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Apresentação

Apresentação

Na presente conjuntura global, com a intensificação dos movimentos de pessoas, informações, símbolos e capitais através do mundo, questões relacionadas à circulação internacional, à concomitante produção de fronteiras e às restrições desiguais desses movimentos estão se tornando também cada vez mais centrais aos debates antropológicos da atualidade. Com o intuito de contribuir para os debates em curso, este número de Horizontes Antropológicos reúne artigos que examinam e problematizam, através de múltiplos protagonistas e de um caleidoscópio de questões instigantes e perspectivas teóricas diversas, a circulação de pessoas entre localidades e países, suas motivações, mobilizações e estratégias, bem como a organização e os significados de suas experiências de deslocamento. A partir de situações e contextos específicos no passado e no presente, os artigos procuram expor e decifrar os aparentes paradoxos subjacentes a esses deslocamentos – seja no que se refere à imposição de controles a essa circulação e à construção de fronteiras geopolíticas e simbólicas ou aos processos de expansão de fronteiras; seja na imbricada e dinâmica relação entre circulação e as variadas produções de localidade, lugar e identidade ou entre circulação e a construção de diferenças, através de estereótipos; seja ainda na relação entre circulação e mobilidade social ou profissional, inclusive no que concerne à diferenciação entre circulação internacional e transnacional, ou aos debates suscitados por diferentes definições sobre o transnacional. Acima de tudo, esse conjunto de artigos indica a relevância de se examinar essas mobilidades no contexto da economia política mais ampla.

Se os movimentos do capital, os meios de comunicação e os signos aparentam atravessar um mundo sem barreiras, os protagonistas das análises aqui apresentadas se deparam com fronteiras geopolíticas que demarcam e controlam quem pode entrar e circular em territórios nacionais. Ao mesmo tempo em que suas experiências de deslocamento os levam a reconstruir simbolicamente memórias, lugares e práticas sociais da terra natal, seus trânsitos e trajetos são, via de regra, direcionados por redes sociais e (ou) políticas de Estado ou, ainda, instituições supranacionais, em conjunturas históricas específicas. Como corolário, ao invés de circulações irrestritas pelo mundo, esses trânsitos apresentam itinerários bem definidos que, no caso desses protagonistas, têm como particularidade suas partidas de, ou chegadas em, localidades do Brasil ou de Portugal – países que compartilham uma longa história de colonização e de imigração portuguesa no Brasil. Por conseguinte, esses itinerários refletem ainda as mudanças de posicionamento desses dois países na economia política global no transcorrer das últimas décadas. Enquanto o Brasil, historicamente um país de imigração, passou a exportar emigrantes; comparativamente, Portugal, antiga metrópole colonial e ao mesmo tempo nação de emigrantes, se transformou, após a descolonização e ingresso na Comunidade Europeia, também em país de imigração. Desse prisma, esse conjunto de artigos oferece subsídios para a compreensão de experiências de deslocamento, tanto no âmbito da economia política global e da desigualdade entre países e localidades quanto das lógicas culturais que estruturam e atribuem significados a essas experiências.

O movimento de pessoas através do mundo é, sem dúvida, constitutivo das experiências e imaginário portugueses, seja enquanto desbravadores e colonizadores de novas terras, ou como mão-de-obra imigrante. Da mesma forma, existe uma relação intrínseca entre Estado e emigração portuguesa. Durante o longo passado colonial, ao mesmo tempo em que emigrantes eram alvos de políticas restritivas por parte do Estado português, suas remessas de divisas eram cruciais para a metrópole empobrecida. Com a descolonização e ingresso de Portugal na Comunidade Econômica Europeia os portugueses espalhados pelo mundo foram incorporados na reconfiguração de uma nação pós-colonial baseada em elos de sangue, com direitos à dupla nacionalidade e cidadania e, por extensão, à livre circulação no espaço europeu. Em "Reinventando a localidade: globalização heterogênea, escala de cidade e incorporação desigual de migrantes transnacionais", Bela Feldman-Bianco, com base em extensa pesquisa sobre a construção da saudade em New Bedford, na costa sul de Massachusetts, EUA, se propõe o desafio de relacionar os processos de incorporação de emigrantes nessa nação pós-colonial à renovação da portugalidade e à inserção de transmigrantes portugueses nessa cidade americana, no contexto de processos de re-escalonamento tanto de New Bedford quanto de Portugal na economia política global. Dado o interesse em entender as inter-relações dinâmicas entre os processos locais e globais que estão re-estruturando New Bedford, centraliza a sua atenção nessa cidade e na política ao nível local para, assim, expor as interligações entre globalização, escala de cidade e incorporação de imigrantes. Ao evitar adotar a priori e, assim, naturalizar o grupo étnico como unidade de estudo, sua análise etno-histórica capta as diferentes composições da população portuguesa e as mudanças de sua localização em relação a outros grupos imigrantes na cidade, através dos tempos. Ademais, sua análise traz à tona a importância de se dedicar atenção à localidade nos estudos de migrações e, assim, evitar o nacionalismo metodológico em curso.

Dessa perspectiva, indica que, se secularmente os portugueses foram discriminados como "Black Portugee", a melhoria de seu posicionamento em New Bedford imbrica-se à concessão de dupla cidadania e nacionalidade pelo Estado português aos seus emigrantes e, portanto, à sua simultânea incorporação em Portugal pós-colonial e por extensão na Comunidade Europeia. Com o aumento da presença do Estado pós-colonial português na economia e cultura dessa região americana, através de suas políticas de cultura e investimentos, o alcance transnacional das lideranças bilíngues e biculturais foi reforçado tanto no que se refere aos esforços de reposição de New Bedford quanto de regiões portuguesas e, dessa forma, contribuindo para uma nova e mais positiva imagem de Portugal e dos portugueses na região. Mas, ao mesmo tempo, os processos de flexibilização do capital e do trabalho, juntamente com uma política imigratória americana que criminaliza imigrantes, através de uma perspectiva na segurança nacional, implicam a crescente exploração e vulnerabilidade econômica das massas de imigrantes, das quais continua a fazer parte a maioria dos imigrantes portugueses.

Por sua vez, Cristiana Bastos, em "Maria Índia, ou a fronteira da colonização: trabalho, migração e política no planalto sul de Angola", nos proporciona um capítulo da história colonial e das relações intrínsecas entre migração e colonialismo, ao retratar um episódio pouco conhecido transcorrido no Sul de Angola na década de 1880, envolvendo migrantes depauperados da Ilha da Madeira mobilizados pelo governo português para garantir a ocupação do território de fronteira num contexto marcado por uma acirrada competição europeia pela partilha da África. Num período em que a emigração portuguesa era considerada "um mal necessário e um atestado de prostituição portuguesa", esses colonos eram continuamente retratados de forma estereotipada e discriminatória, indicando o estabelecimento de uma outra fronteira de classe e poder, entre eles e os oficiais encarregados dos postos ultramarinos. Mesmo nas décadas de 1950 e 1960, quando a saga dos madeirenses enquanto "agentes do projeto colonial da nação" foi recuperada pela necessidade de promover uma narrativa histórica da colonização num contexto marcado pelas tentativas de Salazar de garantir espaços europeus num território que crescentemente se reconhecia como africano, novos colonos migrantes que se estabeleceram em Angola mantiveram distância por linhas de classe e preconceitos desses antigos contingentes madeirenses que, deixados à deriva, se reproduziram enquanto uma comunidade relativamente endógama.

Preconceitos e construções de estereótipos também estão subjacentes às representações acerca de migrantes internacionais enquanto "perigo", "ameaça", "obstáculo" para os Estados-Nação, que tendem a ser demarcadas por gênero, geração, raça e classe social. Em especial, casos de prostituição feminina constituem situações liminares que tendem a desencadear reações e retóricas aparentemente ambíguas sobre mulheres que participam do mercado internacional do sexo, percebidas ora como vítimas do tráfico de escravas, ora como "um perigo" no cenário mais amplo das relações internacionais entre países com posicionamentos desiguais na economia política global, como Thaddeus Gregory Banchette e Ana Paula da Silva, em "As American girls: migração, sexo e status imperial em 1918", bem como Adriana Piscitelli em "Tránsitos: circulación de brasileñas em el ámbito de la transnacionalización de los mercados sexual y matrimonial", demonstram respectivamente em seus estudos de caso sobre a prostituição de americanas em tempos idos no Brasil e de brasileiras no Sul da Europa.

Em "As American girls: migração, sexo e status imperial em 1918", Thaddeus Gregory Blanchette e Ana Paula da Silva examinam, através de análise documental, as implicações políticas de um caso de ampla repercussão na imprensa local que envolveu a prostituição de dançarinas de uma companhia de burlesque trazidas dos Estados Unidos, durante a Primeira Guerra Mundial, para se apresentarem em teatros e casas noturnas do Rio de Janeiro. Ao reconstruírem os debates, constrangimentos e ações de representantes consulares dos EUA, à luz da conjuntura histórica da época, argumentam que o uso de uma retórica que considerava as dançarinas vítimas do tráfico de escravas brancas era, acima de tudo, uma estratégia dos representantes do Departamento do Estado para policiar a sexualidade e os corpos de mulheres americanas que estavam se prostituindo com homens de um país considerado exótico e inferior. Ao mesmo tempo em que demarcavam as relações desiguais entre o Brasil e os Estados Unidos, as estratégias desses representantes do governo americano de controle e limitação dos movimentos de suas conterrâneas visavam proteger o projeto de dominação em curso dos constrangimentos causados por esse caso de prostituição.

Ambiguidades, imprecisões e equívocos associando tráfico de mulheres com prostituição continuam na ordem do dia no Brasil contemporâneo. A própria análise de Adriana Piscitelli, em "Tránsitos: circulación de brasileñas em el ámbito de la transnacionalización de los mercados sexual y matrimonial" sobre a atual migração de brasileiras para a Espanha e Itália, é originada pela constatação de que, embora o Brasil tenha subscrito o Tratado de Palermo, que exclui a prostituição como parte do crime organizado transnacional, o Código Penal brasileiro continua a considerar crime a promoção ou facilitação de entrada ou saída do território nacional de pessoas que venham a oferecer serviços sexuais, seja no país ou no exterior. Em reação ao debate público no Brasil, inclusive no âmbito do feminismo, que mescla ambas as legislações e vincula a ideia de transnacionalismo ao crime organizado além fronteiras nacionais, a autora opta por considerar, ao invés, essas profissionais do sexo como trabalhadoras migrantes e, assim, examinar as suas trajetórias e experiências de viver entre dois países através de um enfoque transnacional desenvolvido no campo dos estudos migratórios, por possibilitar a análise da interconexão existente entre processos materiais e simbólicos nos sistemas de gênero translocais. Dessa perspectiva, argumenta que a migração representa, para essas profissionais do sexo, a possibilidade de escaparem das desigualdades estruturais marcadas por gênero, enfrentadas na terra natal, pois tendem a se beneficiar das representações vigentes no Sul da Europa sobre o Brasil enquanto cultura subalterna e das decorrentes imagens estereotipadas que apontam para uma suposta disposição alegre e natural das brasileiras em relação ao sexo, bem como por uma concomitante propensão para a domesticidade e maternidade. Essas imagens propiciam as condições para profissionais do sexo que emigram do Brasil incorporarem as qualidades e estereótipos que lhe são atribuídos e eventualmente galgarem mobilidade social.

Assim como as prostitutas que circulam entre localidades do Brasil e do Sul da Europa, os "brasiguaios" que vivem na Fronteira Tríplice entre Brasil, Paraguai e Argentina e, ainda, a cidade de Governador Valadares em Minas Gerais, se tornaram emblemas da formação de diásporas brasileiras. José Lindomar C. Albuquerque e Igor José de Renó Machado se voltam, respectivamente em "A dinâmica das fronteiras: deslocamento e circulação dos 'brasiguaios' entre os limites nacionais" e em "Interação das fronteiras e o ponto de vista etnográfico: dinâmicas migratórias recentes em Governador Valadares", à análise de questões relevantes relacionadas à construção de fronteiras geopolíticas e simbólicas, sob ângulos diversos.

José Lindomar C. Albuquerque focaliza a circulação e deslocamento de brasileiros que vivem em alguns municípios do Alto Paraná no Paraguai e que tendem a se autodefinir enquanto "brasiguaios" com base em suas experiências sociais e liminares na fronteira. Ao dedicar atenção às dimensões sociais e simbólicas da fronteira econômica para além dos limites políticos do Brasil, o autor discerne a constituição heterogênea e a incorporação desigual em localidades paraguaias (inclusive em termos de acesso ao poder) dessa população diaspórica formada por migrantes de várias regiões do Brasil, bem como a multiplicidade de relações e redes sociais que se justapõem, se sobrepõem e, ao mesmo tempo, alargam o espaço das fronteiras geopolíticas entre os dois países. Contribui, assim, para desvendar como, nesse espaço alargado, são construídas relações de solidariedade (baseadas em ideologias de harmonia e hibridismo cultural), bem como conflitos e disputas que ocorrem principalmente na área rural. Como nota, essas disputas trazem à tona a construção de diferenças – a partir de estereótipos sobre "brasiguaios" e paraguaios – e, principalmente, expõem as relações de poder desigual entre o Brasil e o Paraguai, marcadas pela dominação econômica exercida pelo Estado brasileiro e segmentos da população "brasiguaia" na região.

Por sua vez, Igor José de Renó Machado, levando em conta os debates atuais entre os "estudos culturais" e os border studies, posiciona-se em prol de uma descrição etnográfica capaz de expor os entrelaçamentos entre fronteiras geopolíticas e simbólicas, a partir da lógica cultural dos sujeitos de pesquisa. Dessa perspectiva, argumenta que o próprio processo migratório – inclusive o redirecionamento das redes sociais valadarenses dos Estados Unidos para Portugal, em decorrência do aumento do controle e da vigilância na fronteira México-Texas –, necessita ser examinado a partir da lógica cultural, predominante entre famílias brasileira de baixa renda, que desencadeia um processo contínuo de fusão e fricção, norteando projetos familiares que privilegiam a formação de unidades domésticas independentes. Essa lógica cultural estimula, em última análise, a migração e a travessia de fronteiras geopolíticas.

A importância de se dedicar atenção às lógicas culturais para se entender processos migratórios e os significados subjacentes às formas da organização da experiência imigratória é também enfatizada por Denise Fagundes Jardim em "'As mulheres voam com seus maridos': as experiências da diáspora palestina e as relações de gênero". Ao se propor decifrar a lógica cultural intrínseca ao provérbio "as mulheres voam com seus maridos", que ouviu durante sua pesquisa de campo entre os palestinos do Chuí, na fronteira do Brasil com o Uruguai, a autora expõe os dispositivos culturais implícitos nesses trânsitos e chama a atenção para a necessidade de uma reflexão sobre as relações de gênero e os modos de se analisar o papel de destaque desempenhado por mulheres muçulmanas enquanto intermediárias desses trânsitos.

Enquanto o processo migratório entre os valadarenses é desencadeado por projetos familiares que causam fricção e fusão, esse estudo de caso sobre os palestinos aponta para o seu anverso – como em reação à dificuldade de se obter passaportes, os projetos familiares e estratégias dos palestinos viabilizam, através da aquisição de múltiplos passaportes, a circulação através de fronteiras geopolíticas e, ao mesmo tempo, mantêm a família e a parentela unida através desses deslocamentos internacionais. Dessa perspectiva, indica como, através de viagens e reuniões de família, "as mulheres que voam com seus maridos" atuam também como mães e tias, intermediando o circuito de comunicação entre famílias e gerações inclusive no que tange ao mercado matrimonial e à ativação dessas parentelas. Dessa forma, a autora nos faz compreender como essa intermediação, revelada pelo provérbio em epígrafe enquanto "uma diversidade de chegadas e partidas de parentes", e que é baseada em solidariedade de gênero e geração, se torna fundamental para transformar situações de aparente ruptura em continuidade familiar.

Se o estudo de caso sobre os palestinos do Chuí desvenda as estratégias para reconstituir famílias e parentelas em situações diaspóricas e, assim, transformar a ruptura em continuidades familiares, José Mapril, em "'Aqui ninguém reza por ele!' Trânsitos fúnebres entre o Bangladesh e Portugal", aborda um outro aspecto também relacionado à construção da familiaridade num mundo de fluxos e deslocamentos: o gerir da morte e do morrer como metáfora para se refletir sobre família e a produção de lugares e espaços de (re)construção de identidade e pertencimento em contextos imigratórios. Com esse intuito, examina a relação entre as cerimônias fúnebre e a reprodução e a simbolização dos lugares de pertença com base em estudo de caso realizado entre Lisboa e Bangladesh. Aponta como a preocupação com a morte e o enterro em Bangladesh está relacionada com uma lógica cultural baseada na crença da obrigatoriedade de "regressar à desh, para junto de seus parentes" isto é, onde os parentes podem rezar pelo morto. A força dessa crença, a importância da família e da construção de múltiplos laços entre as localidades de origem e de fixação – incluindo as remessas de imigrantes – podem ser aferidas pelo fato do Estado de Bangladesh, que depende dessas remessas, ter desenvolvido medidas para o repatriamento dos corpos de sua população diaspórica em retribuição aos sacrifícios realizados por seus migrantes internacionais em prol do país e pagamento de uma compensação às famílias dos mortos. Com base em sua análise, argumenta que a dimensão telúrica da morte está diretamente relacionada com a existência de sociabilidades e de relações sociais, implicando uma reterritorialização, através da celebração de seu elo com um lugar onde parentes, amigos e conhecidos podem cuidar do corpo do morto. Talvez, devido ao fato da formação dessa diáspora em Lisboa ser recente, a celebração na terra natal possa significar uma reação à divisão e à separação forçada pela imigração. Mas um primeiro enterro realizado em Lisboa, onde já vivem todo os parentes do morto, pode sinalizar o início da produção de um novo lugar de pertencimento e sociabilidade.

Em contraposição, Pedro Martins, em "Cabo-verdianos em Lisboa: manifestações expressivas e reconstrução identitária", focaliza uma população diaspórica formada por ex-sujeitos coloniais do antigo império português – portanto, com uma história compartilhada de dominação e subordinação – e que constitui um dos contingentes de imigrantes mais antigos de Lisboa. Não por acaso, examina as manifestações expressivas entre imigrantes cabo-verdianos de um bairro de Lisboa – especialmente às ligadas à música, dança, artes plásticas, gastronomia e estética corporal – como parte de estratégias de inserção social, amenização de barreiras raciais e reconstituição da identidade cultural na localidade de fixação. Levando em conta as históricas relações entre cabo-verdianos (negros) e portugueses (brancos), argumenta que diversas manifestações expressivas, trazidas da África ou desenvolvidas em Lisboa, são constantemente apropriadas e oferecidas ao mercado enquanto produtos a serem consumidos, como forma de ampliar as possibilidades de convivência e de interação entre brancos e negros. Dessa perspectiva, sugere que o mundo do espetáculo delimita a construção de um território de convivência entre negros e brancos, que propicia aos cabo-verdianos possibilidades de incorporação pela participação e diminuição do preconceito.

Já Ernesto Seidl, em "Caminhos que levam a Roma: recursos culturais e redefinições de excelência religiosa", está interessado em uma outra dimensão da circulação além-fronteiras nacionais – aquela relacionada à recomposição de elites e grupos dirigentes no âmbito de uma instituição profissional de caráter supranacional, sediada no Vaticano. Com esse intuito, expõe os processos de recrutamento, seleção e ascensão na Igreja católica, bem como as formas e peso da circulação internacional na formação do corpo religioso e nas lutas pela definição de novas hierarquias de saberes. No que tange aos investimentos na dotação de novas e diversificadas formas de competência religiosa do alto clero brasileiro, mostra a existência, a partir da década de 1970, de um expediente institucional ancorado na esfera escolar, que dá destaque à formação intelectual via internacionalização. Sua análise ainda aponta para os múltiplos desafios enfrentados pelos bispos que exigem competência cultural polivalente em um espaço simbólico altamente competitivo, concluindo que Roma continua a centralizar a produção de religiosos de alto nível com acúmulo de experiências no exterior e culturalmente mais versáteis.

Esse artigo, com sua ênfase na circulação internacional enquanto capital social na formação de recursos humanos, através de curtas ou longas estadias no exterior, oferece um interessante contraponto aos estudos de caso sobre migrantes internacionais, apontando para a necessidade de se distinguir "internacional" de "transnacional". Se "internacional" implica relações entre países, noções sobre "transnacional", implícita ou explicitamente, utilizadas nos artigos sobre migrações internacionais, aqui publicados, se referem aos processos materiais e simbólicos através dos quais imigrantes constroem e mantêm múltiplas relações que ligam os vários polos da sua existência em mobilidade, e que só podem ser plenamente interpretados se superarmos a tradicional oposição entre "sociedade de origem" e "sociedade de chegada". Tendem a desenvolver subjetividades e reconstruir lugares e identidades incrustadas nesses múltiplos campos de relações sociais e experiências entre localidades e países de origem e fixação, como exemplificado em vários desses artigos. Em última análise, essas distinções trazem à tona o desafio de se justapor a noção de internacionalização enquanto capital social e a noção de campos sociais transnacionais que também pode implicar capital social e recursos culturais, como, de forma implícita ou explícita, os artigos de Adriana Piscitelli, Bela Feldman-Bianco, Denise Fagundes Jardim e Pedro Martins sugerem neste volume.

Além desse conjunto de artigos sobre circulação internacional, a seção Espaço Aberto deste número de Horizontes Antropológicos publica a conferência que Renato Sztutman proferiu na jornada "Claude Lévi-Strauss: homenagem pelos 100 anos", organizada pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS, e uma entrevista com a antropóloga Aihwa Ong, professora do Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, Berkeley, cujas importantes contribuições para o estudo das migrações internacionais e do neoliberalismo encerram com chave de ouro este volume temático.

Este número de Horizontes Antropológicos contou com a organização de quatro antropólogos. Ruben George Oliven e Denise Fagundes Jardim são professores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS. Bela Feldman-Bianco é professora do Departamento de Antropologia da Unicamp. Cristiana Bastos é professora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. As últimas duas pesquisadoras coordenam o programa de cooperação científica luso-brasileira "Circulação Transnacional, Fronteiras e Identidades" no âmbito do convênio Capes-Grices.

A capa deste número da revista apresenta uma composição feita a partir das bandeiras dos países referidos pelos autores dos artigos.

Os Organizadores

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jun 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2009
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