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Concerto de Feras: a Vocalização do Devir-Animal em A Confissão da Leoa (2012), de Mia Couto, e O Som do Rugido da Onça (2021), de Micheliny Verunschk

Concert of Beasts: The Vocalization of Becoming-Animal in A Confissão da Leoa (2012), by Mia Couto, and O Som do Rugido da Onça (2021), by Micheliny Verunschk

RESUMO

Com base no conceito de devir-animal, elaborado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997), buscamos, neste trabalho, desenvolver um exercício de crítica comparatista entre os romances contemporâneos A confissão da leoa (2012), do moçambicano Mia Couto, e O som do rugido da onça (2021), da escritora brasileira Micheliny Verunschk. Em comum, os dois textos empreendem a recuperação de temáticas e procedimentos mobilizados no conto “Meu tio o Iauaretê” (2001 [1961]), de João Guimarães Rosa. Semelhante ao contágio vivenciado pelo onceiro da narrativa roseana, que de matador de onças passa a defensor desses felinos, irmanando-se a esses animais, as duas narrativas em análise representam um movimento em direção a subjetividades não humanas experienciadas por suas personagens. Historicamente, o pensamento ocidental desenvolveu diversos mecanismos ideológicos para efetuar a separação entre o Homo sapiens e os outros viventes animais. A isso, atrela-se o processo de desumanização dos sujeitos colonizados, uma das ferramentas manipuladas pelo projeto imperialista. Como contraponto a essas perspectivas, Mia Couto e Micheliny Verunschk incorporam, em seus textos, discursos que possibilitam a abertura para outras perspectivas sobre a vida. Nos romances, verifica-se o tensionamento das fronteiras interespecíficas, uma vez que, por vias ficcionais, se efetiva o cruzamento dos limites entre o humano e o não humano. Para Mariamar e Iñe-e, protagonistas dos romances, o encontro com as figuras da onça e da leoa, grandes predadores dos dois continentes que ambientam as narrativas, possibilita o acesso a uma animalidade silenciada pelos dispositivos de opressão.

Palavras-chave:
Literatura Comparada; A confissão da leoa; O som do rugido da onça; Animalidade; Devir-animal

ABSTRACT

Based on the concept of becoming-animal, elaborated by Gilles Deleuze and Félix Guattari (1997), in this work, we seek to develop an exercise of comparative criticism among contemporary novels A confissão da leoa (2012), by the mozambican Mia Couto, and O som do rugido da onça (2021), by the brazilian writer Micheliny Verunschk. In common, the two texts undertake the recovery of themes and procedures mobilized in the tale “Meu tio o Iauaretê” (2001 [1961]), by João Guimarães Rosa. Similar to the contagion experienced by the jaguar hunter of the Rosa’s narrative, who from jaguar killer began to the defender of these felines, becoming sibling with these animals, the two narratives under analysis represent a movement towards the feline subjectivities experienced by their characters. Historically, Western thinking has developed several ideological mechanisms to separate the Homo sapiens and other living animals. To this, the process of dehumanization of the colonized subjects is attached, one of the tools manipulated by the imperialist project. As a counterpoint to these perspectives, Mia Couto and Micheliny Verunschk incorporate, in their texts, discourses that enable opening to other perspectives about life. In novels, there is the tensioning of interspecific borders, once that, by fictional ways, the crossing of the boundaries between the human and the nonhuman is effective. For Mariamar and Iñe-e, protagonists of the novels, the encounter with the jaguar and lioness figures, great predators of the two continents that set the narratives, enables access to an animality silenced by oppression devices.

Keywords:
Comparative Literature; A confissão da leoa; O som do rugido da onça; Animality; Becoming-animal

Primeiras pegadas: considerações iniciais

Amoitada em mim não lhe vejo a cara. “Onça sem pelo”, Astrid CabralCABRAL, Astrid. Jaula. Rio de Janeiro: Editora da palavra, 2006.

Uma (bio)diversidade esconde-se por detrás da ideia homogeneizante de animal. Similares e, ao mesmo tempo, distantes, esses seres representam um ponto de fuga em nosso entendimento humano. Decorrente dessa separação, foi construído um fosso entre alteridades que, a princípio, se colocam em zonas de inacessibilidade mútua. Sob a perspectiva de Giorgio Agamben,

somente porque alguma coisa como uma vida animal está separada em seu íntimo do homem, somente porque a distância e a proximidade com o animal foi medida e reconhecida, acima de tudo, no mais íntimo e vicinal, é possível opor o homem aos outros viventes e, mais, organizar a complexa - e nem sempre edificante - economia das relações entre os humanos e os animais. (AGAMBEN, 2013AGAMBEN, Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. , p. 33).

Ainda de acordo com o filósofo italiano, podemos distinguir dois mecanismos de funcionamento da máquina antropológica do humanismo - ferramenta de separação entre o humano e o não humano. O primeiro é baseado na formação de um gradiente por meio da inserção de alguns seres em regiões mais próximas à humanidade; já o segundo encontra amparo na exclusão de formas de vida por meio da desumanização, a exemplo do que ocorreu nos processos de colonização nas antigas colônias portuguesas.

Seja qual for o modus operandi que coloca essa engrenagem para funcionar, visualiza-se a formação de zonas de transição, cujos polos são ocupados, de um lado, pelos “genuinamente” humanos e, do outro, pelos demais viventes relegados à margem dessa “humanidade que pensamos ser”, como afirma Ailton Krenak (2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. , p. 55). Segundo o pensador indígena, a formatação ideológica daquilo que consideramos humano se encontra delineada de modo a dissociar esses seres das outras formas de vida coabitantes deste planeta:

Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso - enquanto seu lobo não vem -, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja a natureza. Tudo é natureza. O cosmo é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza. (KRENAK, 2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. , p. 16-17).

Em diálogo com as ideias do autor, neste trabalho, Moçambique e Brasil apresentam-se como palcos onde se efetivam, por vias ficcionais, os encontros entre homem e animal. Em A confissão da leoa, de Mia Couto (2012COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ), e O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk (2021VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. ), as personagens dos romances estabelecem com grandes felinos vínculos que escapam à lógica reducionista, ótica hegemônica das relações interespecíficas. No primeiro texto, a jovem Mariamar enxerga nas leoas de Kulumani a imagem das mulheres mortas da família, a ponto de querer tornar-se mais uma integrante do bando. Já no romance brasileiro, a vida da menina miranha Iñe-e é trespassada pela figura mítica de Tipai uu, a Onça Grande, que a marca desde a infância.

Tendo em vista esses dois romances, este trabalho configura-se como um estudo qualitativo e bibliográfico, baseado na análise interpretativa das narrativas de Couto (2012COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ) e Verunschk (2021VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. ). Construímos nossa leitura com base na interface entre os campos dos Estudos Animais - uma das vertentes da Ecocrítica - e das reflexões Pós-Coloniais. Nesse sentido, tencionamos investigar, em uma abordagem comparada, as estratégias mediante as quais se dá a manipulação da animalidade como ferramenta de subversão da ordem opressora nos dois romances. Nosso enquadramento dentro do campo dos estudos comparados em literatura justifica-se, pois, pelo reconhecimento das potencialidades advindas do confronto entre textos como aparato metodológico viável para a verticalização das leituras empreendidas (CARVALHAL, 2006CARVALHAL, Tania Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 2006. ).

Além da comparação entre os dois romances, procuramos, também, averiguar os diálogos que os textos contemporâneos estabelecem com o conto “Meu tio o Iauaretê”, de Guimarães Rosa (2001ROSA, João Guimarães. Meu tio o Iauaretê. In: ROSA, João Guimarães. Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2001. p. 191-235. [1961]). Anteriormente, os trabalhos de Silva (2016SILVA, Ana Carolina Torquato Pinto da. O animal e o humano em A Confissão da Leoa (2012), de Mia Couto e 'Meu tio o iauaretê', de Guimarães Rosa. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DA ABRALIC, 15., 2016, Rio de Janeiro . Anais do Encontro Internacional da Abralic. Rio de Janeiro, 2016. p. 3025-3034.Disponível em: https://abralic.org.br/anais/arquivos/2016_1491411897.pdf . Acesso em: 06 jun. 2022.
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) e Rebelo (2022REBELO, Patrick Santos. “Interminável onça”, de João Guimarães Rosa a Micheliny Verunschk: reflexões em torno de “Meu tio, o iauaretê” e O som do rugido da onça. Língua-Lugar: Literatura, História, Estudos Culturais, v. 1, n. 4, p. 120-134, 2022.Disponível em: https://oap.unige.ch/journals/lingua-lugar/article/view/731 . Acesso em: 24 jun. 2022.
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) abordaram as relações que cada romance, isoladamente, estabelece com o conto; em nossa pesquisa, por sua vez, pretendemos efetivar a triangulação entre os três textos, com o intuito de discutir os diferentes procedimentos mobilizados pelos autores no movimento de retomada da narrativa de Rosa.

Após essa seção introdutória, desenvolvemos o seguinte trajeto à procura dos animais escondidos nas dobras dos textos: (i) inicialmente, contextualizamos os romances em análise, apresentando elementos relativos aos autores, ao plano geral das narrativas e às dimensões ecológicas e simbólicas dos animais dos títulos; (ii) em seguida, observamos como é estabelecida, em cada um dos romances, a intertextualidade com o conto rosiano - nó pelo qual os dois textos irradiam; (iii) na sequência, considerando o conceito de “devir-animal”, formulado por Deleuze e Guattari (1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. v. 4.), investigamos os mecanismos que põem em suspensão as fronteiras entre humano e felino nos textos analisados; (iv) ao final, procuramos compreender as formas pelas quais o animal se apresenta como dispositivo de insurgência anticolonial nos romances de Mia Couto e Micheliny Verunschk.

Sob o signo Panthera: contextualização dos romances

Antes de empreendermos nosso percurso pelo cruzamento entre os dois romances, consideramos relevante apresentarmos elementos que possibilitem ambientar as narrativas em análise. No contexto de recepção brasileiro, o nome de Mia Couto figura como um dos mais conhecidos da produção literária africana escrita em língua portuguesa. Valorizada pelo público e pela crítica, tendo recebido o Prêmio Camões, em 2013, a obra de Mia teve início com a publicação do livro Raíz de Orvalho, em 1983, e, hoje, espraia-se por diferentes vertentes: o poema, a crônica, o conto, o romance, o ensaio e, mais recentemente, o texto dramático.

Biólogo por formação, atuando na pesquisa e no ensino de questões relativas ao meio ambiente e à ecologia, Mia Couto estabelece em sua escrita a aproximação entre os universos da ciência, dos conhecimentos populares e das potencialidades da fabulação literária, permitindo o esgarçamento das fronteiras que dividem esses campos de construção do saber. Para o escritor,

a Biologia é um modo maravilhoso de emigrarmos de nós, de transitarmos para lógicas de outros seres, de nos descentrarmos. Aprendemos que não somos o centro da Vida nem o topo da evolução. Aprendemos que as bactérias são seres sofisticados que fizeram mais do que nós, espécie humana, pela existência da Terra como um organismo vivo. (COUTO, 2011COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? São Paulo: Companhia das Letras, 2011. , p. 51).

A seu modo, a definição construída pelo escritor acerca das ciências biológicas poderia ser transplantada para a criação literária, entendidas como rotas possíveis para alcançar um outro. Esse movimento de encontro com a alteridade é um dos componentes centrais do romance que analisamos neste artigo. A confissão da leoa, de 2012, intercala as vozes de Mariamar, uma jovem local, e Arcanjo Baleiro, um caçador, ao narrar os casos de ataques de leões na aldeia de Kulumani, comunidade localizada ao norte de Moçambique. Para Mia Couto, a experiência disparadora do romance vincula-se ao seu trabalho de biólogo. Como preâmbulo para o livro, o autor narra a experiência vivenciada com uma série de ataques de leões na região onde a empresa para a qual trabalhava desenvolvia uma atividade. A resposta à situação veio na forma de um grupo de caçadores contratados para pôr fim às feras, porém, de maneira constante, a população da localidade afirmou a ineficácia dos métodos utilizados, visto que os leões se encontravam fora do mundo tangível.

Na ficção, as vidas dos dois narradores foram entremeadas quando o caçador foi chamado pela administração da aldeia para dar fim a um crocodilo que atormentava o Lindeia, rio sagrado para a comunidade. No entanto, o encontro não teve o mesmo significado para as duas personagens. Enquanto Mariamar alimentou a esperança de escapar do domínio paterno ao fugir com o desconhecido, Baleiro esqueceu-se da jovem. Passados dezesseis anos desde esse primeiro momento entre os dois enunciadores dos textos, os percursos voltam a cruzar-se. Dessa vez, as mortes de mulheres da aldeia, dentre elas Silência, irmã de Mariamar, surgem como motivo para que as autoridades locais contratem o serviço do caçador. Ao mesmo tempo que as figuras masculinas fazem coro ao culpabilizar um bando de leões pelas mortes, a primeira-dama de Kulumani, Naftalinda, assegura que os verdadeiros algozes das vítimas são humanos que se resguardam sob o poder de decisão a eles atribuído.

As discussões acerca da natureza dos leões não é restrita à possível forma física assumida por esses seres, seja ela humana, seja felina. Para a população de Kulumani,

há o leão-do-mato que aqui se chama de ntumi va kuvapila; há o leão-fabricado a quem apelidam de ntumi ku lambidyanga; e há os leões-pessoas, chamados de ntumi va vanu. - E todos são verdadeiros - concluem, em unanimidade. (COUTO, 2012COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. , p. 114, grifos nossos).

No trecho anteriormente citado, percebemos a inseparabilidade entre as dimensões física e metafísica, que rege muitas culturas no continente africano. Permeadas pelas experiências espirituais anteriores ao processo de colonização, essas cosmovisões concebem uma relação intrínseca entre as dimensões empírica e intangível do mundo e ganham concretude por meio dos variados elementos da natureza, dos quais o ser humano se coloca como parte, e não como exceção.

Assim como o romance moçambicano, o surgimento de O som do rugido da onça também é acompanhado de uma narrativa contada por sua autora, Micheliny Verunschk.1 1 (POR DENTRO..., 2021). Em visita a uma exposição iconográfica sobre o Brasil, ela se deparou com as figuras de duas crianças indígenas que, no século XVIII, foram levadas de suas nações e famílias pelos naturalistas alemães Carl von Martius e Johann Baptist von Spix. Essa experiência é representada no romance pela figura de Josefa, personagem do Brasil do século XXI, que encontra o olhar congelado da menina miranha em um museu.

Pernambucana, a primeira publicação de Micheliny foi Geografia íntima do deserto, em 2003. Embora tenha estreado com poesias, produção que seguiu por mais cinco livros dedicados ao gênero, a obra de Verunschk expande-se para a narrativa. Além do romance em análise neste trabalho, até o momento, ela lançou: Nossa Teresa - vida e morte de uma santa suicida (2014VERUNSCHK, Micheliny. Nossa Teresa - vida e morte de uma santa suicida. São Paulo: Editora Patuá, 2014.), Aqui, no coração do inferno (2016VERUNSCHK, Micheliny. Aqui, no coração do inferno. São Paulo: Editora Patuá, 2016.), O peso do coração de um homem (2017VERUNSCHK, Micheliny. O peso do coração de um homem. São Paulo: Editora Patuá, 2017.) e O amor, esse obstáculo (2018VERUNSCHK, Micheliny. O amor, esse obstáculo. São Paulo: Editora Patuá, 2018.) - os três últimos romances enumerados formam a chamada “Trilogia infernal”. Segundo Licarião (2021LICARIÃO, Berttoni Claúdio. Sintomas de precariedade: a memória da ditadura na ficção de Bernardo Kucinski e Micheliny Verunschk. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Literatura) - Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília, Brasília, 2021 .Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/43242/1/2021_BerttoniCla%c3%badioLicari%c3%a3o.pdf . Acesso em: 12 set. 2022.
https://repositorio.unb.br/bitstream/104...
), as relações entre História e Literatura, assim como a interpenetrabilidade entre os tempos, são elementos característicos da ficção da autora:

Em sua prosa de ficção, o tempo é raramente um elemento linear da narrativa, tanto no sentido do embaralhamento dos presentes diegéticos quanto no da coexistência de temporalidades que se reconhecem e se retroalimentam. Para a autora, o traçado distintivo entre passado e presente não é absoluto e o tempo, via de regra, manifesta uma dimensão de performatividade que desestabiliza a distância entre memória e vivência, experiência e relato, verdade e elaboração. (LICARIÃO, 2021LICARIÃO, Berttoni Claúdio. Sintomas de precariedade: a memória da ditadura na ficção de Bernardo Kucinski e Micheliny Verunschk. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Literatura) - Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília, Brasília, 2021 .Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/43242/1/2021_BerttoniCla%c3%badioLicari%c3%a3o.pdf . Acesso em: 12 set. 2022.
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, p. 173).

A tensão entre diferentes temporalidades é um traço mobilizado na estruturação de O som do rugido da onça. O romance constrói-se mediante o encadeamento entre o século XVIII e o XXI, tendo como cenários a floresta Amazônica, a capital paulistana, a região da Baviera alemã e a dimensão espiritual da Maloca das Onças. No primeiro marcador cronológico, o romance acompanha o sequestro de duas crianças indígenas, tomadas como parte dos espécimes representantes do Brasil por uma missão de naturalistas europeus. O segundo, por sua vez, traz as coordenadas do mundo contemporâneo para a narrativa, evidenciando as formas de manutenção do pensamento colonial nas dinâmicas sociais da atualidade.

A narrativa é cortada, desde o início, pelo teor mítico, desvinculando-o da errônea noção de fingimento e realocando-o no patamar das formas profundas de conhecimento, que só podem ganhar materialidade ao entrar no campo do simbólico. Essa leitura materializa-se neste trecho da cosmogonia miranha, que abre a o romance:

O mundo é esse ser gigante que mal distinguimos se estamos distraídos, mas que se apurarmos a vista encontraremos em seus detalhes. Há uma elegância no mundo por vezes despercebida na pressa com que as pessoas vão se acostumando a viver. Em seus cabelos se emaranham de igual modo os fios de fogo, de água, de vento e de ar. Em seu rosto se incrustam jaguares e macacos, ratos e antílopes, formigas e quatis, beija-flores e serpentes, todo sortimento de animais que conhecemos, além daqueles que desconhecemos, os animais sem nome, ainda não descobertos, não catalogados, sem taxonomia, os animais desaparecidos. (VERUNSCHK, 2021VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. , p. 7).

As figuras dos dois felinos inscritos nos títulos dos romances ganham destaque nas imagens que cercam a fauna da África e da América do Sul. O leão e a onça-pintada desempenham, simultaneamente, além de um nicho ecológico dentro dos ecossistemas onde habitam, um nicho imaginário, que se expressa em diversas manifestações culturais. Ao redor da espécie africana, principalmente sobre o exemplar macho, criou-se uma aura de nobreza, conferida pelo título de “rei dos animais” e alimentada por diversos produtos de cultura. Porém, no romance de Mia Couto, a ênfase é dada à fêmea do animal, que, em coletividade, zela pela segurança da prole e é a verdadeira responsável pelas caçadas, articulando o bando, de modo a efetivar os ataques às presas.

Do ponto de vista simbólico, em algumas culturas africanas, a leoa foi objeto de representação iconográfica, a exemplo das imagens da deusa egípcia Sekhmet, cuja forma antropozoomórfica é coroada pela cabeça do animal. Nesse sentido, é interessante destacar que, na urdidura do texto, Mia Couto insere o mito da divindade egípcia nos momentos de contação de histórias feitos pelo tio de Mariamar, Adjiru Kapitamoro, um dos mais velhos moradores de Kulumani, antigo caçador e conhecedor das tradições culturais da região:

Conta-se que Rá, o Deus Sol do Antigo Egito, cansado dos pecados dos homens, criou a deusa Sekhmet para punir aqueles que deviam ser punidos. E foi o que fez a deusa, dizem mesmo que com excessivo zelo. A vingança de Sekhmet passou a tombar também sobre gente inocente. Desesperados, os seguidores de Rá pediram ajuda ao deus, mas este não pôde ajudar. Então, os egípcios tiveram a ideia de fazer uma bebida da cor do sangue e embebedaram a deusa. Sendo assim ela adormeceu e voltou a ser recolhida por Rá. (COUTO, 2012COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. , p. 129).

Do lado sul-americano, a onça-pintada, ou jaguar, como também é conhecida, corresponde à maior espécie de felino encontrada no continente. Ao contrário da vida em bandos, esses animais têm o costume de andar solitários. Embora, para o olhar humano, as manchas que cobrem a pele desses bichos se possam apresentar como similares entre si, elas servem como sinal de identificação para os felinos, uma vez que um mesmo padrão não se repete na natureza.

Quanto aos valores simbólicos que revestem a espécie, de acordo com Felipe Süssekind (2018SÜSSEKIND, Felipe. O jaguar como signo de vida e morte. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 52, p. 83-95, 2018.Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbp/v52n1/v52n1a08.pdf . Acesso em: 03 out. 2022.
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), diversos grupos de povos originários atribuem papéis centrais para esse felino, sendo relacionado, em alguns deles, com o ciclo das águas. Segundo o pesquisador, o nome do animal, “jaguar”, por vezes, é utilizado de modo a qualificar outros seres, funcionando como um adjetivo e atribuindo a ideia de ferocidade ao termo a que se vincula. O papel desempenhado por essa espécie no imaginário das culturas indígenas espelha-se por todo o continente americano, desde os povos indígenas dos mais diversos locais do território brasileiro até as comunidades localizadas no México.

Na trilha do Iauaretê: diálogos com Guimarães Rosa

Ao menos desde os tratados de Aristóteles, temos acesso a registros e catálogos que procuram ordenar os diversos animais conhecidos pelo ser humano. A taxonomia - campo dos estudos biológicos que se ocupa do agrupamento dos seres em conjuntos com diferentes escalas de abrangência - teve como ponto de inflexão os estudos de Carl von Linné, que, no século XVIII, delimitou uma terminologia de ordenação vigente até a contemporaneidade (MACIEL, 2016MACIEL, Maria Esther. Literatura e Animalidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. , p. 16).

No século seguinte, as propostas de Charles Darwin viriam a revolucionar o entendimento acerca da posição ocupada pelo homem ante os demais viventes. A ideia de que os seres podem passar por modificações no decorrer do tempo e que as diferentes espécies existentes se encontram, de algum modo, ligadas espraiou-se por áreas do conhecimento que emergiam no século XIX, a exemplo da Linguística e do recente campo da Literatura Comparada. De maneira análoga às investigações acerca dos seres vivos, os paradigmas teórico-metodológicos dos estudos comparados baseavam-se na procura por fontes e influência, postura que, consequentemente, gerava “[...] uma outra intenção: estabelecida a analogia, instalava-se o débito. E a relação se convertia num saldo de créditos e débitos.” (CARVALHAL, 2006CARVALHAL, Tania Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 2006. , p. 76).

Não inserimos essas considerações de forma gratuita. Ao propormos uma espécie de cladograma formado pelo conto de Rosa e os romances em análise, não entendemos que a relação entre os textos se dá pela simples reprodução; pelo contrário, o foco nesses diálogos intertextuais possíveis visa a compreender como o texto mais antigo é retomado pela produção que lhe é posterior. Formulado por Julia Kristeva com base na leitura do dialogismo bakhtiniano, o conceito de intertextualidade (NITRINI, 2021NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: história, teoria e crítica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021.) organiza-se mediante o reconhecimento da dupla orientação da linguagem poética: o retorno a textos precedentes como insumo e a transformação pelas quais eles passam no processo de criação.

Segundo Leyla Perrone-Moisés (2016), esse procedimento é uma das marcas da literatura contemporânea, não por sua exclusividade - afinal, ele pode ser verificado em diferentes períodos e sistemas literários, mas pela intensidade. Para a pesquisadora,

em vez de tomar o mundo real como objeto de representação, o ficcionista elege sua representação (a literatura) como tema. Mas como a representação do real sempre foi o objetivo da literatura (mesmo em suas formas fantásticas), centrar-se nessa representação fatalmente leva o escritor a refletir sobre o mundo do passado e a confrontá-lo com o de seu presente. (PERRONE-MOISÉS, 2016PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. , p. 116).

Sob essa perspectiva, diferentes traços da composição de “Meu tio o Iauaretê” são retrabalhados e podem ser depreendidos da leitura de A confissão da leoa e O som do rugido da onça. Em linhas gerais, a narrativa rosiana é construída como um diálogo entre um onceiro e um forasteiro, do qual só temos acesso à palavra do primeiro. A princípio, o narrador fora contratado para “desonçar” o mundo, matando os felinos que são vistos como ameaça pela população. Contudo, ao descobrir-se parente desses animais, o assunto passa a ser um tabu para a personagem:

Nha-hem? Hã-hã. É porque onça não contava uma pra outra, não sabem que eu vim pra mor de acabar com todas. Tinham dúvida em mim não, farejam que eu sou parente delas… Ehm onça é meu tio, o jaguaretê, todas. Fugiam de mim não, então, eu matava… Despois, só na hora é que ficavam sabendo, com muita raiva… Eh, juro pra mecê: matei mais não! Não mato. Posso não, não devia. Castigo veio: fiquei panema, caipora… Gosto de pensar que matei, não; Meu parente, como é que posso?! Ai, ai, ai, meus parentes… Careço de chorar, senão elas ficam com raiva. (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Meu tio o Iauaretê. In: ROSA, João Guimarães. Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2001. p. 191-235., p. 206).

O conto avança em estado de tensão, pois o narrador, sob efeito da bebida, revela, pouco a pouco, que, além de matador de onças, também é matador de gente. O reconhecimento da genealogia felina provoca a mudança do lado junto ao qual a personagem se coloca: antes, ao lado dos homens - inclusive, dos detentores de terra e de capital; agora, ao lado das onças - em toda a diversidade resguardada por esse signo zoológico:

Eh, onça é meu tio, o jaguaretê, todas. Fugiam de mim não, então eu matava… Depois, só na hora é que ficavam sabendo, com muita raiva… Eh, juro pra mecê: matei mais não! Não mato! Posso não. Não devia. Castigo veio: fiquei panema, caipora… Gosto de pensar que matei, não. Meu parente, como é que posso?! Ai, ai, ai, meus parentes… Careço de chorar, senão elas ficam com raiva. (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Meu tio o Iauaretê. In: ROSA, João Guimarães. Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2001. p. 191-235., p. 206).

De acordo com Haroldo de Campos (2006CAMPOS, Haroldo de. A linguagem do Iauaretê. In: CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2006. p. 57-64.), a transformação que se efetua na narrativa é refletida nas modificações efetuadas na materialidade textual, uma vez que se observa a passagem da palavra articulada em direção ao rugido do animal: “Esturra - urra de engrossar a goela e afundar os vazios... Urrurrú-rrrurrú…” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Meu tio o Iauaretê. In: ROSA, João Guimarães. Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2001. p. 191-235., p. 196). Na passagem em destaque, identificamos o movimento que se escreve na própria linguagem, primeiramente pela decomposição das formas verbais (“esturra” torna-se “urra”), sendo essa seguida pela representação gutural que brota da garganta do bicho: “Urrurrú-rrrurrú”.

Tendo em vista essas considerações, o que do conto, última das produções de João Guimarães Rosa publicadas em vida, reverbera nas duas narrativas contemporâneas aqui analisadas? Para orientar nossa investigação, tomamos como parâmetro ordenador a data de publicação. Desse modo, iniciamos com as considerações sobre o texto de Mia Couto, A confissão da leoa, lançado em 2012COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. . Como já informamos, o romance organiza-se pela oscilação entre os pontos de vista de dois narradores: Mariamar, jovem nascida em Kulumani, aldeia atormentada por um misterioso bando de leões, e Arcanjo Baleiro, caçador contratado para dar fim aos animais. Entre as vítimas dos ataques das feras, estão as irmãs de Mariamar, que, aos olhos da personagem, permanecem na terra como leoas. A primeira imagem de contemplação da figura felina ocorre no momento que a jovem tenta sair de Kulumani, quando, enfim, poderia ver-se livre do domínio patriarcalista enrijecido em casa e na aldeia:

E, de súbito, ela ali está: a leoa! Vem beber naquela suave margem do rio. Contempla-me sem medo nem alvoroço. Como se há muito me esperasse, ergue a cabeça e crava-se fundo o seu inquisitivo olhar. Não há tensão no seu porte. Dir-se-ia que me reconhece. Mais do que isso: a leoa saúda-me, com respeito de irmã. Demoramo-nos nessa mútua contemplação e, aos poucos, um religioso sentimento de harmonia se instala em mim. (COUTO, 2012COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. , p. 55).

O cruzamento entre o olhar da menina e o da leoa torna-se, então, o porto de passagem entre essas alteridades. Assim como na história do sobrinho do jaguaretê, o encontro com o animal permite ao humano enxergar sua conexão com uma margem opaca representada pela animalidade que nos habita e que é constantemente negada. No final do romance, o encontro com a leoa ocorre novamente, porém, dessa vez, o animal está morto. Nesse momento, o corpo humano e o corpo felino, um vivo e o outro sem vida, tornam-se um só, compartilhando as batidas do mesmo coração: “Liberto-me da roupa e, toda despida, deito-me ao lado da leoa, assentando a cabeça sobre o seu imobilizado corpo. Quem sabe ainda escutasse o pulsar do coração? Demasiado tarde: apenas escuto o meu próprio peito.” (COUTO, 2012COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. , p. 238).

Quanto à figura de Arcanjo Baleiro, segundo narrador do romance, percebe-se a intrusão de seu ofício no próprio nome: “Sou caçador, sei o que é perseguir uma presa. Toda a minha vida, porém, fui eu o perseguido.” (COUTO, 2012COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. , p. 31). A bala entranhada na vida à qual a personagem se refere é a sequência de tragédias que a assolou. Primeiro, a morte da mãe, Martina Baleiro, seguida do assassinato do pai, de quem herdara o sobrenome, pelas mãos do irmão, Rolando Baleiro. Este último, por sua vez, viria a passar o resto da vida em um hospital psiquiátrico.

Semelhante ao onceiro, o convívio com os animais fez com que o olhar do caçador aprendesse o comportamento desses seres, conforme ele afirma: “[...] durmo como os bichos que persigo por profissão” (COUTO, 2012COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. , p. 29). Para ele, ao invés do ato cru de dizimar outra vida, a caçada representa a possibilidade de estabelecer um encontro na fronteira das espécies:

O pressentimento confirma-se. A meia hora de caminho, em contraluz, a leoa surge na outra margem de um riacho seco. O animal não se dá por assustado, como se aguardasse esse encontro. Sem pré-aviso, lança-se ao ataque, e, num ápice, vence a distância que nos separa. [...] Mas eis que, de repente, a leoa suspende a carga. Surpreende-a, quem sabe, não me ver correr, espavorido. Está frente a mim, com os seus olhos presos nos meus. Estranha-me. Não sou quem ela espera. No mesmo instante deixa de ser leoa. Quando se retira já transitou de existência. Já não é sequer criatura. (COUTO, 2012COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. , p. 168).

No romance de Mia Couto, as vozes dos dois narradores convergem para a suspensão do tratamento comumente destinado aos outros seres vivos. Tanto Mariamar quanto Arcanjo Baleiro enxergam os animais não de forma hierarquizada, mas como viventes postos em simbiose.

Com relação à obra de Micheliny Verunschk, O som do rugido da onça, a retomada do conto não se inscreve apenas na ordem do conteúdo. Além desse elemento, a narrativa realiza a inserção de elaborações linguísticas desenvolvidas, anteriormente, por Rosa. Para contar a história de Iñe-e e do menino Schouri, empreende-se a busca por uma voz emprestada, possível de ser utilizada para narrar a vida e a morte de duas crianças indígenas levadas como parte de um inventário naturalista do território brasileiro:

Empresta-se para Iñe-e essa voz e essa língua, e mesmo essas letras, todas muito bem-arrumadas, dispostas umas atrás das outras, como um colar de formigas pelo chão, porque agora esse é o único meio disponível. O mais eficiente. E embora ela, essa língua, seja áspera, perfurante, há alguma liberdade sobre como pode ser utilizada, porque houve muito custo em apreendê-la. (VERUNSCHK, 2021VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. , p. 15).

O excerto em destaque coloca em evidência, ainda no início do romance, a função instrumental com a qual a Língua Portuguesa é manipulada pelo narrador. No decorrer da narrativa, diferentes registros são mobilizados para estruturar as seções que constituem o texto. Após a presença do discurso mítico miranha, na introdução, e a insurgência de uma voz camuflada, nas duas primeiras seções da narrativa, o animal à espreita revela-se na última parte da história.

Ao observarmos os operadores linguísticos presentes na obra de Verunschk (2021VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. ), é patente a identificação de componentes de “Meu tio o Iauaretê”. O uso de elementos lexicais provenientes de línguas indígenas e a presença de criações escritas que emulam onomatopeias são alguns dos procedimentos engendrados no conto rosiano retomados no romance. Enquanto no relato do onceiro esses elementos se fazem presentes durante toda a extensão do texto, intensificando-se à medida que a transformação interespecífica se realiza, em O som do rugido da onça, eles emergem como marcadores cuja presença delimita o retorno de uma voz silenciada.

Os diálogos entre o conto e o romance contemporâneo não se restringem às convergências verificadas na estrutura material dos textos. Se o onceiro acredita vincular-se à figura felina por linhas parentais, a personagem Iñe-e relaciona-se à onça por escolha do animal. Quando criança, a menina indígena perdeu-se de sua família e foi encontrada, posteriormente, em companhia do felino na mata: “Mas antes que me despeça e retome por completo a minha fala própria e natural, conto que Iñe-e era menina de Tipai uu. Porque Tipai uu chamou um dia ela lá no rio, e ela foi. Porque ela era destinada de Tipai uu desde antes de nascer.” (VERUNSCHK, 2021VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. , p. 121).

O vínculo estabelecido entre o animal e a menina provocou a desconfiança da comunidade, uma vez que o felino conjuga admiração e temor para os Miranha. Ao mesmo tempo que a onça é revestida de valor simbólico e mítico, sua presença eletriza o espaço ao redor, pois cria a atmosfera da iminência do ataque. A ambivalência no tratamento dado ao bicho projeta-se na criança, cujo encontro com a onça passa a ser visto como uma maldição - “Ela um dia se transforma e nos devora a todos [...].” (VERUSNCHK, 2021VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. , p. 18). Essa visão era constantemente reforçada pelo pai de Iñe-e, indígena assimilado pelo discurso colonial que entregou a menina aos naturalistas alemães.

Animais à espreita: os devires-felino de Mariamar e Iñe-e

A leitura dos romances possibilita a visualização do cruzamento das fronteiras entre o humano e o não humano. Ao contrário da ordem cristalizada no pensamento ocidental, marcada pela cisão logocêntrica, tanto no texto de Mia Couto quanto no de Micheliny Verunschk são representadas formas de relacionamento interespecífico em que existe a admissão de um ponto de vista tangente a essa perspectiva, como verificamos neste trecho no qual a personagem Mariamar rememora o papel dos bichos em sua formação:

E pensam que aprendi na Missão, com os padres portugueses. A minha escola, de facto, nasceu antes: aprendi a ler foi com os animais. As primeiras histórias que escutei falavam de bichos selvagens. Fábulas me ensinaram, a vida inteira, a distinguir o certo do errado, a destrinçar o bem do mal. Numa palavra, foram os animais que começaram a fazer-me humana. (COUTO, 2012COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. , p. 88).

Podemos depreender da passagem citada a importância atribuída às narrativas tradicionais em contraponto ao ensino dogmático instituído pelo colonizador. Por sua vez, na margem atlântica, no século XVIII, o itinerário formativo de Iñe-e é marcado por histórias contadas pelo avô, evocando o potencial expressivo e simbólico da palavra, além do reconhecimento da existência de outras linguagens - palavras de bicho - no mundo: “Sem palavra não poderíamos ser. Nosso povo recebeu a palavra de vida do criador, e isso nos diferencia dos outros bichos. A dos bichos é a outra palavra.” (VERUNSCHK, 2021VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. , p. 27, grifos nossos). A abertura que as duas personagens experienciam em direção a essas formas de alteridade radical (MACIEL, 2016MACIEL, Maria Esther. Literatura e Animalidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. ) se inscreve, assim, como uma forma de devir.

O conceito de devir foi trabalhado pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. v. 4.) como ferramenta de contraponto ao pensamento categórico, tendo em vista o espraiamento em direção a um outro - quer humano, quer não. Ele não se confunde com a ideia de transformação ou de metamorfose, isto é, mudanças corporais mediante as quais a forma humana adquire os contornos de outros seres. Pelo contrário, o devir-animal instaura-se como uma rede de trocas, em que os viventes postos em relação são contaminados pela alteridade:

Pois se o devir animal não consiste em se fazer animal ou imitá-lo, é evidente também que o homem não se torna “realmente” animal, como tampouco o animal se torna “realmente” outra coisa. [...] O devir pode e deve ser qualificado como devir-animal do homem sem ter o termo que seria o animal que se tornou. O devir-animal do homem é real, sem que seja real o animal que ele se torna; e, simultaneamente, o devir-outro do animal é real sem que esse outro seja real. É este ponto que será necessário explicar: como um devir não tem sujeito distinto de si mesmo; mas também como ele não tem termo, porque seu termo por sua vez só existe tomado num outro devir do qual ele é o sujeito, e que coexiste, que faz bloco com o primeiro. (DELEUZE; GUATTARI, 1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. v. 4., p. 18).

Para os filósofos, o devir é parte integrante do processo de escrita, já que “[...] escrever é um devir, escrever é atravessado por estranhos devires que não devires-escritor, mas devires-rato, devires-inseto, devires-lobo, etc.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. v. 4., p. 20). Nesse sentido, encarar a alteridade torna-se um componente indissociável do processo de escrita, quando a subjetividade do escritor é transpassada por outros viventes ao redor. Na esteira desse pensamento, o crítico literário Randy Malamud (2003MALAMUD, Randy. Poetic Animals and Animal Souls. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2003. ) entende o devir como uma possibilidade de encontrar outras linhas de força mediadoras das relações interespecíficas, perspectiva que, a nosso ver, se formaliza nos dois romances focalizados neste trabalho.

Em O som do rugido da onça, uma das imagens construídas pela autora possibilita dar forma concreta à ideia de devir. Recuperando um trecho de narrativas míticas, no romance, aterra-se o conceito ao narrar o encontro entre a Tipai uu, a Onça Grande, e Igaibati, a Grande Jiboia. De início, essas duas criaturas mitológicas habitavam regiões opostas da Árvore de toda a vida - imagem recorrente em diferentes cosmologias e que se apresenta em muitas narrativas dos povos originários do continente americano. Contudo, em certo momento, esses dois seres deram-se conta da existência um do outro, como é contado no trecho a seguir:

[...] Foi quando se deu que a Onça Grande descobriu um demasiado amor por Igaibati, sem se importar com a feiura que era dela, sem se importar que nem tivesse olhos que Onça Grande pudesse admirar. Quando o amor de Tipai uu entrou dentro de Igaibati, a Grande Jiboia ficou toda reluzência, e os olhos seus, que eram muitos, começaram a se abrir ao longo do corpo escuro, olhos de brasa abrindo e piscando do jeito que as estrelas penduradas no céu sabem luzir. Ãnãn. Foi coisa bonita de ver Igaibati criando nova pele de luz, o desenho de Tipai uu se fundindo aos caminhos do corpo dela, o desenho do corpo de Igaibati se fixando na pele da onça como o sumo do jenipapo sinala desenho no corpo de gente. Por um momento muito breve, Igaibati virou Tipai uu, e Tipai uu virou Igaibati, e dessa situação nasceram todas as qualidades de bicho que habitam a Terra [...]. (VERUNSCHK, 2021VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. , p. 119-120).

O movimento estabelecido entre os dois animais míticos é fértil para pensarmos o conceito filosófico, pois a onça não deixa de ser onça nem a serpente abandonou sua forma em detrimento de outra, ao ocorrer o contato; por outro lado, elas não são mais as mesmas, pois carregam em si traços de um ser diferente. Essas características adquiridas são colocadas como motivadoras para os desenhos presentes nos corpos dos dois animais, que trazem em si as marcas do contágio.

Retomando “Meu tio o Iauaretê”, a transformação pela qual passa o caçador de onças não se efetua do ponto de vista corporal, pois o homem não passa a existir em um corpo de felino. Afim a esses dois casos, as personagens Mariamar e Iñe-e também experienciam um devir-animal ao terem suas subjetividades amalgamadas às figuras da leoa e da onça.

O enfoque direcionado às duas personagens femininas, nos romances, é pertinente para pensarmos na subjugação das mulheres dentro dos contextos marcados pela colonização. Além da opressão por parte do aparelho colonial, elas ainda são subalternizadas pelas relações de gênero estabelecidas na sociedade (BONNICI, 2019BONNICI, Thomas. Teoria e Crítica Pós-Colonialistas. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2019. p. 253-280.). Esses dois aspectos não se encontram dissociados, já que o controle sobre os corpos femininos resulta da implementação de modelos vigentes na metrópole, os quais são, por vezes, considerados alheios à cultura local.

Como já nos referimos na seção anterior, todo o percurso realizado por Iñe-e até a Europa teve início com a negociação efetuada entre seu pai e os naturalistas, sendo incorporada ao conjunto de “85 mamíferos, 350 aves, 2700 insetos, 6500 plantas e duas crianças” (VERUNSCHK, 2021VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. , p. 76), fazendo com que a menina tenha sido acrescentada à lista de “tesouros adquiridos” pelo rei Maximiliano I. À desumanização realizada sobre as crianças indígenas, contrapõe-se um modo de enxergar o humano e os viventes ao redor na condição de coabitantes de um mesmo espaço, sendo, portanto, sujeitos envolvidos em experiências de fricção interespecíficas.

No caso de Mariamar, o domínio do pai impõe-se dentro da casa familiar como metonímia da sobreposição da voz masculina sobre as demais vozes que se verificam na aldeia, pois, às mulheres de Kulumani, é vedada a participação na vida pública e nas decisões políticas locais. Nesse contexto, Naftalinda, mulher do prefeito, atua na contramão, por exemplo, ao entrar em espaços interditados e acusar figuras da comunidade de serem as verdadeiras feras que atormentam a aldeia. Para isso, a personagem retoma, constantemente, a história de Tandi, sua empregada, que fora estuprada por 12 moradores da aldeia e, posteriormente, cometeu suicídio, tendo seus ossos encontrados em uma das caçadas na boca de uma hiena. À noite, as vozes femininas choram a morte da mulher: “Quando me deito, ainda se escuta nas ruas o pranto das mulheres. Choram aquela que morreu. Mais do que a sua morte lamentam a sua vida breve, plúmbea e escassa.” (COUTO, 2012COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. , p. 176).

Desse modo, entendemos que, nos contextos em que as narrativas se desenvolvem, o encontro com a animalidade representa um caminho para a insubordinação. Em Kulumani, fincar-se do lado das leoas é assumir uma postura contrária à dominação: “Esta noite partirei com os leões. A partir de hoje as aldeias estremecerão com o meu rouco lamento e as corujas, com medo, converter-se-ão em aves diurnas.” (COUTO, 2012COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. , p. 240). Ao fazer-se leoa, Mariamar se levanta contra as relações de poder respaldadas pelos discursos dos chefes - os tradicionais e aqueles mantidos como resquício do sistema colonial.

No romance de Micheliny, a menina miranha guarda em si a capacidade de acessar a onça que nela vive, como afirmam as palavras da Onça Grande: “Iñe-e, tu é minha e, por ser minha, é bom que saiba que tu é onça quando quiser de ser. Mãos tuas viram patas macias, orelhas tuas se acendem setas, e aqui te surgem bigodes que te ensinam a ser quem tu é e a andar pelos caminhos que tu deve de andar.” (VERUNSCHK, 2021VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. , p. 121-122). Em consonância com o pensamento de alguns povos originários, para os quais não há uma separação absoluta entre o mundo físico e o mundo espiritual, sendo esses dois domínios que se interpenetram, a transformação de Iñe-e efetiva-se após morte, quando embarca com Tipai uu para a maloca das onças.

O acesso a esses outros do humano materializam, nos textos, o processo de travessia de fronteiras interespecíficas mediante o devir-animal das duas personagens. De acordo com Deleuze e Guattari (1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. v. 4.), o devir é inscrito às margens dos poderes oficiais, afinando-se à existência de grupos minorizados, pois, para os filósofos:

Se o devir-animal toma a forma da Tentação, e de monstros suscitados na imaginação pelo demônio, é por acompanhar-se, em suas origens como em sua empreitada, por uma ruptura com as instituições centrais, estabelecidas ou que buscam se estabelecer. (DELEUZE; GUATTARI, 1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. v. 4., p. 30).

Nesse sentido, o encantamento provocado pelo encontro com os animais contamina as personagens, integrando-as ao bando de felinos insubordinados, cujo rugido faz estremecer os homens, o mundo e os tempos.

Rastro das feras: considerações finais

Na contemporaneidade, as ações humanas sobre diferentes esferas do mundo tornaram-se marcadores cujos efeitos caracterizam uma outra era geológica, delimitando o fim do Holoceno e o início do Antropoceno. Essas marcas são, em grande parte, consequência da exploração desenfreada dos elementos da natureza, entendidos apenas como recursos à disposição de grandes corporações. Contrapondo-se a essa perspectiva reducionista, a literatura pode apresentar outras coordenadas para pensarmos a dinâmica entre o humano e seus outros. Por meio da criação ficcional, instauram-se percursos intersubjetivos que divergem da lógica predominante, pois permitem experienciar formas alheias de habitar o mundo.

A confissão da leoa e O som do rugido da onça são romances que representam exercícios de encontro entre espécies. No primeiro texto, Mariamar é provocada a acessar a própria animalidade ao confrontar o bando de leoas de Kulumani, irmanando-se com os animais. A troca de olhares entre a jovem e a leoa estabelece, portanto, uma ponte entre subjetividades que seriam, a princípio, impermeáveis. Segundo a lógica antropocêntrica, a razão, a alma e a linguagem são alguns dos elementos tomados como parâmetro para distanciar os seres humanos dos demais animais. No entanto, no romance, verificamos o descentramento dessa perspectiva, uma vez que as diferenças entre a personagem e o felino não são colocadas como empecilho para a relação. Mesmo a linguagem não configura um impedimento, pois as diversas linguagens dos animais fazem parte da formação da personagem.

O deslocamento dos limites que separam a humanidade da animalidade também é percebido no segundo texto. Para Iñe-e, a onça é uma figura que a acompanha desde a infância, ao ser escolhida pela Grande Onça. Desde então, o animal, que congrega aspectos míticos e espirituais, manteve-se à espreita, observando a menina em todas as suas ações e acompanhando-a mesmo na travessia pelo oceano. A simbiose entre as duas personagens chega ao ápice no último capítulo do romance, momento em que a onça ascende à função de narrador do texto, inscrevendo a associação interespecífica em aspectos formais da narrativa:

Começo a devolver a sua linguagem e a recuperar a minha. Arre! Precisei dos seus laços de fita, dos seus perfumes, da vidraria que se tem por preciosa pra poder chegar na sua boca. Precisei de mascar o seu cuspo junto do meu, com tabaco e coca, pra mó de contar essa história. O cuspo grosso da minha linguagem minha linguagem misturado no cuspo seu, fino, mas por demais adocicado. Cuspo da minha língua amarga de verde. Gosto assim. Prefiro. Mas tive de me obrigar em propósito de amansamento. Agora chega o momento que não tem mais precisão disso, não. (VERUNSCHK, 2021VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. , p. 121).

Seguindo a lógica presente em muitas culturas (SÜSSEKIND, 2018SÜSSEKIND, Felipe. O jaguar como signo de vida e morte. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 52, p. 83-95, 2018.Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbp/v52n1/v52n1a08.pdf . Acesso em: 03 out. 2022.
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbp/v52n1/...
), podemos, então, pensar em Mariamar e Iñe-e, nessa ordem, como mulher-leoa e menina-onça, ou, em sentido mais amplo, mulheres-felinos, em que a hifenização dos nomes faz com que ao referente humano seja acrescido o componente animalesco. A colocação da animalidade inerente ao humano no primeiro plano não representa, contudo, a sujeição dessas mulheres. O despertar dessa face constitui, na verdade, uma possibilidade de contraponto a paradigmas de opressão que subjugam as personagens. À vista disso, os romances analisados efetivam uma dupla rasura em modelos cristalizados, pois tensionam a subordinação de grupos humanos sobre outros humanos e de nossa espécie sobre a natureza.

Além dos diálogos postos em evidência entre a narrativa moçambicana e a brasileira, com esta análise, foi possível averiguar as linhas de força que cada enredo mobiliza ao retomar aspectos de “Meu tio o Iauaretê”. Nesse sentido, percebem-se elementos do conto de Guimarães Rosa mantidos no primeiro plano dos romances, tanto do ponto de vista dos motivos trabalhados, quanto das estratégias de formalização. No primeiro grupo, o vínculo íntimo e, por vezes, familiar entre personagens humanas e não humanas é algo patente nos três textos. Para o onceiro, assim como para as duas jovens, os felinos são reconhecidos como seres em pé de igualdade, inseridos na própria genealogia.

Sob a perspectiva da estrutura dos romances, entretanto, há divergências quanto aos caminhos efetuados. A presença de Rosa na formação literária de Mia Couto é algo, muitas vezes, reiterado pelo autor moçambicano. Uma das faces das leituras roseanas presente no texto de Mia é o trabalho com a língua portuguesa, especialmente materializada na criação de novas palavras. Além disso, a presença de termos originários de outras línguas é um elemento de destaque ao analisarmos os usos linguísticos dentro dos textos. São esses aspectos que se verificam em A confissão da leoa. Apesar desses exercícios lexicais, o romance, ainda que se considere a intercalação entre as vozes de Mariamar e de Arcanjo Baleiro, mantém uma estrutura fluida na narrativa.

De outro modo, em O som do rugido da onça, além dos motivos temáticos, observamos a incursão e o desenvolvimento de procedimentos de escrita mais próximos àqueles criados por Rosa no conto. Na narrativa de 1961, o texto realiza a transformação de segmentos de línguas humanas em sons não articulados, enquanto a natureza encoberta do narrador se vai revelando para seu receptor- e também para o leitor. Na entrada do texto de 2021, já somos apresentados, explicitamente, ao valor instrumental da língua para o narrador do romance.

Segundo a voz enunciadora, a língua portuguesa é a ferramenta que possibilitaria, de maneira mais funcional, contar a história de Iñe-e. Mesclando motivos míticos e históricos, o romance tem prosseguimento até que, na última parte, a corrente do movimento se inverte, e a voz da onça ganha ressonância. Ao apresentar-se pleno no texto, o felino não se contenta com os modelos impostos pelo sistema do colonizador, reformulando a língua de forma semelhante ao narrador-iauaretê.

No ensaio “A queda do céu: um livro sagrado contra o fim do mundo”, Micheliny Verunschk (2022VERUNSCHK, Micheliny. A queda do céu: um livro sagrado contra o fim do mundo. In: SECCHES, Fabiane (org.). Depois do fim: conversas sobre literatura e antropoceno. São Paulo: Editora Instante, 2022. p. 72-81.) congrega diferentes sujeitos para repensar a posição do humano perante o momento de crise global. Para a autora, “equilibrar as forças da natureza diante do estrago causado pelo Antropoceno/Capitaloceno é um trabalho a ser empreendido entre tempos e entre mundos.” (VERUNSCHK, 2022VERUNSCHK, Micheliny. A queda do céu: um livro sagrado contra o fim do mundo. In: SECCHES, Fabiane (org.). Depois do fim: conversas sobre literatura e antropoceno. São Paulo: Editora Instante, 2022. p. 72-81., p. 80). Ao deslocar as relações entre seres humanos e animais, adicionando outras coordenadas afetivas às trocas entre esses sujeitos, os romances de Mia e de Micheliny agregam novos pontos de vista por meio dos quais é possível observar o mundo, inserindo a criação literária como um caminho para pensarmos outras possibilidades de exercer o ser humano em nossa morada em comum.

Referências

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    (POR DENTRO..., 2021 POR DENTRO de “O som do rugido da onça”, de Micheliny Verunschk. Companhia das Letras , 2021. 1 vídeo (5 min 09s). Publicado pelo canal Companhia das Letras.Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=K99f1uEHd3g&t=20s . Acesso em: 14 out. 2022
    https://www.youtube.com/watch?v=K99f1uEH...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2022
  • Aceito
    02 Dez 2022
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