetores externos de modernização.
Considerações Finais
Nas primeiras décadas do século XXI, os governos da maior parte dos países africanos vêm apostando nas zonas econômicas especiais como o principal instrumento de desenvolvimento industrial de seus territórios, instrumento esse capaz de promover a modernização e a diversificação das forças produtivas da economia desses países, que ainda se encontram profundamente organizadas em função da produção de commodities. O número de ZEE no continente saltou de 20 em 1990 para 237 em 2020, de modo que essa expansão ganhou força dentro de uma conjuntura favorável de crescimento econômico e estabilidade política verificada na maior parte dos seus países, nas primeiras décadas do século XXI.
Os impactos das zonas econômicas especiais dentro do continente africano podem ser investigados nas mais diversas escalas geográficas. Boa parte dos estudos realizados até então - desenvolvidos sobretudo no campo da economia política - estão centrados nos impactos macroeconômicos dessas zonas, atentando para aspectos relacionados ao seu papel na internacionalização das economias africanas dentro das cadeias de valor global, no crescimento da produção e exportação de produtos manufaturados na composição do produto interno bruto, dentre outras questões. Menor atenção, no entanto, tem sido dada aos estudos sobre os impactos das ZEE nas economias urbanas dos países africanos.
Ao entender as ZEE como um instrumento de industrialização que atrai um conjunto específico de empresas altamente capitalizadas e dotadas das mais modernas tecnologias - e geralmente estrangeiras - para as cidades dos países africanos, o processo de expansão da implementação dessas zonas, bem como os seus impactos na economia urbana, pode então ser interpretada por meio da teoria dos circuitos, teoria essa elaborada por Milton Santos na década de 1970. Dessa relação entre o processo observado e a possibilidade de interpretá-lo por meio de uma teoria, construiu-se o questionamento que estruturou boa parte das reflexões contidas neste artigo: estariam as cidades africanas diante de uma consolidação do circuito superior de suas economias urbanas?
A criação de zonas econômicas especiais e a chegada de empresas altamente capitalizadas e dotadas de modernas tecnologias transformam a economia das cidades africanas de diferentes maneiras: (i) ao estabelecer uma determinada quantidade de vagas de emprego (formais), as empresas que integram as ZEE demandam força de trabalho dos mais diversos espectros de qualificação podendo, inclusive, induzir a intensificação de fluxos migratórios inter-regionais; (ii) ao mobilizar a força de trabalho e gerar um montante de empregos aquém da disponibilidade de mão de obra, essas empresas podem gerar o adensamento do setor terciário e, ao mesmo tempo, efeitos de aglomeração; (iii) ao ocuparem grandes extensões espaciais (necessárias ao funcionamento de seus processos produtivos, tanto para as plantas fabris quanto para estocagem de mercadorias) e se localizarem em pontos estratégicos do espaço urbano (aqueles que oferecem maior fluidez territorial para circulação e distribuição de mão de obra, insumos, mercadorias, informação e capital), essas empresas revelam que dispõe de fácil acesso às infraestruturas de qualidade, especialmente as de transporte, energia e telecomunicações, diferentemente de outros atores da economia urbana, especialmente daqueles menos capitalizados; e (iv) ao usufruírem de numerosas isenções fiscais, essas empresas manifestam as suas favoráveis relações com os governos dos Estados, dado fundamental na caracterização do circuitos superior segundo a caracterização formulada por Milton Santos.
Esse conjunto de aspectos contribui para a construção de uma reflexão sobre um processo de consolidação do circuito superior da economia urbana nas cidades africanas. Essas evidências, ainda que apresentadas em caráter panorâmico, servem sobretudo para ativar o olhar investigativo sobre as economias urbanas das cidades africanas para além daquilo que vem sendo feito nas últimas décadas - embora que de forma competente - que é o estudo focado primordialmente nas atividades econômicas menos capitalizadas e que operam no campo da chamada “economia informal”.
Ao mesmo tempo, entende-se aqui que, a partir do verificado processo de consolidação do circuito superior, os olhares investigativos devem não apenas se aprofundar nas particularidades dos processos de organização desse circuito superior nos diferentes países africanos, como também nas formas como os atores desse circuito se relacionam com os atores menos capitalizados da economia urbana dos países onde se instalam.
Agradecimentos
Agradeço o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, processo nº 23/09597-1) e do Fundo de Apoio ao Ensino, à Pesquisa e à Extensão da Universidade Estadual de Campinas (FAEPEX/UNICAMP, processo nº 3150/23), que viabilizaram a realização desta pesquisa.
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Disponibilidade de dados
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
03 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
07 Jan 2025 -
Aceito
13 Ago 2025
