Acessibilidade / Reportar erro

Percepções da natureza no poema “Näheres Über Einen Baum” de Hans Magnus Enzensberger

Perceptions of Nature in Hans Magnus Enzensberger’s Poem “Näheres Über Einen Baum”

RESUMO

Este artigo tem por objetivo discutir o poema “Näheres über einen Baum” (“Mais sobre uma árvore”) de Hans Magnus Enzensberger. O poema faz parte da coletânea Kiosk, publicada em 1995, e insere-se numa longa tradição voltada para a intersecção entre poesia e natureza. Para isso, o artigo apresenta, primeiramente, uma discussão teórica, recuperando alguns conceitos-chave da ecocrítica. A segunda parte discute o poema, com base nos conceitos apresentados na introdução teórica, tentando identificar como a configuração formal dialoga com os elementos temáticos do poema. Nesse texto, Hans Magnus Enzensberger encena uma configuração comunicacional em que a voz lírica interpela seu interlocutor a observar a complexidade que caracteriza a existência da árvore que dá título ao poema.

Palavras-chave:
Hans Magnus Enzensberger; Kiosk; “Näheres über einen Baum”; Ecocrítica

ABSTRACT

This article aims to discuss the poem “Näheres über einen Baum” (“More about a tree”) by Hans Magnus Enzensberger. The poem is part of the collection Kiosk, published in 1995, and belongs to a long tradition interested in the intersection between poetry and nature. For this purpose, the article, firstly, presents a theoretical discussion, recovering some key concepts of ecocriticism. The second part discusses the poem, based on the concepts presented in the theoretical introduction, trying to identify how the formal configuration dialogues with the thematic elements of the poem. In this text, Hans Magnus Enzensberger stages a communicative configuration in which the speaker challenges its interlocutor to observe the complexity that characterizes the existence of the tree that gives the poem its title.

Keywords:
Hans Magnus Enzensberger; Kiosk; “Näheres über einen Baum”; Ecocriticism

Introdução

A representação textual da natureza não humana provavelmente sempre esteve presente na produção literária. O que mudou nas últimas décadas possivelmente é o modo de enfeixar a atenção em direção a essa esfera da realidade extraficcional. Nesse horizonte, pensar o nexo entre literatura e natureza é, antes de mais nada, uma forma de guiar o olhar e, sobretudo, a economia da atenção. Essa guinada traz em seu bojo uma forma de concretizar atitudes e traçar posicionamentos no mundo. Mais concretamente, isso talvez signifique escapar (momentaneamente) do feitiço narcisista e vislumbrar uma realidade que escapa, por instantes, do onipotente olhar para o si. Com isso, a literatura permanece fiel a uma de suas mais importantes premissas: desencadear processos de desautomatização da percepção e confrontar o olhar com outras formas de enxergar o mundo.

A representação da realidade não humana em textos literários obviamente nem sempre esteve a serviço desse projeto de emancipação do olhar - se é que ainda seja possível falar de emancipação na esteira do pensamento pós-moderno. Suas funções foram e são múltiplas, servindo como forma de intensificar o efeito do real, como plataforma para a projeção do si, como sucedâneo para o princípio materno, por vezes, também como princípio que questiona a unidade do si em todas as suas metáforas, no lugar da figura paterna. O que essas diferentes instrumentalizações representacionais têm em comum é um processo de significação do mundo não humano, inserindo essa esfera do real no fluxo de simbolização. Ao ser representado em símbolos, ele se transforma em possível objeto da consciência, podendo suscitar diálogos entre mundo humano e não humano (uma divisão por si de natureza cultural).

A questão central, portanto, reside na qualidade desse diálogo, isto é, na convergência de sentidos que confluem no fluxo comunicacional. Isso, contudo, possivelmente signifique que a Cultura não detenha o monopólio da produção de sentido e que o mundo não humano produza sentidos próprios. O que o mundo não humano não faz é simbolizá-los para consumo humano. Claro, seres humanos necessitam, em grande medida, da simbolização para que o conteúdo simbolizado seja passível de transformação em objeto da consciência, mas isso não significa que a extensão da realidade se limite aos excertos traduzidos simbolicamente. Nessa mirada, o imperativo do símbolo retrocede, abrindo lugar para outras formas de se ter acesso ao mundo.

Com as reflexões referidas em mente, este artigo volta sua atenção para a intersecção entre mundo humano e não humano, tendo como objeto de estudo o poema “Näheres über einen Baum” de Hans Magnus Enzensberger, publicado na coletânea Kiosk de 1995. A primeira parte do artigo apresenta uma discussão teórica na esteira da ecocrítica, buscando esclarecer as premissas que fundamentam a análise do poema. A segunda parte se dedica à sua discussão, tentando identificar o que caracteriza o olhar do eu lírico. A questão que norteia a discussão se volta para as modalidades do diálogo entre as diferentes esferas da vida no mundo.

1. Discussões teóricas

As últimas décadas mostraram uma intensificação do interesse pela ecocrítica. Cada vez mais estudiosos inserem, em suas práticas de ensino e pesquisa, reflexões voltadas para a intersecção entre vida humana e não humana. Em uma publicação recente, Sangeetha (2022SANGEETHA, M. Literature and Environment - An Introduction. In: AKHTER, Tawhida; BHAT, Tariq Ahmad (ed.). Literature and Nature. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2022. p. 1-21.) descreve esse campo de estudos da seguinte forma:

A ecocrítica é a ampliação crítica e pedagógica dos estudos literários para incluir textos que abordam o universo não humano e nossa atração por ele. É interdisciplinar e baseia-se em biologia, registros ambientais, geografia, filosofia, estudos culturais e literatura, entre outras disciplinas” (SANGEETHA, 2022SANGEETHA, M. Literature and Environment - An Introduction. In: AKHTER, Tawhida; BHAT, Tariq Ahmad (ed.). Literature and Nature. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2022. p. 1-21., p. 18, tradução nossa)1 1 “Ecocriticism is the critical and pedagogical broadening of literary studies to include texts that address the non-human universe and our attraction to it. It is interdisciplinary and draws on biology, environmental records, geography, philosophy, cultural studies, and literature among other disciplines” (SANGEETHA, 2022, p. 18). .

O contexto teórico por si privilegia alternativas para a gestão do olhar, ao não se restringir a um único campo de estudos, preferindo buscar uma confluência de saberes ao fundamentar sua discussão na interdisciplinaridade. O esforço teórico parte de uma premissa central para o diálogo com o mundo não humano, a saber, uma atitude atenta a outras formas de pensar e organizar o sentido, nas mais diversas áreas do conhecimento. Com isso, propicia-se uma suscetibilidade para identificar outras dinâmicas de sentido, pois o conhecimento transdisciplinar permite produzir novas perspectivas.

Nesse bojo, insere-se igualmente a definição do campo da ecocrítica proposta por Jelica Tošić (2006TOŠIĆ, Jelica. Ecocriticism - Interdisciplinary Study of Literature and Environment. Facta Universitatis. Series: Working and Living Environmental Protection, v. 3, n. 1, p. 43-50, 2006.):

Eco é a abreviação de ecologia, que se preocupa com as relações entre os organismos vivos em seu ambiente natural, bem como suas relações com esse ambiente. Por analogia, a ecocrítica está preocupada com as relações entre literatura e meio ambiente ou como as relações do homem com seu meio ambiente físico se refletem na literatura. Estes são obviamente estudos interdisciplinares, inusitados enquanto combinação de uma ciência natural e uma disciplina humanística. O domínio da ecocrítica é muito amplo porque não se limita a nenhum gênero literário (TOŠIĆ, 2006TOŠIĆ, Jelica. Ecocriticism - Interdisciplinary Study of Literature and Environment. Facta Universitatis. Series: Working and Living Environmental Protection, v. 3, n. 1, p. 43-50, 2006., p. 44, tradução nossa)2 2 “Eco is short of ecology, which is concerned with the relationships between living organisms in their natural environment as well as their relationships with that environment. By analogy, ecocriticism is concerned with the relationships between literature and environment or how man's relationships with his physical environment are reflected in literature. These are obviously interdisciplinary studies, unusual as a combination of a natural science and a humanistic discipline. The domain of ecocriticism is very broad because it is not limited to any literary genre” (TOŠIĆ, 2006, p. 44). .

A palavra-chave, nessa definição, parece ser o lexema “relações”, pois representa uma configuração na gestão dos sentidos entre as diferentes formas de ser no mundo. Essa gestão pode ocorrer no marco da confluência de sentidos, mas também se dar com base no princípio do conflito. Em ambas as modalidades, a relação define como se concretiza a convivência entre as diferentes formas de ser no espaço compartilhado da vida. Para compreender essa dinâmica, outros saberes se revelam indispensáveis a fim de problematizar o crivo humano como única chave de acesso ao mundo.

Um outro elemento inerente ao lexema são os semas atrelados a uma ideia de espaço. A discussão que emerge da intersecção entre natureza e sua representação literária contém um momento de construção de linhas cartográficas. Isto é, imaginam-se espaços em que diferentes seres se relacionam, definindo as formas de posicionamento nessas coordenadas. O produto dessa relação depende, obviamente, de como se enxerga ou percebe o entorno e de como os integrantes humanos dessa interação (se houver sua participação) vislumbram a concretização do diálogo com o meio. Dado o alto grau de violência perpetrada por humanos contra o mundo não humano, interessa refletir especialmente sobre esse encontro, com foco na crítica social. Afinal, esse tipo de crítica se insere numa prática de mapeamento de coordenadas e de tentativas de revisão de visões de mundo.

A metáfora do mapeamento, sem dúvida, tem um papel central, sobretudo, se pensada no contexto do discurso sobre a Modernidade e Pós-modernidade. Em seu estudo canônico, Jameson (1997JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Tradução de Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 1997.) identifica a perda de orientação no espaço como elemento característico da experiência pós-moderna. Essa perda de orientação, em parte, está atrelada à ausência de elos relacionais com o entorno, produzindo interações pautadas pelo princípio da superficialidade e da indiferença. A perda de orientação no espaço parece igualmente ensejar o enfraquecimento do sentimento de responsabilidade pelo meio. Assim, a herança do discurso da Modernidade, com seu foco na racionalidade e no progresso, revela-se problemática, já que seus preceitos fundamentam substancialmente a destruição crescente do espaço da vida. A crítica ecológica, portanto, tem um interesse em identificar outras formas de produzir conhecimentos, oferecendo alternativas ao projeto da Modernidade e à (possível) aporia da Pós-Modernidade. Nesse sentido, Ewa Domańska escreve:

No caso das humanidades ecológicas (no que diz respeito também às humanidades e pós-humanidades não antropocêntricas), o foco não é apenas e não tanto a opção por um determinado programa de pesquisa e o interesse pelas tendências de vanguarda, mas também a promoção de um visão do mundo diferente. Principalmente porque se baseia no pensamento relacional, que enfatiza os laços mútuos, a codependência, a coexistência, a convivência e a vida conjunta entre natureza-cultura, seres humanos, não humanos e meio ambiente. (DOMAŃSKA, 2015DOMAŃSKA, Ewa. Ecological Humanities. Teksty Drugie, v. 1, p. 186-210, 2015., p. 188, tradução nossa)3 3 “In the case of ecological humanities (concerning also the non-anthropocentric humanities and posthumanities), the focus is not only and not as much on opting for a certain research program and an interest in the avant-garde trends, but also on promoting a different vision of the world. Mainly because it is based on relational thinking, which stresses mutual ties, codependency, co-existence and joint life of nature-culture, human, non-human beings and the environment” (DOMAŃSKA, 2015, p. 188). .

Esse viés crítico posiciona-se de modo a oferecer uma alternativa ao imperativo da racionalização. No lugar da maximização dos resultados e da submissão incondicional ao progresso, o foco se volta a uma tentativa de refletir sobre formas de compartilhar o espaço, para que todos (humanos, não humanos, meio ambiente) possam concretizar sua respectiva existência, sem ser alvo de destruição. Isso significa neutralizar a indiferença para com a existência alheia, renunciar à comodidade da superficialidade e assumir responsabilidade por aquilo que cerca o indivíduo. Numa era de crescente floração dos Narcisos, trata-se de um desafio substancial. Significa romper com a subserviência docilmente conferida à sociedade de consumo ou à lei do mais forte.

Nesse sentido, a ecocrítica insere-se num esforço de revisão de práticas discursivas, revisitando o legado da Modernidade e ideando alternativas. Esse movimento contém uma proposta de cartografia, na medida em que revê modalidades de posicionamentos, traçados de linhas demarcatórias e lugares atribuídos a seres humanos. Como mostra Ursula K. Heise (2010HEISE, Ursula K. Lost Dogs, Last Birds, and Listed Species: Cultures of Extinction. Configurations, v. 18, n. 1-2, p. 49-72, 2010. ), a representação da crise ecológica (mais especificamente a extinção de espécies), na Modernidade, pode ser múltipla e suas ofertas de futuro também, oscilando entre imagens apocalípticas de destruição total e uma chance de transformação em direção a formas de convívio menos predatórias. Nisso, a forma como a crise é representada tem um lugar de destaque na organização narrativa. Isso vale para a discussão teórica, mas também para a representação ficcional. Central é a capacidade de imaginar alternativas para a solução de conflitos, e a literatura tem um papel de destaque nesse aspecto, especialmente pelos potenciais de criatividade e imaginação.

Como sistema cultural que propicia a circulação de ideias, a literatura pode desencadear reflexões e propor, por meio de estratégias estéticas, novas formas de perceber o mundo:

A ecocrítica começa com a convicção de que as artes da imaginação e seu estudo - em virtude de sua compreensão do poder da palavra, do enredo e da imagem para reforçar, animar e direcionar a preocupação ambiental - podem contribuir significativamente para a compreensão dos problemas ambientais: as múltiplas formas de ecodegradação que afligem o planeta Terra hoje. [...] Por si só, é improvável que representações criativas de danos ambientais libertem as sociedades de estilos de vida que dependem de transformar ecossistemas radicalmente. Mas refletir sobre as obras de imaginação pode suscitar uma preocupação intensificada sobre as consequências de tais escolhas e possíveis alternativas a elas (BUELL; HEISE; THORNBER, 2011BUELL, Lawrence; HEISE, Ursula K.; THORNBER, Karen. Literature and Environment. Annual Review of Environment and Resources, v. 36, p. 417-440, 2011. , p. 418, tradução nossa)4 4 “Ecocriticism begins from the conviction that the arts of imagination and the study thereof—by virtue of their grasp of the power of word, story, and image to reinforce, enliven, and direct environmental concern—can contribute significantly to the understanding of environmental problems: the multiple forms of ecodegradation that afflict planet Earth today. […] By themselves, creative depictions of environmental harm are unlikely to free societies from lifestyles that depend on radically transforming ecosystems. But reflecting on works of imagination may prompt intensified concern about the consequences of such choices and possible alternatives to them” (BUELL; HEISE; THORNBER, 2011, p. 418). .

O potencial da literatura, por mais limitado que seja, está primeiramente relacionado com o modo como problematiza e se insere na gestão de sentidos, por conseguinte, também na forma como pode desencadear diálogos, começando pela recepção crítica e estendendo-se igualmente para outros patamares, quando a recepção textual encontra um público leitor mais amplo. No processo de recepção, ocorre, de certa forma, o exercício de imaginação de mundos alternativos, proporcionando a chance de vislumbrar outros percursos para a concretização existencial (FILIPOVA, 2022FILIPOVA, Lenka. Ecocriticism and the Sense of Place. London: Routledge, 2022. , p. 28). Junta-se a isso o (possível, mas não automático) exercício de criar relações, na medida em que o leitor, de fato, adota outras perspectivas e as transfere para sua realidade existencial. Com efeito, não há impacto sobre a realidade extraficcional se o exercício permanecer somente no nível do deleite. É a transferência de conhecimento para o espaço da vida que acaba fazendo a diferença.

Em seu texto de 1978, Rueckert escrevia que “um poema é energia armazenada, uma turbulência formal, uma coisa viva, um redemoinho no fluxo” (RUECKERT, 1996RUECKERT, William. Literature and Ecology: An Experiment in Ecocriticism. In: GLOTFELTY, Cheryll; FROMM, Harold (ed.). The Ecocriticism Reader: Landmarks in Literary Ecology. Athens: The University of Georgia Press, 1996. p. 105-123., p. 108, tradução nossa)5 5 “A poem is stored energy, a formal turbulence, a living thing, a swirl in the flow” (RUECKERT, 1996, p. 108). . Ele se utiliza de um complexo imagético da natureza e o transfere para o texto literário, condensado em sua forma lírica. A liberação dessa energia ou de seu potencial de sentidos demanda uma sensibilidade para o diálogo e, com isso, uma disposição para criar relações. Justamente, nesse ponto, convergem os interesses da ecocrítica com as especificidades do texto literário.

2. Convergência literária: o poema “Näheres über einen Baum” de H. M. Enzensberger

A ecocrítica não passou despercebida nos estudos literários desenvolvidos em países de língua alemã. Os estudos de Dürbeck et al. (2017DÜRBECK, Gabriele; STOBBE, Urte; ZAPF, Hubert; ZEMANEK, Evi. Introduction. In: DÜRBECK, Gabriele; STOBBE, Urte; ZAPF, Hubert; ZEMANEK, Evi (ed.). Ecological Thought in German Literature and Culture. New York: Lexington Books, 2017. p. xiii-xxxiii. ) e Choné (2019CHONÉ, Aurélie. Ecocriticism/écocritique im deutschen und französischen Kontext: eine vergleichende Perspektive. Revue d’Allemagne et des pays de langue allemande, v. 51, n. 2, p. 321-341, 2019.) recuperam a gênese desse campo de pesquisa nessa região e discutem as contribuições locais. A atenção à natureza sempre teve um lugar importante na poesia de expressão alemã. As funções estético-críticas atreladas a suas representações foram múltiplas. Axel Goodbody (2017GOODBODY, Axel. German Ecopoetry From “Naturlyrik” (Nature Poetry) and “Ökolyrik” (Environmental Poetry) to Poetry in the Anthropocene. In: DÜRBECK, Gabriele; STOBBE, Urte; ZAPF, Hubert; ZEMANEK, Evi (ed.). Ecological Thought in German Literature and Culture. New York: Lexington Books, 2017. p. 263-279.) identifica três fases importantes na poesia sobre a natureza:

Correndo o risco de simplificar demais o que era na realidade um processo complexo de mudança gradual, argumento que a “poesia da natureza” evocava imagens da natureza atemporal e da integração dos humanos em um todo harmonioso, enquanto a “poesia ambiental” situava a humanidade fora da esfera do o natural, castigando os danos causados ​​no curso do desenvolvimento tecnológico, do crescimento econômico e da emergência da sociedade de consumo nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. “Poesia no Antropoceno” (o termo “Antropoceno” significa uma nova era geológica na qual os humanos estão impactando o planeta de maneiras que deixam vestígios que serão visíveis nas formações rochosas daqui a milhões de anos) difere de ambos os seus antecessores. Reconhece, por um lado, que a natureza está em constante mudança, tem uma história e está sujeita à influência humana em escala global. Por outro, solapa a tradicional compreensão dualista de natureza e cultura e redefine o sujeito humano, não como uma entidade autônoma, mas como coconstituída por meio de suas intra-ações com a matéria vibrante do não humano (GOODBODY, 2017GOODBODY, Axel. German Ecopoetry From “Naturlyrik” (Nature Poetry) and “Ökolyrik” (Environmental Poetry) to Poetry in the Anthropocene. In: DÜRBECK, Gabriele; STOBBE, Urte; ZAPF, Hubert; ZEMANEK, Evi (ed.). Ecological Thought in German Literature and Culture. New York: Lexington Books, 2017. p. 263-279., p. 265-266, tradução nossa)6 6 “At the risk of oversimplifying what was in reality a complex process of gradual change, I argue that “nature poetry” conjured up images of timeless nature and the integration of humans in a harmonious whole, whereas “environmental poetry” located humanity outside the sphere of the natural, castigating the damage wrought in the course of technological development, economic growth, and the emergence of the consumer society in the decades after the Second World War. “Poetry in the Anthropocene” (the term “Anthropocene” signifies a new geological era in which humans are impacting on the planet in ways leaving traces that will be visible in rock formations millions of years hence) differs from both its predecessors. It recognizes on the one hand that nature is constantly changing, has a history and is subject to human influence on a global scale. On the other, it undermines the traditional dualistic understanding of nature and culture and redefines the human subject, not as an autonomous entity, but as co-constituted through its intra-actions with the vibrant matter of the nonhuman” (GOODBODY, 2017, p. 265-266). .

Essa esquematização certamente propõe uma forma interessante de conceber o diálogo e a tessitura de relações que ocorreram ao longo dos séculos na representação literária da natureza, no caso específico da literatura de expressão alemã. No que diz respeito à poesia produzida a partir da segunda metade do século XX, os muros demasiado rígidos entre os períodos identificados talvez sejam problemáticos, pois não seria difícil encontrar exemplos de poemas que incorporam os três momentos, por vezes, na obra de um mesmo autor. O modelo heurístico de Goodbody, contudo, não deixa de ser interessante, pois oferece instrumentos para refletir sobre os posicionamentos adotados pela voz lírica. Isso implica a discussão do conceito de natureza que o respectivo eu lírico adota e como imagina a posição de humanos em relação às outras esferas da natureza. Isso vale especialmente para a terceira fase identificada por Goodbody e que Tom Bristow a problematiza da seguinte forma:

E há, claro, a questão da escala humana em duas vertentes: (i) como nos relacionamos com coisas maiores e menores do que nós mesmos; (ii) como concebemos as formações biológicas mais agudas (micro, nicho, invisíveis ou presentes além de nossas experiências sensoriais) e obtusas (macro, baseadas em sistemas, insondáveis ​​ou presentes além de nossos espectros temporais (timescapes) cognitivos) do que a de nossa própria corporeidade e de seu meio material imediato. A ecopoética implicitamente pede um momento para refletir sobre como imaginamos espaços e formações além do alcance do horizonte dos sentidos, em ritmo suficiente para perceber e reconhecer entidades discretas e o surgimento de nossos outros- terrestres (earth others). Coloco essa imaginação no contexto do Antropoceno. (BRISTOW, 2015BRISTOW, Tom. The Anthropocene Lyric: An Affective Geography of Poetry, Person, Place. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2015. , p. 9, tradução nossa)7 7 “And there is, of course, the question of the human scale in twofold: (i) how we relate to larger and smaller things than ourselves; (ii) how we conceive of biological formations more acute (micro, niche, unseen or present beyond our sense experiences) and obtuse (macro, systems-based, unfathomable or present beyond our cognitive timescapes) than that of our own corporeality and its immediate material environment. Ecopoetics implicitly calls for a moment to reflect on how we imagine spaces and formations beyond the purview of the sense horizon, at pace enough to notice and acknowledge discrete entities and the emergence of our earth others. I place this imagination within the context of the Anthropocene” (BRISTOW, 2015, p. 9). .

A discussão de Bristow retoma a ideia do espaço para chamar a atenção sobre a necessidade de rever posicionamentos, inserindo uma relativização sobre o alcance da visão humana sobre realidades que se encontram no além de sua capacidade de percepção. Considerando a localização no espaço e as relações que humanos constroem com seu entorno, ele problematiza a questão da percepção, perguntando o que se enxerga e como se enxerga, algo caro aos esforços estéticos, não só literários. A passagem caracteriza humanos como seres condicionados fisicamente por uma determinada habilidade de perceber o mundo, uma habilidade restrita, em parte rudimentar, de cujo alcance é necessário desconfiar. A crítica que se filia a esse pensamento é interpelada a olhar para a alteridade que nos circunda (os outros-terrrestres), a fim de vislumbrar outras formas de concretização existencial. Esse esforço claramente procura ampliar o escopo de percepção, aliando-se às estratégias estético-formais que fornecem novos instrumentos de acesso à realidade.

Os poemas de Hans Magnus Enzensberger, sobretudo aqueles que se dedicam à representação da natureza, têm muita afinidade com esse conjunto de proposições teóricas. Enquanto os poemas da primeira fase de sua produção lírica talvez ainda estejam mais próximos da segunda fase identificada por Goodbody (2017GOODBODY, Axel. German Ecopoetry From “Naturlyrik” (Nature Poetry) and “Ökolyrik” (Environmental Poetry) to Poetry in the Anthropocene. In: DÜRBECK, Gabriele; STOBBE, Urte; ZAPF, Hubert; ZEMANEK, Evi (ed.). Ecological Thought in German Literature and Culture. New York: Lexington Books, 2017. p. 263-279.), a poesia ambiental, as publicações mais recentes aproximam-se cada vez mais ao pensamento pautado pelas inquietações que surgiram no contexto do conceito do Antropoceno. Isso vale, em especial, para o poema cuja tradução e análise seguem na sequência desse artigo.

Näheres über einen Baum

Die Weißbirke dort, sonnenfleckig.
Bewege dich nicht. Betrachte
die Abweichungen: grün von grün,
matt von glänzend, das Blatt
in der Spreite dunkler als unten
oben. Nichts wiederholt sich.
Jeder Nerv rieselt wie auf der Haut
die Brise. Das alles schwankt,
richtet sich auf, unverändert
fast, aber nicht ganz.

Es wippt, tanzt, trudelt:
»pathologische Mengen«,
Funktionen ohne Ableitung,
Flatterbahnen im Phasenraum.

Den Wind beugen, der sie biegt,
die Blätter, verdrillen ihn
zu geisternden Strudeln,
die du nicht siehst. Laß rechnen
dein schwaches Gehirn,
bis es bebt, schwirrt, kippt,
vor dem Strudel der Erscheinungen
kapituliert, und sich wieder
wie die Weißbirke vor deinen Augen
aufrichtet, unverändert
fast, aber nicht ganz.
(ENZENSBERGER, 2018ENZENSBERGER, Hans Magnus. Kiosk. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2018. , p. 80-81).
Mais sobre uma árvore

Aquela bétula prateada ali, manchada de sol.
Não se mexa. Observe
as variações: verde do verde,
fosco de brilhante, a folha
na lâmina mais escura do que embaixo
em cima. Nada se repete.
Cada nervo escorre como na pele
a brisa. Isso tudo oscila
se endireita, inalterado
quase, mas não completamente.

Balança, dança, cambaleia:
“quantidades patológicas”,
funções sem derivada,
Faixas de vibração no espaço fásico.

Arqueiam o vento, que as arqueia,
as folhas, o torcem
em redemoinhos fantasmagóricos,
que você não vê. Faça calcular
seu cérebro fraco,
até tremer, zumbir, tombar,
se render ante o turbilhão
dos fenômenos, e novamente,
como a bétula prateada diante de seus olhos,
se erguer, inalterado
quase, mas não completamente.
(ENZENSBERGER, 2018ENZENSBERGER, Hans Magnus. Kiosk. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2018. , p. 80-81, tradução nossa).

O título do poema traz como proposta de canalização da atenção um detalhamento sobre uma árvore, inserindo-o numa tradição de poesia dedicada à natureza. Com isso, o título cria uma expectativa e evoca um conjunto de sentidos atrelados a estratégias representacionais nesse subgênero lírico. A expectativa inicial pode dirigir-se basicamente a dois percursos: retomar a figuração clássica da natureza romântica com seu ideal de harmonia ou recuperar a obra precedente do autor, antecipando uma crítica aos danos ambientais. Ambas as expectativas acabam frustradas, mas elas permanecem importantes já que predispõem para um determinado movimento de decodificação dos sentidos que o poema contém.

Sem predicado, o primeiro verso condensa a imagem inicial da árvore: uma bétula branca, iluminada parcialmente pela luz solar. No lugar da natureza como um todo, a voz lírica dirige sua atenção à unicidade do ser, ao modo como essa árvore concretiza sua materialidade existencial. As três estrofes que compõem o poema são um convite para exercitar a percepção. Nos três movimentos, a voz lírica incita seu interlocutor a desacelerar o movimento do olhar, a fim de identificar a riqueza dos detalhes. No lugar de um contato visual superficial, marcado pela celeridade e indiferença, a voz lírica fornece um itinerário verbal que se detém no lugar, a fim de compreender a dinâmica de sentidos que emerge dessa forma de existência.

Em outras palavras, a voz lírica faz um convite para se exercitar a prática da tessitura relacional. Num primeiro momento, ela guia o olhar para as lógicas individuais da árvore, especialmente sua complexidade como ser, no que diz respeito às relações de suas partes com o todo. Esse movimento ainda inclui o modo como ela interage com o entorno, criando relações que não incluem a vida humana. Por fim, esse convite também se estende ao interlocutor humano a quem a voz lírica se dirige, interpelando-o a criar um nexo com a criatura que escrutina.

No plano formal, esse convite ao enfeixamento de atenção está marcado pelo uso do imperativo, o que ocorre em dois momentos. O primeiro se dá no segundo verso: “Não se mexa. Observe”. Os dois lexemas utilizados no imperativo parecem remeter a duas modalidades centrais de atitude perante o mundo, na contemporaneidade. O primeiro possivelmente alude ao mundo acelerado das sociedades de giro de capital, de produção, de consumo, da potencialização dos méritos, sempre exigindo que o indivíduo não permaneça parado, para não ficar em desvantagem, na constante competição que o açula na vida cotidiana. Esses sedimentos semânticos se contrapõem ao segundo lexema, que propõe outra modalidade acional. No lugar de intensificar o movimento, sugere quedar-se, a fim de identificar outras tessituras de sentido que não aquelas ditadas pelo imperativo do mercado.

O convite à desaceleração é intensificada no plano formal pelos enjambements e pela sintaxe não usual, exigindo um esforço adicional por parte do interlocutor de compreender o percurso do olhar, guiado pela voz lírica. Esses elementos reforçam a complexidade daquilo que a voz lírica deseja mediar. Da mesma forma que a estrutura sintática não apresenta uma disposição usual, tornando mais lenta a decodificação, o uso lexical, com sua dinâmica semântica, revela uma estratégia de desautomatização. Assim, ao expor a complexidade cromática que caracteriza a árvore, a voz lírica não emprega lexemas semanticamente estáveis e que propiciam uma visualização célere da imagem. Pelo contrário, ela empreende, no plano semântico, um movimento relacional que exige fazer confluir diferentes imagens, para que o interlocutor consiga perceber os diferentes matizes cromáticos. Sua verbalização não ocorre por meio de lexemas “de massa”, mas sim por intermédio de um gesto de diferenciação.

Quando “nada se repete”, o uso de lexemas generalizadores se revela insuficiente para representar aquilo que a voz lírica identifica. O uso lexical aponta para o problema que o poema deseja verbalizar: aprender a enxergar a árvore, sem recair no princípio de generalização. Isso vale para a complexidade cromática que a caracteriza, mas se estende igualmente para a nervura das folhas, com suas intensidades sensoriais. A imagem “cada nervo escorre” convida a imaginar a dimensão sensorial na realidade vegetal do ser contemplado. Num movimento do macro ao micro - árvore, cor, sensação - portanto, a voz lírica propõe um percurso de percepção.

Nesse exercício, a voz lírica desbrava formas de produção de sentido que independem de simbolização ou de anuência discursiva: “Isso tudo oscila/se endireita, inalterado/quase, mas não completamente.” Esse organismo tem sua dinâmica própria e se relaciona com o entorno, produzindo uma existência que não precisa de aval humano. Nesse sentido, o poema apresenta igualmente uma espécie de cartografia que auxilia na compreensão dessa outra experiência existencial, orientando o olhar (do eu lírico, do interlocutor, mas também do leitor) para que consiga deixar a superfície e identificar o complexo devir de um ser que não é humano. Esse treino visual permite enxergar que a árvore mantém uma espécie de identidade-corpo, mas que se transforma a cada interação com o meio, na medida que os nexos relacionais impactam sobre suas condições de ser. Identificar a individualidade desse outro-terrestre, que no poema seria a árvore, parece representar o primeiro passo para criar nexos relacionais com sua forma de concretizar a existência.

A estrofe central contrapõe três lexemas que buscam captar os movimentos da árvore (no primeiro verso) a três termos das ciências matemáticas e físicas (nos versos subsequentes), as quais, em suas respectivas áreas, buscam descrever fenômenos altamente complexos e no limite do cientificamente representável. Nessa estrofe central, a justaposição de palavras permanece sem comentários por parte da voz lírica. Ela não situa o seu interlocutor sobre como relacionar esses diferentes campos semânticos entre si, nem em relação à representação da árvore. No plano formal, portanto, o poema confronta o leitor com um problema que não se restringe à gestão de sentidos no interior do poema, ele se estende igualmente à necessidade de criar nexos relacionais entre experiência humana e os “outros-terrestres”.

Nessa esteira, a utilização da terminologia científica parece ter por objetivo ilustrar a dificuldade de captar a unicidade da existência que a voz lírica busca descrever. Assim, os três lexemas iniciais parecem rudimentares em demasia para abarcar a totalidade de sentidos, enquanto a terminologia científica indica a aporia do discurso científico para cartografar a totalidade de fenômenos complexos da natureza. A tentativa de descrição da árvore, empreendida pela voz lírica, ilustra as limitações da língua como meio de representação da realidade. Nesse sentido, o imperativo inicial (“não se mexa, observe”) representa um chamamento para a demonstração de respeito, mas também para a problematização do indizível e não simbolizável.

Ainda nessa linha de argumentação, o uso de termos científicos remete ao discurso da Modernidade, com sua crença na racionalidade e na emancipação humana. A contraposição lexical, portanto, também tensiona semas de práticas discursivas. Por um lado, há um campo semântico com lexemas que compartilham semas oriundos da corporeidade, do movimento, da organicidade, seguidos de dois pontos, para marcar a contraposição (“Balança, dança, cambaleia:”). Por outro lado, há a terminologia científica que compartilha semas como racionalidade, abstração, cultura. A contraposição encenada, no plano formal, por meio da tensão lexical, remete à contraposição no plano comunicacional, em que o interlocutor é interpelado pela voz lírica a observar a complexidade da árvore. Assim, duas práticas discursivas se contrapõem a duas formas de acessar o mundo. Das duas situações, emerge a necessidade de criar elos relacionais para suscitar diálogos entre os seres que compartilham o espaço.

Na estrofe central do poema, portanto, dois mundos se encontram: dois campos semânticos que remetem a diferentes formatações discursivas e, com isso, visões de mundo, ao mesmo tempo, duas existências que concretizam a vida por meio de suas lógicas individuais. Na justaposição, ainda não há diálogo. O diálogo permanece como convite à interação. Para isso, o discurso da racionalidade talvez seja insuficiente como instrumento para divisar uma resposta que vislumbre uma confluência existencial, pautada pelo respeito. O modo como essa equação é resolvida revela algo sobre a qualidade do diálogo, sobre as atitudes diante de existências alheias, sobre formas de ser no mundo.

Os versos iniciais da última estrofe fornecem um exemplo de confluência existencial, caracterizada por sintonia e respeito entre diferentes formas de ser no espaço. Novamente, o plano formal interpela o leitor a criar nexos relacionais, especialmente ao ser confrontado com uma estrutura sintática que não segue o sequenciamento usual. É preciso ler com atenção para identificar as posições de sujeito e objeto e compreender como se relacionam em suas ações. Na verdade, a mesma ação (arquear) é empreendida tanto pelas folhas como pelo vento, de modo que os redemoinhos que emergem desse contato não parecem ser um resultado somente de uma ação unilateral. Por momentos, as fronteiras entre sujeito e objeto se obliteram.

Os instrumentos linguísticos não permitem simbolizar esse apagamento momentâneo, pois o uso da língua está condicionado à demarcação entre sujeitos e objetos. Na medida em que o poema problematiza isso, ele chama a atenção para outras formas de concretizar a realidade. Essa simbiose entre sujeito e objeto, contudo, permanece invisível para o interlocutor. Seu crivo de percepção e sua estratégia de apropriação de realidade estão condicionados pela própria condição humana e sua prática de simbolização da realidade. O detalhamento sobre a árvore busca imaginar essa outra lógica. No momento que a voz lírica interpela o interlocutor a observar, ela o convida a enxergar essa forma de convivência que vive e deixa viver, sem desembocar na instauração de dicotomias, racionalidades e sistemáticas de destruição.

No bojo dessa observação, surge o segundo imperativo do poema: “Faça calcular seu cérebro fraco”. Se, na estrofe central, a justaposição das práticas discursivas ainda era neutra, aqui o uso do lexema “fraco” em combinação com “cérebro” claramente revela que a voz lírica questiona os potenciais do centro da razão. O cérebro, convocado a calcular a complexidade do fenômeno observado na árvore, fazendo uso dos instrumentos científicos indicados na estrofe central, sucumbe à tarefa. Como a árvore, o cérebro se vê acometido por uma incursão que precisa ser processada, mas, ao contrário da árvore, que soluciona o desafio com elegância e resiliência (“Balança, dança, cambaleia”), o cérebro rapidamente encontra seus limites (“até tremer, zumbir, tombar,/ se render ante o turbilhão /dos fenômenos”).

A voz lírica indica claramente sua desconfiança e mostra os limites da racionalidade. Contudo, fica ambíguo para o leitor se ela desacredita completamente do cérebro e, por consequência, dos potenciais da razão: “e novamente,/ como a bétula prateada diante de seus olhos,/ se erguer, inalterado/ quase, mas não completamente.” Como a bétula, o cérebro também é resiliente. A pergunta que o poema não responde é como ele emerge desse encontro. Claro, a voz lírica indica “inalterado/ quase, mas não completamente”. Isso pode significar a manutenção do discurso da racionalização do mundo, mas também pode sugerir que a pequena alteração produzida na sequência desse encontro seja um indício de transformação.

A pergunta não está respondida. Na verdade, o poema parece convocar o leitor a respondê-la para si e verificar que narrativa de futuro consegue/ deseja vislumbrar. Para isso, precisa engendrar uma narrativa e tecer elos relacionais. Desse movimento, podem emergir transformações na atitude para com os “outros-terrestres” que compartilham o espaço da vida com humanos, mas também pode significar a manutenção do princípio de indiferença, de modo a intensificar os impactos da destruição. O poema não parece realmente acreditar numa harmonia fácil, tampouco parece investir numa narrativa de militância ambiental, ele constata muito mais o encontro de diferentes formas de ser e seus potenciais de concretização existencial. O resultado desse encontro depende da qualidade do diálogo e, sobretudo, da capacidade de percepção.

Considerações finais

A já citada definição de Rueckert sobre o texto poético continua reverberando: “um poema é energia armazenada, uma turbulência formal, uma coisa viva, um redemoinho no fluxo” (RUECKERT, 1996RUECKERT, William. Literature and Ecology: An Experiment in Ecocriticism. In: GLOTFELTY, Cheryll; FROMM, Harold (ed.). The Ecocriticism Reader: Landmarks in Literary Ecology. Athens: The University of Georgia Press, 1996. p. 105-123., p. 108). Ela repercute ainda mais após a leitura do poema de Hans Magnus Enzensberger. Seus versos trazem a lume diferentes estratégias formais para causar tensões semânticas. São essas tensões que desencadeiam fluxos de energia (afetiva, cognitiva, intelectual), causando estranhamentos e possivelmente revisões nas formas sólidas de percepção de mundo. Rueckert utiliza dois lexemas que reforçam o potencial de desestabilização do sentido: turbulência e redemoinho. Vale lembrar que a recepção define, em grande medida, se essa energia é liberada ou não. A leitura do poema pode causar impacto em seus leitores, mas também pode deixá-los indiferentes. No fim, a experiência individual de leitura vai definir o fluxo de energia e sua posterior canalização.

O ato de leitura continua imprescindível. Na verdade, são imprescindíveis o ato de leitura e o diálogo do leitor com os sentidos que o texto apresenta. O movimento relacional, portanto, não se restringe somente a uma concepção de mundo em que diferentes seres convivem, tecendo elos e intercambiando energia. Isso também vale para o encontro com o texto literário. Não há texto literário que libere sua “energia armazenada”, se não houver um esforço intenso de diálogo com os sentidos que ele propõe. E esse diálogo não produz efeitos, se os sentidos instaurados no texto literário não passarem por um processo de transferência para o mundo do receptor. Permanecem os potenciais de sentido, que podem ou não ser concretizados, no mundo extraficcional.

Referências

  • BRISTOW, Tom. The Anthropocene Lyric: An Affective Geography of Poetry, Person, Place. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2015.
  • BUELL, Lawrence; HEISE, Ursula K.; THORNBER, Karen. Literature and Environment. Annual Review of Environment and Resources, v. 36, p. 417-440, 2011.
  • CHONÉ, Aurélie. Ecocriticism/écocritique im deutschen und französischen Kontext: eine vergleichende Perspektive. Revue d’Allemagne et des pays de langue allemande, v. 51, n. 2, p. 321-341, 2019.
  • DOMAŃSKA, Ewa. Ecological Humanities. Teksty Drugie, v. 1, p. 186-210, 2015.
  • DÜRBECK, Gabriele; STOBBE, Urte; ZAPF, Hubert; ZEMANEK, Evi. Introduction. In: DÜRBECK, Gabriele; STOBBE, Urte; ZAPF, Hubert; ZEMANEK, Evi (ed.). Ecological Thought in German Literature and Culture New York: Lexington Books, 2017. p. xiii-xxxiii.
  • ENZENSBERGER, Hans Magnus. Kiosk Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2018.
  • FILIPOVA, Lenka. Ecocriticism and the Sense of Place London: Routledge, 2022.
  • GOODBODY, Axel. German Ecopoetry From “Naturlyrik” (Nature Poetry) and “Ökolyrik” (Environmental Poetry) to Poetry in the Anthropocene. In: DÜRBECK, Gabriele; STOBBE, Urte; ZAPF, Hubert; ZEMANEK, Evi (ed.). Ecological Thought in German Literature and Culture New York: Lexington Books, 2017. p. 263-279.
  • HEISE, Ursula K. Lost Dogs, Last Birds, and Listed Species: Cultures of Extinction. Configurations, v. 18, n. 1-2, p. 49-72, 2010.
  • JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Tradução de Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 1997.
  • RUECKERT, William. Literature and Ecology: An Experiment in Ecocriticism. In: GLOTFELTY, Cheryll; FROMM, Harold (ed.). The Ecocriticism Reader: Landmarks in Literary Ecology. Athens: The University of Georgia Press, 1996. p. 105-123.
  • SANGEETHA, M. Literature and Environment - An Introduction. In: AKHTER, Tawhida; BHAT, Tariq Ahmad (ed.). Literature and Nature Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2022. p. 1-21.
  • TOŠIĆ, Jelica. Ecocriticism - Interdisciplinary Study of Literature and Environment. Facta Universitatis. Series: Working and Living Environmental Protection, v. 3, n. 1, p. 43-50, 2006.
  • 1
    “Ecocriticism is the critical and pedagogical broadening of literary studies to include texts that address the non-human universe and our attraction to it. It is interdisciplinary and draws on biology, environmental records, geography, philosophy, cultural studies, and literature among other disciplines” (SANGEETHA, 2022SANGEETHA, M. Literature and Environment - An Introduction. In: AKHTER, Tawhida; BHAT, Tariq Ahmad (ed.). Literature and Nature. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2022. p. 1-21., p. 18).
  • 2
    “Eco is short of ecology, which is concerned with the relationships between living organisms in their natural environment as well as their relationships with that environment. By analogy, ecocriticism is concerned with the relationships between literature and environment or how man's relationships with his physical environment are reflected in literature. These are obviously interdisciplinary studies, unusual as a combination of a natural science and a humanistic discipline. The domain of ecocriticism is very broad because it is not limited to any literary genre” (TOŠIĆ, 2006TOŠIĆ, Jelica. Ecocriticism - Interdisciplinary Study of Literature and Environment. Facta Universitatis. Series: Working and Living Environmental Protection, v. 3, n. 1, p. 43-50, 2006., p. 44).
  • 3
    “In the case of ecological humanities (concerning also the non-anthropocentric humanities and posthumanities), the focus is not only and not as much on opting for a certain research program and an interest in the avant-garde trends, but also on promoting a different vision of the world. Mainly because it is based on relational thinking, which stresses mutual ties, codependency, co-existence and joint life of nature-culture, human, non-human beings and the environment” (DOMAŃSKA, 2015DOMAŃSKA, Ewa. Ecological Humanities. Teksty Drugie, v. 1, p. 186-210, 2015., p. 188).
  • 4
    “Ecocriticism begins from the conviction that the arts of imagination and the study thereof—by virtue of their grasp of the power of word, story, and image to reinforce, enliven, and direct environmental concern—can contribute significantly to the understanding of environmental problems: the multiple forms of ecodegradation that afflict planet Earth today. […] By themselves, creative depictions of environmental harm are unlikely to free societies from lifestyles that depend on radically transforming ecosystems. But reflecting on works of imagination may prompt intensified concern about the consequences of such choices and possible alternatives to them” (BUELL; HEISE; THORNBER, 2011BUELL, Lawrence; HEISE, Ursula K.; THORNBER, Karen. Literature and Environment. Annual Review of Environment and Resources, v. 36, p. 417-440, 2011. , p. 418).
  • 5
    “A poem is stored energy, a formal turbulence, a living thing, a swirl in the flow” (RUECKERT, 1996RUECKERT, William. Literature and Ecology: An Experiment in Ecocriticism. In: GLOTFELTY, Cheryll; FROMM, Harold (ed.). The Ecocriticism Reader: Landmarks in Literary Ecology. Athens: The University of Georgia Press, 1996. p. 105-123., p. 108).
  • 6
    “At the risk of oversimplifying what was in reality a complex process of gradual change, I argue that “nature poetry” conjured up images of timeless nature and the integration of humans in a harmonious whole, whereas “environmental poetry” located humanity outside the sphere of the natural, castigating the damage wrought in the course of technological development, economic growth, and the emergence of the consumer society in the decades after the Second World War. “Poetry in the Anthropocene” (the term “Anthropocene” signifies a new geological era in which humans are impacting on the planet in ways leaving traces that will be visible in rock formations millions of years hence) differs from both its predecessors. It recognizes on the one hand that nature is constantly changing, has a history and is subject to human influence on a global scale. On the other, it undermines the traditional dualistic understanding of nature and culture and redefines the human subject, not as an autonomous entity, but as co-constituted through its intra-actions with the vibrant matter of the nonhuman” (GOODBODY, 2017GOODBODY, Axel. German Ecopoetry From “Naturlyrik” (Nature Poetry) and “Ökolyrik” (Environmental Poetry) to Poetry in the Anthropocene. In: DÜRBECK, Gabriele; STOBBE, Urte; ZAPF, Hubert; ZEMANEK, Evi (ed.). Ecological Thought in German Literature and Culture. New York: Lexington Books, 2017. p. 263-279., p. 265-266).
  • 7
    “And there is, of course, the question of the human scale in twofold: (i) how we relate to larger and smaller things than ourselves; (ii) how we conceive of biological formations more acute (micro, niche, unseen or present beyond our sense experiences) and obtuse (macro, systems-based, unfathomable or present beyond our cognitive timescapes) than that of our own corporeality and its immediate material environment. Ecopoetics implicitly calls for a moment to reflect on how we imagine spaces and formations beyond the purview of the sense horizon, at pace enough to notice and acknowledge discrete entities and the emergence of our earth others. I place this imagination within the context of the Anthropocene” (BRISTOW, 2015BRISTOW, Tom. The Anthropocene Lyric: An Affective Geography of Poetry, Person, Place. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2015. , p. 9).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2022
  • Aceito
    04 Set 2022
Programas de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF) Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n, Bloco C - sala 518, CEP 24210-201 - Niterói, Rio de Janeiro, Brasil., Telefone +55 21 2629-2600 - Niterói - RJ - Brazil
E-mail: gragoata.egl@id.uff.br