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Devires imagéticos: a etnografia, o outro e suas imagens

RESENHAS

GONÇALVES, Marco Antonio; HEAD, Scott (Org.). Devires imagéticos: a etnografia, o outro e suas imagens. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. 308 p.

Francieli Lisboa de Almeida*

Universidade Estadual de Campinas - Brasil

A crescente propagação das mídias audiovisuais tem promovido apropriações pelos grupos que historicamente foram objetos de investigação da antropologia e que mais recentemente passaram a elaborar suas autorrepresentações explorando as potencialidades que essas mídias têm de dar-lhes voz. Isso impacta de forma irreversível na antropologia, seja em seu campo prático quanto teórico. Uma das primeiras implicações desse processo é que os "nativos" conquistaram definitivamente o status de sujeitos e reais interlocutores, não fazendo mais sentido falar deles, senão com eles, pois independentemente da figura do antropólogo eles estão produzindo seus próprios filmes, músicas, livros, com o intuito de oferecer uma medida mais justa de si e a partir disso atingir os objetivos mais diversos.

Em sintonia com esse contexto transformativo a obra Devires imagéticos traz uma importante contribuição teórica e epistemológica na medida em que os seus autores evidenciam o rendimento conceitual das imagens para novas perspectivas nas ciências sociais de temas que lhes são clássicos como o da (auto)representação, alteridade, subjetividade, individualidade e imaginação. É nesse sentido que propõem a noção de devir-imagético em que a ideia de imaginação articula uma nova forma de se representar e apresentar o "outro" na medida em que possibilita espaço para a fabulação, a criatividade inventiva dos sujeitos como uma forma privilegiada de se aceder a um conhecimento.

O livro é uma coletânea que reúne 12 artigos, organizados por Marco Antonio Gonçalves, que é professor no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ) e coordenador do Núcleo de Experimentações em Etnografia e Imagem do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ (NEXTimagem), e Scott Head, que é pesquisador nesse núcleo e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a maioria deles escritos por doutorandos no IFCS.

O eixo unificador dos artigos para além da temática da incorporação das mídias audiovisuais ao conhecimento antropológico tanto como meio quanto tema de análise fica por conta do significativo compartilhamento de referenciais teóricos, além de questões que dialogam entre si. As imagens de que tratam os artigos são as mais diversas: fotográficas, textuais, fílmicas, televisivas, sonoras, urbanísticas, patrimoniais, para citar algumas delas.

Gonçalves e Head lançam as linhas teóricas mais gerais que perpassam os artigos dos demais autores. No primeiro capítulo procuram reconstituir as influências teóricas que lhes permitirão propor a noção de devir-imagético enquanto uma categoria que pretende iluminar as discussões relacionadas à representação e alteridade. Segundo os organizadores, a noção é herdeira da de mimese elaborada por Benjamin e Taussig e tem a ver com a percepção através das imagens que liga o objeto de percepção ao corpo do perceptor numa relação que permeia os sentidos, permitindo espaço à individualidade, e a "imaginação pessoal criativa que passa a formular uma fabulação de si como forma de auto-representação" (p. 25). O indivíduo que se apresenta e representa o faz a partir de uma relação que dissolve em certa medida os polos eu/outro. E nesse sentido é que traz a sua maior contribuição, pois pode haver um deslocamento do centro do olhar em que o "eu" do antropólogo possa vir a ser o "outro" do seu interlocutor.

A noção de devir-imagético também é mobilizada para retomar relações caras à antropologia de uma forma não antagônica: indivíduo e sociedade, subjetividade e objetividade e cultura e personalidade. Nessa perspectiva a realidade sociocultural seria formulada a partir de narrativas advindas de imaginações pessoais e suas representações e apresentações de si e do outro a partir da experienciação no mundo. Portanto, o indivíduo ganharia mais autonomia e possibilidade de autorrepresentação criativa, na tentativa de refutar que o sujeito dos processos seja um coletivo fixo, no sentido de preestabelecido e indivíduos como fontes estáveis. A noção de alteridade pode ser repensada a partir das novas possibilidades que o conceito traz, já que tanto eu quanto o outro vivenciamos uma relação de aproximação e transformação. Assim, a alteridade é aqui pensada como existindo em relações em que o "eu" aceite a ser o "outro" caso o centro se desloque. A ideia de centro, inspirada no perspectivismo de Deleuze, é puramente uma questão de perspectiva interna, aqui no caso, dos sujeitos que fabulam.

Os primeiros capítulos trabalham especialmente com imagens fotográficas. Scott Head constrói a sua reflexão a partir de imagens textuais e fotográficas da capoeira angola no Rio de Janeiro para pensar a potência das imagens e suas implicações no texto etnográfico e na prática antropológica, já que o uso das imagens pode afetá-la e até transformá-la. Thiago Carmonati aborda a questão do "olhar periférico" a partir da linguagem fotográfica e como ela redimensiona os olhares sobre as favelas no Rio de Janeiro e sobre o que é ser favelado, na busca por desconstruir estereótipos de violência que lhes são associados. Fabienne Gama retoma a temática das favelas, mas vai além ao discutir os limites de uma antropologia compartilhada nos termos rouchianos ao se construir uma representação sobre as favelas do Rio de Janeiro a partir do confrontamento entre a autorrepresentação que delas fazem os fotógrafos da ONG Olhares do Morro e a representação antropológica das favelas.

A seguir a coletânea traz capítulos dedicados às imagens fílmicas, digitais e televisivas. Rose Satiko segue com a noção de antropologia compartilhada, mas dessa vez a partir do seu encontro com jovens cineastas da periferia de São Paulo para a realização de um vídeo - Cinema de quebrada. Reafirma as potencialidades do filme etnográfico, no sentido de que pode ajudar a repensar a própria representação que a antropologia tem feito dos sujeitos, além do que o filme permite o encontro em que as fronteiras entre os corpos são dissolvidas. Tatiana Bacal trabalhou tanto com documentários produzidos pelo projeto Vídeo nas Aldeias quanto com o catálogo da mostra homônima do projeto, procurando perceber como os grupos indígenas estão mobilizando noções como as de cultura e identidade a partir da autorrepresentação para a própria defesa de si. Bruno Cardoso está interessado na interação ocorrida no processo de criação imagética de vídeos digitais que são realizados para ser postados em sites de compartilhamento de vídeos na internet como o YouTube, pois ao serem comentados eles tornam-se recriações interativas, conferindo-lhes um caráter polissêmico e polifônico, provocando a perda de sentido das categorias de receptor e autor. O capítulo de Veronica Almeida procura questionar em que medida as representações sobre a identidade nacional das minisséries da Rede Globo de Televisão e a de sociólogos e antropólogos dialogam entre si.

A instigante questão das imagens sonoras é abordada por dois autores. Mylene Mizrahi parte de elementos da trajetória do cantor de funk Mr. Catra para abordar a dinâmica criativa advinda da produção de imagens do funk, que é gerada a partir de englobamentos e apropriações do "mundo do asfalto". E nessa dinâmica o artista vai produzindo num movimento reflexivo a "cultura", como o próprio antropólogo a faz. Já Roberto Marques fez pesquisa nas festas de forró eletrônico no Cariri (CE), e constrói o seu texto mostrando como a região abriga uma sobreposição de "paisagens musicais" onde o forró eletrônico é apenas uma delas.

O capítulo de Roberta Guimarães aborda simultaneamente imagens fílmicas e urbanísticas. A autora tem interesse no efeito social que geram as representações do Morro da Conceição no Rio de Janeiro feitas por urbanistas, pela diretora do documentário homônimo do bairro e a pela própria pesquisadora.

Encerrando o livro Júlio Ribeiro trabalha com as imagens textuais (ficcionais) a partir do romance Nove noites de Bernardo de Carvalho, que a partir do evento do suicídio do etnólogo estadunidense Buell Quain entre os Krahô em 1939 cria uma ficção que é formada por diversas vozes e suas memórias sobre o caso em que vai misturando ficção e realidade. A obra é uma espécie "narrativa labiríntica" construída por Carvalho a partir de fabulações particulares, como as dos indígenas, do etnólogo, do jornalista-narrador, de Manoel Perna (amigo de Quain no Maranhão) e de todas as outras vozes que aparecem ao longo do texto através das cartas. Ribeiro, ao longo do texto, ora aproxima o romance da escrita etnográfica e ora os distancia, estando a questão da alteridade presente tanto num quanto no outro gênero.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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