Open-access Diversidade da ciência geográfica e a dimensão política do/no território

Longe de constituir um campo homogêneo, a Geografia se caracteriza por notável diversidade temática, teórica e metodológica, que vai da tradição positivista e quantitativa às abordagens críticas, sistêmicas, socioambientais, humanistas, dentre tantas outras perspectivas de interpretações pela ciência geográfica. Esta pluralidade epistemológica não representa fragmentação e, sim, a natureza interdisciplinar presente na produção de conhecimentos de seus subcampos - Geografia Física e Humana (Suertegaray, 2016).

A Geografia, enquanto ciência comprometida com a compreensão das múltiplas relações entre sociedade e natureza, busca estruturar seu objeto de estudo utilizando conceitos e categorias, como espaço, território, paisagem, região e lugar, em suas investigações e no ensino. Estes e outros termos são empregados e discutidos a depender da especialidade temática e perspectiva analítica.

Essas características da Geografia - como ciência e disciplina escolar - podem servir de ‘ponte’ entre as ciências humanas e as naturais, para juntas proporem reflexões e soluções que respondam aos desafios sociais, ambientais, econômicos e institucionais contemporâneos. Há de se considerar que parte significativa para o enfrentamento a esses desafios é a dimensão política. Neste sentido, acreditamos que a Geografia propicia importantes contribuições para compreender os processos de transformação do mundo globalizado e suas expressões territoriais, possibilitando a construção de análises críticas-propositivas, multidimensionais e multiescalares.

Esta edição da GEOUSP ilustra a diversidade temática da produção geográfica na contemporaneidade, sendo que os artigos têm como ponto em comum, o ‘olhar’ atento à dimensão política que se expressa no(s) território(s), evidenciando a transversalidade e complementaridade dos temas. O território não apenas como suporte físico, mas como espaço onde ocorrem as interações entre sociedade e natureza, e entre humanos, cujas dinâmicas e diferentes usos dos territórios são historicamente construídos, e refletem as assimetrias nos acessos aos recursos e nas desiguais capacidades de exercício do poder.

A dimensão política-territorial é uma preocupação da Geografia desde seu nascimento como ciência moderna, sobretudo a partir dos escritos de Friederich Ratzel, no final do século XIX. Poder-se-ia mencionar vários teóricos que contribuíram para compreender o território como espaço político, como Jean Gottmann, Simon Dalby, John Agnew, entre tantos outros. Mas não seria possível apresentar uma revisão bibliográfica sobre o território neste editorial, sobretudo porque existe polissemia e diversas aplicações. Todavia, concordamos com Inácio e Silva (2025, p. 4) de que “[...] o território, enquanto categoria de interpretação geográfica, diz respeito a uma ferramenta que expressa um conjunto de campo de forças e espacialização do poder”.

Gostaríamos de prestar uma singela homenagem a Claude Raffestin, geógrafo suíço, falecido em setembro de 2025, que estabeleceu diálogos e influenciou gerações a refletirem sobre o território, a partir da concepção foucaltiana de poder, inclusive na geografia brasileira. Uma de suas importantes obras, “Pour une géographie du pouvoir”, publicada em francês nos anos de 1980, e no Brasil em 1993, com o título “Por uma Geografia do poder”, o poder é concebido como relacional, multidimensional e dissimétrico, empregado como meio de controle e dominação sobre pessoas e coisas, para alcançar seus trunfos - população, território e recursos.

Para o autor, o território é a cena do poder, é o lugar das relações entre os atores, onde os processos de apropriação e controle dos espaços são (re)produzidos pelas diferentes formas de uso da energia, informação e comunicação, nos seguintes termos [...] o território é um trunfo particular, recurso e entrave, continente e conteúdo, tudo ao mesmo tempo. O território é o espaço político por excelência, o campo de ação dos trunfos” (Raffestin, 1993, p. 59-60).

Essa leitura relacional que compreende o território como espaço produzido a partir das práticas sociais atravessadas pelo poder, abriu caminhos para a interpretação mais crítica da espacialidade, na qual o território e a territorialidade não são dados e, sim, construídos historicamente pelos atores (políticos, econômicos e sociais) diante das múltiplas dimensões e exercícios de poder que ocorrem entre as pessoas, em relação à natureza e nos territórios.

Souza (2020) reforça, em sua tese, a importância e a atualidade das proposições de Raffestin, que pode ser considerado um ‘clássico’ para os estudos dedicados a compreenderem as relações de poder que incidem nos territórios e na territorialidade. Não se pode olvidar de mencionar outros temas trabalhados pelo geógrafo em sua trajetória acadêmica, como fronteiras.

Na geografia brasileira podemos citar algumas referências que buscaram traduzir em suas investigações a categoria território, e dialogam com as reflexões internacionais que tratam do caráter relacional e político do território. Becker, em seu livro Geopolítica da Amazônia (1982), demonstrou como políticas de integração territorial e projetos de desenvolvimento expressam disputas geopolíticas por recursos, identidades e soberania, ressaltando que o território brasileiro, notadamente o amazônico, é permanentemente atravessado por relações de poder, tornando a Geografia um campo indispensável para desvelar mecanismos de dominação e resistência nesta região. Costa (1988, 2008), por sua vez, evidencia a centralidade do território na constituição dos Estados, seu papel como regulador, planejador e executor de políticas territoriais, e como a apropriação territorial expressa as estratégias dos atores estatais e privados. Santos (2004) destacou o espaço geográfico como uma instância da totalidade social, marcada pela coexistência dialética entre técnica, tempo e território. Sua formulação do conceito de “território usado” ampliou a noção de território ao articulá-lo com a prática social, ressaltando como o uso cotidiano e político do território é expressão das relações de poder e das condições históricas concretas. Haesbaert (2004) e Saquet (2007) reforçam o caráter multidimensional e processual do território, concebendo-o como construção social que envolve práticas econômicas, culturais e políticas e nas condições relacionadas as territorialidades.

Essa breve contextualização teórica-conceitual nos permite dar luz à diversidade temática das reflexões presentes nesta nova edição da Revista GEOUSP: Espaço e Tempo, que tem as questões territoriais como um elemento-chave. Os artigos aqui reunidos demonstram a vitalidade da Geografia para interpretar os problemas contemporâneos, seja por meio de análises empíricas de territórios específicos, seja pela proposição de categorias críticas que iluminam a compreensão do espaço em suas múltiplas dimensões.

O artigo de Kauê Lopes dos Santos analisa a expansão das Zonas Econômicas Especiais (ZEE) na África, partindo da Teoria dos Circuitos da Economia Urbana de Milton Santos, considerando os processos recentes de reconfiguração do capitalismo em escala global nos territórios do Sul Global.

A dimensão histórica e cultural emerge no trabalho de Kenia Fabiana Cota Mendonça e Luís Fernando da Silva Laroque sobre os Maxakali, povo pertencente à Família Linguística Jê, ocupantes dos territórios entre os rios Pardo e Doce, nordeste de Minas Gerais, e a crise do Serviço de Proteção aos Índios. A análise documental resgata os efeitos da ação (e omissão) do SPI sobre esse povo indígena, revelando como a violência institucionalizada se articula à expropriação territorial e à negação de direitos, tema que dialoga com a crítica geográfica às formas de dominação e marginalização.

A questão climática é objeto do artigo de Gabriel Pereira e João Batista Ferreira Neto, que apresentam uma proposta de zoneamento bioclimático para o Brasil com base no Índice Climático Térmico Universal. A pesquisa aponta a intensificação do desconforto térmico e suas conexões com fenômenos como El Niño e La Niña. Trata-se de um trabalho que evidencia a interface entre geografia física e geografia da saúde.

A experiência de pesquisa de campo é o foco do artigo de Gutemberg de Vilhena Silva e Clícia Di Miceli, dedicado à região das Guianas. O trabalho sistematiza quatro expedições realizadas entre 2017 e 2022, revelando dinâmicas transfronteiriças, fluxos de pessoas, mercadorias e culturas, e as formas como esses processos reconfiguram territorialidades amazônicas. A contribuição é exemplar para demonstrar como o trabalho de campo é um dos pilares para os estudos geográficos, pois permite captar as práticas cotidianas, as territorialidades e as diversidades que são intrínsecas às realidades locais e transnacionais da Amazônia guianense.

Melisa Estrella expõe a configuração de territórios-rede e territórios-zona em conflitos ambientais, a partir do caso da mineração em Esquel, na Argentina. Seu artigo mostra como os atores, tanto aqueles que promovem a mineração como os que resistem a esta atividade produtiva, buscam impor seus respectivos projetos territoriais por meio de diversas estratégias, atualizando e reconfigurando as relações de poder em diferentes fases do conflito.

A relação entre território, inovação e agronegócio é apresentada no artigo de Laís Ribeiro Silva e Mirlei Fachini Vicente Pereira, que examinaram como as agtechs - startups ligadas ao agronegócio - no município de Uberlândia (MG) oferecem seus serviços e articulam finanças e inovação tecnológica criando situações geográficas novas e reposicionando o território brasileiro no contexto da economia globalizada.

Rafael Straforini e Anniele Freitas analisam a mobilidade das políticas públicas educacionais de formação de professores, a partir da espacialidade dos agentes envolvidos no processo de construção da Base Nacional Curricular (BNC) Formação construída entre os anos de 2016 e 2019. O texto evidencia que a BNC expressa os interesses e as articulações de grupos específicos que atuam em escalas locais, globais e espaços políticos, notadamente os grupos empresariais, em suas demandas no(s) território(s).

Esta edição da GEOUSP traz ainda um dossiê especial sobre Novas Perspectivas de Gênero na Geografia, reunindo contribuições que ampliam a reflexão crítica.

Lorena Francisco de Souza e Fabiana Leonel de Castro apresentam um ensaio sobre as teorias políticas do feminismo negro e suas contribuições para o pensamento geográfico, destacando como a interseccionalidade revela desigualdades sociais e epistêmicas, além de abrir caminhos para uma prática científica e educativa mais inclusiva.

Bernardo Francisco Bronzi propõe uma geografia das pessoas trans, analisando espacialidades marcadas por estigmas, preconceitos e resistências, em diálogo com debates sobre direito à cidade.

Andrea Natalia Barragán León aborda como o corpo feminino e seus ciclos de vida são patologizados pela medicina alopática moderna, o que gerou historicamente na produção de espaços de violência e subordinação.

Por fim, Mariane Biteti defende que a Geografia de gênero não é um gênero de Geografia, apresentando uma revisão epistemológica e ontológica sobre natureza, corpo e técnica, argumentando pela necessidade de incorporar as questões de gênero em um projeto ético-político anticapitalista.

O conjunto de artigos que compõe esta edição da GEOUSP confirma a riqueza, qualidade e atualidade dos debates da Geografia. As análises transitam entre as escalas locais e globais, temas da geografia humana e física, abordagens empíricas, aplicações teóricas e reflexões conceituais. Mais do que nunca, evidenciam a necessidade da interlocução com outros campos do saber, e reafirma-se a Geografia como ciência crítica e indispensável para compreender e propor soluções frente aos desafios do século XXI. Desejamos a todas e todos uma instigante leitura.

Referências bibliográficas

  • BECKER, B. K. Geopolítica da Amazônia: a nova fronteira de recursos. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
  • COSTA, W. M. da. O Estado e as políticas territoriais no Brasil São Paulo: Contexto, 1988.
  • COSTA, W. M. da. Geografia política e geopolítica: discursos sobre o território e o poder. São Paulo: Edusp, 2008.
  • HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
  • INÁCIO, T. V. P.; SILVA, M. O significado do território em Gottmann: o avanço da extrema-direita e o dilema da segurança versus oportunidade. Geousp, v. 29, n. 1, e-221576, jan./abr. 2025.
  • RAFFESTIN, C. Por uma Geografia do poder São Paulo: Ática, 1993.
  • SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
  • SAQUET, M. A. Abordagens e concepções de território São Paulo: Outras Expressões, 2007.
  • SOUZA, R. F. A “Geografia do Poder” de Claude Raffestin: uma contribuição à teoria materialista do território. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Estadual Paulista. Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro, 2020.
  • SUERTEGARAY, D. M. A. Conhecimento geográfico no Brasil no início do século XXI. In: SPOSITO, E. S. et al A diversidade da geografia brasileira: escalas e dimensões da análise e da ação. Rio de Janeiro: Consequência, 2016. p. 57-82.

Editado por

  • Editora:
    Paula Juliasz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    03 Out 2025
  • Aceito
    22 Out 2025
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