Open-access A Geografia de gênero não é um gênero de Geografia

Resumo

Neste artigo defendemos a ideia de que a Geografia de gênero não é um gênero de Geografia, buscando contribuir para a reflexão sobre aquilo que pode conferir sentido geográfico à relação Geografia-Gênero. Para tanto, realizamos uma revisão epistemológica e ontológica sobre natureza, corpo e técnica, admitindo-os como mediações importantes da relação, que, dialeticamente, pode se reproduzir como modos de ser-estar espacial no mundo. Nesse sentido, este artigo coloca o desafio ético-político de que as Geografias por vir considerem as questões de gênero como intrínsecas a um projeto anticapitalista, no qual o nosso estar no mundo com os outros, que se espacializa na multiescalaridade dos corpos que se conectam como coexistências, nos permita existir como quem queremos ser.

Palavras-chave:
Geografia de Gênero; ontologia da relação; corpo; natureza; técnica

Abstract

This article defends the idea that gender Geography is not a genre of Geography, aiming to contribute to the reflection on what might give geographical meaning to the geography-gender relationship. To this end, we have conducted an epistemological and ontological review of nature, body, and technique, considering them as important mediations in this relationship, which, dialectically, can reproduce as forms of spatial being-in-the-world. In this sense, this article poses the ethical-political challenge that future geographies consider gender issues as intrinsic to an anti-capitalist project, in which our being-in-the-world with others, that is spatialized in the multi-scale of bodies that connect as coexistences, allows us to exist as who we want to be.

Keywords:
gender geography; relational ontology; body; nature; technique

Résumé

Cet article défend l'idée que la géographie du genre n'est pas un genre de géographie, cherchant à contribuer à la réflexion sur ce qui pourrait donner un sens géographique à la relation géographie-genre. À cette fin, nous réalisons une révision épistémologique et ontologique de la nature, du corps et de la technique, les considérant comme des médiations importantes dans cette relation, qui, dialectiquement, peut se reproduire comme des modes d'être-spatial dans le monde. En ce sens, cet article pose le défi éthique et politique pour que les géographies à venir considèrent les questions de genre comme intrinsèques à un projet anticapitaliste, dans lequel notre manière d'être au monde avec les autres, qui est spatialisée dans la multi-échelle des corps qui se connectent comme des coexistences, nous permet d'exister comme nous voulons être.

Mots-clés :
géographie du genre; ontologie de la relation; corps; nature; technique

Espero apenas que a vastidão dos espaços exigidos pela presentificação do outro não oblitere as pretensões de clareza da análise.

(Gerd Bornheim, 1998).

Introdução

Este texto não é sobre Gênero e Geografia. Este texto é sobre teoria e prática geográficas. Mas é possível falar de teoria e prática geográficas hoje sem dimensionar as teorias e práticas de gênero? É possível falar das teorias e práticas de gênero desconsiderando as dimensões do geográfico nelas presentes, ainda que sem clareza de propósito ou interesse declarado? Este texto é sobre isso: sobre as condições de impossibilidades1, sejam elas epistêmicas e ontológicas, em que as considerações sobre gênero, realizadas em distintos campos do conhecimento, e também nas representações artísticas e/ou ficcionais, atravessam a Geografia e as geografias, de tal modo que possamos identificar a permeabilidade delas como impossibilidades existentes, mas que se manifestam, ainda que de modo espectral, em questões fundamentais da nossa tradição como conhecimento e como filosofia.

Advertimos, para que possamos compreender melhor o conjunto das intenções que pretendemos desenvolver neste artigo, que partimos de uma perspectiva, ao mesmo tempo, não essencialista e relacional de gênero e de Geografia. O que significa dizer que pensamos uma Geografia que considera que os modos de existência nas distintas formas do estar no mundo se reproduzem como conhecimento mediado pelos saberes e práticas espaciais da relação eu-outro, ou seja, da alteridade, que tradicionalmente lemos como relação homem-meio; sociedade-natureza; sociedade-espaço.

O fato é que, a despeito dos termos escolhidos, em razão do objetivo da leitura que queremos fazer, nos importa considerar o hífen que utilizamos quando queremos demarcar a existência da relação. Supomos que esse sinal gráfico revela uma espacialidade do entre, um espaçamento que caracteriza uma certa negociação entre os termos, mas também permite considerar que há tensão entre estes, não à toa é possível visibilizar as hierarquias estabelecidas historicamente como marca das relações, sobretudo quando adquirem um sentido dicotômico.2 São dimensões implicadas na relação eu-outro como aspectos da alteridade que iremos tratar, a propósito do nosso objetivo de pensar a relação Geografia-Gênero, considerando como fundamental a espacialidade ou, podemos dizer, a geograficidade inerente à relação, que produz um sentido geográfico às questões de gênero, capaz de abrir um horizonte ainda maior para a Geografia, supomos, do que o de tornar-se um campo ou uma especialidade entre nós.

Eu-outro neste artigo é referência na compreensão do sentido da relação por tratar-se de uma abordagem de Geografia que considera a ontologia além do debate pela via da epistemologia, algo que fizemos em texto anterior a propósito do debate sobre a geograficidade dos feminismos (Biteti, 2022). Consideramos, assim, que a relação sujeito-objeto seja insuficiente para pensarmos as relações que nos interessam tratar neste texto, pois há certos aspectos da espacialidade em que a alteridade eu-outro abre para novos significados ou sínteses que não se esgotam na subjetividade dos sujeitos ou na objetividade dos objetos, mesmo que sujeito e objeto possam participar da dinâmica do ser. Naturalmente, não nos escapa a pertinência dos trabalhos produzidos na Geografia que consideram os sujeitos corporificados como uma possibilidade de crítica ao mero subjetivismo.

No entanto, há um acúmulo de questões de cunho ontológico que julgamos importantes trazer como centrais neste trabalho, e tais apresentam reflexões sobre corpo e corporeidade que não necessariamente estão vinculadas às abordagens sobre os sujeitos, ainda que não prescinda delas. E, em última instância, chegam a questionar o próprio destino, afirmativo, da definição dos sujeitos pela filosofia e pela ciência, entendendo que há nisso uma espécie de teleologia humanista que reforça a hierarquia na dicotomia sujeito-objeto. Pensamos que disso possam resultar leituras meramente objetificantes do corpo, instrumentais da técnica e de controle ou domínio da natureza. Tais menções nos são caras por considerarmos que esses temas, o corpo, a técnica e a natureza, são permeáveis entre si e possibilitam relacionar Geografia e Gênero.

Assim, o objetivo principal deste artigo é refletir ontognoseologicamente a Geografia, em maiúsculo quando se refere à ciência, e as geografias, ligadas às existências e inscritas nos modos de vida, ambas permeadas pelos debates, teorizações e práticas de gênero. Metodologicamente, ainda que consideremos as práticas como fundamentais, optamos por selecionar discussões que são centrais na epistemologia e na ontologia geográficas, tensionadas pelo modo como aparecem nas teorizações de gênero. Por isso, optamos em não trazer tudo aquilo que já foi e continua sendo produzido na Geografia considerando essa intersecção. Admitimos a nossa desobediência epistêmica, mas desejamos que isso não seja interpretado como uma injustiça com quem veio antes.

Porém, como dissemos, se trabalhamos com as condições de impossibilidades, é necessário, ao menos, tentar ver o que não se realizou ou o que não adquiriu um protagonismo entre nós, tentando vislumbrar o que esteve a serviço dessas impossibilidades ou interdições. Dessa maneira, esperamos contribuir com a análise da Geografia do presente, o contexto deste texto, mas também com as Geografias por vir, considerando que o por vir não é aquilo que se coloca como o novo, mas aquilo com que, ao identificarmos as repetições, os espectros e a imaginação, possamos promover aberturas para o pensamento e as condições de existência aos seres os quais, participando da reprodução do espaço, encontram no aí do ser, no seu estar, as possibilidades que lhes garanta a permanência do diferir. Afinal:

Contra as reviravoltas dessas velhas estradas já trilhadas, o rastro/resíduo é a manifestação fremente do sempre novo. Porque o que ele entreabre não é a terra virgem, a floresta virgem, essa paixão feroz dos descobridores. Na verdade, o rastro / resíduo não contribui para completar a totalidade, mas permite-nos conceber o indizível dessa totalidade. O sempre novo não é mais o que falta descobrir para completar a totalidade, o que falta descobrir nos espaços brancos do mapa; mas aquilo que nos falta ainda fragilizar para disseminar, verdadeiramente, a totalidade, ou seja, realizá-la totalmente. (Glissant, 2005, p. 83).

Sendo assim, para o fim de nossa análise, faremos uma incursão por temas que consideramos fundamentais e comuns aos estudos geográficos e de gênero sem que necessariamente coexistam na mesma temporalidade. O nosso recorte é, portanto, temático, inclusive para fazermos inflexões, tendo em vista que a nossa perspectiva de tempo também não é linear, uma vez inspirados pela filosofia iorubana que diz que: “exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje”. Esse é o sentido de trazermos como pontos de convergência entre Geografia, geografias e gêneros os temas da natureza, do corpo e da técnica, pensados ontologicamente dos pontos de vista da existência, da relação e do movimento.

Vale ressaltar que a consideração do movimento não se limita aqui às mudanças de lugar ou fluxos, mas ontologicamente significa transformação ou capacidade de ser-outro. Daí serem fundamentos que reúnem dimensões epistêmicas e ontológicas ao geográfico, supomos. Poderíamos, para fins didáticos e de maior aprofundamento, escolher apenas um dos mencionados temas, dada a profundidade que cada um exige; mas, como eles por vezes se misturam e até se confundem, optamos por apresentá-los, tentando construir caminhos ou alternativas de vê-los em relação. Porém, entendemos que nós mesmos - e, também, quem nos lê - possamos aprofundar aquela relação que consideramos mais pertinente à própria pesquisa, qual seja. Isso confere a este artigo, ainda que preliminarmente, o desejo de que possa vir a ser, além de uma reflexão teórica, um ensaio de proposição de método.

Geografia e Ontologia da Relação

Inspiramo-nos na Poética da relação, de Édouard Glissant (2005, 2021), para pensarmos a relação em seu sentido geográfico ou, no que temos considerado ao longo do tempo, a relação eu-outro pertinentes às formas do nosso estar no mundo como seres que coexistem num mesmo horizonte objetivo comum. Neste texto, ao recorrermos a uma perspectiva existencial, entendemos que isso nos leva a falar de alteridade e relação eu-outro como algo que potencialmente permite ampliar a compreensão das relações espaço-temporais entre entes humanos e não humanos, em outras experiências de mundo e outras formas de ser-no-mundo, distintas, embora coexistentes, com as formas ocidentais que se hegemonizam, inclusive no próprio ocidente.

Diríamos que o conteúdo da relação aludida, sendo uma ontologia da relação, nos conduz para uma dialética do ser (Sartre, 2002), perspectiva que centraliza o nosso argumento. Se, nesse escopo, pretendemos pensar as diferenças na dialética, buscando trazer essa reflexão para a Geografia, entendemos que uma possibilidade de compreensão disso se dá pelo reconhecimento da escalaridade entre existências sobre as quais nos interessa refletir, sobretudo para os fins desse texto, aquelas que não se realizam como padrão, norma, ou como paradigma diante das inúmeras estratégias espaciais de normatização e normalização que constrangem, quando não exterminam, as possibilidades do coexistir das diferenças, do movimento do diferir e da diversidade.

Um elemento que marca a nossa intenção com essa discussão, tendo em vista as interfaces possíveis e de fertilização mútua das teorias geográficas e das teorias de gênero - para contribuir com as reflexões acerca de uma Geografia com gênero, e não de um gênero de Geografia -, é justamente trazer à tona o aspecto relacional da Geografia em algumas abordagens da nossa história como saber e como ciência, buscando entender como a nossa particularidade torna isso um traço distintivo em relação às outras ciências que se constituem como ciências modernas, numa ruptura com a sua forma clássica de saber, por intermédio dos conceitos, tal como analisa M. Foucault em As palavras e as coisas (1966).

Ruy Moreira, em Para onde vai o pensamento geográfico? Por uma epistemologia crítica (2006), nos oferece uma periodização da Geografia, considerando as rupturas dos paradigmas, tal como mencionamos a propósito da leitura foucaultiana, mesmo sabendo que nenhuma ruptura se dá por completo, ou seja, que há continuidades e descontinuidades entre os períodos e, de mesmo modo, processos que implicam recuperar aspectos de um paradigma anterior e atribuir novos significados e significantes no presente, já que as ideias se instituem no real, em contextos geográficos diferenciados e numa relação de saber-poder. Moreira considera, então, três fases paradigmáticas: “o paradigma holista da baixa modernidade, o paradigma fragmentário da modernidade industrial e o paradigma holista da hipermodernidade (ou pós-modernidade), como tendência atual” (Moreira, 2006, p. 13). É uma combinação de fontes de referência filosófica com seus respectivos formatos que o autor considera.

Sendo assim, a propósito do período atual da Geografia, haveria uma pluralidade de referências filosóficas, as quais, supomos, podemos situar as referências que pautam as teorizações de gênero que trazemos para este artigo. Mas isso não significa desconsiderar os outros períodos, sob pena de reforçar uma abordagem fragmentária, nesse caso, de um tema que pode aparecer como novo, mas que dialoga com a nossa tradição, a despeito de ser uma possibilidade à época.

Se a “baixa modernidade” geográfica teve a marca do holismo proveniente das referências filosóficas do idealismo e do romantismo alemão, falamos de uma Europa que assume como projeto de poder o controle do mundo no jogo da unificação-fragmentação dos territórios, ou seja, toda uma dinâmica espacial de reprodução que se consolida por meio de mudanças na política, na ciência e no pensamento da época. A Geografia muda porque os processos sociais, o mundo material e as subjetividades mudam, mas precisamos ver isso no contexto das relações econômicas e de poder, por exemplo, para compreendermos o sentido da fragmentação positivista da Geografia “na modernidade”, e, com isso, identificarmos as nuances da chamada crise da modernidade, ou a própria noção de que “jamais fomos modernos” (Latour, 1994), para alcançarmos a complexidade do período atual, tanto para a Geografia como para propormos uma relação Geografia-Gênero.

Sabemos que na epistemologia geográfica existe uma forte tradição de definir recortes espaciais levando-se em conta aspectos comuns que, combinados, podem demonstrar uma estabilidade ontológica capaz de caracterizar uma identidade e, assim, estabelecer uma relação via comparação com outros recortes identitários, sendo essa uma marca da Geografia Regional de inspiração vidaliana, por exemplo. Existe aí uma dimensão corológica que se organiza metodologicamente pela comparação, visando estabelecer as “individualidades regionais”. Nesse sentido, a classificação é um modo específico de relação da diferença e da identidade que marca a representação científica moderna, ao qual a Geografia não escapa e que repercute numa prevalência da identidade pela supressão da diferença (Moreira, 2007).

Quando projetamos outros sentidos de relação, pensando que os recortes espaciais não precisam ter, necessariamente, um caráter de área e que, inclusive, podemos pensar os corpos como partes constituintes de uma espacialidade relacional, essa perspectiva nos conduz para existências multiformes, abertas ao por vir, ao margear (Bitet; Grandi, 2024) e à transformação, isto é, situações que tensionam as fronteiras que separam eu-outro porque admitem permeabilidades, porque diferem, porque são pensadas em suas alteridades espacializadas.

Desse modo, entendemos que uma de nossas tarefas ao pensar a relação Geografia-Gênero seja a de evitar um encarceramento dos corpos em suas corporeidades espacializadas, tal como quando os vemos como unidades de caráter identitário. Entendemos que isso possa impedir inúmeras possibilidades de existência de corpos abertos ao mundo, que se reproduzem como mundo margeando as fronteiras das identificações, mas que, para tanto, precisam que haja um mundo aberto para eles, onde possam se reconhecer como partes integrantes e constituintes. Há uma dialética desejável, assim como nos coloca Moreira:

Diferença ou dialética? Antes do mais, dialética da diferença. Diferença dialética como conteúdo concreto. Não diferença como mediação da identidade, pura categoria do método da representação. Diferença concreta. Mas, sobretudo, reafirmação do sujeito da/na história (Touraine, 1994). Sujeito que se polimorfiza na diferença. E diferença que se reafirma no/como sujeito. Mas também morte do sujeito universal, diante do (re) nascimento do sujeito múltiplo. Morte e nascimento do sujeito, dialeticamente juntos. (Moreira, 2007, p. 171).

A relação existe mediante a distinção dos termos que a constitui, mas não se trata de distinções fixas, imutáveis, mas condizentes com a história do ser, perspectiva de uma dialética ontológica, que, portanto, não se resume à condição de método, mas ao próprio modo de ser das coisas, considerando as mudanças e os movimentos, tal como aprendemos em G. Bornheim (1983). Nesta, há o movimento em que o ser salta do estar como sentido da relação, e para nós isso constitui a geograficidade (Biteti, 2014), de tal forma que nos cabe identificar quais são as mediações do movimento. Entendemos que o espaço é uma categoria acionada para garantir que a relação possa se dar; uma das mediações, portanto. De tal forma, aquilo que se repete (que não é repetição do mesmo) pode conferir um sentido de permanência das condições que possibilitam que todos os corpos que estão no mundo, em função do modo como estão, possam ser quem querem ser, o que pressupõe a sua própria feitura. Mas, para isso, é necessário assegurar a repetição da diferença, do diferir, e a reprodução do não normativo.

Não à toa, J. Butler (2019), quando trata da performatividade de gênero, nos chama atenção para as condições históricas criadas para a reprodutibilidade do Mesmo e não do Outro. Desse ponto decorre, supomos, uma das maneiras de considerarmos o “desencaixe espacial dos sujeitos” (Moreira, 2007), se entendemos que o espaço é uma dimensão importante do nosso estar no mundo, um coconstitutivo das existências e não uma exterioridade de sentido cartesiano. Afinal, em sendo corpo somos espaço, algo que não deveria ser desconsiderado quando pensamos a produção do espaço (Lefebvre, 1974), tampouco quando pensamos a produção dos corpos.

Daí, inevitavelmente, o nosso pressuposto teórico é, ao mesmo tempo, político, assim como podemos ver em D. Harvey (2004) e D. Massey (2008), cada um à sua maneira, mas compartilhando de críticas ao modo não só como concebemos o espaço e o corpo na Teoria Geográfica, mas também, e, sobretudo, aos modos concretos de relações e práticas espaciais impostas pela modernidade capitalista, que se reproduzem em um desenvolvimento desigual segundo N. Smith (1988), mas enquanto um projeto totalizador, tal como dissemos em artigo recente sobre “Uma economia espacial dos corpos” (Biteti, 2024).

Nas proposições dos geógrafos D. Harvey, em seu Espaços de esperança (2004), e D. Massey, em Pelo espaço (2008) ao convocar “uma nova política da espacialidade”, o que vemos são iniciativas que visam considerar as diferenças e as experiências à luz de uma imaginação espacial que se queira transformadora do mundo e das condições da vida; nesse sentido, é um por vir que precisa se realizar espaço-temporalmente. Repetimos a perturbadora frase que J. Butler (2019), inspirada por T. Adorno, dispara em algumas de suas reflexões nas quais a condição dos corpos generificados se vincula à de outros corpos precarizados pela raça, classe, idade, condição de migrante, diante das ameaças constantes às suas existências, seja pelo regime de controle e punição sobre suas ações e seus corpos, seja pela destruição do ambiente construído e de suas formas de habitar. Pergunta ela: “É possível viver uma vida boa em uma vida ruim?”

Como as Geografias de Gênero contribuem para a nossa compreensão do mundo e de nós mesmos como seres no mundo? O que é o Gênero do ponto de vista de sua Geografia? Diante dos questionamentos que aqui propomos fazer partindo da Geografia, naquilo que apontamos como condições de impossibilidades entre nós, pretendemos nos debruçar sobre alguns fundamentos que articulam um nexo ontológico da relação na Geografia e nas teorias de Gênero, como aparece na citação inicial desta seção “fragilizando para disseminar” e para identificar algumas de nossas impossibilidades.

Trataremos, assim, de fazer breves incursões, mediados pelo que aqui apresentamos como nexo ontológico de sentido existencial da relação eu-outro; mediações que se configuram como espacialidade para visualizarmos algumas de nossas impossibilidades ao tratar Natureza, Técnica e Corpo, nessa perspectiva. Isso por entender que tal discussão é necessária para que possamos traçar paralelos com os conteúdos análogos nos debates de gênero, imbuídos do propósito de encontrar fertilizações recíprocas, já que existe uma permeabilidade temática, mas cujo objetivo, ao final desse instante, é o de afirmar Geografias por vir.

Sendo assim, se o espaço é uma mediação do meu estar no mundo, de tal modo que podemos visualizar tendências e formas de organização espacial da sociedade, no entanto, é indispensável entender continuidades e descontinuidades, ordem e desordem na dinâmica do movimento. Se a sociedade se reproduz e precisa se repetir, o espaço é uma categoria da repetição e da reprodução, dialeticamente com os processos sociais. Ao pensarmos o corpo como espaço, precisamos nos dar conta daquilo que pode soar como um paradoxo, pois sabemos que o espaço não é sujeito que organiza, é a sociedade que se reproduz espacialmente diante da relação com o outro, pressupondo aí uma alteridade.

Nesse sentido, quando nos referimos aos corpos como espaço e, por isso, uma escala ou recorte espacial que se relaciona com outros recortes, sabemos que os corpos-escala (Biteti; Grandi, 2024) são agentes cuja ação pode ter um caráter transformador do mundo e das condições existenciais, sobretudo se pensarmos na perspectiva dos corpos políticos.

Diante dessa e de outras questões que reafirmamos a necessidade de considerar a ontologia da relação mediante uma dialética do ser, também para ver o que se situa no entre ser, espacialidade marcada por tensionamentos, que podem se tornar conflitos e contradições em vista de sua superação. Tal abordagem não é possível fazer do ponto de vista exclusivo da epistemologia geográfica, mas pensando a Geografia como ontologia, como modo de estar no mundo dos entes, humanos e não humanos, que, diante das múltiplas determinações do concreto, em relação, possam vir-a-ser, adquirindo assim um sentido que temos chamado de geograficidade (Biteti, 2019, Biteti, Moraes, 2014, 2019).

Interessa-nos tratar a dialética do ser considerando o movimento contínuo da relação entre ser e ente, finito por ser histórico, porém sempre aberto a novas contradições, como um processo que não se resolve no eu ou na consciência, mas como abertura diante de um real inapreensível em sua integralidade. Por isso, nos dedicaremos a falar daquilo que se coloca como outro, tendo em vista que é na diferença que a relação é possível, e é numa relação dialética que o ser salta do estar como sentido da relação de alteridade. De que modo entender isso na produção do que somos, mediada pelos modos pelos quais coexistimos no mundo, mas num mundo que não é o mesmo, é um desafio que ultrapassa qualquer campo de especialidade da Geografia, sem deixar de ser geográfico.

O debate da natureza na relação Geografia-Gênero

Falando francamente - por mais que eu goste de escolher imagens para estas coisas -, falando francamente, sua origem de macaco, meus senhores, até onde tenham atrás de si algo dessa natureza, não pode estar distante dos senhores como a minha está diante de mim. Mas ela faz cócegas no calcanhar de qualquer um que caminhe sobre a terra - do pequeno chipanzé ao grande Aquiles. (Kafka, 1999, p. 41-47)

Nessa passagem do texto literário “Um relatório para uma academia”, publicado no livro Um médico rural (1919/1996), o escritor Franz Kafka, na figura de seu personagem, Pedro Vermelho, satiriza o que é visto como uma evolução da condição de natureza do macaco para a condição de cultura do homem, ao qual ele é indagado pela Academia. O nosso destaque diz respeito à inversão que o texto propõe quando atribui uma liberdade à natureza em contraste com as prisões humanas. Aqui, consideramos a história da Filosofia para identificar algumas influências pelas quais o debate da natureza chega até as Ciências no período na modernidade, especialmente na Geografia.

Entendemos que seja um caminho para compreendermos a subjetividade de uma época relativa ao tema, concordando com o que diz Merleau-Ponty: “não são as descobertas científicas que provocaram a mudança na ideia de Natureza. É a mudança na ideia de Natureza que permitiu tais descobertas” (1994, p. 25). Podemos, na mesma medida, contrastar a ideia de natureza forjada pela modernidade europeia ocidental com outras ideias e experiências de naturezas que não se pretenderam universais, pressupondo que delas possamos extrair outros sentidos de relação com a natureza capazes de produzir novas compreensões para uma Geografia com gênero.

Colocamo-nos a intenção de pontuar algumas dificuldades que o debate da natureza na modernidade ocidental trouxe para a Geografia, de modo a reivindicar uma ampliação de escopo, em que Outras naturezas, outras culturas (P. Descola, 2016) possam permear o vínculo que estamos tentando estabelecer entre Geografia-Gênero, sobretudo numa crítica à essencialização da natureza, que, para nós, ocorre tanto pela definição biológica admitida, como pela atribuição de uma fixidez na distinção ontológica entre humano e natureza, reforçado pela dicotomia nas Ciências em geral. Nessas perspectivas, certos corpos não normativos de gênero são questionados em seu próprio sentido de humanidade, assim como fora feito com os corpos colonizados, em ambos os casos, tomados como bestas ou animalizados. Tal compreensão justifica historicamente um conjunto de ações, como, por exemplo, as missões civilizatórias, as guerras santas, os encarceramentos, as cirurgias de normalização do sexo, e muitas formas de violência e extermínio.

Na Filosofia, existem concepções distintas sobre natureza. Identificamos pelo menos três visões, mesmo correndo o risco da generalização. Uma visão mais antiga, na qual a natureza aparece como princípio do movimento ou substância, o que caracterizaria uma metafísica da natureza, tal como em Aristóteles (período clássico da Filosofia antiga). Existe também uma perspectiva na qual a natureza é apreendida como ordem necessária ou conexão causal, tomada como exterioridade em contraposição à interioridade da consciência (seja no racionalismo, seja no empirismo filosóficos). E, ainda, uma outra visão que considera a natureza um campo de unificação de certas técnicas de investigação (podemos encontrar em Filosofias pragmáticas ou empíricas).

Mas diríamos que o período do Renascimento consolida uma perspectiva que contrapõe natureza e homem, e, mesmo quando se proclama a “volta à natureza”, entendemos que tenha sido ao sentido aristotélico que se retorna, o que significa ver a natureza como um princípio diretivo no homem sob a forma do instinto (vide Rousseau e o bom selvagem). E há uma visão recorrente que se estende por muito tempo, diria até da antiguidade à modernidade, que comunga de uma perspectiva predominante da natureza como ordem e necessidade na qual é acentuada a regularidade, e que serve de base para a noção de lei natural, pressuposto não somente do direito, da moral, como também da Ciência Moderna.

A. Vitte (2007) afirma que a Geografia moderna é herdeira do debate filosófico sobre a metafísica da natureza que chega até Kant. Os elementos marcantes dessa influência estiveram pautados pelo paradigma biológico de organismo, no qual as leis da natureza são apriorísticas. Essa natureza-organismo possui um sentido de totalidade com finalidade. Nesse sentido, é possível atribuir a função de lei, ligada a um princípio seja mecânico, seja moral.

Nos estudos de Gênero, também há uma presença marcante da ideia orgânica de natureza que define o corpo humano como biológico, de tal modo que a diferença sexual chega a protagonizar o debate da diferença definida pelo órgão genital, e isso como a referência principal na atribuição dos gêneros. Ou seja, se estabelece uma ordem binária da diferença, sendo esta fixa e essencializada, para daí deduzir o que seriam os gêneros masculino e feminino como ordem ou lei natural. Importa dizer que tal perspectiva coexiste com a produção concreta das hierarquias sexuais (Federici, 2017), que atribuem às mulheres o papel de reprodutoras biológicas da espécie, fundamental à reprodução mais geral do capital por meio do trabalho não remunerado, e que condena à anormalidade qualquer existência que não se encaixa no binarismo do sexo e do gênero.

Portanto, considerar que o limite que define e separa humanidade e natureza pode não ser fixo permite deslocar o gênero da perspectiva da diferença sexual de cunho biológico. Entretanto, isso pressupõe ampliar a ideia de natureza que temos como uma condição para que possamos compreender o que acontece próximo ao limite, na espacialidade do entre, dotada de força conflitiva e até transgressora, que se manifesta nas existências Trans e Queer. Para tanto, porém, é necessário qualificarmos a relação de alteridade entre os entes, para compreendermos as potencialidades de transformação inerentes ao movimento dialético, incluindo nisso a autotransformação.

Na teoria geográfica, as tentativas de abordagem de sentido relacional são perceptíveis tanto na perspectiva holista de interação entre as esferas do inorgânico, do orgânico e do humano no período da baixa modernidade geográfica, em Humboldt, como na perspectiva de relação integradora da natureza nas abordagens geossistêmicas, quanto na perspectiva crítica de inspiração marxiana, ainda que tais iniciativas de visão integradora, exceto em Humboldt, tenham se dado no contexto da divisão atribuída entre o que seria Geografia Humana (pela via do metabolismo do trabalho, que relaciona homem e natureza, mas confere uma centralidade ao homem) e Geografia Física (pela via da interação e complementaridade entre os elementos naturais, que pode incluir o homem, mas confere uma centralidade aos elementos naturais).

E, mesmo diante dessa diversidade das abordagens que aqui mencionamos a título de exemplos, mesmo que fosse necessário um maior aprofundamento de cada um em suas diferenças, supomos que, em todos esses casos, ainda haja a perspectiva da dominância biológica e do estabelecimento de uma distinção ontológica fixa entre os termos da relação, reforçando assim uma perspectiva dicotômica em que sempre há um polo hierárquico superior na relação e, por vezes, desconsidera a dimensão moral presente nas leis, inclusive naturais. De tal modo, pensar a natureza, e não somente os fenômenos naturais, é uma tarefa ontológica posta à relação homem-natureza para a Geografia e, por isso, importante à pretensa Geografia com Gênero.

No entanto, supomos que haja uma dificuldade criada pelo fato do nosso olhar estar centrado numa diferença ontológica homem-natureza definida de maneira estável e hierárquica no tratamento que damos à natureza na Geografia, mas não somente entre nós, visto que é próprio da modernidade ocidental europeia definir um limite rígido entre natureza e cultura. O fato é que a centralidade do biológico na definição da natureza repercute tanto na Geografia como nas teorizações de gênero, vinculando necessidade à sobrevivência, de modo que tudo o que se aproxima do mundo da natureza nega o sentido de liberdade como projeto humanista (motivo de termos iniciado essa seção com a sátira feita por Kafka).

Há nisso um sentido de degenerescência da natureza, que inevitavelmente chega ao corpo em contraste com a valorização da cultura e do espírito. Diante disso, é recorrente que tudo o que se fala sobre corpo vinculando à natureza, algo que se manifesta sobretudo quando falamos das mulheres, das pessoas trans ou de quem performa o gênero fora da ordem binária e cis, e diríamos, também dos corpos colonizados ou periféricos, assuma uma visão moral.

O filósofo Vladimir Safatle pontua a necessidade de pensar um outro lugar para a natureza, fazendo menção ao artigo da Constituição Equatoriana que define a natureza ou Pacha Mama como sujeito de direitos. Segundo diz, tal decisão política coloca em discussão a distinção entre pessoas e coisas numa sociedade em que as pessoas desejam ser livres subordinando as coisas. Tal perspectiva nos parece interessante quando consideramos o argumento de P. Descola numa Conferência publicada como livro cujo título é: Outras naturezas, outras culturas. Diz o autor, em tom de crítica: “Resumindo, entre humanos e os não humanos existe uma diferença importante: os humanos são sujeitos que possuem direitos por conta de sua condição de homens, ao passo que os não humanos são objetos naturais ou artificiais que não têm direitos por si mesmos” (2016, p. 9).

Objetivando deslocar o olhar das culturas ocidentais no que tange à lógica de controle e domínio da natureza, fomos buscar referências de outra relação na cultura banto africana. Fizemos isso num texto Ontologia Ubuntu: natureza ser-com-homem (Biteti; Moraes, 2020). Neste texto, formulamos como um dos objetivos problematizar noções que partem de um sentido universal de homem e de natureza, operando pela via da dicotomia. Em contraste com isso, Ubuntu descentraliza o lugar do homem em suas relações com outros seres. Não se trata de uma ética humanista concentrada no homem, mas um modo de ser-com o outro, com a natureza, com a vida. Isso, nas palavras de Bas’llele Malomalo (2010), é o elemento central da filosofia africana, que concebe o mundo como uma teia de relações entre o divino, a comunidade, e a natureza (composta de seres animados e inanimados).

M. Sodré, ao falar do sistema nagô, diz que certos símbolos fundamentais à dinâmica da vida são mantidos, diferentemente das sociedades que se constituem influenciadas pelo racionalismo filosófico europeu. Um exemplo importante é Exu. Exu é um elemento dinâmico, investido de uma potência presente em tudo o que existe, princípio simbólico de diferenciação pelo movimento e pela comunicação. Nesse sentido, a individuação se faz pela assimilação do mundo, de forma holista e não atomizado como nas culturas ocidentais de um modo geral, tal como podemos ver na citação a seguir:

Curiosamente, as culturas que mais adequam o orgânico ao inorgânico, ou buscam a positividade do ser numa aspiração cósmica em que se inclui o natural, não dispõem de uma palavra específica e centralizadora para essa exterioridade ao homem: a palavra “natureza” é latina. Mas o campo de força por ela designado é um universal concreto, está presente em todas as culturas, sem obedecer, entretanto, a uma ontologia fixa, de modo que se pode falar em diferentes naturezas, correspondentes a diferentes perspectivas simbólicas. É que a natureza e linguagem são criações conceituais destinadas a dar uma forma organicista - onde as coisas interligam-se racionalmente, e cada objeto deve ser apreendido num todo - à singularidade histórica do antigo grego, assim como comparecem, mesmo conceitualmente “ex-nominadas”, em cosmologias de Arkhé. (Sodré, 2017, p. 200).

Nessa linha, sobre as comunidades indígenas “brasileiras”, Viveiros de Castro (2009, 2018) afirma que a distinção clássica entre natureza e cultura nas cosmologias ocidentais não pode ser pensada da mesma maneira nas cosmologias indígenas. Viveiros de Castro apresenta, inclusive, muitas marcas contrastivas entre esses modos de pensar e ser. É diante disso que afirma o contrastivo “multinaturalismo” ao proclamado “multiculturalismo” das sociedades ocidentais. Segundo ele, “a concepção ameríndia suporia, ao contrário, uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos” (Viveiros de Castro: 2018, p. 4). Entre os ameríndios, a natureza e a cultura são parte de um mesmo campo sociocósmico.

O multinaturalismo é a base do perspectivismo de Viveiros de Castro, algo ligado a uma ontologia variável, diferente de um relativismo, já que não opera pela representação. Inclusive porque a ênfase ameríndia está no corpo, lócus do embate entre humanidade e natureza. Supomos que isso contrasta com a ideia de uma diferença ontológica definitiva, em que o Dasein é somente humano e, tal como diz Heidegger (2003), o animal é pobre de mundo. O multinaturalismo abre para a possibilidade de uma instabilidade ontológica que tensiona certos limites que definem as identidades.

Nesse sentido, quando propomos pensar ontologicamente a relação, de tal modo que isso possa contribuir para as teorizações não apenas da Geografia no percurso de sua epistemologia, mas também de Geografias por vir, o que pressupõe o encontro e fertilização recíproca com as teorizações de gênero, nos interessa justamente tensionar as fronteiras do eu-outro e propor considerar as alteridades com não humanos como significativas (Haraway, 2016). Quando P. Descola propõe algo Para além de natureza e cultura, é justamente o limite fixo entre as fronteiras que ele problematiza e nos inspira a pensar sobre essa possibilidade quando diz, dentre outros tantos argumentos os quais desenvolve, que:

Muitas sociedades ditas “primitivas” convidam-nos a essa superação, elas que jamais sonharam que as fronteiras da humanidade acabavam nas proximidades da espécie humana, elas que não hesitam em convidar ao concerto de sua vida social as plantas mais modestas e os animais mais insignificantes... (Descola, 2023, p. 16).

Poderíamos seguir a direção de propor uma descolonização da ideia de natureza forjada pela modernidade, mas tememos que isso não seja suficiente. Primeiramente, dado à coexistência de formas distintas de existir como natureza e como cultura, ainda que isso implique no reconhecimento das impossibilidades de permanência produzidas por relações de poder e por modos de produção do projeto moderno-colonial que são impostos a muitas dessas sociedades. No entanto, desejamos reconhecer que as permanências produzem coexistências, e, diante dos encontros, não há como negar a possibilidade das convergências, dos contágios, das misturas e, também, dos conflitos e das contradições.

Talvez precisemos deslocar e descentralizar espacialmente, tal como fez Susan Buck-Morss em seu livro Hegel e o Haiti (2013), ao constatar que os ideais da Revolução Francesa se realizaram em solo haitiano, como ruptura e como Revolução. Isso significa dizer, também, que autores fundamentais possam ser margens, ainda que estejam nos centros, e que não é possível abrir mão da “monstruosidade” do Paul Preciado, do “ciborgue” da Donna Haraway, da Teoria Queer da Teresa de Lauretis, da performatividade de gênero da Judith Butler, como veremos a seguir, e tantos outros que lançam mão do pensamento clássico, boa parte dele europeu, para produzir uma riqueza enorme de discussões sobre gênero e sexualidade, apontando para os limites e as fronteiras daquilo que hegemonicamente se legitima como natureza e como cultura na Modernidade.

O debate do corpo na relação Geografia-Gênero

Se destacamos a natureza como tema fundamental da relação Geografia-Gênero, diríamos que a abordagem do corpo é análoga, já que tradicionalmente o corpo é compreendido como natureza, circunscrito ao campo da necessidade e, nesse caso, acaba sendo colocado como o polo inferior da relação com o espírito. Nessa perspectiva, o corpo fora visto como o lugar do pecado, do desejo e da emoção, que precisava ser controlado pela razão. Corruptível de tal modo que, no escopo da modernidade colonial, dividia-se o mundo entre os povos do corpo (colonizados) e os povos do espírito (colonizadores), afirmando, mediante isso, um conjunto de práticas civilizatórias por meio das missões catequizadoras e, também, artísticas, isso sem contar com as chamadas “guerras santas” (Alencastro, 2000), em que não bastava civilizar, mas, inevitavelmente, exterminar.

Diante desse espectro de degradação em que o corpo e a natureza são alvos primordiais, nos constituímos como Ciência Moderna. Em Dialética do esclarecimento (1985), Adorno e Horkheimer oferecem uma ideia disso quando tratam da viagem de retorno de Odisseu a Ítaca, uma poesia épica escrita por Homero na Antiguidade mas que aparece como um fantasma da modernidade, diríamos, principalmente quando atribuímos centralidade à razão na produção do sujeito moderno, algo que pressupunha o controle do corpo e da natureza. A propósito dessa leitura, a filósofa Olgária Matos (2009) afirma que a constituição do eu e do sujeito se dá diante da negativação de tudo que lhe é exterior, incluindo a própria negação da relação com esse outro externo, que deve ser dominado.

Segundo a autora, o mito, base de outras sociedades, se constitui por um mimetismo que permite a relação homem-natureza. Já a Ciência, definida pelo princípio da identidade, ao negar a alteridade, objetiva a natureza para dominá-la e reduzi-la ao mesmo, ao Sujeito. Assim faz Odisseu. Em sua viagem de retorno a Ítaca, que aqui consideramos como uma viagem do pensamento, tendo como destino a conformação do sujeito racional, haja vista todo tipo de desejo, de errância e de paixões atribuídos à natureza e ao corpo serem rejeitados. Para tanto, o corpo precisava ser contido, amarrando-se ao mastro ou tapando os ouvidos. O fato é que ter controle sobre a natureza pressupunha exercer a renúncia do desejo do corpo, sendo essa a condição da liberdade e da cultura.

Podemos dizer que nas últimas décadas houve um incremento nas abordagens sobre corpo e corporeidade na Geografia, assim como em outras Ciências, como na Filosofia, e como pauta dos movimentos sociais, sobretudo os de caráter identitário. Entre nós, essa abordagem pode ser compreendida na perspectiva do terceiro momento paradigmático apontado como proposta de periodização por Moreira (2007), estando situado no âmbito de um retorno ao holismo como crítica à modernidade, reunindo múltiplas referências, dentre as quais a fenomenologia, o marxismo, os estudos culturais e as filosofias da linguagem, como teorizações importantes. Mas há que se destacar o papel importante dos movimentos sociais feministas, negro, indígenas, LGBTQIAP+ como forças de mudança e questionamento sobre o papel da Ciência diante das crises sociais, ambientais e políticas que vivemos.

Precisamos ter em vista a relevância teórica e política desses deslocamentos para pensarmos os seres sociais, levando-se em conta as suas experiências e o seu posicionamento no mundo, em termos tanto de localização geográfica stricto sensu, como de posicionalidade entre os marcadores sociais de gênero, raça, classe, idade, dentre outros, em que o corpo aparece como uma evidência inquestionável.

Mas se até aqui buscamos contribuir para a compreensão do modo como o corpo fora produzido como um problema a ser controlado, civilizado, normatizado, superado, exterminado, algo que não se limita à ideia de corpo, mas aos corpos concretos, históricos, o nosso questionamento passa a ser, portanto, se é suficiente apenas reivindicar a centralidade do corpo nas teorizações de gênero na Geografia, desconsiderando as formas as quais os corpos foram se reproduzindo concretamente, simbolicamente, como discurso, representação e ideologia, em todo período da modernidade, vinculados às inúmeras estratégias de poder no capitalismo, que ganham expressividade nas configurações espaciais. Recentemente colocamos essa questão:

Se o corpo pode ser reconhecido enquanto realidade empírica e, portanto, não pertencente a nenhum campo científico específico, nos perguntamos como um olhar atento à espacialidade poderia ajudar no processo de complexificação dos conhecimentos a respeito dessa entidade espacial e, ao mesmo tempo, evitar sua reificação. Embora reconheçamos a pluralidade de abordagens espaciais possíveis a respeito do corpo, nosso intuito aqui é indicar como o debate sobre a dimensão escalar do espaço pode contribuir com as reflexões sobre os processos, práticas e ações que constituem os corpos e, ao mesmo tempo, condicionam a influência que estes exercem sobre a construção do espaço, ressaltando a multiplicidade que os constitui enquanto produtos e produtores de espaços. Neste texto nos propomos a iniciar uma aproximação teórico-filosófica com interesse sobretudo metodológico entre o corpo e o debate sobre a escala geográfica, formulando a proposição conceitual do corpo-escala. Tal formulação tem como objetivo ressaltar as ideias de movimento, deslocamento e co-constituição -além de destacar o indissociável caráter político dessas ideias e o potencial das abordagens preocupadas com a posicionalidade (hooks, 2013; COLLINS, 2016; KILOMBA, 2019; HARAWAY, 1995), a performatividade (BUTLER, 1990, 1997) e a desestabilização das margens do corpo (HARAWAY, 1991) - para a complexificação das análises interessadas em vê-lo enquanto recorte espacial. (Biteti; Grandi, 2024, p. 73).

O apontamento que fizemos vai ao encontro dos argumentos deste artigo, que busca contribuir para a reflexão sobre a teoria e prática geográficas em consonância com as teorizações e práticas de gênero, mas para pensarmos, afinal, o que é o gênero do ponto de vista da sua Geografia? Ou, então, o que é a Geografia do ponto de vista da diversidade dos gêneros? Nesse sentido, quando falamos em corpos, queremos problematizar as dicotomias hierarquizantes e a centralidade da razão, não para criarmos uma nova centralidade no corpo, mas sim para desbravar as múltiplas associações, identificar as tensões dos limites entre as identificações, reconhecer a possibilidade do movimento do tornar-se outro, valorizar as formas de existência que se apresentam como Transgêneros ou Queer.

Para tanto, entendemos que seja fundamental destituir os corpos do seu sentido estritamente biológico, admitindo-os como constructos socionaturais dinâmicos e processuais. Ao pensarmos que a produção dos corpos não é alheia à produção do mundo, diríamos que tudo é, sempre, reprodução, ou seja, uma abertura ao outro e uma repetição da diferença em que não é possível identificar origem, já que o que há é e está em relação. Nessa direção, podemos dizer que os corpos são políticos e que as suas ações recíprocas de produção do mundo e de si, como processos de reprodução, podem ser admitidas e visualizadas numa escalaridade, tal como sugerimos como referência de método inspirados em Grandi (2023).

Assim dito, a particularidade do nosso interesse é relevar a escalaridade das relações que configuram os arranjos espaciais, tomando como referência o corpo não hegemônico. E por quê? Porque entendemos que tais corpos nos permitem ver relações e configurações que a Ciência, regida pelo princípio da identidade, não torna visível e nem tampouco considera. E, também, na perspectiva das práticas e lutas empreendidas por esses corpos considerados dissonantes ou abjetos (Butler, 2019; Kristeva, 1980), na qual a desigualdade de gênero é central, mas não única no conjunto das desigualdades produzidas pelo capitalismo, ampliar o nosso escopo, assim como fizeram Butler e Preciado, autores de referência nas teorizações de gênero, quando incluíram em suas análises o precariado (Butler, 2018) e as multitudes queer (Preciado, 2021). De tal modo, “o olhar à escalaridade permite ressaltar o movimento e as práticas dimensionadas e realizadas por corpos não-conformes e que constroem e potencializam políticas não-hegemônicas disruptivas (anticapitalistas, feministas, queer, antirracistas, etc.)” (Biteti; Grandi, 2024).

Se a escalaridade cria uma possibilidade de trânsito metodológico na consideração dos corpos em sua espacialidade dinâmica e relacional, é preciso vê-los ontologicamente enquanto tais. O que pressupõe pensar a dimensão da existência dos corpos com outros corpos num mesmo horizonte objetivo comum, ou seja, na coexistência ou coabitação do mundo. Um sentido de corporeidade do corpo que o filósofo Marcelo Moraes (2020) define a partir da pele. Existência (ex sistência) significa um para fora, ou seja, existir como corpo pressupõe existir-com os outros.

No entanto, considerando a tradição aqui ressaltada, que separou espaço e corpo, a tendência é pensarmos o corpo como uma unidade autônoma, individual ou pessoal, e, nessa perspectiva, afirmar uma subjetividade sem intersubjetividade, ou seja, sem mundo. A afirmação do Ego em lugar do Eros é uma forma de negação do outro e da alteridade, o que significa a “expulsão do outro” (Han, 2017) como traço do mundo capitalista neoliberal. Chamamos isso de uma sociedade do “self” ou de um egocentrismo de massa (Mbembe, 2021), por deveras alimentado pela lógica da produção de conteúdo e de representação das imagens por meio das redes sociais.

Não seria essa, por sua vez, uma forma contemporânea do corpo matar o espaço? Salvemo-nos dela pensando as zonas de contato e de contágio da espacialidade do entre, daquilo que constitui uma tensão, um conflito ou uma contradição. Merleau-Ponty (1999) chama de esquema corpóreo o fato de o meu corpo estar no mundo como requisito da espacialidade, ideia trabalhada pelo geógrafo Bettanini (1982). De mesmo modo faz Frantz Fanon (2008) ao tratar da questão racial numa perspectiva de relação corpo-espaço, chamando de esquema epidérmico racial e, também, nas noções de A. Mbembe (2021) de corporeidade e corpo-fronteira, como podemos ver na seguinte citação:

“Corporeidade”, neste caso, não se refere apenas ao que há de maciço no corpo e em tudo o que objetivamente o compõe (a pele e suas cores, os órgãos tomados individualmente, os ossos que lhe conferem estrutura, o sangue que circula nas veias, os nervos, o sistema piloso que o recobre como a vegetação, os micróbios que povoam a sua fauna, a água sem a qual sucumbiria à aridez etc.). A corporeidade também se refere ao modo como o corpo é objeto de percepção, ou seja, como é criado e recriado pelo olhar, pela sociedade, pela tecnologia, pela economia ou pelo poder; o modo como se posiciona em relação a tudo o que o cerca ou que se move e cria um mundo ao seu redor. (Mbembe, 2021, p. 12).

Daí a importante crítica feita pelo geógrafo David Harvey (2004) quando diz que reivindicar o corpo na Ciência deveria nos garantir algo a mais do que uma autorreferencialidade narcisista, sob pena de somarmos esforços que garantam que haja apenas o reconhecimento, o que importa, sem dúvidas, mas que não é suficiente diante da necessária transformação das condições atuais violentas, sexistas, transfóbicas que vivemos no capitalismo neoliberal (Fraser, 2003).

E, diante da fragmentação proposital como forma de controle das nossas existências, o neoliberalismo age criando sempre mecanismos novos, cada vez mais eficazes de captura e de alienação das nossas possibilidades de transgressão. Assim, importa pensar alternativas de luta que considerem margear, para tensionar, o que está posto como limite, visando, por vezes, transgredir. Vemos isso, por exemplo, quando Preciado diz “Por que o abandono da feminilidade não pode se tornar uma estratégia fundamental do feminismo?” (2021 p. 21); e, também, quando aponta que a sua transição de gênero é um dispositivo na compreensão das estratégias de controle social:

...Longe de serem particulares, as observações sobre meu corpo e minhas vicissitudes pessoais descrevem maneiras políticas de normalizar ou desconstruir o gênero, o sexo e a sexualidade, e podem, portanto, ser interessantes para a constituição de um saber dissidente diante das linguagens hegemônicas... (Preciado, 2019, p. 41).

Considerando que existem inúmeras tecnologias de poder e que ao longo do tempo se afirmaram como tecnologias sexuais de controle, como conseguimos entender a possibilidade de que as mesmas tecnologias que podem transformar os corpos para ajustá-los de modo mais coerente ao desejo podem, ironicamente, não fortalecer o controle que temos, fazendo desses corpos um espaço de experimentação e lucro para o capital? Como podemos supor que conseguiremos estabelecer nossas próprias regras aos nossos corpos, se há um conjunto de regras pré-existentes e coexistentes que o meu estar no mundo impede, inclusive, que eu as veja como tais, considerando que nos constituímos como corpo dentro de uma ordem moral?

Convivemos com as rugosidades espaciais (Santos, 2002) ou heranças em que as formas e as relações espaciais precedentes agem sobre as nossas vidas, condicionando as nossas ações e os modos dos nossos corpos performarem. Técnicas e tecnologias atuam na reprodução do espaço e dos corpos e interferem em nossa compreensão sobre natureza do espaço e do corpo. Esse debate é por demais caro à Geografia e igualmente importante nos estudos de gênero para que pudéssemos deixar de fora nesse artigo. Seguimos com ele.

O debate da técnica na relação Geografia-Gênero

O debate da técnica atravessa todas as mitologias, seja como artefato técnico, modo de realização e, também, de transformação. Podemos dizer que a filosofia é caudatária dessas diferentes apreensões, e a técnica chega a ganhar uma centralidade em muitos filósofos, desde a Antiguidade até os mais contemporâneos, como em G. Simondon, M. Heidegger e W. Benjamin, por exemplo. Não seria diferente com as ciências, sobretudo diante do papel assumido na modernidade, em que a sua combinação com as técnicas teria sido capaz de produzir uma grande transformação nos modos de produção, de circulação ou de instalação, alterando significativamente os modos de vida.

Na Geografia, a compreensão das técnicas como mediação da relação homem-meio na produção do espaço geográfico é conhecida desde os clássicos, e diríamos até que representa um modo de ver que se constitui como um paradigma devido à sua repetição em inúmeros geógrafos da nossa tradição, como em Vidal de La Blache, Max Sorre, Pierre George, adquirindo um grande destaque na obra de M. Santos. Em A natureza do espaço, ao pautar o que para ele são os fundamentos da Geografia, diz:

É por demais sabido que a principal forma de relação entre o homem e a natureza, ou melhor, entre o homem e o meio, é dada pela técnica. As técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com as quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço. (Santos, 2002, p. 29).

Concordando com a importância do tratamento da técnica na Geografia com Gênero, diríamos até que a nossa preocupação vai ao encontro de uma leitura ontológica da técnica, em que ela possa ser admitida como inscrição na história do ser. Isso faz com que objetivemos visualizar algumas impossibilidades do tema na Geografia já produzida, principalmente quando compreendemos as técnicas como exterioridades ou meios de realização, crítica de certo modo antecipada por Santos quando faz menção ao “fenômeno técnico” como um conjunto de relações que permeiam a vida da sociedade.

Aqui pretendemos falar das técnicas trazendo algumas reflexões que as vinculam mais diretamente ao corpo, inclusive considerando as chamadas “tecnologias de si” (Foucault, 2010), mas, também, ao considerar o sentido de extensividade do corpo como espaço ou da corporeidade do corpo como ser, reforçar que a produção dos corpos que não obedecem ao padrão normativo de gênero pode ser uma forma de ver que técnicas não são meramente instrumentos exteriores, mas que são capazes de redefinir ontologicamente corpo e espaço. Ou seja, precisam ser apreendidas na relação dialética do ser no mundo.

Nesse sentido, como podemos criar espaços outros dentro dos espaços normalizados, vendo isso a partir da diversidade dos corpos e das naturezas? A percepção da existência da multiplicidade de espaços numa coexistência não hierárquica entre corpos e naturezas pode nos aproximar da concepção das heterotopias propostas por M. Foucault (2014) como uma teorização importante para pensarmos em políticas espaciais que assegurem a existência e a reprodução da diferença e, ao mesmo tempo, crie possibilidades de permanência para corpos e espaços não hegemônicos.

A relação que se desdobra do corpo pessoal como parte do que queremos pensar como corpo político e, portanto, de um espaço produzido pelos processos sociais em múltiplas escalas, dialeticamente, nos leva a crer que precisamos entender e incorporar na Geografia um olhar ontológico para a técnica como algo que contribui para que haja transformação e, por ser assim, que desestabiliza qualquer ontologia fixa ou essencializada, sendo fundamental para considerarmos a relação homem-meio no âmbito da existência e das formas diversas do estar no mundo.

M. Foucault apresenta quatro tipos principais de tecnologias, segundo ele, definidos por uma matriz distinta de razão prática. Haveria, portanto, tecnologias de produção, de sistemas de signos, de poder e tecnologias de si. Segundo nos diz, essas tecnologias operam de maneira associada na maioria das vezes, embora cada forma possa revelar uma particularidade na forma de dominação. Na relação que propomos entre Geografia-Gênero, as tecnologias de si “permitem aos indivíduos efetuarem, com seus próprios meios ou com a ajuda de outros, um certo número de operações em seus próprios corpos, almas, pensamentos, conduta e modo de ser...” (Foucault, 2010, p. 323-324).

Donna Haraway nos apresenta a figura do ciborgue como uma ficção capaz de mapear a realidade social e corporal do momento em que vivemos numa perspectiva mais aberta. O ciborgue como um híbrido de animal e máquina, em mundos naturais e fabricados, não se replica por meio da reprodução orgânica. Desse modo, a autora considera que o “ciborgue é nossa ontologia que determina a política” (Haraway: 2009, p. 158), visto que confunde as fronteiras entre organismo e máquina, tal como foram constituídas de maneira fixa e, por vezes, não relacional pela ciência e pela política ocidentais capitalista, racista, patriarcal e de dominação da natureza.

O ciborgue seria uma criatura de um mundo pós-gênero e, também por isso, um mito que nos situa diante das imprecisões das fronteiras instituídas. Seria esse o seu potencial de imaginação política num mundo marcado por novas tecnologias, de tal modo que o ciborgue como um híbrido de natureza, corpo e máquina, pode revelar que as contradições que existem por dentro das identificações têm sido cada vez mais utilizadas como estratégia de fragmentação das lutas pelo capitalismo. Contudo, em lugar de reafirmar as unidades, o ciborgue usa a tecnologia do opressor para se voltar contra ele, propondo outros tipos de coalizão, afinidade e, como nos diria Butler (2018), uma política de corpos em aliança.

Cabe a nós nos indagarmos sobre os corpos que superam as dicotomias instituintes da modernidade, de maneira a se criarem como corpos imagéticos que disputam um sentido de paisagem inaugural de novos códigos e novas visões de mundo. No âmbito dos debates de Gênero, destacamos os corpos Trans e Queer. Lauretis (1994), quando trata das tecnologias de gênero, afirma que a palavra Queer, que tem uma longa tradição na língua inglesa, fora historicamente marcada por significantes negativos, sendo designada para tratar do “estranho, esquisito, excêntrico, de caráter dúbio ou questionável, vulgar”. A percepção disso faz com que, no contexto da luta política pela emancipação gay nos anos de 1970, Queer tenha adquirido um sentido de “contestação sexual, antes de ser identidade”.

No entanto, a autora demonstra preocupação com o uso atual do termo que por vezes foge da conotação de desvio sexual para se apresentar como “gênero inclusivo, democrático, multicultural e multiespécie”. Mas, o que está em jogo, como significado primordial do termo, é o caráter normalizador da sexualidade. Nesse sentido, indagar-se sobre a sociabilidade Queer pressupõe considerar os conflitos, sem ignorar os aspectos ingovernáveis da sexualidade que confronta o conjunto da sociedade na esfera pública, assim como na família, ou internamente, em cada um de nós. Diríamos, nas mais diferentes escalas, algo que contribui para a nossa percepção sobre a espacialidade dos corpos não normalizados, e isso inclui, além das questões de gênero e sexualidade, os corpos precarizados, racializados, corpos-fronteira, corpos vadios, subalternizados, marginalizados.

Ao considerar a expansividade das tecnologias de domínio e opressão dos corpos em sua corporeidade, enquanto espacialidade, P. Preciado segue a linha do que apresentamos sobre o ciborgue como um mito que expressa as contradições do tempo presente, envolto pelas microtecnologias que esgarçam o tecido social, assim, problematiza a fixidez das fronteiras que definem as identidades e nos traz contribuições importantes para pensarmos como a naturalização das práticas sexuais e do sistema de gênero pautam um conjunto de tecnologias de poder da modernidade. E, por isso, o seu “manifesto contrassexual” se apresenta como contradisciplina sexual e tecnologias de resistência.

Ainda que concordemos com a crítica feita por Harvey (2004) de que precisaríamos pensar uma política do corpo que não esteja vinculada exclusivamente às políticas da sexualidade e do gênero, supomos, no entanto, que haja elementos importantes desse debate que sequer incorporamos na Geografia. Quando tentamos propor reflexões sobre gênero e corpo, mesmo quando trazemos teorizações importantes da fenomenologia, do pós-estruturalismo e dos estudos culturais, ao que parece, as marcas da nossa tradição epistemológica relativa à objetificação do corpo, da técnica e da natureza, se mantêm.

Quando Preciado (2019) diz que a contrassexualidade é uma teoria do corpo que não se enquadra nas oposições das identidades sexuais por ser um corpo que dissimula, é justamente essa relação do corpo com a técnica que ele dimensiona, algo que, ao que nos parece, inspira uma outra leitura da técnica na Geografia. De mesmo modo ocorre quando propõe deslocar o sexo da história natural das sociedades humanas, considerando uma história das tecnologias que se reproduzem nos corpos, espaços e discursos, e que também produz realidades por meio da linguagem.

Os corpos incorporados de tecnologias que relativizam a dicotomia hierárquica do regime da diferença sexual, habitando um espaço entre, um corpo-espaço não normalizado, terminam por colapsar, no espaço do seu corpo, inúmeros conflitos que se manifestam, de maneira escalar, na casa, nas ruas, na política, na mídia, de modo que são, a despeito de suas vontades pessoais, corpos políticos. Como diz Preciado, “O corpo trans é uma colônia de instituições disciplinares: da psicanálise, dos meios de comunicação, da indústria farmacêutica, do mercado” (2019, p. 39).

Na Geografia, tais corpos políticos revelam que trazer o corpo, diante das possibilidades epistemológicas existentes, é insuficiente ao desafio de participarmos, enquanto ciência, da construção de uma outra epistemologia do corpo. É como se estivéssemos tentando substituir um paradigma incompleto por outro, igualmente incompleto. Tenta-se, assim, criar uma unidade, legitimando como totalidades as fragmentações identitárias, ou então, pensando a relação numa perspectiva sistêmica, aditiva, e não contraditória, dialética. Inclusive, temo que estejamos fazendo isso com as interseccionalidades, tratando-as como elementos fixos que se adicionam. Assim projetamos uma unidade como um somatório de identificações, sem necessariamente ver os movimentos, os conflitos e as contradições por dentro delas.

Considerações Finais

Talvez o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos. Temos que imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos deste “duplo constrangimento” político, que é a simultânea individualização e totalização própria às estruturas do poder moderno. (Foucault, 2010, p. 231-249).

Compreender a dinâmica dos corpos que tensionam as relações estabelecidas como regras e normas numa espaço-temporalidade hegemonizada pelo capitalismo, de que resulta a sua percepção como monstros, vadios, vadias, bestas, loucos, bruxas, marginais, pode nos situar diante das críticas que precisamos fazer, das contradições que não podemos deixar de ver e da imaginação política que precisaremos ter, na disputa de um outro projeto político de mundo compartilhado.

Uma Geografia de Gênero, portanto, não é um gênero de Geografia. Pode ser uma arma de luta, em nosso arsenal de guerra, contra as geografias desiguais produzidas pelo capitalismo. Para tanto, vale considerar que há uma geograficidade nos Gêneros ou, podemos dizer, uma perspectiva que pensa os gêneros do ponto de vista de suas geografias.

Tal propósito, diante da argumentação que tentamos trazer como contribuição ao debate, é inviável se mantivermos o centralismo do eu, contribuindo para uma leitura destituída de mundo. Sem mundo, matamos a Geografia. Também não é possível, tal como dissemos, nos determos nos limites da diferença sexual, desconsiderando as possibilidades de existir como outro dessa diferença, em vidas que existem agenciando limites, nas espacialidades margeantes do entre ou do trans. Quando se criam impossibilidades e constrangimentos para o diferir, interrompe-se o movimento da diferença. Sem diferenciação, matamos a relação. Mas, acima de tudo, se negligenciamos o mundo concreto do capitalismo neoliberal, que atua diretamente sobre as mediações que nos constituem como seres no mundo, a técnica, o corpo e a natureza, coisificando as relações e agindo sobre a reprodução da vida como menos importante que a reprodução do capital, aí matamos a nossa possibilidade de existir no mundo; já não sabemos quem somos, porque sequer podemos ser outro, num outro mundo possível. Morreremos todos, alguns mais precocemente que outros. E já estamos morrendo, sabemos.

Referências bibliográficas

  • ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • BITETI, Mariane de Oliveira. O em-si-para-o-outro-para-si: o ôntico e o ontológico como dimensões do ser geográfico. 2014. Tese (Doutorado em Geografia) - Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2014.
  • BITETI, Mariane de Oliveira; MORAES, Marcelo Derzi de. Vidas y saberes periféricos como potencias transgresoras. Cidade do México: Tlalli. Revista de Investigación en Geografía, 2019.
  • BITETI, Mariane de Oliveira. Morte e Vida Pombogira. Abatirá - Revista de Ciências Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 101-114, 2019.
  • BITETI, Mariane de Oliveira; MORAES, Marcelo. Filosofia Ubuntu, Ontologia, Natureza e Cultura. In: BITETI, Mariane de Oliveira; MORAES, Marcelo. Mudança Social e Participação Política: os conflitos, as transformações e utopias São Paulo: Editora da USP, 2020. p. 210-219.
  • BITETI, Mariane de Oliveira. Geografia e Ontologia no Debate dos Feminismos. Revista Tamoios, São Gonçalo, v. 18, n. 2, p. 6-21, 2022.
  • BITETI, Mariane de Oliveira; GRANDI, Matheus da Silveira. O Corpo-Escala e as Estratégias Espaciais do Margear: Proposições Preliminares. Espaço e Cultura, v. 1, n. 51, p. 71-97, 2024.
  • BITETI, Mariane de Oliveira. Economia Espacial dos Corpos nas Geografias do Capitalismo, Espaço e Economia [online], v. 26, p. 1-13, 2024.
  • BETTANINI, Tonino. Espaço e ciências humanas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
  • BORNHEIM, Gerd A. Dialética teoria e práxis: ensaio para uma crítica da fundamentação ontológica da dialética. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1983.
  • BORNHEIM, Gerd A. O conceito de descobrimento. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 1998.
  • BUCK-MORSS, Susan. Hegel e o Haiti e estudos para uma história universal. Tradução de Marcelo Perine. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
  • BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa da assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
  • BUTLER, Judith. Corpos que importam: sobre os limites discursivos do “sexo”. Tradução de Rogério Bettoni. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2019.
  • DESCOLA, Philippe. Outras naturezas, outras culturas. São Paulo: Editora 34, 2016
  • DESCOLA, Philippe. Para além de natureza e cultura. Niterói: Editora da UFF, 2023.
  • FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silva. Salvador: Editora Editora da UFBA, 2008.
  • FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
  • FOUCAULT, Michel. Foucault. Les mots et les choses : Une archéologie des sciences humaines, collection des sciences humaines. Paris: Gallimard, 1966.
  • FOUCAULT, Michel. As Heterotopias. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos IV: estratégia, poder-saber. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. p. 300-311.
  • FOUCAULT, Michel. As Tecnologias de Si e O Sujeito e o Poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert (org.) Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Portocarrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2010. p. 231-249
  • FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era ‘pós-socialista’. In: FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribuição ou reconhecimento? Uma controvérsia político-filosófica. Tradução de William Li. São Paulo: Editora Boitempo, 2003. p. 17-83.
  • GRANDI, Matheus. Escala e geografia: politização da escala geográfica e luta no movimento dos sem-teto. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2023.
  • GLISSANT, E. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora; Editora da UFJF, 2005.
  • GLISSANT, E. Poética da relação. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
  • HAN, Byung-Chul. A expulsão do outro: sociedade, percepção e comunicação hoje. Tradução de Enio Paulo Giachini. São Paulo: Editora Vozes, 2017.
  • HARAWAY, Donna. Staying with the trouble. Durham: Duke University Press, 2016.
  • HARAWAY, Donna J. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2009, p. 33-118.
  • HARVEY, David. Espaços de esperança. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
  • HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude e solidão. Tradução de João D. F. de Lima. São Paulo: Editora 34 , 2003.
  • HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
  • KAFKA, Franz. Um médico rural. Tradução de Erico Verissimo. São Paulo: Companhia das Letras , 1999. p. 41-47.
  • KRISTEVA, Julia. Pouvoirs de l`horreur. Paris : Éditions du Seuil, 1980.
  • LAURETIS, Teresa de. A tecnologia de gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-223.
  • LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
  • LEFEBVRE, Henri. La Production de l'Espace. Paris: Anthropos, 1974.
  • MALOMALO, Bas’llele. Eu só existo porque nós existimos. Tradução de Luís Marcos Sander. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, v. 340, p. 16-18, 2010.
  • MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Tradução Hilda Pareto Maciel, Rogério Haesbaert. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
  • MATOS, Olgária. A melancolia de Ulisses. In: NOVAES, Adauto (org.) Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras , 2009. p. 157-177.
  • MBEMBE, Achilles. Brutalismo. Traduzido por Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2021.
  • MERLEAU-PONTY, Maurice. La nature: notes et cours du Collège de France. Paris: Seuil, 1994.
  • MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1999.
  • MORAES, Marcelo José Derzi. Por uma filosofia dessa coisa de pele: uma desconstrução da colonialidade. In: NOYAMA, Samon (org.) Gingar, filosofar, resistir: ensaios para transver o mundo. Curitiba: Editora CRV, 2020. p. 63-81.
  • MOREIRA, Ruy. Para onde vai o pensamento geográfico? São Paulo: Contexto, 2006.
  • MOREIRA, Ruy. Pensar e ser em geografia. São Paulo: Contexto , 2007.
  • PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.) Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo , 2019. p. 411-420.
  • PRECIADO, Paul B. Multitudes queer: notas para uma política dos corpos dissidentes. São Paulo: n-1 edições , 2021.
  • PRECIADO, Paul B. Eu sou o monstro que vos fala: relatório para uma academia de psicanalistas. Tradução de Carla Rodrigues. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
  • SANTOS, Milton. Natureza do espaço: técnica e tempo. São Paulo: Editora da USP , 2002.
  • SARTRE, Jean-Paul. Crítica da razão dialética. Tradução de Renato da Silva. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
  • SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.
  • SMITH, Neil. Desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1988.
  • VITTE, Antônio Carlos. Da metafísica da natureza à gênese da geografia física moderna. In: VITTE, Antônio Carlos. Contribuições à história e à epistemologia da geografia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007. p. 11-46.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais. São Paulo: Ubu Editora, 2009.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América Indígena. São Paulo: Ubu Editora , 2018.
  • 1
    Aqui usamos condição de impossibilidade para fazer um contraponto à ideia de “condição de possibilidade” presente na Filosofia Crítica de Kant, como algo que fundamenta a possibilidade do conhecimento, da ação moral e do juízo estético. Supomos que pensar sobre as impossibilidades de cada período histórico, nos ajuda a problematizar a constituição das epistemologias.
  • 2
    Por exemplo, quando falamos “sociedade-natureza”, “cultura-natureza”, “homem-mulher”, não é difícil identificar aquilo que se consolida como hierarquicamente superior, estabelecendo assim uma relação desigual entre os termos.
  • Disponibilidade de dados:
    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo
  • Financiamento
    A publicação desse artigo contou com o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) # 401619/2024-9.

Editado por

  • Editoras do artigo:
    Elisa Favaro Verdi e Ginneth Pulido Gomez

Disponibilidade de dados

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    09 Jan 2025
  • Aceito
    23 Jul 2025
location_on
Universidade de São Paulo Av. Prof. Lineu Prestes, 338 - Cidade Universitária, Cep: 05339-970 Tels: 3091-3769 / 3091-0297 / 3091-0296 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistageousp@usp.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Reportar erro