Resumo
Neste ensaio teórico, dialogamos com os estudos trans, a antropologia urbana e o transfeminismo para discutir a produção do espaço interpelada pela cisnormatividade, propondo uma geografia das pessoas trans. Fundamentamo-nos em autores trans brasileiros e anglófonos para articular a análise geográfica a textos autoetnográficos que evocam o direito à cidade, entendido como um clamor pelo direito ao espaço. Esses relatos destacam uma espacialidade marcada pelo estigma, preconceito e interdições. Por fim, analisamos como as táticas de resistência desses sujeitos políticos evoluíram desde as mobilizações durante a Ditadura Cívico-Militar até o fortalecimento do movimento trans em anos recentes, tornando-se um ator relevante e alcançando avanços em políticas públicas institucionais.
Palavras-chave:
Produção do espaço; justiça territorial; estudos trans; transfeminismo.
Abstract
In this theoretical essay, we engage with trans studies, urban anthropology, and transfeminism to discuss the production of space challenged by cisnormativity, proposing a geography of transfolks. We draw on Brazilian and anglophone trans authors to connect geographic analysis with autoethnographic texts that evoke the right to the city, understood as a call for the right to space. These accounts highlight a spatiality marked by stigma, prejudice, and restrictions. Finally, we analyze how the resistance tactics of these political subjects have evolved, from mobilizations during the civic-military dictatorship to the strengthening of the trans movement in recent years, becoming a relevant actor and achieving progress in institutional public policies.
Keywords:
Production of space; territorial justice; trans studies; transfeminism.
Resumen
En este ensayo teórico, dialogamos con los estudios trans, la antropología urbana y el transfeminismo para discutir la producción del espacio interpelada por la cisnormatividad, proponiendo una geografía de las personas trans. Nos fundamentamos en autores trans brasileños y anglófonos para articular el análisis geográfico con textos autoetnográficos que evocan el derecho a la ciudad, entendido como un clamor por el derecho al espacio. Estos relatos destacan una espacialidad marcada por el estigma, el prejuicio y las prohibiciones. Por último, analizamos cómo las tácticas de resistencia de estos sujetos políticos evolucionaron desde las movilizaciones durante la dictadura cívico-militar hasta el fortalecimiento del movimiento trans en años recientes, convirtiéndose en un actor relevante y logrando avances en políticas públicas institucionales.
Palavras-clave:
Producción del espacio; justicia territorial; estudios trans; transfeminismo.
Introdução
Como contornos iniciais, procuramos nas páginas a seguir descortinar uma geografia das pessoas trans, partindo do postulado de que o espaço é socialmente produzido pelos sujeitos em ação no cotidiano da cidade, a qual é politicamente permeada por conflitos (Lima, 2020c) e contradições. Nosso objetivo neste ensaio é discutir uma geografia trans da cidade; fundamentados no transfeminismo, propomos uma outra leitura da produção do espaço, com enfoque nas experiências trans e travestis.
Em primeiro lugar, dedicamos uma seção para discutir conceitos usuais no restante do texto e que balizam a discussão; são termos vinculados ao pensamento e estudos trans. Adiante, produzimos um enlace entre ciência geográfica e etnografia em Antropologia Urbana para apresentar a trama do cotidiano de pessoas trans e travestis - que diferem daquelas das pessoas cis (Araruna, 2017; Miranda, 2018; Nogueira, 2018; Aquino, 2019; Barbosa, 2023) -, tendo o espaço como mediação. Articulando as tríades de Henri Lefebvre, animadas pela vivacidade de Doreen Massey (2008), buscamos uma conceituação própria do espaço - como uma abertura política -, influenciados pela ótica do transfeminismo. A terceira seção é dedicada a conectar como a resistência dessas existências (trans)tornadas em revolta vêm no decorrer dos últimos 30 anos, em contexto brasileiro, provocando mudanças, evidenciando que a “produção da representação de uma coletividade como sujeito político” (Aguião, 2018, p. 36) avança no rol dos direitos cidadãos.
Delineados rumo a um atravecamento da teoria1
No que tange à Geografia brasileira, os estudos trans ou geografias trans estão dispersos -inúmeras correntes metodológicas e lentes analíticas, em geral, se situam em diálogo com as Geografias Feministas -, ao contrário da tradição anglo-saxã, em que se constituiu um campo temático entorno do termo Trans Geographies (Browne; Nash; Hines, 2010). Portanto, por ainda constituir-se enquanto um apêndice às geografias normativas,2 optamos por dedicar esta seção à explicação de conceitos que são fundamentais, em vez de relegá-los a notas de rodapé.
Na tradição geográfica brasileira, faz pouco mais de uma década que a transgeneridade/travestilidade/transexualidade entrou para a agenda de pesquisa. Neste sentido, foi seminal a publicação da coletânea Geografias malditas: corpos, sexualidades e espaços (Toda Palavra Editora, 2013), organizada por Joseli Maria Silva, Alides Baptista Chimin Junior e Marcio José Ornat, membros do Grupo de Estudos Territoriais da Universidade Estadual de Ponta Grossa (GETE-UEPG), situada na cidade homônima no Paraná. Além de congregar trabalhos sobre as temáticas que atravessam a temática e existências trans/travestis, na seção introdutória dessa coletânea são apresentados textos de mulheres trans e travestis que, conduzidas por perguntas sobre as suas trajetórias e vivências, remontam concretos itinerários geográficos travestis/trans.
Essa geograficidade da experiencia trans/travesti articula materialidade e imaterialidade. Advertimos que a imaterialidade não é menos concreta que a materialidade. O abstrato é o outro do concreto, e a geograficidade da experiência trans e travestis é permeada pela interdição. Assim, para descrever essas interdições se confeccionou a ideia de espaço interdito (Silva, 2013), que busca descortinar a operação de um dispositivo em respeito ao gênero normativo e dissidente, este espaço interdito é a negação da apropriação, um “efeito das ações regulatórias, um conjunto de práticas que são lidas e interpretadas por elas [as travestis] como sendo espaços dos quais elas não têm o direito de fazer parte” (Silva, 2013, p. 158). Mais à frente retomaremos esse conceito para discutir o conclamado direito ao espaço.
Por agora, gostaríamos de apresentar termos que vem sendo desenvolvidos em contexto brasileiro (em rede com pensadores/as de outros contextos latino-americanos), frutos do esforço de uma intelectualidade trans que se forma dentro e fora das universidades. Assim, em especial neste texto, nós dialogamos com uma geração de autorias trans (transsexuais, travestis e não-binárias) que alcançou espaços antes interditos. Dessa forma, aludimos que a entrada de pessoas trans nas instituições tem causado mudanças significativas (Carvalho, 2018), ecoando aquilo que disse Lohana Berkins3: “Quando uma travesti entra na universidade, muda a vida dessa travesti, quando muitas travestis entram na universidade, muda a vida da sociedade”4.
A respeito do par de identidades cis e trans, no campo da linguística, Amara Moira mostra que, etimologicamente, cis expressa a ideia do que fica do lado de cá, enquanto trans expressa a ideia daquilo que cruza uma linha, uma fronteira, um limite. Ela diz: “o ‘não se nasce, torna-se’ da Beauvoir assume um sentido todo particular em se tratando dessa categoria [trans], pois não existe a opção ‘nascer’ para nós, mas tão-somente a opção ‘tornar-se’” (Rodovalho, 2017, p. 370, grifo nosso).5 Assim, em termos de gênero e sexualidade, pessoas trans cruzariam uma delimitação cisnormativa, contrariando a imposição do regime de congruência sexo-gênero, baseado no dimorfismo sexual (Preciado, 2017).
A norma é instaurada por um regime - muitos autores nomeiam de formas distintas, ainda que estejam se referindo a uma mesma lógica; neste caso optaremos por nomeá-lo de regime cisheterossexual (Aquino, 2019). Por um lado, a norma é colocada como discreta por alguns autores (Seffner, 2022), de outro, a percepção do que é concebido enquanto prescrição prática para experiências de dissidência enclausuradas com aversão no “armário”, a norma fala alto e em bom tom, e, por vezes, nem precisa ao menos ser explicitamente enunciada.
Michel Foucault (2021) apresenta a norma como constantemente reiterada por meio das operações de dispositivos, assim como na genealogia foucaultiana apresenta-se o dispositivo da sexualidade que configura as relações de poder. Na teoria butleriana, essa reiteração se desenrola mediante a performatividade. A performatividade condiz a “uma prática reiterativa e citacional por meio da qual o discurso produz os efeitos daquilo que nomeia” (Butler, 2019, s.p.). Em outras palavras, “as normas regulatórias do ‘sexo’ trabalham de forma performativa para constituir a materialidade dos corpos” (Butler, 2019, s.p.). Assim, o sexo em si só é compreendido em sua normatividade, pois um corpo humano é compulsoriamente um corpo sexuado; o sexo é, neste sentido, uma “norma cultural”. Há necessidade de invocar a norma quando algo escapa o controle do normal, habitual, impõe-se de maneira constrangedora, violenta, vexatória e discriminatória afim de coibir comportamentos. A norma está intimamente ligada às relações de poder entre sujeitos, pessoas, indivíduos, agentes e atores, resguardado cada um desses termos suas nuances distintas.
A cisnormatividade é um paradigma em que as formações corporais e identidades/identificações de gênero forma/são naturalizadas e idealizadas (Vergueiro, 2015). Este paradigma estabelece um regime de normalidade/anormalidade dentro da diversidade corporal, distinguindo autenticidade e legitimidade do que é patológico e clandestino. Historicamente, o termo cisgênero aparece no início deste século para se referir à experiência de pessoas que se identificam com os gêneros que lhes foram designados ao nascer. Portanto, reside a ideia de um privilégio cis em razão de adequação à matriz cisheterossexual, facilitando o acesso a saúde-cuidado e cidadania, pois não lhe é cobrado, recorrentemente, evidências de sua identificação, como o é para pessoas trans.
Viviane Vergueiro (2018) identifica três traços da cisgeneridade: 1) a pré-discursividade, 2) a binariedade, e 3) a permanência. Este movimento de nomeação da cisgeneridade caminha em direção a sua desnaturalização, descortinando “que a transexualidade foi conceituada por um viés patologizante que moldou o modo como instituições de saúde, de ensino e jurídicas discriminam corpos trans” (Pfeil; Pfeil, 2023).
Destrinchamos esses três elementos. A pré-discursividade resume-se como um “entendimento sociocultural [...] de que seja possível definir sexos-gêneros de seres (humanos e não humanos) a partir de critérios objetivos e de determinadas características corporais” (Vergueiro, 2018, p. 45). O segundo traço, a binariedade, dita o alinhamento entre dois sexos-gênero psicossocialmente exigidos para qualificar indivíduos6 como saudáveis, são os pares inseparáveis: macho-homem e fêmea-mulher. Dessa forma, a contrariedade à premissa binária “fundamenta violências contra as diversidades corporais que não se ajustam a estes cistemas”, como, por exemplo, discutido por Viviane, e também por Paul B. Preciado (2017), pessoas intersexo. Assim, lutar pelas diversidades corporais “é lutar contra binarismos eurocêntricos, contra a ideia de que as pessoas pertençam a uma ou outra categoria mutuamente exclusiva de gênero definida de formas [supostamente] objetivas e neutras” (Vergueiro, 2018, p. 52).
O terceiro traço é a permanência, ou seja, existem expectativas em relação ao gênero, e assim, espera-se que os gêneros apresentem uma “coerência fisiológica e psicológica em termos de se seus pertencimentos a uma ou outra categoria de ‘sexo biológico’” (Vergueiro, 2018, p. 53). Essa coerência deve atravessar toda a trajetória de vida de uma pessoa; a permanência estabelece como incontestável tal construção identitária.
Neste sentido, Preciado defende - em diálogo com a teoria da performatividade em Bulter - que “o processo de transição não ocorre entre feminilidade e a masculinidade (dado que nenhum dos dois gêneros tem entidade ontológica, mas apenas biopolítica), mas [ocorre diante] de um aparato de produção de verdade para outro” (Preciado, 2020, p. 221). Ou seja, com isso ele questiona a completa transição, equiparando a pessoa trans como um exilado que busca reconhecimento diante de termos político-legais.
O trans é empregado aqui como termo guarda-chuva para abarcar uma multiplicidade de identidades políticas; travestis é grifada sempre no plural e destacada, para fazer jus ao anseio de coletividade e por se tratar de uma identidade política atravessada historicamente por questões de raça, classe, criminalização e patologização (Vergueiro, 2018, p. 13),7 delineamos que é uma identidade reconhecidamente latino-americana; cisgênero, cisnormatividade, cistema são termos que condizem àquelas pessoas que se alinham conforme as expectativas lineares de sexo-gênero, ao dispositivo que cotidianamente incide sobre vidas cis e trans, produzindo um tipo de policiamento das expectativas e performatividade, à organização (política, econômica, cultural), respectivamente. Nós compreendermos, portanto, que a cisnormatividade como um paradigma que rege as sociedades estabelece uma ordem política, negando necessidades e definindo quais são corpos inadequados no usufruto do espaço (Sennett, 2021, p. 22).
Ocupando interstícios entre Geografia-Etnografias urbanas
(...) Não querem que nenhuma de nós sobreviva. Uma foi assassinada a pedradas. Outra foi queimada viva, como uma bruxa: [...]. Acontecem mais e mais desaparecimentos. Existe um monstro lá fora, um monstro que se alimenta de travestis. (Camilla Sosa Villada, 2021, p. 200).
A Geografia é uma ciência que busca compreender e interpretar as múltiplas relações entre sociedade e espaço, considerando diferentes abordagens e perspectivas que refletem a diversidade de seu campo de estudo e diálogo com outras disciplinas. A ideia de operacionalizar conceitos tem, metaforicamente, a ver com um procedimento cirúrgico em quais as categorias filosoficamente referenciadas são instrumentos utilizados para elaborar um raciocínio sustentado através de teorias. O conceito operacionalizado dependerá da questão central posta pelo pesquisador, além da ênfase que se pretende condicionar. É enriquecedor para um estudo transitar por outros meandros, outras disciplinas, como a Sociologia, Antropologia e Ciência Política, pois outros campos podem abrir o campo de visão e proporcionar enriquecimento teórico com seus férteis respectivos campos. Assim, tendo em vista a transdisciplinaridade, este tópico tece relações entre a Antropologia Urbana e a Geografia, em um esforço interpretativo à luz de teorias consagradas na Geografia como a produção do espaço (Lefebvre, 2013).
Lefebvre, um materialista e marxista heterodoxo (Machado, 2008), filósofo e sociólogo, critica e reformula a visão tradicional do espaço absoluto de Kant, que tratava o espaço como simples localização ou sítio. Com a teoria da produção do espaço, destaca que não é palco ou receptáculo, mas o espaço é antes uma construção relacional, que surge das interações sociais e, por isso, deve ser entendido como um produto dinâmico das relações, na cansada imagem espiralar do tempo fugaz (Diógenes, 2024). Neste sentido, partimos da premissa de desvendar o espaço criticamente como condição sine qua non das sociedades.
Joseli Silva e Marcio Ornat (2022) empreendem um esforço teórico para conectar a obra de H. Lefbvre com o pensamento feminista. Apesar de ter sido propositor de uma teoria revolucionária, uma das obras seminais do spacial turn nas ciências sociais e que compôs uma nova roupagem para o materialismo marxista, “os aspectos de raça, gênero e sexualidades [foram] subsumidos na análise de classe” (p. 336). Ainda assim, o corpo é elemento fundamental na teoria lefebvriana.
A geógrafa feminista Doreen Massey (2008) propõe o espaço como produção aberta e contínua, seguindo os passos da filosofia da dialética lefebvriana de (re)produção ininterrupta do social. Assim, a autora propõe uma outra política da espacialidade que pensa o cotidiano da ação e a trajetória dos sujeitos. Não se trata, pois, de isolar a apreensão de um fenômeno a partir dos indivíduos, mas de assumir a “inseparabilidade entre individualidade e sociabilidade” (Massey, 2008, p. 93).
Outra contribuição indispensável para destacar a relação entre corpo e espaço, ou seja, diferentes espacialidades, é Richard Sennett, sociólogo. Especificamente na obra Carne e pedra (2021), ele demonstra como a construção do Ocidente, em nome da civilidade e civilização que teve na cidade o lócus do poder político do ordenamento do território, estabelecendo formas de dominação das diferenças, da complexidade e da estranheza baseada em valores morais que segregaram grupos sociais em adequados e inadequados.
Segue-se, portanto, uma aproximação da Geografia com a Etnografia que nos oferecerá um oportuno material de reflexões e dados para discutir a distinta do cotidiano para pessoas trans e cis gêneros. Gilberto Velho privilegia a metrópole como lócus de interações entre redes e categorias sociais diferentes e desiguais, alegando que “é no meio urbano contemporâneo, com sua complexidade e dinamismo, que esses fenômenos aparecem com mais intensidade e nitidez” (Velho, 2011, p. 178). Segundo a antropóloga Silvana Nascimento (2016):
A etnografia urbana, por sua vez, se constrói na interação entre a experiência vivida e os modelos teóricos na tentativa de compreender as dinâmicas sociais a partir das lógicas produzidas pelas pessoas que fazem a cidade (...) [A] etnografia urbana coloca ênfase (...) sobre as malhas tecidas pelos(as) citadinos(as) em suas trajetórias cotidianas, ou rituais, e reflete sobre os usos sociais do espaço para além dos mapas oficiais. (Nascimento, 2016, p. 2).
A partir de alguns escritos narrativos, ensaísticos e autoetnográficos que apreendemos a experiência de cidade de pessoas trans e travestis, atravessada pela cisnormatividade. Neste sentido, as etnografias podem ser um potente “recurso teórico de entendimento da vida social nas margens do Estado” (Castro, 2014, p. 102).
Neste ponto, convém destacar que existem distinções entre as vivências das transmasculinidades e as transfeminilidades - como não estamos utilizando referenciais em pessoas que se autodenominam como não-binárias,8 não lhes faremos inferências, ainda que haja pontos de convergência entre as experiências de pessoas TT’s e NB’s -, visto que as situações cotidianas são afetadas de maneiras particulares pela cisnormatividade e transfobia9. No entanto, não é o objetivo desse texto aprofundá-las.
Há que fazer um adendo em termos interseccionais, pois as vivências espaciais das pessoas trans e as formas como elas lidam com as interdições sociais não podem ser compreendidas desconsiderando as interseccionalidades de raça, classe e gênero (transfemininas ou transmasculinas). Esses marcadores sociais se entrelaçam de maneira complexa, moldando suas trajetórias e itinerários geográficos.
Ainda que conforme diversos autores pós e decoloniais compreenda-se que essas estruturas, sobretudo em contexto latino-americano, foram forjadas pelo colonialismo e vigentes através da colonialidade do saber, do poder e do ser,10 resguardam particularidades que assombram a vida dos sujeitos implicando por um esgarçamento das estruturas sociais de dominação, revelando a configuração das relações de poder complexificadas.
No que se refere em termos de intersecção entre raça e classe, pessoas trans negras e periféricas estão mais expostas à violência, à prostituição como meio de sobrevivência e à marginalização social, pois habitamos um mundo moderno que favorece a branquitude em que determinados corpos foram inventados como “problemas espaciais” (Oliveira, 2022). Por exemplo, vide os dossiês da Associação Nacional de Transexuais e Travestis (ANTRA), mulheres trans e travestis são as mais assassinadas e alvos de violência policial, enquanto pessoas trans brancas e de classes médias e altas tendem a ter maior acesso a tecnologias de transformação corporal, como cirurgias e terapia hormonal, além de maior possibilidade de frequentar espaços educacionais e profissionais que oferecem alguma proteção contra a discriminação.
As experiências também divergem significativamente entre transfeminilidades (mulheres trans e travestis) e transmasculinidades (homens trans e pessoas transmasculinas). Mulheres trans e travestis são frequentemente associadas à prostituição e à marginalização por estigmatizações, já homens trans e transmasculinos, especialmente negros e periféricos estão mais propensos à violência policial e do Estado.
Além disso, conforme a etnografia das transidentidades realizada por Carvalho (2018), a emergência de identidades não binárias e transmasculinas entre jovens de classes médias e altas reflete uma maior fluidez de gênero que gera tensões com gerações mais velhas, ainda que seja problemático assumir um argumento etário para nomear uma identidade. Em contexto brasileiro, essa alegação tem a ver com os inúmeros pontos de contatos entre não-binariedade e a teoria queer.
Como demonstra o levantamento de Caetano (2024) realizado em sua tese de doutoramento em Antropologia, a não-binariedade, “um conceito em aberto de elaboração contínua” (Caetano, 2024, p. 149), a experiencia não-binárie, portanto, se desenvolve através de dois aspectos, a negação do par normativo homem/mulher e de criação coletiva. Neste sentido, a não-binariedade enquanto autodeterminação coletiva, pratica a recusa do enclausuramento do par binário homem/mulher apostando no potencial do ininteligível para rasurar o cistema (Caetano, 2024).
Trazemos à baila duas etnografias tecidas por Araruna (2017) e Miranda (2018)11 que balizam o direito à cidade para mostrar um habitar a cidade cerceado pelos estigmas impostos às corporeidades trans. Reforçamos que a cisgeneridade se revela como norma, e concordando com Vergueiro (2018), a “masculinidade - o papel esperado para indivíduos aculturados para serem ‘homens’ - e a feminilidade - o papel esperado para indivíduos aculturados para serem ‘mulheres’ - não existe[m] fora dos marcos regulatórios da cisgeneridade” (Araruna, 2017, p. 134).
O estigma é fundamentado por ambos os autores em Erving Goffman. Como resultado da interação entre indivíduo e sociedade, o estigma decorre das expectativas derivadas da segunda instância são garantidas por manutenção das relações de poder sobre o primeiro polo, portanto, estigmas “são construídos através da criação de ideologias para explicar a inferioridade de um determinado grupo de sujeitos” (Miranda, 2018, p. 341). Neste sentido, o estigma, como dispositivo que confere inferioridade a um determinado grupo, quando estabelece hierarquias, se aproxima da opressão, na leitura de Young (2021). Ela descreve que a opressão é a inibição da capacidade de desenvolver e exercitar aptidões e expressar suas necessidades, pensamentos e sentimentos (Young, 2021, p. 488).
Para estabelecer uma relação entre indivíduo-sociedade, o mecanismo escalar é uma chave geograficamente analítica que vislumbra uma compreensão da produção do espaço em sua totalidade. Por exemplo, há várias instâncias da sociedade que incidem sobre a vida individual regulando o tecido social, como a família, o Estado, as organizações, etc. Para Grandi (2021) a relevância da dimensão escalar reside na tal produção do espaço, isto é, para este autor, a escalaridade é uma ferramenta que permite identificar a relação parte-todo, ou, em outros termos, a relação entre a ordem próxima e ordem distante (Limonad; Lima, 2003).
Através desses escritos autoetnográficos, Araruna (2017) e Miranda (2018), dotados de uma perspectiva situada na fronteira entre experiência e conhecimento, são detentores de saberes localizados (Haraway, 2009), escrevem sobre a sujeição corporificada enquanto sujeitos corporificados. Neste sentido, manifestam uma geografia das existências, nos termos de Lima (2020a) que entra colisão com uma geopolítica dos corpos sensíveis em função da condição de sujeitos corporificados territorializados, em outras palavras, trata-se de uma “geografia das existências como aquela que decifra as condições sob as quais se dá a busca autônoma dos sujeitos corporificados pelo melhor lugar próprio no mundo” (Lima, 2020a, s.p.).
Destacamos três situações recorrentes nos relatos autoetnográficos que assinalam as dificuldades enfrentadas por pessoas trans no seu habitar a cidade cisheteronormativa (Aquino, 2019): 1) a violência corretiva no espaço público, os casos de agressões físicas e verbais; 2) o constrangimento na utilização de espaços coletivos - sobretudo naqueles segregados por gênero; 3) o cerceamento da vida coletiva.
A primeira situação se expressa tanto nos relatos como nos dados já aqui mencionados, com assassinatos, crimes de ódio, até a expulsão do seio familiar desde a infância/adolescência. A expressão “crimes de ódio” é acionada pelo movimento LGBTI+, como discutem Souza e Feliciano (2020), a fim de realçar a “composição de um cenário que ‘demoniza’ a figura LGBT, atribuindo a sua vida e a seu corpo menos valor em relação a uma vida e um corpo heterossexual e cisgênero” (Souza; Feliciano, 2020, p. 131). Assim, as agendas de pesquisa sobre temáticas LGBTI+ na Geografia tem contribuído com o debate da “segurança pública” (Nogueira, 2018). Podemos, por exemplo, referenciar a dissertação de Almeida (2019), que cartografou a violência contra corpos dissidentes. Unindo a cartografia com os estudos de gênero, produziu uma síntese que mostra duas lógicas: a) a das verticalidades da ordem distante, utilizando dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP), elaborando mapas distorcidos que revelam territorialmente os lugares mais perigosos para o trânsito de dissidente - ou seja, interpretando a origem desses dados como uma dimensão espaço concebido interface com o percebido, isto é, a interface entre a representação do espaço e as práticas espaciais; b) e, a das horizontalidades, na outra parte do seu trabalho produziu uma cartografia dos corpos sensíveis, a partir dos relatos das pessoas LGBTI+, revelando de forma afetiva, a interface entre a dimensão do percebido e do vivido, das práticas espaciais e dos espaços de representação.
A segunda situação é a interjeição na utilização dos espaços segregados por gênero - o caso do banheiro tem maior repercussão - ou ainda a regulação dos corpos e suas vestimentas generificados -, e também pela regência do regime sexo-gênero instituído juridicamente, tendo efeito nas inúmeras burocracias para desfrutar o direito à cidadania, isto é, o acesso a saúde, educação, trabalho, etc.
Por fim, conectado às demais situações, o cerceamento da vida coletiva. De acordo com Maffesoli (1997), sociabilidade é instituída - as regras, a família -, vide que nos costumes e valores impera a cisnormatividade, a sociabilidade dos sujeitos trans está embaraçada no emaranhado de estigmas e preconceitos.
Meneses (2022) lança mão do termo “diáspora trans” para se referir ao trânsito de gênero e territorial de pessoas trans. Em sua tese, apesar do estudo ter a participação exclusiva de mulheres trans e travestis, define-se a diáspora trans como “a transposição das fronteiras que a população trans realiza durante a sua (des) reconstrução identitária, que está relacionada aos dois casos: as fronteiras do gênero e as fronteiras geográficas, ocorrendo as duas ou apenas uma delas” (2022, p. 201).
Assim, conforme avança, Meneses argumenta: ainda que a migração não tenha sido necessariamente provocada pelo que chama de “crise identitária”, ao se distanciar de instâncias de coibição como a família ou vizinhança, isto é, da sua cidade de origem (geralmente cidades pequenas e do interior), criam-se oportunidades para novas vivências e a possibilidade de apresentação de uma nova imagem pública.
Nesse sentido, é possível aproximar sua análise da reflexão de Sennett sobre a experiência do corpo na cidade, impactada pelas representações que se produzem sobre ele. Como afirma o autor: “Imagens ideais do corpo humano levam à repressão mútua e à insensibilidade, em especial entre os que possuem corpos diferentes e fora do padrão” ((Sennett, 2021, p. 22).
Conforme nosso argumento central, a espacialidade das pessoas trans é interpelada pelas imagens que se constroem sobre elas, mediadas pela permanência esperada dos indivíduos dentro da normatividade cisgênera. Assim, Meneses observa que “as pessoas só se enxergam e se identificam como trans após sua migração ter acontecido por outro motivo qualquer, não sendo neste caso um fator que impulsiona a pessoa a migrar [...], mas, sim, uma consequência do processo migratório” (2022, p. 206).
O acesso a espaços destinados à socialização e entretenimento da população LGBT, geralmente localizados nos grandes centros urbanos (Meneses, 2022), não apenas oferece um ambiente de maior segurança e liberdade, mas também possibilita o trânsito para um contexto de anonimato. Esse deslocamento, ao afastar indivíduos das estruturas normativas de origem, abre caminhos para a formação de novas redes de contato, especialmente entre pessoas trans. Nessas interações, o reconhecimento mútuo se fortalece, criando espaços onde subjetividades podem florescer.
Segundo Maffesoli (1997), a socialidade está para além do instituído, e expressa a ideia do estar-junto, do comum, da partilha, do comunitário, e, assim, pessoas trans e travestis tem empreendido, há muitos anos, espaços para forjar um senso comum de pertença que instiguem uma racionalidade positiva na contramão das negatividades - por exemplo, às incontáveis pessoas que se dedicam na produção da cena ballroom no Brasil.12 A consolidação enquanto sujeitos políticos se forja através de coletivos em torno dessas identidades. Por isso, a socialidade é produtora de novos sentidos do habitar, um estar-junto, um comum.
Entorno de uma identidade coletiva a organização para garantir direitos sociais
Desde o período da Ditadura Militar brasileira - ou talvez até antes, com a colonização europeia (Cunha; York, 2020; Vergueiro, 2018) - podem-se identificar práticas de resistência de pessoas trans e travestis em prol de sua existência eticamente13 situada. No movimento constante das marchas e contramarchas da vida social, essas práticas revelam táticas de sobrevivência cotidianas que agora elevam-se às estratégias, tendo se constituído o que se entende como o movimento trans, um ator relevante no cenário institucional.14
A organização formal do que pode ser chamado de movimento trans no Brasil data da década de 1990, tendo suas raízes nas travestis que fundaram a Associação de Travestis e Liberados (ASTRAL) em 1992, no Rio de Janeiro (Carvalho, 2018). Este marco é significativo do ponto de vista jurídico e de institucionalização do movimento, visto que anterior a este marco haviam mobilizações. Coacci (2018) periodiza o movimento trans brasileiro em ondas, cada uma com características particulares desde os anos 1990, sendo somente a partir dos anos 2000, na segunda onda, que houveram sinais de avanço na garantia dos direitos básicos da população trans e travestis, refletidos na reformulação de leis e políticas públicas, bem como participação na execução de tais ações. O favorável contexto histórico e a fissura política pela eleição bem-sucedida de um governo progressista, propiciou um ambiente para avançar em algumas pautas.
Hoje, dentre as entidades nacionais que compõem o movimento podemos citar a ANTRA, a Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (RedeTrans), o Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (FONATRANS), o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT), dentre outras. Existem também entidades locais, como as redes e coletivos de estudantes trans universitárias, a Nova Associação de Travestis e Pessoas Trans (NATRAPE) de Pernambuco, e algumas casas de acolhimento, como a Casa Nem, no Rio de Janeiro (RJ), e a Casa Florescer em São Paulo (SP).
Muitos autores apontam que a década de 1980 foi crucial para a organização do movimento LGBTI+, especialmente em resposta à epidemia de HIV/AIDS. A perseguição promovida pelo Estado contra as corporeidades dissidentes remonta, pelo menos, aos anos 1970 (Quinalha, 2022; Iazzetti, 2023). Um exemplo notório é a Operação Tarântula (1987) da Polícia Civil de São Paulo, que, sob o pretexto de combater a epidemia de HIV/AIDS, perseguiu, prendeu e assassinou inúmeras travestis, pessoas trans, e demais LGBTI+.
Conforme Carvalho e Carrara (2015, p. 383), “o binômio violência policial/AIDS foi pedra fundamental da constituição do movimento”. A Operação Tarântula (Figura 1) foi endossada tanto pelo Estado quanto pela sociedade civil conservadora, que aprovou a “limpeza” das ruas. Além disso, nos anos 1980, formaram-se diversos grupos de extermínio, cujos alvos eram pessoas negras, pobres, periféricas e LGBTI+. A historiografia do movimento LGBTI+ é construída por meio de fontes jornalísticas, relatos orais de pessoas que viveram esse passado e se tornaram verdadeiras ancestrais vivas, além de relatórios policiais (Araújo dos Passos, 2022).
Com a consolidação do movimento trans organizado são apontadas várias injustiças, tais como “[...] a violência policial, a negligência médica, a exclusão da família e do ambiente escolar, a migração forçada, a humilhação pública, a violência doméstica, o desrespeito sistemático, o trabalho precário, a pobreza, o controle médico, a esterilização forçada, a prostituição como destino, o HIV, o tráfico de pessoas, o estupro corretivo, e, no topo, o sistemático assassinato de pessoas trans [...]” (Carvalho; Carrara, 2015, p. 386).
Compreendemos a injustiça como a percepção de um sofrimento, de uma promessa não cumprida, de um direito negado ou infringido, e as opressões são os ingredientes de um espaço opressor. É preciso destrinchar as injustiças para apontar para o direito à cidade, direito ao espaço. Assim, atrelam-se aqui os direitos e os sujeitos, a cidade e o cotidiano, e, por fim, as cinco faces das opressões, segundo Iris Marion Young (2021): exploração, marginalização, incapacidade ou falta de poder, imperialismo cultural e a violência.
A justiça territorial, conforme Lima (2015), reconhece que o território não é apenas um espaço definido por controle e limite, mas um sistema complexo que envolve sujeitos corporificados territorializantes e o grau de autonomia conferido a eles. Assim, a justiça territorial é o direito ao espaço, não se limitando à distribuição de recursos, mas envolvendo a efetivação de direitos sociais (educação, saúde, moradia, trabalho, segurança - como propostos pela Constituição de 1988). A territorialização dos direitos sociais demanda o reconhecimento de uma coletividade enquanto sujeito político, portanto, o reconhecimento de novas identidades é uma urgência assinalada, pois conferir cidadania e legitimidade aos corpos dissidentes na cidade é fundamental para ampliação do exercício democrático e cidadão do direito ao espaço (Aquino, 2019).
Nancy Fraser apresenta uma importante contribuição ao debate sobre o dilema entre redistribuição e reconhecimento, mostrando através de outro ângulo que essas políticas não precisam ser mutuamente contraditórias. Para ela, sim, há uma distinção analítica entre as injustiças econômicas - enraizadas na estrutura econômico-política - e as injustiças culturais ou simbólicas, que derivam dos efeitos cognitivos da identidade, como representação, interpretação e comunicação (Fraser, 2006, p. 232).
No entanto, a população trans, conforme a perspectiva de Fraser, pode ser compreendida como uma “coletividade bivalente” (2006, p. 233), ou seja, enfrenta simultaneamente ambas as categorias de injustiça. Por um lado, são afetadas pelas desigualdades estruturais da economia política; por outro, sofrem injustiças culturais e morais, que impactam a forma como são percebidas e inseridas na sociedade. Diante dessa dupla condição, os esforços políticos do movimento trans têm sido direcionados à formulação de estratégias que busquem, ao mesmo tempo, o reconhecimento e a redistribuição - dois aspectos igualmente cruciais para a superação dessas barreiras.
O conceito de cidade decente está intrinsecamente ligado à integralidade dos direitos sociais, visto que a Constituição de 1988 estabelece o direito à vida, à liberdade e à segurança, é por via da organização em coletivos que esses direitos se materializam para vidas trans. Lima (2020a), expandindo a ideia de corpos dóceis de Michel Foucault, propondo o de corpos sensíveis - que não apenas sofrem as normas, mas também as tensionam, territorializando suas existências -, assente que se o corpo é o marco zero da experiência humana, então a justiça territorial deve considerar a corporeidade como uma dimensão essencial da cidadania. Se queremos uma cidade decente, precisamos reconhecer que a luta por direitos trans não é apenas uma questão identitária - no sentido anti-woke do termo -, mas também uma luta geopolítica pelo direito ao espaço.
Em 2022, completaram-se 30 anos da fundação da ASTRAL no Rio de Janeiro, um marco histórico na organização do movimento trans e travestis no Brasil, essa transformação político-social em três décadas revela inúmeras contradições, especialmente quando se considera que o Brasil continua sendo o país com o maior saldo no assassinato pessoas trans e travestis (TGEU, 2017).15 Apesar do avanço legislativo na garantia de direitos, o Brasil permanece um país conservador e violento, como demonstram esses dados alarmantes. Contudo, é devido a articulações inter e transescalares, como a criação e ativação de uma rede de coletivos e ONGs em prol dos direitos LGBTI+, tem-se observado um avanço dessas agendas no âmbito da implementação de políticas públicas.
Reposicionar temporalmente marcos de visibilidade é um aspecto fundamental da luta política por reconhecimento. Jovanna Baby, importante traviarca16 do movimento trans, por exemplo, aponta que a primeira marcha ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, em 1995, durante o III Encontro Nacional de Travestis (ENTLAID).17 Essa primeira Marcha Trans teve como objetivo denunciar a violência policial que vitimava travestis na cidade, sendo inicialmente intitulada Marcha pela Diversidade Sexual e posteriormente renomeada para Marcha das Travestis.
Desde 2018, a cidade de São Paulo realiza anualmente a Marcha do Orgulho Trans, e, a partir de 2022, o Rio de Janeiro passou a sediar a Marcha Trans e Travesti (Figura 2).18,19 Além dessas mobilizações, diversas outras cidades brasileiras, em regiões metropolitanas do Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste, têm organizado atos similares por meio de entidades do movimento trans.
Marcha Trans e Travesti do Rio de Janeiro em 2023, teve como tema “Pelo direito de sonhar novos futuros”.
No contexto da articulação nacional, e com o apoio do Governo Federal, 2024 marcou a primeira edição da Marsha20 Nacional pela Visibilidade Trans21. Essa manifestação ocorre no Distrito Federal e, desde então, é realizada anualmente, sempre próxima ao dia 29 de janeiro, quando se celebra o Dia Nacional da Visibilidade Trans (instituído em 2004).
Essas mobilizações em grandes cidades reforçam nosso argumento de que os espaços urbanos são arenas onde as expressões de resistência, a defesa de direitos e os avanços na cidadania trans ganham força. Assim, a ocupação coletiva do espaço urbano por pessoas trans, especialmente através de marchas, é uma forma de resistência espacial contra a interdição, um enfrentamento direto às faces da marginalização e da violência Young (2021).
Completamos que a consolidação e expansão do movimento significaram avanços na garantia de direitos (Coacci, 2018), e as políticas em prol dessa população transformam a noção de “população-alvo” (Carvalho; Carrara, 2013) em uma compreensão desses sujeitos como cidadãs/os e atores relevantes.
Considerações finais
Ao longo deste trabalho, buscamos desvendar as particularidades de uma geografia dos sujeitos trans destacando as vivências espaciais das pessoas trans e travestis em contraponto à cisnormatividade que permeia a geograficidade. Neste sentido, a produção do espaço urbano se torna um campo de disputas políticas, no qual as trajetórias e lutas de coletividades dissidentes são constantemente renegociadas, tanto em termos de acesso a direitos quanto na própria constituição de suas identidades (Aguião, 2018). Nesse contexto, sujeitos corporificados tornados identidades políticas revelam não apenas as desigualdades enraizadas, mas também resistência reclamando a territorialização de direitos. Por esse motivo, acionamos a justiça territorial, defendendo que os direitos sociais, visando garantir a satisfação das necessidades humanas, sejam elas materiais e imateriais - de natureza econômicas, cultural, moral, afetiva, política e/ou ambiental (Lima, 2015) -, demandam o reconhecimento dos sujeitos, seja na garantia de direitos clássicos bem como na geração de novos direitos (Lima, 2015, p. 64).
O diálogo entre a Geografia e a Etnografia Urbana permitiu-nos explorar as interseções entre a produção do espaço e as dinâmicas sociais que atravessam a vida cotidiana de pessoas trans. A cisnormatividade, entendida como uma norma que regula e constrange expressões e identidades de gênero distintas das prescritas, não apenas organiza o espaço, mas também define quem tem o direito a ele. Dessa forma, visamos visibilizar os matizes das transidentidades, pois nem todas enfrentam da mesma maneira os três elementos das geografias interditas. Somado a isso, complexifica-se o olhar analítico para as espacialidades através de marcadores interseccionados de raça, classe, gênero, origem, faixa etária, deficiência, etc. Tendo em vista uma posicionalidade anticolonial, trazer à luz aspectos da produção desses vários sujeitos dentro desse grupo social mais amplo das transidentidades, alumbra que não se trata de experiências coerentes, mas reunidas por afinidades, em meio as contradições que constituem a realidade.
Em acordo com a argumentação de Lefebvre, “para que exista uma mudança, é preciso que um grupo social, uma classe ou uma casta intervenha imprimindo um ritmo a uma época, seja pela força, seja de maneira insinuante” (Lefebvre, 2021, p. 67, grifos no original). Por esse motivo, destacamos que o amadurecimento do movimento trans, seja pela via institucional ou pela via da sociedade civil organizada, tem sido fundamental para combater espaços opressores em direção a cidade decentes. Neste sentido, pomos em relevo a sigla T dentro do aforismo LGBTI+, concordando com Alvaro Ferreira quando diz que “uma característica fundamental dos movimentos sociais é nascer de uma vontade coletiva” (2013, p. 62).
Entendemos que é na cidade, lócus do poder, que na contemporaneidade surgem resistências que manifestam suas existências através de apropriações espaciais provisórias, nos referimos às manifestações políticas, como as marchas trans. Essas mobilizações reúnem inúmeras pessoas que por um lado celebram o orgulho de ser e trans-existir, enquanto também inscrevem na história-geografia outras imagens de corpo (Sennett, 2021).
Por fim, ao destacar as especificidades das vivências trans na cidade, contribuímos para a ampliação do debate sobre justiça territorial, evidenciando com os sujeitos corporificados a necessidade de políticas públicas que reconheçam e afirmem o direito à cidade decente (Lima, 2020b). Pois o caminho para uma cidade decente passa pela reflexão sobre a integralidade, garantia e efetivação dos direitos sociais, só assim ruma-se em direção contrária aos espaços opressores.
Agradecimentos
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio concedido por meio de bolsa acadêmica para o desenvolvimento desta pesquisa.
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1
Atravecar como movimento-ação, conforme Ferreira (2024), consiste em “atravessar-se pela travestilidade, própria ou alheia”. Neste sentido, mobilizamos este termo para um apropriar-se da teoria e construir um ensaio crítico entorno das trans-experiências (Barbosa, 2023).
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2
Não estamos imprimindo o selo normativo às geografias feministas, visto que elas abriram caminhos para que nós, hoje, pudéssemos analisar geograficamente a condição das vidas trans.
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3
Lohana Berkins foi uma travesti argentina militante pelos direitos humanos naquele país. Ela foi uma importante figura na aprovação da Lei n° 26.743/2012, conhecida como Lei da Identidade de Gênero, que completou 10 anos em 2022. Promulgada em maio de 2012, fez a Argentina ser pioneira na simplificação do processo de retificação do nome e gênero pela via administrativa, sem a necessidade de diagnósticos médico-psi. Disponível em: https://www.argentina.gob.ar/noticias/ley-de-identidad-de-genero-10-anos#:~:text=El%209%20de%20mayo%20de,con%20su%20identidad%20de%20g%C3%A9nero. Acesso em 28/01/2025.
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4
No original: “Cuando una travesti ingresa a la universidad cambia la vida de esa travesti, cuando muchas travestis ingresan a la universidad, cambia la vida de la sociedade”.
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5
A primeira onda do feminismo compreende o final do século XIX e início do século XX., O foco da luta era o direito ao voto, a educação, igualdade política, ao léxico básico da cidadania. A segunda onda feminista, conhecida também por “movimento de mulheres” focou no que convencionou chamar de liberação sexual, direitos reprodutivos, reconhecimento do trabalho não-pago. A terceira onda, parte do início dos anos 1990, rumo a confrontar algumas noções da segunda onda, considerando-se “sex-positive”, apoiando as trabalhadoras do sexo. As feministas da terceira onda estavam mais abertas a discutir a verdade inexorável do sexo, bem como houve uma abertura para pluralizar e deslocar a discussão para outras experiências de mulheridade/feminilidade (Stryker, 2017, s.p.).
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6
Este é um termo emprestado da biologia, propositalmente.
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7
Não que as travestis não sejam também pessoas trans, mas o peso semântico que essa identidade política carrega na vasta literatura dos estudos trans com deferência deve-se destacar.
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8
A não-binariedade se constitui enquanto uma identidade coletiva, inclusive, tendo alcançado reconhecimento legal para retificação do registro civil no Brasil, o primeiro caso ocorreu em 2020 (JUSBRASIL, 2022). Ainda que homens e mulheres trans escapem do traço analítico da binariedade, visto que este é um dos componentes da cisgeneridade (Vergueiro, 2018), e vivências pessoas não-binárias comporem o termo guarda-chuva trans, em nossa interpretação ambas as identidades políticas se situam à margem e/ou fora da binariedade do gênero.
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9
Denomina-se transfobia a violência produto da “discriminação, preconceito e subalternização de pessoas trans em virtude de suas identidades de gênero” (Miranda, 2018, p. 336). Todavia, a transfobia não é direcionada exclusivamente a pessoas trans e travestis, como pudemos acompanhar nas Olimpíadas de Paris em 2024 os ataques enfrentados pela boxeadora argelina, Imane Khelif. Para uma discussão mais aprofundada, indicamos o texto de Caia da Intersexo Brasil. Disponível em: https://www.instagram.com/p/C-K79yxOEWK/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA== Acesso em 7 de agosto de 2024.
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10
Para um aprofundamento, sugerimos o texto de Lima (2024), referenciado na bibliografia.
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11
Tratam-se de dois autores trans, Maria Léo Araruna, uma travesti, à época, graduanda em Direito na Universidade de Brasília (UnB), e Davi Miranda, homem trans, à época, mestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
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12
Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/babado-forte-erika-palomino/. Acesso em 28/01/2025.
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13
Para uma discussão a respeito da ética a qual nos referimos ver Lima (2020a), que é aquela da justiça territorial.
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14
Podemos referenciar personalidades brasileiras reconhecidas internacionalmente, tanto na vida política, como a deputada pelo estado de São Paulo, Érika Hilton (PSOL), e também na vida cultural, a cantora, compositora e atriz, Liniker.
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Importante salientar outros estudos que demonstram o grau de perversidade que tais crimes são cometidos, sobretudo, os números revelam as complicações na vulnerabilidade considerando outros marcadores sociais (Jesus, 2013; Silva et al, 2018; Nogueira, 2018).
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Termo utilizado pelas pessoas que compõem o movimento para se referir às que começaram as mobilizações e movimentações.
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MIDIA NINJA. Jovanna Baby: a história do Movimento Trans e Travesti no Brasil. Planeta FODA, Mídia Ninja. Online. 25 de janeiro de 2024. Disponível em: https://midianinja.org/jovanna-baby-a-historia-do-movimento-trans-e-travesti-no-brasil/ Acesso em 24 de maio de 2025.
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MIDIA NINJA. Marcha Trans e Travesti do Rio de Janeiro luta ‘Pelo direito de sonhar novos futuros’. Planeta FODA, Mídia Ninja. Online. 14 de novembro de 2023. Disponível em: https://midianinja.org/marcha-trans-e-travesti-do-rio-de-janeiro-luta-pelo-direito-de-sonhar-novos-futuros Acesso em 24 de maio de 2025.
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G1 RIO. Depois de quase 30 anos, Marcha Trans e Travesti volta a ocupar o Centro do Rio. G1 RIO. Online. 23 de novembro de 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/11/23/depois-de-quase-30-anos-marcha-trans-e-travesti-volta-a-ocupar-o-centro-do-rio.ghtml Acesso em 24 de maio de 2025.
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A grafia “Marsha”, em vez de “Marcha”, homenageia Marsha P. Johnson, uma travesti negra estadunidense que esteve à frente da Revolta de Stonewall, ocorrida em 28 de junho de 1969, no bar gay Stonewall Inn, em Nova York (EUA). A Revolta de Stonewall é um marco histórico do movimento LGBTI+ internacionalmente.
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RACE AND EQUALITY. Primeira ‘Marsha’ Nacional de Visibilidade Trans no Brasil. Race and Equality. Online. 30 de janeiro de 2024. Disponível em: https://raceandequality.org/pt-br/resources/primeira-marsha-nacional-de-visibilidade-trans-no-brasil/ Acesso em 24 de maio de 2025.
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Disponibilidade de dados
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo
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Financiamento
A publicação desse artigo contou com o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) # 401619/2024-9.
Disponibilidade de dados
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
12 Dez 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
29 Jan 2025 -
Aceito
25 Ago 2025



Fonte: Aventuras na História, página da UOL.
Fonte: MidiaNinja. Foto: Guará.