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Os desafios no acolhimento e no ensino de língua portuguesa para estudantes imigrantes e refugiados na educação básica

The Challenges on Welcoming and Teaching Portuguese to Immigrant and Refugee Students in Basic Education

RESUMO

As migrações impostas têm ocasionado a presença cada vez maior de estudantes deslocados forçados no sistema de ensino brasileiro. O objetivo deste artigo é abordar os desafios enfrentados no acolhimento e no ensino de alunos imigrantes e refugiados, matriculados na Educação Básica, a partir da perspectiva docente, em dois municípios da região da Serra do Rio Grande do Sul. A pesquisa, de caráter quantitativo e qualitativo, discute o ensino de Português como Língua de Acolhimento e a formação de professores em uma perspectiva plurilíngue. A análise dos dados é realizada por meio da Análise de Conteúdo. Os resultados evidenciam a necessidade de formação docente para o ensino de língua portuguesa para imigrantes e refugiados, ainda nos cursos de licenciatura, e a concretização de políticas públicas para o acolhimento desse público. Ao final do artigo, sugerem-se algumas ações, a fim de promover a aprendizagem e a integração desses estudantes à sociedade brasileira, garantindo-lhes o direito à educação e à construção da cidadania.

Palavras-chave:
Educação Básica; Imigrantes e refugiados; Português como Língua de Acolhimento

ABSTRACT

Forced migration has occasioned a higher number of displaced students in the Brazilian scholar system. The main purpose of this paper is to approach, through the teacher’s perspective, the challenges faced when welcoming and teaching immigrants and refugees students who are registered in basic education in two towns in Serra Gaúcha, Rio Grande do Sul. This research, based on quantitative and qualitative methodology, discusses the teaching of Portuguese as a Welcoming Language and teacher’s training in a plurilingual outlook. The data analysis is achieved by Content Analysis. The results indicate the necessity of teacher’s training focused on teaching Portuguese to immigrants and refugees while the teachers are still in graduation courses and the accomplishment of public policies to welcome these students. By the end of the paper, some actions are suggested in order to promote the learning and integration of these subjects in Brazilian society, guaranteeing them the right to education and to the establishment of citizenship.

Keywords:
Basic Education; Immigrants and refugees; Portuguese as Welcoming Language

Desde o ano de 2010, o Brasil vem recebendo um grande contingente de imigrantes e de refugiados, principalmente de países da América do Sul e da América Central, com preponderância de haitianos e de venezuelanos, a quem se juntam outras nacionalidades menos numerosas, como colombianos, bolivianos e uruguaios. De acordo com o Relatório Anual do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), lançado pelo Ministério da Justiça em 2021, o número de imigrantes no Brasil chegou a 971.806 pessoas em 2020 (CAVALCANTI; OLIVEIRA; SILVA, 2021CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Tadeu de; SILVA, Bianca G. Relatório Anual 2021 - 2011-2020: Uma década de desafios para a imigração e o refúgio no Brasil. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública; Observatório das Migrações Internacionais, 2021.).

Essas pessoas, na condição de deslocados forçados (LOPEZ; DINIZ, 2018LOPEZ, Ana Paula de Araújo; DINIZ, Leandro Rodrigues Alves. Iniciativas jurídicas e acadêmicas para o acolhimento no brasil de deslocados forçados. Revista Siple, Brasília, ed. esp., n. 9, s/p, 2018.), deixam seu país de origem geralmente impulsionados por problemas econômicos e sociais, como guerras, ou decorrentes de desastres naturais e/ou instabilidade política, em busca de melhores condições de vida. Um dos motivos que as atrai para o Brasil é a abertura política propiciada pelo governo brasileiro, que conta com uma legislação inovadora em termos de imigração e de refúgio, de modo que esses estrangeiros têm maior facilidade para emitir novos documentos e fixarem-se no país (MOREIRA, 2010MOREIRA, Julia Bertino. Redemocratização e direitos humanos: a política para refugiados no Brasil. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília. v. 53, n. 1, p. 111- 129, 2010.).

No entanto, um dos maiores obstáculos para a integração social desse grupo é a questão linguística, já que, pelas próprias condições da migração forçada, eles acabam chegando ao Brasil com pouco ou nenhum conhecimento da língua portuguesa. Ganha destaque, então, o ensino de Português como Língua de Acolhimento (PLAc) para esses estrangeiros que, na maioria das vezes, se encontram em situação de vulnerabilidade social, com pouquíssimos recursos financeiros e desgastados pelo processo migratório, agravado ainda mais pelo rompimento dos laços familiares, linguísticos e culturais com o país de origem (AMADO, 2013)AMADO, Rosane de Sá. O ensino de português como língua de acolhimento para refugiados. Revista Siple, Brasília, v. 4, n. 2, p. 6-14. 2013.. De acordo com Lopes e Diniz (2018LOPEZ, Ana Paula de Araújo; DINIZ, Leandro Rodrigues Alves. Iniciativas jurídicas e acadêmicas para o acolhimento no brasil de deslocados forçados. Revista Siple, Brasília, ed. esp., n. 9, s/p, 2018., p. 3), o PLAc dedica-se “à pesquisa e ao ensino de português para imigrantes, com destaque para deslocados forçados, que estejam em situação de vulnerabilidade e que não tenham o português como língua materna”.

Instituições de ensino superior de todo o Brasil têm se dedicado com maior efetividade ao ensino de PLAc por meio de atividades curriculares ou ações de extensão, bem como à pesquisa sobre o processo de ensino e aprendizagem nessa área. O público-alvo do PLAc é formado, em grande parte, por adultos, constituindo turmas bastante heterogêneas em termos de idade, nível de escolaridade, profissão, proficiência linguística, etc. Todavia, dentre esses deslocados forçados, há um percentual significativo de crianças e jovens em idade escolar que precisam se inserir no sistema de ensino. De acordo com último Censo Escolar, realizado em 2016 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o número de matrículas de alunos estrangeiros em escolas brasileiras mais do que dobrou entre 2008 e 2016: de 34 mil para 73 mil matrículas, sendo a maior parte desses alunos, cerca de 64%, matriculados na rede pública.

Certamente esse número está bem maior atualmente, e muitos relatos dos profissionais da educação que trabalham com esse público mencionam as dificuldades que estão enfrentando nas escolas como a de adaptação dos alunos e de seus familiares à cultura brasileira; a carência de capacitação dos professores para trabalhar com alunos estrangeiros; ou, mesmo, a pouca compreensão da língua portuguesa pelos estudantes, tendo como consequência mais direta a não assimilação de conteúdos mínimos, pouca participação em sala de aula e, mesmo, uma total alienação das atividades e dos fazeres escolares, o que compromete o desenvolvimento e a adaptação deles, acarretando o insucesso escolar.

Em vista disso, este artigo aborda os desafios enfrentados no acolhimento de alunos imigrantes e refugiados matriculados na Educação Básica de dois municípios da região da Serra do Rio Grande do Sul e discute como esses alunos são percebidos pelos professores dentro do contexto escolar, principalmente no que se refere ao processo de ensino e aprendizagem da língua portuguesa. Na investigação, de caráter exploratório, quantitativo e qualitativo, realizou-se um levantamento do número de alunos matriculados nas redes pública e privada desses municípios e foram aplicados questionários a docentes de língua portuguesa dos anos finais do Ensino Fundamental, que tiveram experiência de ensino com alunos imigrantes e refugiados em sala de aula. As respostas aos questionários foram organizadas em um quadro, categorizadas e analisadas a partir da Teoria da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.).

A fundamentação teórica, calcada principalmente em Cursino (2020CURSINO, Carla Alessandra. Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados. Calidoscópio, v. 18, n. 2, p. 415-434, 2020.) e Lopez (2020LOPEZ, Ana Paula de Araújo. O professor de português como língua de acolhimento: entre o ativismo e a precarização. Fólio - Revista de Letras, Vitória da Conquista, v. 12, n. 1, p. 170-190, 2020.), aborda a formação de professores para o acolhimento de estudantes imigrantes e refugiados. Em seguida, apresenta-se o percurso metodológico da pesquisa e a análise dos dados obtidos. Por fim, nas considerações finais, discutem-se os resultados obtidos e sugerem-se algumas ações, a fim de promover a aprendizagem e a integração desses estudantes à comunidade escolar e à sociedade brasileira.

A importância da formação de professores para o acolhimento de imigrantes e refugiados

Os fluxos migratórios recentes trouxeram uma nova realidade para as escolas públicas brasileiras, marcadas pela presença cada vez mais significativa de alunos imigrantes e refugiados. Assim, há de se repensar não apenas o processo de ensino e aprendizagem e as metodologias de ensino de línguas, mas também, e principalmente, a formação de professores.

Cursino (2020CURSINO, Carla Alessandra. Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados. Calidoscópio, v. 18, n. 2, p. 415-434, 2020.), ao falar sobre o acolhimento de estudantes imigrantes e refugiados, assevera que o principal desafio para a rede pública de ensino é o idioma. A maioria das crianças que chega ao país não conhece o português e, dessa forma, acaba frequentando as aulas sem conseguir se comunicar com os professores e colegas e, consequentemente, não entendendo os conteúdos desenvolvidos em sala. A autora menciona, ainda, que são raros ou até inexistentes os momentos em que o português é ensinado a esses estudantes como língua adicional, fato que pode contribuir para o baixo desempenho escolar.

De acordo com Cursino (2020CURSINO, Carla Alessandra. Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados. Calidoscópio, v. 18, n. 2, p. 415-434, 2020., p. 419), embora os espaços escolares brasileiros sempre tenham sido constituídos, em certa medida, pela diversidade e heterogeneidade, os documentos educacionais, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm . Acesso em: 1 jan. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base Nacional Comum Curricular. 2017. Disponível em: Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br . Acesso em: 10 jun. 2021.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br...
), priorizam a homogeneidade da língua portuguesa, impondo o idioma local como dominante e como língua de escolarização, o que “reforça os processos de invisibilização dessas outras vozes e contribui para uma formação de professores inscritos no habitus monolíngue.” Ou seja, as diretrizes educacionais vigentes no Brasil excluem as possibilidades de multilinguismo nas escolas. Nas palavras da autora,

[...] apenas o português brasileiro e as ditas línguas de prestígio são contempladas nas escolas públicas e privadas do Brasil, o que silencia as vozes e apaga as identidades da grande maioria de crianças e jovens migrantes matriculados nas instituições de ensino brasileiras (CURSINO, 2020CURSINO, Carla Alessandra. Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados. Calidoscópio, v. 18, n. 2, p. 415-434, 2020., p. 430).

Assim, não se oferecem oportunidades aos estudantes imigrantes e refugiados de se expressarem em sua própria língua ou de utilizarem seus conhecimentos linguísticos, com o intuito de estabelecer relações com a língua portuguesa que estão aprendendo na escola. A falta de interação verbal com esses estudantes, que não têm o português como língua materna, acaba por silenciá-los, negando toda sua biografia linguística e cultural.

De acordo com Volmer e Ros (2020VOLMER, Lovani; ROS, Pietra da. Língua como Acolhimento e construção identitária. Humanidades e inovação, Palmas, v. 7, n. 17, p. 87-95, 2020., p. 94), poder comunicar é fundamental para a constituição da identidade. Os autores apontam para a língua como “premissa para que migrantes e refugiados compreendam os valores e as normas culturais do país que os acolheu”, além de garantir a “possibilidade de autoexpressão, de falar de si, da sua cultura, suas tradições e seus conhecimentos”. No espaço escolar, os alunos precisam comunicar para poderem existir enquanto sujeitos na comunidade da qual fazem parte. Deve-se oportunizar a crianças e adolescentes migrantes e refugiados espaços para compartilharem sua cultura, seus saberes e suas vivências com os demais colegas e o professor. Muitas vezes, entretanto, por causa de barreiras linguísticas, o professor fica impossibilitado de auxiliar os educandos a se expressarem.

Conforme Cursino (2020CURSINO, Carla Alessandra. Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados. Calidoscópio, v. 18, n. 2, p. 415-434, 2020.), a complexidade da atuação do docente nesse novo contexto aponta para a necessidade de se redefinir o papel do professor e da importância de sua formação numa perspectiva plurilíngue. Ela defende que

[…] profissionais que atuam com estudantes de outras nacionalidades, em especial com a comunidade migrante/refugiada, desenvolvam sua competência plurilíngue para que possam abrir espaço para o plurilinguismo de seus alunos em sala de aula, quebrando, assim, a tradição monolíngue presente nas instituições de ensino, bem como em sua própria formação (CURSINO, 2020CURSINO, Carla Alessandra. Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados. Calidoscópio, v. 18, n. 2, p. 415-434, 2020., p. 421).

Cursino (2020CURSINO, Carla Alessandra. Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados. Calidoscópio, v. 18, n. 2, p. 415-434, 2020.) adverte que, ao encararmos a comunicação de forma monolíngue, excluímos não somente as crianças que possuem outra língua materna que não o português, como também nos fechamos em relação ao restante do mundo e dificultamos a interação de imigrantes com brasileiros. De acordo com a autora, “[...] a ideologia do monolinguismo invisibiliza sujeitos, nega espaços às suas línguas, culturas, identidades, trajetórias e impede que indivíduos plurilíngues utilizem diferentes idiomas em diferentes contextos e níveis de proficiência” (CURSINO, 2020CURSINO, Carla Alessandra. Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados. Calidoscópio, v. 18, n. 2, p. 415-434, 2020., p. 430).

Na opinião da autora (2020CURSINO, Carla Alessandra. Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados. Calidoscópio, v. 18, n. 2, p. 415-434, 2020.), é preciso abrir nossas fronteiras linguísticas para estudar línguas que fujam do óbvio, ou seja, outras línguas além do português, do inglês e do espanhol, as quais costumam ser ensinadas na escola. Para tal, propõe que se traga para nossa realidade as abordagens plurais, quais sejam: a intercompreensão, a abordagem intercultural, o éveil aux langues e a didática integrada1 1 No artigo “Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados”, Cursino (2020) explica cada uma das abordagens plurais. .

Dentre essas abordagens, destacamos a intercultural, que consiste em práticas que levam para os espaços educativos dimensões culturais, interculturais e transculturais ao invés de trabalhar apenas com componentes linguísticos (MELO-PFEIFER, 2018MELO-PFEIFER, Silvia. The multilingual turn in foreign language education. Facts and falacies. In: BONNET, Andreas; SIEMUND, Peter. (ed.). Foreign language education in multilingual classrooms. Amsterdam: John Benjamins, 2018. p. 192-211.). Como explica Cursino (2020CURSINO, Carla Alessandra. Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados. Calidoscópio, v. 18, n. 2, p. 415-434, 2020., p. 424), o objetivo é “desenvolver diversas habilidades, atitudes e conhecimentos relacionados à diversidade linguística e cultural, de tal modo que os alunos possam participar de encontros interculturais nos quais eles atuam como mediadores culturais”. Não se trata, necessariamente, que o professor deva desenvolver competências linguísticas no sentido de aprender novas línguas, mas a aceitação das diferenças dos sujeitos, que é central em uma proposta de educação plurilíngue. Nessa perspectiva, ao colocar em diálogo interlocutores de diferentes comunidades em uma relação de alteridade, alunos e professores se engajam em novas experiências por meio de diferentes línguas. Propicia-se, então, um ambiente de valorização e respeito das diferentes culturas.

Quando os alunos migrantes e refugiados sentem-se acolhidos, buscam entender as novas palavras por meio das situações de aprendizagem em que todos colaboram, independentemente das diferenças socioculturais. Nesse intercâmbio cultural, professores e alunos aprendem tanto o idioma quanto a cultura do outro. O acolhimento, assim, passa a ser entendido como uma ação pedagógica intencional:

A escola deverá estabelecer novos olhares e práticas educativas de acolhimento e inserção social. É neste espaço que se estabelecerá a convivência com diferentes atores sociais, promovendo a troca de experiências, a valorização de um ambiente intercultural e a aprendizagem significativa que considera a diferença e a diversidade, proporcionando uma educação efetiva baseada nos pilares da igualdade, diversidade, alteridade e respeito. Rompendo com práticas homogeneizadoras, estigmatizantes e etnocêntricas, consolidando-se assim, um dos pilares da educação, aprender a viver juntos (ROLDÃO; SOUZA, 2019ROLDÃO, Sandra Felicio; SOUZA, Sirlei de. A inserção escolar de imigrantes haitianos na cidade de Joinville (SC). Revista Científica Interdisciplinar Interlogos, v. 6, n. 1, p. 103 - 116, 2019., p. 103).

Apesar de as colocações de Cursino (2020CURSINO, Carla Alessandra. Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados. Calidoscópio, v. 18, n. 2, p. 415-434, 2020.) serem muito pertinentes, a realidade vivenciada pelas escolas públicas, que são as que recebem a quase totalidade de estudantes imigrantes e refugiados, limita a apropriação dessas abordagens plurais. A formação de professores para o acolhimento linguístico de estudantes imigrantes e refugiados é quase inexistente nas redes públicas de ensino e ainda rara dentro das instituições de ensino superior.

Como menciona Lopez (2020LOPEZ, Ana Paula de Araújo. O professor de português como língua de acolhimento: entre o ativismo e a precarização. Fólio - Revista de Letras, Vitória da Conquista, v. 12, n. 1, p. 170-190, 2020.), o tema do PLAc tem conquistado espaço no âmbito da pesquisa dentro das instituições de ensino superior, mas poucas evidências são encontradas sobre avanços na formação docente, tanto dos profissionais já formados que atuam nas redes de ensino, os quais necessitam de cursos de capacitação, quanto dos estudantes de licenciatura, cujos currículos não contemplam ainda uma formação voltada ao plurilinguismo. Outrossim, reconhece-se a existência e a importância de cursos de curta duração, como o oferecido pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul2 2 O Curso Ensino de Português como Língua de Acolhimento é um curso MOOC (Massive Online Open Courses), online, sem tutoria, oferecido pelo IFRS de forma gratuita. Possui carga horária de 20h e é voltado a professores e estudantes da área de Letras. Disponível em: https://moodle.ifrs.edu.br/enrol/index.php?id=4960. , e o Curso de atualização em Acolhimento de imigrantes e refugiados, oferecido pelo Ministério da Educação (MEC), via Plataforma AVAMEC3 3 O Curso de atualização em Acolhimento de imigrantes e refugiados, também se configura como um curso on-line, sem tutoria, com carga horária de 80h. Disponível em: https://avamec.mec.gov.br/ , que promovem um primeiro contato com a temática, mas que ainda são insuficientes para uma formação docente mais plural. Destaca-se também a iniciativa do poder público do estado de São Paulo4 4 Documento Orientador Estudantes Imigrantes: Acolhimento. São Paulo: Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, 2018. Disponível em: https://www.educacao.sp.gov.br/wp-content/uploads/2018/12/acolhimento_final-compressed.pdf e do município de Foz do Iguaçu - PR5 5 Protocolo de Acolhimento de Estudantes imigrantes na rede municipal de ensino. Foz do Iguaçu: Secretaria Municipal de Educação da cidade de Foz de Iguaçu-SEED, 2020. Disponível em: https://dspace.unila.edu.br/handle/123456789/5879;jsessionid=4ce0f43d78eb72b1ea2836d539f7d74f , que desenvolveram documentos orientadores destinados às escolas de suas autarquias, os quais apresentam orientações visando a inclusão escolar e o acolhimento dos estudantes imigrantes na rede de ensino.

Percurso metodológico e análise de dados

A pesquisa, de caráter exploratório, quantitativa e qualitativa, desenvolveu-se em duas etapas. Na primeira etapa, foi realizado um levantamento do número de estudantes imigrantes ou refugiados matriculados na Educação Básica das redes pública e privada de dois municípios da Serra Gaúcha no ano de 20206 6 A escolha do corpus da pesquisa deve-se ao fato de o IFRS já atender imigrantes e refugiados adultos provenientes desses dois municípios em Cursos de Extensão de Língua Portuguesa. . Para a obtenção dos dados, foi estabelecido contato, via ligação telefônica e e-mail, com as Secretarias Municipais de Educação (SMEDs) dos municípios, com a Coordenadoria Regional de Educação do Estado do RS e com as escolas privadas.

Na segunda etapa, foram aplicados questionários com perguntas abertas a seis docentes de língua portuguesa dos anos finais do Ensino Fundamental da rede pública que, em sua trajetória profissional, já haviam trabalhado com alunos imigrantes e refugiados em sala de aula. Cabe mencionar que todo o processo de levantamento de dados foi realizado de forma remota em virtude do isolamento social imposto pela pandemia do COVID-19. Assim, os contatos foram realizados via telefone, e-mail e redes sociais. Os docentes participaram voluntariamente da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido7 7 O presente artigo está vinculado ao Projeto de Pesquisa intitulado Ensino de língua portuguesa para imigrantes e refugiados: desafios e perspectivas. Como a pesquisa envolve seres humanos, obedecendo à Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, o projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IFRS, sob Parecer nº. 3.939.306. A pesquisa é executada com recursos do Edital IFRS nº 64/2019 - Fomento Interno. .Para a análise das respostas dadas ao questionário, foram estabelecidas categorias, e os dados foram analisados sob a perspectiva da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.), que pode ser aplicada em discursos diversos e a todas as formas de comunicação, seja qual for a natureza do seu suporte. Nesse sentido, o pesquisador busca compreender as características, estruturas ou modelos que estão por trás dos fragmentos de mensagens tomados em consideração. O esforço do pesquisador é, portanto, duplo: entender o sentido da comunicação, como se fosse o receptor normal, e, principalmente, desviar o olhar, buscando outra significação, outra mensagem, passível de se enxergar por meio ou ao lado da primeira (GODOY, 1995GODOY, Arilda Schimdt. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. RAE - Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 35, n. 2, p. 57-63, 1995.). Segundo Bardin (2011BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.), a análise de conteúdo prevê três fases fundamentais: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados - a inferência e a interpretação.

Apresentamos a seguir os dados coletados juntamente às análises realizadas.

Quantitativo de estudantes imigrantes e refugiados matriculados na Educação Básica

Os dados coletados junto às Secretarias Municipais de Educação, Coordenadoria Regional de Educação e escolas da rede privada trazem o quantitativo de estudantes imigrantes e refugiados matriculados na Educação Básica nos Municípios 1 e 2 (Tabelas 1 e 2).

Nas escolas do Município 1, constatam-se 283 matrículas de alunos na condição de imigrantes e refugiados, sendo que a maioria deles (cerca de 71%) está na Educação Infantil e Ensino Fundamental da rede municipal. A população total do município era de 121.803 habitantes em 2020.

Tabela 1
Quantitativo de matrículas de estudantes no Município 1.

No Município 2, conforme dados obtidos, há um total de 61 matrículas de alunos na condição de imigrantes e refugiados, sendo a maioria (65,5%) também pertencente à Educação Infantil e EnsinFundamental da rede municipal. A população total do município era de 35.440 habitantes em 2020.

Tabela 2
Quantitativo de matrículas de estudantes no Município 2.

Somando os dados dos dois municípios, tem-se um total de 344 estudantes imigrantes e refugiados matriculados na Educação Básica, sendo que a rede municipal é a que mais atende esse público, já que a maioria deles está na Educação Infantil ou no Ensino Fundamental.

Os dados apresentados pelos sistemas de ensino desses dois municípios revelam que a maior parte dos estudantes estrangeiros está matriculada na rede pública, e apenas 1,45% dos alunos frequenta a rede privada. Em futuro estudo, pretende-se averiguar se tal condição se repete em escala nacional, porém infere-se que a rede pública é a principal via de acesso à escolarização de deslocados forçados na Educação Básica.

Análise do questionário aplicado aos docentes

O questionário aplicado aos docentes era composto por vinte e seis (26) questões, sendo quatro (4) de múltipla escolha e as demais dissertativas, e foi respondido entre os meses de novembro e dezembro de 2020. Para o processo de verificação dos dados, as respostas de cada questão foram transcritas em um quadro e estabeleceram-se cinco categorias para análise, sendo elas: (i) formação e atuação docente; (ii) perfil dos alunos imigrantes e refugiados; (iii) interação alunos/escola (interação/comunicação entre alunos imigrantes e refugiados e suas famílias com a comunidade escolar); (iv) processo de ensino e aprendizagem (metodologia de ensino, material didático-pedagógico, avaliação, dificuldades no processo de ensino e aprendizagem); e (v) políticas públicas para acolhimento de alunos imigrantes e refugiados. Responderam ao questionário seis professoras, que serão identificadas pelas letras A, B, C, D, E e F, de modo que seus nomes sejam preservados. As análises são apresentadas a seguir.

Formação e atuação docente

Em relação à formação acadêmica, as seis docentes possuem Licenciatura em Letras e cinco delas são pós-graduadas em nível de Especialização na área de Letras ou Educação. O tempo de experiência em sala de aula varia de 3 a 30 anos; três docentes (A, D e F) possuem mais de vinte e cinco anos de magistério. Todas são efetivas na rede pública municipal ou estadual de ensino e ministram aulas de Língua Portuguesa nos anos finais do Ensino Fundamental. Algumas delas também ministram aulas em outras disciplinas, como Língua Inglesa ou Literatura, no Ensino Médio.

As seis docentes têm experiência com estudantes imigrantes e refugiados em sala de aula e, de acordo com elas, nenhuma realizou cursos de formação para o ensino de língua portuguesa para imigrantes e refugiados. Dessa forma, mesmo com formação em Letras e anos de experiência profissional, as docentes declararam possuir dificuldades para ministrar aulas para esse público.

Perfil dos alunos imigrantes e refugiados

Segundo as docentes, há, em média, dois alunos imigrantes e refugiados por turma de Ensino Fundamental nos anos em que elas atuam. Dizem que a nacionalidade preponderante é a haitiana, o que implica alunos que possuem como língua materna ou primeira língua o Crioulo Haitiano ou o Francês. Dado o desconhecimento desses idiomas por parte das docentes, acentuam-se as dificuldades na comunicação.

Relatam, ainda, a presença de alunos de outras nacionalidades em suas classes, com preponderância de falantes da Língua Espanhola, em especial, os de origem venezuelana, mas também observam alunos oriundos de outros continentes, com outras línguas, como de angolanos. No caso de alunos hispanofalantes, observam melhores condições de aprendizagem e de comunicação, talvez pela condição de proximidade das línguas entre o Espanhol e o Português, visto que há diversas semelhanças lexicais e sintáticas com a língua portuguesa. No caso dos alunos de Angola, a dificuldade de comunicação é ainda menor, já que um dos idiomas oficiais daquele país também é o Português, além de compartilharem, como os brasileiros, uma influência cultural portuguesa.

Quanto à idade dos alunos, segundo os relatos das docentes, eles têm entre 11 e 16 anos e nem sempre estão no ano escolar correspondente à sua idade. Isso implica conviver com colegas que não são da sua faixa etária. A professora A, por exemplo, afirma ter um aluno de 16 anos que está no 8° ano. Nota-se, a partir disso, que a interação não é apenas afetada por questões linguísticas, mas também por questões típicas do desenvolvimento humano, já que alunos de diferentes faixas etárias têm características físicas e psicológicas diferentes.

Alguns problemas dessa disparidade entre idade e ano escolar podem estar relacionados com a diferença entre o sistema de ensino do país de origem e o brasileiro; a falta de documentos, já que muitos chegam ao país sem qualquer documentação escolar anterior; e o pouco domínio da língua portuguesa. Assim, apesar da garantia da oferta de educação pública e gratuita no sistema educacional brasileiro, a seriação desse alunado acaba ocorrendo, geralmente, a critério de cada unidade educacional, através de estudo de nivelamento, porém, muitas vezes, sem considerar a proficiência linguística e a bagagem cultural do estudante.

Aliado a isso, tem-se que o processo migratório dessas crianças e jovens deslocados forçados é complexo e traumático, o que provoca, muitas vezes, a interrupção temporária dos estudos, agravada pela dificuldade de adaptação ao novo país, sobretudo em relação à questão cultural e linguística.

Ainda, de acordo com as docentes, o tempo de residência desses alunos no Brasil varia de alguns meses a cerca de sete anos. Esse fator impacta nos diferentes níveis de proficiência em língua portuguesa que possuem. Notam que os recém-chegados apresentam muita dificuldade de comunicação, mesmo os falantes de espanhol, e percebem que é apenas após o desenvolvimento da fala que se inicia o processo de leitura e escrita para esses alunos.

Interação alunos/escola

A interação entre os estudantes imigrantes e refugiados e suas famílias com a escola é uma questão difícil de ser avaliada pelas informantes. Elas deduzem que essa relação varia conforme o tempo de residência dessas famílias no Brasil, do nível de compreensão da língua portuguesa e da forma como a escola recebe o aluno.

As docentes têm pouco conhecimento sobre o processo de matrícula de alunos imigrantes e refugiados, principalmente, em relação à documentação que deve ser apresentada pelos pais e/ou responsáveis, como comprovante de escolaridade e histórico escolar, por exemplo. No entanto, as professoras A e E afirmam que parentes ou amigos que estão há mais tempo no Brasil costumam auxiliar as famílias recém-chegadas neste primeiro contato, o que facilita a comunicação tanto para a escola quanto para os pais e/ou responsáveis dos novos alunos.

Conforme as respondentes, a interação dos alunos imigrantes e refugiados com a comunidade escolar é sempre mais difícil, logo que ingressam na instituição de ensino, mas, com o tempo, muitos conseguem estabelecer uma boa amizade com colegas e professores. Veja-se o seguinte relato:

A maioria tem dificuldade de interação, mesmo contando com a boa vontade dos colegas. Ficam sentados sozinhos no intervalo e não são escolhidos para duplas. Porém, outros conseguiram interagir com seus colegas, fazer amizades que eram perceptíveis tanto em sala de aula, quanto no intervalo. (PROFESSORA F, 2 de dezembro de 2020).

Percebe-se que a criação de laços no Brasil é muito dificultada pela falta de compreensão da língua portuguesa, pois impede uma maior interação do migrante com colegas e professores em sala de aula; é o que se deduz do seguinte fragmento: “O Joanel não fala nem entende o português, se comunica em francês, sorri muito e aponta. [...] A Betchina8 8 Os nomes são fictícios para manter preservada a identidade dos alunos. não entendia nada e também passava a manhã sorrindo na sala” (PROFESSORA F, 2 de dezembro de 2020). Nos dois excertos, a postura desses estudantes, frente a uma situação em que não compreendem a língua portuguesa, faz com que se sintam desorientados. O sorriso, neste caso, pode ser entendido não como uma expressão de alegria, ou de felicidade, mas como uma forma de estabelecer contato, de buscar empatia por parte do outro (colegas e professora), ou, também, como uma forma de demonstrar que deseja se inserir na conversa, mesmo que não esteja compreendendo a língua. A professora E, por sua vez, vê, no próprio processo migratório, uma explicação para a dificuldade inicial de interação demonstrada pelos estudantes. Em suas palavras: “Ninguém passa por fome, deixa seus familiares em outro país e consegue sentar numa sala com cabeça para estudar e seguir a vida” (PROFESSORA E, 2 de dezembro de 2020).

As falas das professoras F e E revelam que o fator linguístico não é o único que implica dificuldades de aprendizagem para os alunos, visto que a falta de adaptação cultural também contribui para isso. Como se apontou anteriormente, o aprendizado da língua do país de acolhimento é um dos elementos culturais que possibilita ao aluno imigrante e refugiado exercer o seu pertencimento ao grupo social. De acordo com Silva e Costa (2020SILVA, Flávia Campos; COSTA, Eric Júnior . O ensino de Português como Língua de Acolhimento (PLAC) na linha do tempo dos estudos sobre o Português como Língua Estrangeira (PLE) no Brasil. Horizontes de Linguística Aplicada, v. 19, n. 1, p. 125-143, 2020., p. 127), a língua serve como uma ferramenta de emancipação, na medida em que incentiva o sujeito a renovar seus lugares de enunciação e, com isso, “movimentar padrões de sociabilidade por meio das inteligibilidades emergentes no processo de aprendizagem” da língua. No entanto, para além do elemento linguístico, existem outras questões, como a alimentação, as vestimentas, os costumes e tradições, a religião que também são vivenciadas à medida que se passa a fazer parte de um determinado grupo.

Uma maneira de romper as barreiras para a integração desses alunos migrantes à comunidade escolar é estimulando-os para que compartilhem suas experiências, fazendo com que se sintam parte de um grupo. À medida que o aluno cria esse sentimento de pertencimento, terá mais facilidade para compreender as linguagens corporal e falada, favorecendo a aprendizagem.

Evidencia-se, assim, a necessidade de uma postura de acolhimento por parte da escola como um todo. Para receber um aluno estrangeiro, toda a comunidade escolar precisa estar mobilizada: equipe diretiva, professores e alunos. Deve-se atentar à linguagem corporal e à expressão facial desses estudantes, a fim de entender as suas necessidades e ajudá-los a expressá-las de alguma forma.

De acordo com as docentes da pesquisa, a partir do momento em que os estudantes conseguem se comunicar em língua portuguesa, passam a interagir efetivamente na escola e tornam-se capazes de intervir na própria família. Toma-se como base o relato a seguir:

Quando chegaram, meu Deus! Dói lembrar, não sabiam pedir água, pedir pra ir ao banheiro, apenas ficavam na sala. Falavam uma língua crioula, ou não conseguiam nem um tradutor para conseguir fazer qualquer contato. Hoje, compreendem tudo, inclusive ensinam Português aos familiares. (PROFESSORA E, 2 de dezembro de 2020).

A participação das famílias no processo educativo dos filhos, segundo as docentes, é muito relativa. Algumas famílias são bem presentes e participativas na comunidade escolar, mas outras não, apesar das tentativas por parte da escola, como confirma a professora F: “A escola sempre solicita a presença dos pais para ajudar a entender situações e no aprendizado dos alunos, no entanto nem todos comparecem”. Isso se deve, provavelmente, pela questão da compreensão do idioma, já que muitas famílias não compreendem os recados e bilhetes que são enviados pela escola, além de questões laborais relativas aos horários de trabalho dos pais, que, frequentemente, ocorrem pela noite ou pela madrugada. Os trabalhos mais comumente ocupados pelos pais são de auxiliar de produção em frigoríficos da região.

Ainda, sobre a interação dos alunos na sociedade, três docentes não se sentiram capazes de avaliar a relação dos alunos e de suas famílias com a comunidade local pelo fato de não conhecerem como é a vida desses estudantes fora do ambiente escolar. Contudo, é interessante observar a resposta da professora A, pois ela compartilha um comportamento social frequente desses imigrantes, em que a relação com compatriotas residentes é mais exitosa do que entre pessoas de países diferentes: “Vejo que se relacionam bem entre haitianos, porém vejo que ela, Marie no caso, tem dificuldades em se relacionar conosco, os brasileiros” (PROFESSORA A, 18 de novembro de 2020). Pode-se inferir, nesse caso, que os alunos brasileiros também têm dificuldade de se relacionarem com a aluna migrante.

O comportamento relatado pela docente é notado com frequência em outros ambientes de interação social, como ruas, praças e shoppings, também pelo público adulto, e pode ser pensado como uma atitude natural. Ao estarem com pessoas da mesma nacionalidade, podem conversar sobre sua cultura, compartilhar experiências que têm em comum e falar em sua língua materna. Essa interação restabelece laços que ficam distantes na escola ou no trabalho, por exemplo, onde a comunicação se dá majoritariamente com brasileiros.

Outro fator trazido pelas docentes foi a situação socioeconômica das famílias desses alunos. De acordo com a professora C: “São famílias que geralmente trabalham em empresas locais, mas ainda encontram alguma dificuldade financeira, como a maioria das famílias dos alunos da nossa escola”. Em alguns casos, a escola empenha-se em auxiliar de alguma forma, pois:

Como a aluna vinha de uma situação familiar bastante conturbada, foram realizadas algumas ações para auxiliá-la. Foram realizadas doações de material escolar, roupas, alimentos e até a ajuda financeira, para que a aluna pudesse viajar com os colegas para outro estado. Sei também que alguns professores continuaram auxiliando mesmo depois que a aluna deixou a escola. (PROFESSORA D, 28 de novembro de 2020).

Atitudes como doação de roupas, alimentos e materiais escolares por parte dos professores e servidores são comuns em escolas que contam com alunos cujas famílias brasileiras enfrentam dificuldades financeiras e também constituem práticas de acolhimento com estudantes imigrantes e refugiados.

A partir dos relatos das professoras, fica evidente a necessidade da educação do entorno, na concepção de Maher (2007MAHER, Terezinha de Jesus Machado. A educação do entorno para a interculturalidade e o plurilinguismo. In: KLEIMAN, Ângela; CAVALCANTI, Marilda. (org.). Linguística Aplicada: suas faces e interfaces. Campinas: Mercado de Letras, 2007. p. 255-270.), ou seja, a mobilização da comunidade intra e extraescolar para o acolhimento desses estudantes e suas famílias. Esse conceito é fundamental em um meio em que há grupos de estudantes estrangeiros, pois, se a comunidade não aprender a respeitar e a conviver com as diferentes manifestações linguísticas e culturais, esses grupos não conseguirão exercer, de forma plena, sua cidadania. Para Maher (2007MAHER, Terezinha de Jesus Machado. A educação do entorno para a interculturalidade e o plurilinguismo. In: KLEIMAN, Ângela; CAVALCANTI, Marilda. (org.). Linguística Aplicada: suas faces e interfaces. Campinas: Mercado de Letras, 2007. p. 255-270.), a educação do entorno e, por consequência, uma educação que respeite a multiculturalidade e o plurilinguismo, está ancorada em dois principais pilares principais: i) necessidade de aprender a aceitar o caráter mutável do outro; e ii) necessidade de aprender a destotalizar o outro - porque a tendência é ver o outro de maneira uniforme e escolher determinados padrões culturais. Segundo a autora:

Quando o aluno toma consciência de que a nação brasileira é produto de relações interculturais, quando ele se vê confrontado com a mutabilidade, a hibridez, a não- univocidade de sua própria matriz cultural, é mais fácil ele perceber que está operando com representações sobre o outro e que as representações que faz das culturas e dos falares minoritários não são nunca verdades objetivas ou neutras, mas, sim, construções discursivas (MAHER, 2007MAHER, Terezinha de Jesus Machado. A educação do entorno para a interculturalidade e o plurilinguismo. In: KLEIMAN, Ângela; CAVALCANTI, Marilda. (org.). Linguística Aplicada: suas faces e interfaces. Campinas: Mercado de Letras, 2007. p. 255-270., p. 268).

Desse modo, é importante que a comunidade escolar brasileira esteja aberta às diferenças culturais e linguísticas dos alunos imigrantes e refugiados e suas famílias. O acolhimento desses estudantes deve configurar, como apontam Roldão e Souza (2019ROLDÃO, Sandra Felicio; SOUZA, Sirlei de. A inserção escolar de imigrantes haitianos na cidade de Joinville (SC). Revista Científica Interdisciplinar Interlogos, v. 6, n. 1, p. 103 - 116, 2019.), uma ação pedagógica-intencional.

Processo de ensino e aprendizagem

Quando foi perguntado sobre o modo como as docentes desenvolviam os conteúdos da disciplina, e qual metodologia e estratégias de ensino utilizavam, a resposta da informante A chama a atenção de imediato: “Temos dificuldades em fazê-la [a aluna] nos compreender, tentamos algumas formas mas não obtivemos êxito”. Após tentativas frustradas de ensinar a língua portuguesa através de metodologias, muito provavelmente, intuitivas, é possível que a aprendizagem dessa estudante tenha sido pouco efetiva. Pelos relatos das demais docentes, nota-se, de maneira geral, que há muita insegurança sobre metodologias e estratégias de ensino voltadas aos alunos imigrantes e refugiados, sobre materiais didáticos apropriados e, também, em relação ao processo avaliativo.

Em outra resposta, percebe-se a busca de alternativas para o processo de ensino “[...] através de planejamento de fácil entendimento e com bastante interação professor/aluno durante a realização das atividades” (PROFESSORA C, 25 de novembro de 2020). Nesse caso, apesar da boa intenção da docente, também se verifica falta de clareza metodológica sobre a melhor forma de atender esse alunado. Duas outras professoras (D e E) afirmaram usar a mesma metodologia de ensino para toda a turma, pois seus alunos imigrantes já tinham um maior conhecimento da língua e, consequentemente, um bom engajamento em sala de aula, ou seja, as aulas para alunos imigrantes seguem o mesmo rito das aulas para estudantes que possuem o português como primeira língua (L1), tratando-se o ensino da língua e os aprendizes de forma homogênea. As professoras A, B, C e F afirmaram que realizam adaptação de conteúdos, dependendo da necessidade do aluno ou da atividade.

Outra situação que ainda atrai atenção é apresentada no relato da professora F, que disse contar com a presença de um monitor em sala de aula destinado a alunos de inclusão9 9 Nesse contexto, entende-se que ao referir “alunos de inclusão” a professora faz menção a turmas que contam com alunos com necessidades específicas ou altas habilidades em sua classe, equiparando à situação do aluno imigrante. , o qual auxiliava também os alunos imigrantes, e complementa: “Porém há salas onde não há alunos de inclusão e fica quase impossível dar o atendimento adequado. A realidade é muito diferente e a complexidade da matéria não consegue ser acessada por eles, infelizmente (sic)”. (PROFESSORA F, 2 de dezembro de 2020).

Em relação ao material didático, duas docentes (A e F) explicam utilizar materiais diferenciados para os estudantes imigrantes e refugiados e buscam alternativas para trabalhar o vocabulário, principalmente. A professora E diz que faz uso de imagens para demonstrar coisas simples e, aos poucos, vai ampliando o vocabulário a partir de pequenos textos. Segue o relato:

Primeiramente, utilizei imagens, e mostrei como poderia pedir coisas básicas, pedi (mandei) que treinasse, então ela tinha que ir ao banheiro, ou tomar água em todos os períodos (as profes ficavam loucas). Depois, fui ampliando o vocabulário e selecionei pequenos textos, tinha que ler em casa e no outro dia me mostrar as palavras que não compreendia. Podes imaginar? O primeiro texto veio todo sublinhado, mas com o tempo eles ficavam cada vez mais branquinhos, e quando ela leu na frente da turma, eu compreendi: estava pronta. (PROFESSORA E, 2 de dezembro de 2020).

No entanto, todas as docentes afirmaram desconhecer materiais didáticos de língua portuguesa voltados especificamente ao público imigrante10 10 Já existem diversos materiais didáticos voltados especificamente a imigrantes e refugiados, disponíveis on-line e de livre acesso, dos quais citamos: Vamos juntos(as)! - Curso de Português como Língua de Acolhimento (BIZON; DINIZ; CAMARGO, 2020); Portas Abertas (REINOLDES; MANDALÁ; AMADO, 2018); Pode entrar (OLIVEIRA; MARRA; FASSON, 2018). . Na medida do possível, buscavam algo na internet, ou utilizavam o dicionário ou algum recurso tecnológico para a tradução entre as diferentes línguas.

Em relação ao processo de avaliação, apenas duas docentes (A e F) afirmaram fazer avaliações diferenciadas para os alunos imigrantes e refugiados. As demais mantêm a mesma forma de avaliar para toda a turma. No entanto, a professora D disse ter um grau de exigência menor com os imigrantes, ou seja, a avaliação era a mesma, mas o processo de correção era mais simplificado.

A avaliação é sempre uma questão muito complexa e, em se tratando de estudantes imigrantes e refugiados, deve-se ter bem claros os objetivos da aprendizagem. O que se espera é que a avaliação destinada a alunos não falantes de língua portuguesa possa ser mais flexível e que os conhecimentos sejam testados por meio de recursos que facilitem a comunicação dos alunos, como uso de imagens, testes orais, desenhos, etc. A ideia não é que o imigrante desenvolva menos habilidades daquelas previstas para seu ano escolar, mas que as habilidades sejam praticadas de formas alternativas até que seu conhecimento da língua portuguesa esteja mais consistente.

No que diz respeito ao progresso dos alunos, as docentes relataram que há um maior desenvolvimento da aprendizagem à medida em que eles se sentem acolhidos e integrados ao ambiente. A professora C afirma que: “São alunos muito esforçados, muito preocupados em aprender, bastante educados e inteligentes. Mesmo com as dificuldades, buscam formas de entender o que lhes é transmitido”.

Em relação à interculturalidade, todas as docentes afirmaram que buscavam proporcionar momentos para que os alunos falassem sobre a sua cultura e seu país de origem. Nas palavras da professora D:

Em uma atividade relacionada ao projeto desenvolvido em 2017, “Mulheres que fizeram história”, enquanto estudávamos a vida de Zilda Arns, a aluna Chrismanie contou sobre o terremoto que vitimou a médica que estava na cidade de Porto Príncipe, cidade em que ela residia. A maioria dos alunos não sabia do ocorrido e a colega trouxe muitas informações que surpreenderam a todos. Sei de outros professores que fizeram excelentes trabalhos também. (PROFESSORA D, 28 de novembro de 2020, 28 de novembro de 2020).

Proporcionar tais momentos é fundamental para a inserção desses alunos na comunidade escolar. A partir dessas conversas, a turma passa a conhecer melhor a cultura e a trajetória dos colegas imigrantes, favorecendo a criação de laços de amizade, baseados na empatia e na solidariedade. Além disso, o momento se torna propício para a prática da língua portuguesa por parte dos alunos imigrantes.

No entanto, para promover de fato a interculturalidade, como aponta Cursino (2020CURSINO, Carla Alessandra. Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados. Calidoscópio, v. 18, n. 2, p. 415-434, 2020.), há que se abrir espaço também para as diferentes línguas faladas por esses alunos, trazê-las para dentro da sala de aula, dar voz a esses estudantes em um espaço de aprendizagem mútua. Assim, de um lado, os estudantes imigrantes e refugiados mobilizam seus conhecimentos linguísticos para se comunicar com os colegas brasileiros em suas línguas maternas; de outro, estudantes falantes do português aprendem com os colegas imigrantes, conhecendo outros idiomas e ampliando o vocabulário em inglês, espanhol, francês, crioulo haitiano ou qualquer outro.

No ano de 2020, devido ao isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19, o ensino presencial deu espaço ao ensino remoto, por meio de aulas online e entrega de materiais e atividades impressas. Com isso, a aprendizagem dos alunos imigrantes e refugiados foi bastante prejudicada, pois a interação presencial com colegas e professores configura um aspecto muito relevante para o contexto de língua de acolhimento. Durante esse período, as docentes relataram que disponibilizavam materiais para que fossem retirados nas escolas, bem como prestavam auxílio na medida do possível. Veja-se o relato a seguir:

Durante o período de isolamento social, as atividades pedagógicas não presenciais foram adaptadas à situação de aprendizagem do aluno. Alguns desses imigrantes continuam vindo até a escola para a realização das atividades com o apoio da professora da sala de recursos. As minhas avaliações, para os alunos que não falam nem escrevem a nossa língua, foram escritas com a tradução do crioulo haitiano para facilitar no processo de interação. Nesse contexto, a aprendizagem dos alunos haitianos foi prejudicada, pois não tivemos um olhar mais próximo, como fazíamos em sala de aula (PROFESSORA B, 20 de novembro de 2020).

Todas as seis docentes mostraram-se muito preocupadas em relação à aprendizagem dos alunos, principalmente quando percebem que eles não compreendem a língua portuguesa. Em relação a isso, a professora F diz: “Eles só copiam o conteúdo, não entendem nem o que escrevem. A maioria consegue copiar algumas frases em um período, portanto fazem outras atividades mais simples, como se fosse um aluno de inclusão” (PROFESSORA F, 2 de dezembro de 2020). Isso corrobora a ideia de Cursino, de que “o cotidiano escolar ocorre, na maioria dos casos, sem a aprendizagem formal do português brasileiro como língua adicional” (CURSINO, 2020CURSINO, Carla Alessandra. Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados. Calidoscópio, v. 18, n. 2, p. 415-434, 2020., p. 418).

Outra professora também aponta que, sem a apropriação da língua portuguesa, o aprendizado do aluno fica comprometido em todos os componentes curriculares:

[...] se não faz sentido a um imigrante aprender, não faz sentido a qualquer outro aluno. Entendo o aprendizado e estudo da língua como uma apropriação do que será útil na vida de todas as pessoas nos diversos contextos comunicativos. Porém, como é que eles irão aprender esse algo ‘útil’, sem nem saber o que está sendo falado (PROFESSORA E, 2 de dezembro de 2020).

As docentes foram unânimes em afirmar que a maior dificuldade dos alunos imigrantes e refugiados está, portanto, na questão linguística. Sendo assim, é comum priorizarem o ensino da língua portuguesa em detrimento dos conteúdos da disciplina, como revela a professora D:

Durante o tempo que fui professora dela [nome da aluna] sempre priorizei a aquisição da linguagem. Os conteúdos, muitas vezes, eram deixados de lado. Desta forma, nas minhas disciplinas (Língua Portuguesa e Língua Inglesa) a aluna não teve a aquisição da maioria dos conteúdos mínimos da série. (PROFESSORA D, 28 de novembro de 2020).

Aprender um novo idioma requer tempo. Aprender os conteúdos escolares em um novo idioma torna-se ainda mais desafiador. De acordo com Cursino (2020CURSINO, Carla Alessandra. Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados. Calidoscópio, v. 18, n. 2, p. 415-434, 2020., p. 418), “embora as instituições de ensino sejam compostas por identidades plurais, o próprio sistema educativo impõe o idioma local como dominante e como língua de escolarização”. Nega-se, assim, a biografia linguística de indivíduos que não têm o português como língua materna e revela-se ainda uma outra questão mais profunda: o preconceito linguístico e, mais do que isso, o preconceito social. Daí decorre que o comportamento de muitos estudantes é isolar-se do grupo de colegas e não se sentir pertencente ao espaço escolar.

Diante do exposto, reforça-se a percepção de que a formação dos docentes da Educação Básica para o trabalho com estudantes imigrantes e refugiados é um dos grandes desafios do sistema de ensino brasileiro.

Políticas públicas para acolhimento de alunos imigrantes e refugiados

Ao perguntar às docentes se elas se sentiam preparadas para atuar com estudantes imigrantes e refugiados, as seis professoras responderam que não. Dentre as principais questões discutidas estão, além da dificuldade de comunicação com os estudantes estrangeiros, a quantidade excessiva de alunos nas turmas e a falta de apoio por parte do próprio sistema de ensino. A professora A ainda comenta a necessidade de um intérprete na escola para facilitar a comunicação com os alunos e as famílias recém-chegadas. Na resposta seguinte, é visível como as docentes se sentem desamparadas para atuar com esses alunos: “Ainda hoje não me sinto preparada para atuar de forma efetiva com esse público. Acredito na importância de cursos de capacitação para os professores e na contribuição de uma rede de apoio: psicólogos, psicopedagogos […]” (PROFESSORA D, 28 de novembro de 2020).

Além de receber apoio por parte do sistema de ensino, também consideram que o próprio professor deve pesquisar e buscar capacitação para aperfeiçoar a sua práxis. De acordo com a professora E:

Se o profe não se sentir preparado, a tendência é dar errado mesmo. Nós, professores da rede pública, vamos lutar com todas as nossas armas. Se eu não sei, pesquiso, se não der certo, tento outro caminho, não há como ficar parado. É assim. Se não tivesse dado certo, eu tentaria outra abordagem, felizmente obtivemos resultados bem positivos. (PROFESSORA E, 2 de dezembro de 2020).

Já a professora C acredita que a experiência em sala de aula é um fator positivo que confere maior facilidade para trabalhar com esse público, mas apenas isso não é suficiente: “Com a experiência acabamos nos adaptando e melhorando as formas de trabalhar com esses alunos. Mas qualquer material de apoio seria bem-vindo”.

Para solucionar as dificuldades relatadas, as professoras visualizam algumas ações práticas com o intuito de promover o acolhimento e facilitar o processo de ensino e de aprendizagem de alunos imigrantes e refugiados, como investir no aperfeiçoamento profissional dos professores, capacitando-os também para a utilização de recursos digitais; proporcionar cursos de língua portuguesa para os imigrantes, com material específico para eles; e oferecer apoio psicológico aos estudantes. De acordo com a professora D, “[...] promover a integração acolhendo o aluno seria fundamental, aproveitar o conhecimento dele e relacioná-lo com conteúdos curriculares também favorece a integração e, ainda, flexibilizar a avaliação irá auxiliar na adaptação da língua”.

A acolhida humanitária para imigrantes e refugiados no Brasil e o acesso igualitário aos serviços públicos, dentre os quais o de educação, são garantidos pela Lei n. 13.445, de 24 de maio de 2017, que institui a Lei de Migração (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base Nacional Comum Curricular. 2017. Disponível em: Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br . Acesso em: 10 jun. 2021.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br...
). Contudo, ao perguntar sobre a existência de ações de acolhimento de imigrantes e refugiados nos municípios em que atuam, as docentes afirmaram desconhecer ações concretas, conforme podemos depreender de:

Na época não havia. Lembro da diretora da [nome da escola] muitas vezes questionar a Secretaria de Educação sobre possíveis projetos que poderiam ser desenvolvidos junto a esse público. Mas na ocasião nada foi feito. Volto a dizer que tudo era muito novo, não se sabia como trabalhar de forma eficaz. Porém quando um município recebe esse público, deve se sentir responsável por ele e buscar caminhos, não apenas colocá-lo em uma sala de aula achando que é o suficiente. (PROFESSORA D, 28 de novembro de 2020).

As docentes também mencionam que não receberam nenhuma orientação por parte das Secretarias Municipais de Educação ou da Coordenadoria Regional de Educação do Estado do RS. Três docentes (B, C e D) acabaram por destacar que é a própria equipe diretiva da escola que presta, na medida do possível, algum auxílio aos estudantes e orientação aos professores. Ou seja, na opinião das docentes que participaram da pesquisa, há um descaso do poder público em relação ao acolhimento dos imigrantes e refugiados e à inserção social deles nos municípios em que atuam.

Considerações Finais

Após a realização desta pesquisa, verificou-se, de modo geral, que apesar do crescente número de alunos imigrantes ou refugiados matriculados nas escolas de Educação Básica, ainda inexistem, nos municípios pesquisados, ações coordenadas e efetivas de acolhimento desses alunos. Entretanto, as docentes recebem os alunos em sala de aula e buscam, cada uma à sua maneira, estratégias de ensino para atendê-los, visto que não receberam nenhuma formação específica para trabalhar neste contexto de ensino. Consequentemente, desconhecem alguma base teórica que possa subsidiar o trabalho escolar, como, por exemplo, os preceitos sobre a Língua de Acolhimento (PLAc), materiais didáticos específicos voltados para esse público e, sobretudo, expressam muita insegurança sobre metodologias e/ou estratégias de ensino e sobre o processo de avaliação para estudantes de outras nacionalidades.

Os discentes, por sua vez, são matriculados em determinado ano/série escolar e começam a frequentar as aulas de todos os componentes curriculares, em que são trabalhados conteúdos diversos, porém com pouca proficiência na língua portuguesa. Dessa forma, o aprendizado dos conteúdos fica parcial ou totalmente comprometido, pois muitas vezes esses alunos participam das aulas sem entender nada do que está sendo ensinado. Mesmo assim, em geral, eles progridem para as séries seguintes e concluem as etapas da Educação Básica com um aproveitamento inferior ao dos estudantes brasileiros.

Revela-se, portanto, a urgência de se pensar em ações de acolhimento e metodologias de ensino para essas crianças e jovens deslocados forçados a nível de política pública, e entende-se que essas ações deveriam contemplar a comunidade intra e extraescolar. Em termos de escola, por exemplo, poderiam ser realizadas ações, tais como: capacitação da equipe diretiva e demais servidores que atuam em setores como secretaria, biblioteca, refeitório, limpeza, para o recebimento e acolhimento de estudantes imigrantes e refugiados; cursos de formação docente na perspectiva do ensino de PLAc; atendimento psicológico e reforço escolar para os estudantes imigrantes e refugiados; aulas de língua portuguesa no contraturno escolar; e grupos de estudos de alunos com diferentes níveis de proficiência em que possam aprender juntos o novo idioma.

Para a comunidade em geral, seria importante a realização de cursos de língua portuguesa para as famílias dos estudantes, a fim de melhorar a interação família-escola-sociedade. Além disso, a promoção de eventos como palestras, mostra de talentos, feiras culturais, saraus, oportunizariam a participação dos alunos imigrantes e refugiados e seus pais, promovendo a interculturalidade e estreitando a relação com a comunidade escolar. Não obstante, ao dar visibilidade aos alunos imigrantes e refugiados, suas diferentes línguas, culturas e saberes, promover-se-ia a educação do entorno, como defende Maher (2007MAHER, Terezinha de Jesus Machado. A educação do entorno para a interculturalidade e o plurilinguismo. In: KLEIMAN, Ângela; CAVALCANTI, Marilda. (org.). Linguística Aplicada: suas faces e interfaces. Campinas: Mercado de Letras, 2007. p. 255-270.), estimulando um ambiente de empatia e respeito às diferenças.

Em termos de formação de professores, torna-se urgente que as instituições de ensino superior incluam nos currículos dos cursos de Licenciatura, não apenas do curso de Letras, componentes que abordem a temática das migrações recentes, o ensino de Português como Língua de Acolhimento e metodologias de ensino para alunos estrangeiros deslocados forçados sob uma perspectiva plurilíngue, como defende Cursino (2020CURSINO, Carla Alessandra. Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados. Calidoscópio, v. 18, n. 2, p. 415-434, 2020.).

Enfim, os desafios são muitos em relação ao ensino para estudantes imigrantes e refugiados, mas o sistema de ensino brasileiro precisa estar aberto e preparar-se para esse novo contexto migratório, a fim de que seja garantido a essas crianças e adolescentes o direito à educação por meio do acesso e permanência em um ambiente acolhedor. Ao respeitar e valorizar a biografia linguística e cultural desses estudantes, promove-se o sentimento de pertencimento à nova sociedade, a reconstituição de suas relações afetivas e a construção da cidadania.

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  • VOLMER, Lovani; ROS, Pietra da. Língua como Acolhimento e construção identitária. Humanidades e inovação, Palmas, v. 7, n. 17, p. 87-95, 2020.

Notas

  • 1
    No artigo “Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados”, Cursino (2020CURSINO, Carla Alessandra. Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados. Calidoscópio, v. 18, n. 2, p. 415-434, 2020.) explica cada uma das abordagens plurais.
  • 2
    O Curso Ensino de Português como Língua de Acolhimento é um curso MOOC (Massive Online Open Courses), online, sem tutoria, oferecido pelo IFRS de forma gratuita. Possui carga horária de 20h e é voltado a professores e estudantes da área de Letras. Disponível em: https://moodle.ifrs.edu.br/enrol/index.php?id=4960.
  • 3
    O Curso de atualização em Acolhimento de imigrantes e refugiados, também se configura como um curso on-line, sem tutoria, com carga horária de 80h. Disponível em: https://avamec.mec.gov.br/
  • 4
    Documento Orientador Estudantes Imigrantes: Acolhimento. São Paulo: Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, 2018. Disponível em: https://www.educacao.sp.gov.br/wp-content/uploads/2018/12/acolhimento_final-compressed.pdf
  • 5
    Protocolo de Acolhimento de Estudantes imigrantes na rede municipal de ensino. Foz do Iguaçu: Secretaria Municipal de Educação da cidade de Foz de Iguaçu-SEED, 2020. Disponível em: https://dspace.unila.edu.br/handle/123456789/5879;jsessionid=4ce0f43d78eb72b1ea2836d539f7d74f
  • 6
    A escolha do corpus da pesquisa deve-se ao fato de o IFRS já atender imigrantes e refugiados adultos provenientes desses dois municípios em Cursos de Extensão de Língua Portuguesa.
  • 7
    O presente artigo está vinculado ao Projeto de Pesquisa intitulado Ensino de língua portuguesa para imigrantes e refugiados: desafios e perspectivas. Como a pesquisa envolve seres humanos, obedecendo à Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, o projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IFRS, sob Parecer nº. 3.939.306. A pesquisa é executada com recursos do Edital IFRS nº 64/2019 - Fomento Interno.
  • 8
    Os nomes são fictícios para manter preservada a identidade dos alunos.
  • 9
    Nesse contexto, entende-se que ao referir “alunos de inclusão” a professora faz menção a turmas que contam com alunos com necessidades específicas ou altas habilidades em sua classe, equiparando à situação do aluno imigrante.
  • 10
    Já existem diversos materiais didáticos voltados especificamente a imigrantes e refugiados, disponíveis on-line e de livre acesso, dos quais citamos: Vamos juntos(as)! - Curso de Português como Língua de Acolhimento (BIZON; DINIZ; CAMARGO, 2020); Portas Abertas (REINOLDES; MANDALÁ; AMADO, 2018); Pode entrar (OLIVEIRA; MARRA; FASSON, 2018).
  • Declaração de financiamento

    Este trabalho contou o apoio do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, por meio do do Edital IFRS Nº 64/2019, com concessão de bolsas de iniciação científica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Fev 2022
  • Aceito
    01 Ago 2022
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