Resumo
Este artigo apresenta uma discussão sobre as potencialidades das teorias políticas do feminismo negro para o desenvolvimento de análises e estudos geográficos. Ao considerar a perspectiva interseccional na construção do pensamento geográfico, as experiências dos sujeitos no espaço se diferem de acordo com sua corporeidade e marcadores de diferenças. Tais elementos são importantes pontos para o entendimento da desigualdade social e epistêmica que assola a realidade das mulheres negras. Nossas reflexões ancoram-se na pesquisa bibliográfica e no estado do conhecimento sobre a temática de gênero e raça nas ciências humanas, em destaque, para a Geografia. Ao evidenciarmos as lacunas sobre a produção do conhecimento geográfico que visibiliza a realidade das mulheres negras, refletimos sobre a importância de fomentar este debate no campo epistêmico, através da pesquisa e do ensino.
Palavras-chave:
mulheres negras; feminismo negro; geografias feministas
Abstract
This article presents a discussion on the potential of black feminist political theories for the development of geographic analyzes and studies. When considering the intersectional perspective in the construction of geographic thinking, the experiences of subjects in space differ according to their corporeality and markers of differences. Such elements are important points for understanding the social and epistemic inequality that plagues the reality of black women. Our reflections are anchored in bibliographical research and the state of knowledge on the topic of gender and race in the human sciences, particularly Geography. By highlighting the gaps in the production of geographic knowledge that makes the reality of black women visible, we reflect on the importance of fostering this debate in the epistemic field, through research and teaching.
Keywords:
black women; black feminism; feminist geographies
Résumé
Cet article présente une discussion sur le potentiel des théories politiques féministes noires pour le développement d’analyses et d’études géographiques. Lorsqu’on considère la perspective intersectionnelle dans la construction de la pensée géographique, les expériences des sujets dans l’espace diffèrent selon leur corporéité et leurs marqueurs de différences. De tels éléments sont des points importants pour comprendre les inégalités sociales et épistémiques qui gangrènent la réalité des femmes noires. Nos réflexions s'ancrent dans la recherche bibliographique et l'état des connaissances sur la thématique du genre et de la race dans les sciences humaines, notamment la Géographie. En soulignant les lacunes dans la production de connaissances géographiques qui rendent visible la réalité des femmes noires, nous réfléchissons à l’importance de nourrir ce débat dans le champ épistémique, à travers la recherche et l’enseignement.
Mots-clés :
femmes noires; féminisme noir; géographies féministes
Introdução
Este artigo tem o objetivo de realizar uma discussão teórica sobre a inserção das temáticas de gênero e raça na Geografia a partir da contextualização sobre as discussões protagonizadas pelas geografias feministas e o pensamento feminista negro, articulando uma perspectiva interseccional nos estudos geográficos. Compreendemos a necessidade de considerar as variáveis de raça, gênero e sexualidade como elementos fundamentais às análises geográficas para além da classe, sobretudo no que se refere à realidade de mulheres negras, grupo social marcado por imagens de controle que as aprisiona a lugares sociais destituídos de intelectualidade, produção de conhecimento e mobilidade social (Collins, 2019).
Reconhecer pautas feministas negras na produção científica e acadêmica é um importante mecanismo para o fomento da problematização sobre o “lugar” das mulheres negras e a resistência ao fazer algo que “não se espera” delas (Collins, 2019, p. 181). Ao ocupar esses espaços, as mulheres negras não apenas inserem novas perspectivas em discussões acadêmicas, mas também reformulam o próprio fazer científico. Isso ocorre ao tencionar os pressupostos universais que muitas vezes ignoram as interseccionalidades (Crenshaw, 2002). Essa insurgência epistemológica denuncia a pretensa neutralidade da ciência e desafia posturas que tradicionalmente excluem ou silenciam as perspectivas de grupos subalternizados (Spivak, 2010). As vozes e a escrita das mulheres negras no universo acadêmico reafirmam sua presença ao repensar o poder e a hegemonia, a objetificação de seus corpos e as matrizes de dominação que reverberam também no fazer científico. Assim, as contribuições intelectuais das mulheres negras não se limitam a uma inclusão simbólica no campo acadêmico, mas refletem uma transformação nas formas de pensar, produzir e disseminar conhecimento.
Como lembra Curiel (2007), os paradigmas adotados na academia estão sustentados por visões e lógicas masculinas, classistas, racistas e sexistas. Embora os estudos pós e decoloniais tenham protagonizado as reflexões de vozes silenciadas e a produção de outras epistemes, esta autora ainda questiona se essas perspectivas, de fato, descentralizam o chamado sujeito do conhecimento ou, ainda, torna-se uma ferramenta de alguns/as intelectuais ocidentais e brancos para incorporar o “diferente” em suas produções críticas e situadas a fim de legitimação. Portanto, a escrita e produção acadêmica de mulheres negras e indígenas alertam para a necessidade de questionar o viés androcêntrico e branco das pesquisas em todas as áreas do conhecimento, em especial aqui, à ciência geográfica e humanidades, de uma forma geral.
Este artigo refere-se, desse modo, a uma construção teórica que nasce de inquietações promovidas pelo nosso fazer científico ao longo de nossas trajetórias acadêmicas e ativistas que sempre nos orientou para problematizar o lugar das mulheres negras na escrita acadêmica e/ou intelectual e no ensino. Atiramo-nos aqui no exercício de pensar como as construções teóricas e políticas dos feminismos negros podem contribuir com o fazer científico a partir das ciências humanas, com ênfase na Geografia ao questionar a ausência de estudos que visualizem as espacialidades das mulheres negras vividas na dimensão social, política, econômica e cultural.
As discussões de gênero e raça como ponto de partida
Quando apresentamos a intenção de trazer à tona o debate sobre as mulheres negras, numa perspectiva das humanidades, é importante trazermos as possibilidades cunhadas pelas discussões sobre a colonialidade do poder, do saber e do ter apresentadas por Quijano (2007), e outros/as autores/as “suleados/as” para pensar as realidades sociopolíticas, econômicas, culturais e de construção de subjetividades. Santos (2017), ao pensar no processo de decolonização do ensino de Geografia, afirma que a perspectiva decolonial possibilita a revisão de conceitos, conteúdos e representações na construção do conhecimento. Nesse sentido, ela intervém no discurso das ciências modernas para apresentar outros espaços e outros grupos sociais que produzem conhecimentos. Para Quijano (2005) a colonialidade do poder diz respeito a uma “[...] construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo” (p. 227-228).
No sentido de servir à construção ideológica e política do sistema moderno produtor de mercadorias, a colonialidade fundamenta a forma de ser e estar no mundo, relegando aos grupos sociais subalternizados (Spivak, 2010) o silenciamento, o epistemicídio e a invisibilidade. Embora o conceito de colonialidade seja importante para pensarmos no sistema de dominação colonial capitalista que reverbera sobre as estruturas sociais, corpóreas, de gênero, raça e sexualidades, precisamos lembrar que as feministas racializadas, afrodescendentes e indígenas, têm se aprofundado sobre a combinação de opressões enfrentadas pelos corpos femininos desde a década de 1960 e intensificado nas décadas de 1970 e 1980, como podemos constatar nos escritos de Gonzalez (1984, 1988a, 1988b, 1988c) e Crenshaw (2002).
As teorias feministas nas ciências humanas ganharam maior visibilidade nas décadas de 1980 e 1990, proporcionando transformações significativas nas abordagens teóricas e metodológicas dessas áreas, incluindo a geografia. As contribuições de Butler (2003) sobre performatividades de gênero e sexualidades expandiram-se para uma dimensão espacial, demonstrando que conceitos de performatividade de gênero, como as identidades de gênero e sexualidade, são construções sociais reiteradas por práticas discursivas e corporais. As críticas a perspectivas universalizantes de sujeitos e realidades difundidas por Haraway (1995) problematizam a ideia de um sujeito científico neutro e questionam as hegemonias epistemológicas que desconsideram diferenças de raça, gênero e localização histórica. Também as análises sobre corpos e corporeidades a partir de Foucault (1985) contribuíram para a fundamentar abordagens críticas nas geografias feministas, oferecendo ferramentas para investigar como o poder está inscrito no espaço e nos corpos, podendo configurar desigualdades e exclusões. São alguns dos importantes pontos de partida para a produção teórica e metodológica também no âmbito das geografias feministas.
Quando buscamos as contribuições de mulheres negras, acadêmicas ou não, para as discussões perpetradas pelas geografias feministas, ainda aparecem poucos nomes que sustentam e dão base para um chamado pensamento feminista negro na Geografia, conforme já discutimos em trabalho anterior (Souza; Castro, 2023). Embora não seja geógrafa, um dos nomes que se destaca como suporte para os estudos feministas negros numa perspectiva geográfica tem sido o de bell hooks. Dentre um de seus principais legados para as mulheres de uma maneira geral e às mulheres feministas negras em particular, hooks articulou situações cotidianas com a sua maneira de pensar e teorizar sobre a realidade de mulheres negras, trazendo destaque para a agenda feminista a partir de mulheres negras para mulheres negras. Como afirma,
(...)fomos ensinadas que as mulheres são inimigas “naturais” umas das outras, que a solidariedade nunca irá existir entre nós porque não sabemos nem devemos nos unir. E essas lições foram muito bem aprendidas. Precisamos, por isso, desaprendê-las, caso queiramos construir um movimento feminista duradouro. Precisamos aprender a viver e trabalhar em solidariedade. Precisamos aprender o verdadeiro sentido e o verdadeiro valor da irmandade. (hooks, 2019a, p. 79).
A autora chama a atenção para a necessidade de confluência entre teoria, política, ativismo e irmandade, fortalecendo as possibilidades de tratar questões raciais e de gênero nas ciências humanas. Para a Geografia, representa a possibilidade de teorias feministas estarem em consonância com leituras e análises sobre e pelo espaço, categoria central na ciência geográfica. Para nós, o espaço é uma importante categoria para compreendermos processos que produziram e produzem oportunidades desiguais e representações engessadas sobre mulheres e homens, negros e brancos (Souza et al., 2020). As articulações de gênero com outros marcadores socioespaciais de diferença, como raça, etnicidade e classe, também se apresentam nos escritos de Lélia Gonzalez, Beatriz do Nascimento (Ratts, 2016), Sueli Carneiro e outras intelectuais que contribuem com perspectivas teóricas de mulheres negras no âmbito das Geografias Feministas e do feminismo negro, como Gloria Anzaldúa (2000) e Audre Lorde (2003). Consideramos que:
(...) para além de uma geopolítica do conhecimento a níveis internacionais, através das reflexões dessas feministas negras é possível pensar os jogos de poder e os campos de representação que são responsáveis por delimitar alguns poucos sujeitos identitários como produtores de conhecimento e apenas uma certa direção de pensamento como constituidora de epistemologias. Para além de questionar as hegemonias dos centros de produção em países centrais ou em universidades hegemônicas no país, essas geografias contidas no pensamento de feministas negras têm ajudado a indicar a ausência de vozes do feminismo que contemplem pautas que articulem interseccionalmente gênero com outros marcadores da diferença e das corporeidades. (Souza et al., 2020, p.50).
A realidade acadêmica também retrata desigualdades sociais, raciais e de gênero. Silva e Souza (2021) chamam a atenção para o fato de que os cientistas, pesquisadores e produtores de conhecimento renomados e referenciados são massivamente homens brancos, e na Geografia isso também já foi percebido por Monk e Hanson (1982 citadas por apudSilva; Souza 2021) sobre a existência de uma invisibilidade do gênero e, acrescentamos, a uma invisibilidade racial generificada ao pensarmos na incipiente quantidade de mulheres negras no acesso e permanência na universidade e no ensino.
A Geografia ainda não tem fomentado um diálogo denso com o feminismo negro e os feminismos decoloniais para conduzir as discussões sobre gênero e sexualidades. Afirmamos também que as mulheres negras que pesquisam gênero, sexualidades ou raça são “outsiders within”, parafraseando Dias (2019) sobre o fato de as mulheres negras, historicamente, participarem dos segredos íntimos da sociedade branca, sendo, portanto, insiders numa estrutura perversamente racista e machista. Ao afirmar que nós mulheres negras somos consideradas “quase da família” - e isso se apresenta também no espaço acadêmico - Dias (2019) vai além ao constatar que as mulheres negras são insiders within, ou seja, encontram-se marginalmente dentro da estrutura acadêmica.
Diante desta realidade, acreditamos na importância de construir uma agenda de ensino, pesquisa e extensão que dialogue com as comunidades negras, feministas e feministas negras nas ciências sociais e humanas enquanto um princípio para a equidade nas universidades, na produção do conhecimento e na presença de corporeidades negras femininas. O posicionamento político de mulheres negras feministas reivindicando a urgência de uma abordagem interseccionada na ciência geográfica é reconhecimento de que as diferenças raciais e de gênero delimitam espacialidades e realidades sociais (Borges, 2009).
Ampliando o debate: pensando o corpo e a corporeidade de mulheres negras
O conceito de corpo torna-se importante neste artigo, uma vez que o compreendemos como algo além de sua dimensão biológica, envolvendo aspectos simbólicos, políticos e espaciais. A corporeidade, enquanto expressão material e imaterial da existência, está intimamente ligada à ideia de território e constantemente disputado e controlado. A discussão sobre corpo e corporeidade possui um lugar estratégico no debate sobre autonomia e gênero, pois aparece como a primeira marca dessa representação. Não apenas pelo que ele enuncia, mas também pelo que fica subentendido, uma vez que “gênero é um campo de diferença estruturada e estruturante, no qual as tonalidades de localização extrema, do corpo intimamente pessoal e individualizado, vibram no mesmo campo com as emissões globais de alta tensão” (Haraway, 1995, p. 29).
No caso das mulheres negras, o corpo tem sido historicamente limitado a um “conjunto de signos” (Inocêncio, 2001), carregado de significados desumanizadores que atravessam raça, gênero, classe e sexualidade. Esses signos reforçam estereótipos que, enquanto produtos do colonialismo e do racismo científico, continuam a moldar as percepções sociais contemporâneas. Uma leitura do corpo da mulher negra, associando-o a uma sexualidade incontrolável e instintiva, reflete uma construção histórica que querem justificar práticas como a objetificação sexual. Corpos continuam sendo lidos de formas diferentes e desiguais de acordo com raça, gênero, geração, região, condição econômica, etc.
O estereótipo que coloca a mulher negra em um lugar em que o corpo se sobrepõe ao intelecto diz para além do que é evidente nesse discurso. Quando a sexualidade dessa sujeita/sujeitada é descrita de forma incontrolável, indiretamente está lhe sendo destinado um predicado não-humano, pois na visão ocidental os animais é quem têm um sexo instintivo incontrolável. A “animalização” das mulheres negras não é apenas um resquício do período colonial, mas um discurso ativo que persiste na contemporaneidade. Esse processo conecta-se diretamente ao conceito de dispositivo de sociedade de sexualidade, descrito por Michel Foucault (1985), que aponta como os modernos desenvolveram uma série de mecanismos para controlar, normatizar e hierarquizar as sexualidades. No entanto, como observa Sueli Carneiro (2005), há uma lacuna nos textos de Foucault no que se refere à interseção entre sexualidade e racialidade. A mulher negra é duplamente marcada: sua sexualidade não é apenas controlada, mas racializada, reforçando sua posição marginal no sistema social. Apesar de ser possível identificar uma exploração da imagem do corpo das mulheres em geral, há uma diferença nessa exploração. Enquanto os corpos de mulheres brancas podem ser vistos como objetos, aos de mulheres negras são também atribuídos predicados animalescos (Inocêncio, 2001).
O feminismo decolonial, como articulado por Françoise Vergès (2020), enfatiza que a colonialidade não apenas moldou os sistemas econômicos e políticos globais, mas também produziu corpos racializados e sexualizados. Esse processo foi particularmente intenso no contexto brasileiro, no qual o mito da “mulata sensual” consolidou uma narrativa de exotização e subordinação das mulheres negras. A autora argumenta que, durante o processo de escravização, o ventre das mulheres negras foi transformado em capital, condicionado ao aumento da mão de obra escravizada. Essa lógica colonial persiste em práticas contemporâneas, como a precarização do trabalho e o controle da reprodução, que afetam desproporcionalmente as mulheres negras. Essas dinâmicas evidenciam a necessidade de compreender a interseção entre raça, gênero e classe para analisar os territórios. Embora o corpo das mulheres negras tenha sido historicamente marcado pela violência e pela exploração, ele também é um espaço de resistência e transformação social. No feminismo decolonial, o corpo é reivindicado como um território de luta, desafiando as estruturas coloniais e patriarcais que tentam controlá-lo. Vergès (2020) destaca que, ao reivindicar seus corpos, as mulheres negras não apenas reivindicam sua humanidade, mas também questionam as bases do capitalismo racial. No contexto brasileiro essa resistência é evidente nos movimentos feministas negros, que utilizam a corporeidade como ferramenta para reconfigurar narrativas e visibilizar as lutas das mulheres negras.
Há sempre células contra-hegemônicas pulsando numa estrutura opressora. Não se pode falar de racismo sem se falar nas revoltas negras, tampouco nos estereótipos sobre mulheres negras sem salientar os diversos trabalhos acadêmicos, textos e ações ativistas que questionaram tais constructos e propuseram outras interpretações. Os textos de mulheres negras desempenharam um papel duplo: o de fonte de dados e o de fonte de teoria, pois esses textos podem ser encarados como uma reflexão do que bell hooks (1995) chamou de “testemunha esclarecida da própria história”, já que fazem uma reflexão sobre sua condição no mundo. Numa perspectiva cronológica, Lélia Gonzalez foi uma das primeiras mulheres negras no Brasil a escrever e teorizar a especificidade de ser mulher negra no Brasil e na América Latina. Também dissertou sobre ser negra no Movimento Feminista e ser mulher no Movimento Negro. No texto Racismo e sexismo na cultura brasileira (1984) ela aborda a questão dos estereótipos de gênero e raça que “produzem efeitos violentos sobre a mulher negra em particular”. Assim ela afirma:
Sentimos a necessidade de aprofundar nossa reflexão, ao invés de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos que nos eram oferecidos [...]. Os textos só nos falavam da mulher negra numa perspectiva sócio-econômica que elucidava uma série de problemas propostos pelas relações raciais. Mas ficava (e ficará) sempre um resto que desafiava as explicações. (Gonzalez, 1984, p. 225).
A autora observa que há uma lacuna na história sobre a figura da mulher negra na sua complexidade nos textos de grandes teóricos sobre a formação do Brasil. Os estudos que abordaram as subjetividades de mulheres negras contribuíram no sentido de diminuir essa lacuna. Nesse intuito, ela própria discute a figura da mulata. Entendo que ao “criar” essa figura “institui a raça negra como objeto”, sendo “a mulata e crioula, ou seja, negra nascida no Brasil, não importando as construções baseadas nos diferentes tons de pele” (Gonzalez, 1984, p. 228) uma figura emblemática da construção raça-gênero no país. Em um esforço de alargar os estudos quanto aos aspectos das múltiplas vivências que formam a vida dessas mulheres e comumente argumentando contra o ranço escravista e o racismo brasileiro. Sueli Carneiro (2003) nota que esse legado do período escravista:
[...] mantém as mulheres negras prisioneiras dos estereótipos construídos no período colonial pelo gênero dominante: historiadores, romancistas, poetas, retrataram, no mais das vezes, as mulheres negras ora como trabalhadoras adequadas a serviços desumanizastes, ora como mulheres lascivas e promíscuas. (Carneiro, 2003, p. 286).
O trabalho intelectual de mulheres negras ao longo de décadas confronta esse estereótipo colonial. É possível observar que esses trabalhos possuem uma marca que é o posicionamento político dessas sujeitas dentro do contexto que pretendem abordar fato que logo foi eleito como característica desqualificadora das análises. As vozes de mulheres negras se multiplicaram e se diversificaram para além de teóricas e acadêmicas e a expansão dos meios digitais oportunizou uma polifonia nos discursos de mulheres negras atualmente, havendo uma mudança significativa na “difusão” do feminismo negro no Brasil na última década. Talvez o mais adequado fosse nomear de expansão do pensamento de mulheres negras, pois até mesmo os feminismos negros já não são suficientes para designar a autonomia de mulheres negras. Isso graças à diversidade de mulheres negras que têm se dedicado a refletir mulheres negras no Brasil.
As redes e mídias sociais têm um papel fundamental para essa nova configuração. O que podemos chamar de ativismo digital é o principal responsável por essa divulgação do pensamento de mulheres de diversas identificações políticas. Também o cenário das publicações temáticas/identitárias (marcadores de diferenças) igualmente se expandiu. Algumas questões são importantes para pensarmos essa configuração atual dos discursos e desafios de e sobre mulheres negras. Uma conjuntura nacional de ações afirmativas também impactou a quantidade de pessoas negras nas universidades, em especial as mulheres negras, motivo pelo qual atualmente se consegue observar maior número de profissionais e acadêmicas negras em várias áreas do conhecimento.
As bases do feminismo negro para pensar geograficamente na pesquisa e no ensino
As teorias feministas pressupõem o pensamento sobre a condição das mulheres numa sociedade marcada pelo heteropatriarcado (Akotirene, 2018). Pensar nesta condição e considerar a aproximação sujeito-espaço é um campo fértil para a ciência geográfica que se ocupa de compreender as relações de poder e as mediações entre cotidiano, sujeito e espaço. Com as contribuições iniciais das geografias feministas inglesas e estadunidenses, geógrafas brasileiras têm procurado discutir o espaço enquanto uma categoria que nos permite compreender as relações de poder que interferem nas vivências dos grupos sociais a partir de seus marcadores da diferença (Silva; Silva, 2018).
O movimento tardio da Geografia brasileira em considerar variáveis como gênero, raça e sexualidades enquanto elementos constituintes dos sujeitos que moldam suas experiências no espaço deveu-se pela tradicional maneira de produzir conhecimento neste campo disciplinar, marcada pela perspectiva androcêntrica e universalizante. De acordo com Silva, César e Pinto (2015), as chamadas Geografias Feministas são quase tão antigas quanto a própria Geografia Crítica. A inserção das mulheres brancas, homens e mulheres negros e comunidade LGBTQIAPN+ na produção do saber científico não é o suficiente para uma transformação no fazer geografia hegemônico. O campo científico precisa ser tensionado para que haja a construção de saberes e conhecimentos produzidos por estes sujeitos e pensados a partir deles/as, desconstruindo uma visão neutralizante e de sujeito universal que ainda impera na construção do pensamento geográfico.
Para pensarmos sobre as mulheres negras e o pensamento feminista negro acreditamos ser crucial refletirmos sobre a representação social de sua corporeidade, as construções epistemológicas e práticas sociais que visam a superação dos estereótipos produzidos pelo racismo e o sexismo. Para nós, a produção de um conhecimento científico, em qualquer campo disciplinar, é um desses mecanismos de superação, pois coloca as mulheres negras como detentoras do pensamento sobre si mesmas e construtoras de críticas e reflexões que culminam em práticas cidadãs, em manifestos por justiça social através da pesquisa e do ativismo político, de ações extensionistas e no campo do ensino, quando elaboradas ementas e programas de disciplinas que se atentam a pensar sobre como este grupo social se posiciona no mundo e o vivencia.
Conforme aponta Gonzalez (1984), a herança escravocrata determinou, além de papéis sociais de raça e gênero, lugares sociais e espacialidades a sujeitos brancos e negros de forma desigual e discriminatória. Portanto, ao referenciar a importância de análises geográficas que pensem sobre e a partir das espacialidades dos grupos sociais, é problematizar a existência de lugares sociais para negros/as e brancos/as, bem como romper com dicotomias sobre o espaço público e privado, sendo o primeiro ocupado por homens e o segundo por mulheres, uma vez que as mulheres negras sempre ocuparam o espaço público, na condição de escravizadas ou libertas. A autora já chamava a atenção sobre a existência da divisão racial do espaço ao inferir que:
(...) O lugar natural do grupo branco dominante são moradias saudáveis, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes formas de policiamento que vão desde os feitores, capitães de mato, capangas, etc, até à polícia formalmente constituída. Desde a casa grande e do sobrado até aos belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais” (...) dos dias de hoje, o critério tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço (...) No caso do grupo dominado o que se constata são famílias inteiras amontoadas em cubículos cujas condições de higiene e saúde são as mais precárias. Além disso, aqui também se tem a presença policial; só que não é para proteger, mas para reprimir, violentar e amedrontar. É por aí que se entende porque o outro lugar natural do negro sejam as prisões. A sistemática repressão policial, dado o seu caráter racista, tem por objetivo próximo a instauração da submissão (...). (Gonzalez, 1979 apudGonzalez, 1984, p. 232).
Esta leitura socioespacial e racial nos conduz à afirmação de que o racismo destina lugares sociais a partir do fenótipo e do pertencimento étnico-racial dos sujeitos. Ao trazermos esta afirmação para a realidade das mulheres negras, evidencia-se que há uma divisão racial e sexual do trabalho que as delega para o subemprego, para trabalhos mal remunerados que exigem pouca escolarização e/ou para a execução do care (Hirata, 2014), limitando-as a uma perspectiva de inferiorização e subjugação.
Junto a essa preocupação, dialogamos com as preocupações de Lopes (2008) em pesquisa sobre trabalhadoras domésticas, ao constatar que se trata de uma maioria de mulheres negras que vivenciam também a segregação socioespacial e a limitação da mobilidade nos centros, para além dos estereótipos raciais ligados à sua corporeidade. Muitas mulheres negras tiveram o trabalho doméstico como possibilidade de remuneração e entrada no mercado de trabalho. Portanto, o corpo e a corporeidade são elementos que constituem o espaço e as relações sociais, grafando as experiências dessas sujeitas em suas múltiplas identidades e pertencimentos.
Desse modo, a leitura interseccionada para a compreensão da realidade de grupos sociais minorizados é fundamental nos estudos geográficos, pois denuncia a universalização da categoria mulher e os privilégios de classe, raça, etnia, geração e sexualidade, inseparáveis na estrutura racista, capitalista e cisheteropatriarcal (Akotirene, 2018). A maneira com que mulheres negras vivenciam gênero é particular, uma vez que a intersecção dos marcadores sociais proporciona arranjos que as colocam em situações de vulnerabilidades.
Reiteramos, a partir do pensamento feminista negro, a necessidade de autonomia corpórea e intelectual das mulheres negras, sobretudo para vivenciar espacialidades e lugares sociais de forma individual e coletiva. Compreendemos as relações de gênero e espaço como um aspecto para a equidade social a partir das contribuições de geógrafas feministas (Machado, 2016; Silva, 2010), sobretudo quando refletem sobre os lugares sociais ocupados por mulheres negras e a dimensão espacial das vivências dessas mulheres.
Mesmo que a geografia brasileira esteja constituída de subjetividade colonial e de um legado epistêmico eurocêntrico (Silva, 2020), reconhecemos avanços desenvolvidos por geógrafas feministas ao tensionar a produção do conhecimento geográfico por uma perspectiva interseccional. Destacamos o trabalho de Machado (2016) ao situar algumas propostas metodológicas feministas para o trabalho com mulheres e a relação com o espaço cotidiano como a desenvolvida por Rodó-de-Zárate (apudMachado, 2016) que apresenta a importância que os espaços têm para os estudos de relações de poder e da importância do conceito de interseccionalidade para a compreensão das experiências nos espaços. Ela utiliza mapas como ferramenta para mostrar as desigualdades existentes nos distintos lugares percorridos pelas mulheres no seu cotidiano. Trata-se de uma maneira de conceber a pesquisa e a cartografia pelo olhar de grupos sociais minorizados, denunciando a herança masculina das temáticas geográficas e o legado moderno-colonial no pensamento geográfico que concebeu grupos sociais subalternizados como objetos de pesquisa e não sujeitos capazes de pensarem suas próprias trajetórias e produzirem pesquisas de densidade teórica acerca dos marcadores da diferença sob um olhar geográfico.
Importante lembrar que o reconhecimento de outras epistemologias na Geografia brasileira, como a que vem sendo consolidada desde o início dos anos 2000, tem sido construída por redes de pesquisadores/as como a de geógrafos e geógrafas negros e negas que reivindicam o reconhecimento de pesquisadores e pesquisadoras que buscam traçar caminhos teóricos na Geografia em perspectivas negras. Conforme o manifesto “Por uma geografia negra”, escrito durante o XIII Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE) em 2019, ainda na década de 1990, Milton Santos apresentou importantes reflexões sobre as relações raciais e questões negras por meio das noções de “corporeidade” e “cidadanias mutiladas” como referência para os estudos ligados à raça e análises geográficas. Conforme o manifesto, a racialidade constitui o espaço na conformação das relações e das práticas sociais, em territórios e lugares. A perspectiva interseccional deve se apresentar nas análises sobre o espaço urbano - ao evidenciar aspectos ligados à segregação, a espacialidade dos movimentos sociais, o espaço rural - ao pensar a terra, os quilombos e comunidades negras camponesas, os estudos de população, o ensino e a escola, o ambiente e as trajetórias individuais e coletivas de sujeitos negros e negras. É por esse olhar que se pauta uma análise geográfica que considera sujeitos como plurais e constituídos por um gênero, uma raça, uma sexualidade e por outros marcadores da diferença.
Importante mencionar que, ainda na década de 1980, também Lélia Gonzalez discutia as relações de raça e gênero em espaços públicos e privados, o que significa que essa e outras intelectuais negras brasileiras não-geógrafas como Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento e Luiza Bairros são referências para a construção de geografias negras sob o olhar das mulheres negras, reforçando o caráter interdisciplinar da análise interseccional na Geografia.
No que se refere a pesquisas sobre mulheres negras na Geografia, nos anos 2000 houve significativas produções, como o trabalho de Garcia (2006), que propôs analisar Salvador a partir das mulheres da periferia, triplamente discriminadas pelas relações de classe, raça e gênero e visando o combate à discriminação e ao racismo no movimento e associação de bairros; a pesquisa de Souza (2007), em que apresenta uma aproximação entre raça, gênero e espaço urbano para compreender as trajetórias socioespaciais de professoras negras em Goiânia e Região Metropolitana; e a pesquisa de Lopes (2008), que analisa as trajetórias socioespaciais de mulheres trabalhadoras domésticas na Região Metropolitana de Goiânia, relatando histórias de vida perpassadas por relações de gênero, raça e classe. Sabemos da existência de outros importantes trabalhos no campo das geografias feministas e geografias negras que não mencionaremos aqui, pois optamos por destacar os aqui citados por se tratar de estudos realizados por mulheres negras pensando sobre situações vivenciadas por mulheres negras.
Souza e Ratts (2009) desenvolveram uma discussão sobre as categorias gênero, raça, espaço e poder na realidade das relações sociais. Segundo eles, o poder se manifesta tanto de maneira visível quanto invisível dependendo das estratégias do grupo que lhe detém e, em nome do poder político, econômico e cultural, a herança escravocrata colonial assegurou maiores índices de desemprego e subemprego da população negra no mercado de trabalho. E é nessa estrutura de poder que Santos (2021) denuncia que, para geógrafas e geógrafos de um país da periferia do capitalismo, desenvolver uma leitura do espaço sem o componente de gênero e raça, é fazer uma leitura incompleta, portanto, é preciso aparecer a perspectiva da mulher negra.
Segundo dados do IBGE (2019), as mulheres negras são o maior grupo populacional: 60,6 milhões, sendo 11,30 milhões de mulheres pretas e 49,3 milhões de mulheres pardas, as quais respondem por mais de 28% da população total. No que se refere à educação, as disparidades ainda são consideráveis e o percentual de mulheres negras com curso superior completo corresponde, ainda, a metade do percentual da população de mulheres brancas.
A maior presença das mulheres negras no trabalho informal deve-se
à sua maior participação no setor de serviços domésticos e cuidados, onde a informalidade é mais prevalente. Dos quase 6 milhões de trabalhadores domésticos, mais de 67% são mulheres negras que trabalham sem carteira assinada (75,3%) e sem contribuição para a previdência social (64,7%) cujos rendimentos do trabalho as colocam em situação de pobreza (26,2%) ou de extrema pobreza (13,4%) (Dieese, 2023). No setor de cuidados, as mulheres negras ocupavam 45% de todos os postos de trabalho em 2019, seguidas por mulheres brancas (31%) e homens brancos e negros (24%) (MDS, 2023). A inserção mais precária no mercado de trabalho faz com que os rendimentos do trabalho das mulheres negras também sejam menores e a pobreza seja maior. (MIR, 2023 p. 10-11).
Ao se referir à educação, as disparidades ainda são consideráveis e o percentual de mulheres negras com curso superior completo é aproximadamente a metade do percentual da população de mulheres brancas.
Essa estatística configura uma realidade marcada pela desigualdade e pela discriminação em vários campos que impedem as mulheres negras de acessarem direitos sociais e romperem com estigmas sobre a sua condição negra e feminina, mesmo quando alcançam a mobilidade social. Nossa preocupação estende-se para os questionamentos sobre a ausência de conhecimentos e pesquisas geográficas sobre este grupo social, mesmo sendo o mais atingido pela segregação, violência urbana, falta de mobilidade e acesso à cidade, falta de acesso ao ensino superior, à permanência nas pós-graduações e ao exercício da docência. Como afirma hooks (2019b), “o racismo e o machismo, especialmente no nível da pós-graduação, moldam e influenciam tanto o desempenho acadêmico quanto a empregabilidade de mulheres negras acadêmicas” (p. 135) Ao considerarmos essa realidade para as mulheres negras no ensino e na formação de professores e professoras de Geografia, pontuamos que o ensino de Geografia na escola encontra desafios para o tratamento da temática racial e de gênero combinadas, se pensarmos a partir de seus conteúdos e objetos de aprendizagem. entendemos a escola como locus social potencializador de problematização da realidade, reflexões a partir de situações-problemas que instigam a construção de um pensamento geográfico articulado com a dinâmica social e a pluralidade da sociedade. Todo conteúdo previsto nesse campo disciplinar pode ser “racializado”, uma vez que o elemento racial é parte da dimensão espacial. Para que isso aconteça é necessário que a Geografia na escola traga possibilidades didático-pedagógicas para sensibilização e problematização sobre a diferença racial e de gênero como elementos que interferem nas relações sociais, na produção e reprodução do espaço e compreensão da formação social brasileira e o processo de marginalização vivenciado pelos/as negros/as no Brasil ao longo da história.
A articulação dos conhecimentos acadêmicos com os conhecimentos das comunidades fortalece as políticas públicas com recorte racial nas esferas econômicas, culturais e educacionais. Desse modo, os movimentos sociais são importantes agentes para a mobilização e o tensionamento dos conflitos e desigualdades que precisam ser encaradas pelo Estado como política de reparação histórica na busca por equidade racial e superação do racismo e sexismo. A implementação das Leis n° 10.639/03 e n° 11.645/08 representa a construção de mecanismo afirmativo no combate à discriminação, reconhecendo a escola como possibilidade de promoção de práticas cidadãs sobre indivíduos negros e negras. No âmbito do ensino superior, a elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro Brasileira e Africana Brasil (DCNERER, 2004) teve o objetivo de auxiliar os sistemas brasileiros de ensino e educadores e educadoras no debate sobre as relações étnico-raciais a partir de elaboração de propostas pedagógicas sob os princípios de consciência política e histórica da diversidade, fortalecimento de identidade e de direitos e ações educativas de combate ao racismo e à discriminação racial.
Apontamos que professoras e professores de Geografia têm o desafio de efetivar a mediação didática para o desenvolvimento de um pensamento geográfico que seja racializado e generificado. Se quisermos compreender e indicar a escola como uma das instituições articuladoras da construção da equidade e da justiça social, é necessário o reconhecimento da perspectiva interseccional para a leitura do espaço, dos lugares, dos territórios e das paisagens. Nesse sentido, concordamos com Santos (2021) quando este afirma que
[...]as mulheres negras têm uma posição onipresente no cruzamento das opressões o que permite que tenham importante papel político nas reivindicações da vida. Isso não quer dizer que as mulheres negras sabem de tudo por serem mais oprimidas, isso porque elas têm o olhar localizado na sua realidade e compartilham as experiências de seu grupo. (Santos, 2021, p. 358).
Ao compartilhar suas experiências e apresentar um olhar localizado, situado, as mulheres negras, na condição de professoras, educadoras populares e/ou produtoras de conhecimento, são importantes agentes na compreensão da realidade e no posicionamento crítico sobre como operam os mecanismos do racismo na vivência e nas espacialidades da população negra.
Considerações finais
O feminismo negro busca uma esfera de liberdade e equidade para as mulheres negras diante dos desafios cotidianos de vivenciarem a discriminação e o racismo combinado ao sexismo. Compreendemos a análise geográfica necessária para o reconhecimento das espacialidades de grupos sociais marginalizados historicamente, destacando as relações de gênero e raça na dimensão espacial, material e simbólica. A mulher negra carrega ainda no século XXI um “destino histórico” (Nascimento; Ratts, 2021) que a congela numa imagem de subalternidade. É esse destino histórico que buscamos problematizar, ampliando o fortalecimento de epistemologias negras feministas na Geografia. O falar de si aqui representa, como assinala hooks (2019b), um exercício de autorrecuperação que não deve ser confundido com o ato narcísico de autopromoção. A autorrecuperação refere-se a um cuidar de si nunca alheio ao cuidado dos outros. Assim, compreendemos que a pauta pela construção de um projeto de justiça social referenciado por Collins (2019) é uma ação política ampla para homens e mulheres negros.
Ao evidenciar o trabalho intelectual sobre/para/das mulheres negras na ciência geográfica, consideramos a reflexão sobre o reconhecimento de outras epistemologias possíveis com o fortalecimento das geografias feministas e negras. Isso nos leva a pensar em hooks (1995) quando afirmava sobre o fato de a vida intelectual não precisar nos levar a separar-nos da comunidade, mas sim de nos capacitar a participar plenamente da vida da família e da comunidade (hooks, 1995).
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Disponibilidade de dados
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Dez 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
09 Jan 2025 -
Aceito
25 Ago 2025
