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Confrontar o presente: a crise democrática a partir do setor de Direitos Humanos do MST

Confronting the present: the democratic crisis from the MST’s Human Rights sector

Resumo

Neste ensaio etnográfico, busco perspectivar a crise democrática brasileira a partir do cotidiano do grupo de advogados e assessores jurídicos populares que integram o setor de Direitos Humanos do MST de Pernambuco, a que pertenço e cuja atuação se dá em contextos políticos intensa e historicamente marcados por violência e criminalização. Para tanto, tomo como ponto de partida dois acontecimentos de que tive notícia em 24 de abril de 2021: a prisão de um motorista de carro de som acusado de ferir a honra do presidente da República e incorrer num crime da Lei de Segurança Nacional; e as perseguições e ameaças de morte contra um sem-terra implicado em conflitos agrários na Mata Sul de Pernambuco. Com isso, pretendo divisar as ressonâncias do bolsonarismo nesses casos, os constrangimentos de Estado neles engendrados e as contradições de nossa experiência democrática, que atualiza imagens do passado ao tempo que demanda o confronto com seu presente.

Palavras-chave:
MST; democracia; crise; bolsonarismo

Abstract

In this ethnographic essay, I seek to perspective the Brazilian democratic crises from the daily life of the lawyers and popular legal advisors group that integrate the MST’s Human Rights sector in Pernambuco, to which I belong and whose performance takes place in political contexts intensely and historically marked by violence and criminalization. To do so, I take as a starting point two events I heard about on April 24, 2021: the arrest of a sound car driver accused of harming the Republic President honor and committing a crime under the National Security Law; and the persecutions and death threats against a landless person involved in agrarian conflicts in the Pernambuco south forest. With this, I intend to discern the Bolsonarism resonances in these cases, the State constraints engendered in them and our democratic experience contradictions, which updates past images at the same time that demands confrontation with its present.

Keywords:
MST; democracy; crisis; Bolsonarism

Primeira nota de campo

[Tarde do sábado, 24 de abril de 2021.] Era pouco depois de meio-dia quando a mensagem de Tomás chegou ao grupo de WhatsApp do setor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra de Pernambuco: “Gente, boa tarde. Alexandre,1 1 Neste texto, ficcionalizei e mantive em itálico a maior parte dos nomes próprios. Embora os casos aqui discutidos sejam facilmente encontráveis on-line, preferi a ficcionalização para evitar que as identidades dos sujeitos sejam mais uma vez expostas ou que determinados agentes alcancem este artigo a partir da busca on-line por seus nomes. Preservei no artigo, porém, os nomes originais de algumas pessoas públicas - não envolvidas diretamente nos casos - e de Tomás Agra e Carlos Eduardo Madeira, integrantes do setor de Direitos Humanos do MST-PE que, consultados por mim, optaram estrategicamente pela visibilidade. dirigente da regional de Rio das Nuvens, me ligou informando estar sendo perseguido.” Advogado do MST, Tomás Agra contava aos demais integrantes do setor que Alexandre, um militante do movimento, procurou-o para dizer que se achava ameaçado de morte. Nos áudios que enviou a Tomás na manhã daquele sábado, e que foram repassados ao nosso grupo, o sem-terra explicava que “a gente tá aqui com uma ocupação nossa, que a gente ocupou no dia 11 de abril, e a gente tá com um processo de enfrentamento aqui muito grande”. Segundo Alexandre, tratava-se da ocupação das terras de um engenho de 1850 hectares pertencente à Força e Indústria, uma tradicional usina de cana-de-açúcar fundada, de acordo com o site da empresa, no final do século XIX, ainda em 1895. “A gente tá com 250 famílias dentro do acampamento e resistindo à Usina. Os vigias andam tudo armado de pistola. Tem inclusive policiais comprados da cidade que trabalham pra PM e também trabalham fazendo pistolagem pra Usina”. Alexandre então relatou que, alguns dias antes, pistoleiros tentaram entrar no acampamento à noite, “pra atacar as famílias”. Estavam em dois ou três carros. “Não conseguiram porque as famílias tão preparadas e nas vigílias dorme muita gente.” Mas, conforme explicava nas mensagens de áudio, as ameaças estavam-se tornando cada vez mais próximas e perigosas. No final da manhã do dia anterior ao contato com Tomás, na sexta-feira, Alexandre havia sido perseguido durante aproximadamente uma hora por três homens em um carro branco. Dois desses homens desceram do veículo e tentaram aproximar-se do sem-terra quando ele saía de uma lanchonete no centro da cidade de Rio das Nuvens.2 2 Rio das Nuvens é um município com população estimada de aproximadamente 23 mil pessoas, situado na Zona da Mata Sul de Pernambuco, uma região historicamente comprometida com a monocultura da cana-de-açúcar. Dista 96 km da capital do estado, Recife. Ao se dar conta da presença dos homens, Alexandre montou em sua motocicleta e acabou conseguindo despistar o carro e seu motorista, mas não sem antes fotografar o veículo branco cuja imagem enviou para Tomás, seguida de um áudio em que dizia: “Olha, esse carro aí é o que tava me seguindo. Os pistoleiros tão trocando de carro todo dia, tá entendendo? Ontem à noite, eles vieram aqui na casa onde eu tava morando, encapuzados, me procurando. Aí a ideia é que tão atrás de mim já, os pistoleiros da Usina. Vê aí o que é que tu faz, joga pra frente, joga pro Estado. Vê como tu faz aí.”

Segunda nota de campo

[Noite do sábado, 24 de abril de 2021.] Às 21h23, o telefone alertou a chegada de uma mensagem de Vicente Gaspar, membro da direção estadual do MST de Pernambuco. Os acontecimentos da tarde me levaram a imaginar, de pronto, que Vicente quisesse saber notícias de Alexandre e dos resultados de nossas mobilizações em torno do caso. Ao abrir o WhatsApp, no entanto, entendi que se tratava de um problema diferente. É que Vicente me reencaminhava um arquivo de vídeo e duas mensagens de texto enviados a ele por um militante da Pastoral da Juventude Rural e que aludiam à prisão ocorrida naquela mesma tarde, no município de Bromélia,3 3 Localizada no Agreste, a 230 km do Recife, Bromélia possui pouco mais de 141 mil habitantes e consiste no terceiro município mais populoso do interior do estado de Pernambuco. de um senhor chamado Marcos José Ferreira Lima. Marcos é motorista de um carro de som e teria sido contratado por Rodrigo, um jornalista, para transitar pela cidade transmitindo uma vinheta, quase um jingle de campanha eleitoral, com críticas ao presidente da República e a seu governo. No vídeo encaminhado por Vicente - e que, àquele momento, já circulava intensamente em redes sociais e grupos de WhatsApp de Bromélia -, o vereador Pedro Leme aparece diante da delegacia de polícia da cidade explicando que, desde o dia anterior, vinha recebendo várias denúncias de que um carro de som estaria “caluniando, difamando, imputando crime ao presidente da República”. Segundo ele próprio conta no vídeo, o vereador teria encontrado o carro, dado voz de prisão ao seu motorista e, ao lado de policiais militares, levado Marcos à delegacia procurando acusá-lo do cometimento do crime previsto no artigo 26 da Lei de Segurança Nacional, a Lei nº 7.170/1983: “Art. 26. Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação. Pena: reclusão, de 4 a 12 anos” (Brasil, [2021a])BRASIL. Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983. Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, [2021a]. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm . Acesso em: 15 ago. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
. Na delegacia, lavraram um boletim de ocorrência em que Marcos aparece como “autor” e Jair Bolsonaro, o presidente da República, consta como “vítima”. Por sua vez, as duas mensagens de texto que Vicente me encaminhou estavam assim escritas: “Gaspar, estamos precisando de apoio dos juristas”; “Na tarde de hoje, fomos surpreendidos pela ação protagonizada pelo vereador Pedro Leme (DEM), bolsonarista, e não estamos sabendo por onde iniciar essa articulação em defesa da democracia e dos trabalhadores/as”.

Apresentação

Neste ensaio etnográfico, busco perspectivar a crise democrática brasileira a partir do cotidiano do grupo de advogados e assessores jurídicos populares que integram o setor de Direitos Humanos do MST de Pernambuco, a que pertenço e cuja atuação se dá em contextos políticos intensa e historicamente marcados por violência e criminalização. Para tanto, tomo como ponto de partida os acontecimentos daquele sábado de 24 de abril de 2021 e os seus desdobramentos para tentar dimensionar a crise democrática nos interstícios de processos de Estado em que se atualizam e rearticulam diferentes temporalidades, as quais remetem desde à imagem de um passado colonial, materializado em latifúndios e engenhos de cana-de-açúcar e em jagunços e pistoleiros armados,4 4 “Jagunços”, “pistoleiros” e “vigias” são categorias êmicas que se confundem nas narrativas dos integrantes do MST e mesmo nas denúncias empreendidas por advogados e ativistas de direitos humanos. De regra, compreende-se “jagunço” como aquele que presta serviço de vigilância e proteção aos proprietários e suas terras. São vigias irregulares, portanto. Um “pistoleiro”, por sua vez, pode ser tido como um homem contratado especificamente para crimes de pistolagem, mortes ou ameaças. Entretanto, desde que porte uma “pistola” ou uma arma de fogo qualquer, não é incomum que um jagunço seja chamado de pistoleiro, algo que também pode acontecer com policiais contratados irregularmente para o trabalho de vigilância privada. Para discussões a respeito, ver Barreira (1998) e Ayoub (2015). até à imagem de um mais recente passado ditatorial consubstanciado, por exemplo, no acionamento da Lei de Segurança Nacional e em práticas de censura e repressão política. Com isso, pretendo divisar determinadas contradições de nossa frágil experiência democrática. Se, sob certo ponto de vista, essas contradições sugerem desencaixes, incompletudes e promessas não cumpridas de integração social e cidadania, podem porém também sugerir atritos, conflitos e confrontos, tudo aquilo que participa das condições de possibilidade para a formação de alianças, formas de organização e reivindicação, modos de constituição de sujeitos políticos que oportunizam mensagens de WhatsApp em um dia de sábado porque permanece urgente “iniciar essa articulação em defesa da democracia e dos trabalhadores/as”.

Existente em seu atual formato ao menos desde 2013, o setor de Direitos Humanos do MST de Pernambuco reúne advogados, professores universitários e estudantes que acompanham, com maior ou menor intensidade, de regra sem qualquer remuneração, o fluxo de processos judiciais relacionados ao movimento e a suas pautas políticas.5 5 Em abril de 2021, o setor de Direitos Humanos do MST de Pernambuco era composto por três advogados, por um estudante de direito, por uma professora e um professor universitários e por um integrante da direção estadual do MST. À exceção deste último, que não possui formação jurídica, e de um dos advogados, que é filho de assentados e realizou sua graduação na turma do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) da Universidade Federal de Goiás, todos os demais integrantes do setor estudaram na Faculdade de Direito do Recife, da Universidade Federal de Pernambuco, e participaram de grupos de movimento estudantil e de juventude e/ou de assessoria jurídica universitária popular, mesmo que em diferentes épocas. Tais processos envolvem sobretudo ações de reintegrações de posse, casos de criminalização de militantes e de violências contra eles cometidas. Além dessa atuação estritamente judicial, os membros do setor de Direitos Humanos do MST também costumam incidir junto a diferentes instâncias estatais - como órgãos governamentais e do Ministério Público, conselhos de participação popular e comissões e mandatos legislativos - relacionados às políticas de direitos humanos e de reforma agrária. Trata-se, sendo assim, do “Vê aí o que é que tu faz, joga pra frente, joga pro Estado”, de que falava Alexandre em sua mensagem de áudio a Tomás e que supõe a mobilização de competências e capitais simbólicos específicos, capacidade de trânsito entre aparatos burocráticos e de acesso a certos agentes de Estado.

Portanto, no cotidiano das atividades do setor, movemo-nos no interior da linguagem dos direitos, provocando e respondendo a lógicas de Estado, operando mediações e traduções. Mas de tal modo que, embora a maioria dos integrantes do setor de Direitos Humanos adote posturas críticas ao sistema de justiça, embora haja certa compreensão partilhada de que é “na política”, e não “no direito” isoladamente, que a resolução dos problemas se dá, nós acabamos por assumir em nossa atuação o pressuposto de que as dimensões jurídicas dos processos de Estado importam substancialmente.6 6 Há no país, especialmente a partir das faculdades de direito, um interessante campo de discussões sobre “advocacia popular” e “assessoria jurídica popular” - categorias próximas, mas não substituíveis uma pela outra - e que não raro tematiza as correlações entre direito e política. As teses de doutorado de Luiz Otávio Ribas (2015) e Ana Lia Almeida (2015) estão certamente entre os melhores exemplos dos trabalhos desse campo. E isso quer nós queiramos ou não, do que se depreende a inexorável ratificação do que Pierre Bourdieu (2007)BOURDIEU, P. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. chamou de “a força do direito” ou, tão inescapável quanto, daquilo que Judith Butler (2003)BUTLER, J. O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, Campinas, n. 21, p. 219-260, 2003. denominou de “desejo pelo desejo do Estado”. Claro, essa depreensão não é particular aos grupos de assessoria jurídica popular. Pelo contrário, ela dá a tônica das reivindicações por direitos protagonizadas por diversos movimentos sociais, que formulam suas pautas em íntima correlação com processos de Estado (Aguião, 2018AGUIÃO, S. Fazer-se no “Estado”: uma etnografia sobre o processo de constituição dos “LGBT” como sujeitos de direitos no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018.; Efrem Filho, 2017aEFREM FILHO, R. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. 2017. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017a.; Loera, 2015LOERA, N. R. Mecanismos sociais da reforma agrária em São Paulo pelo viés etnográfico. Lua Nova, São Paulo, n. 25, p. 27-56, 2015.; Sigaud, 2005SIGAUD, L. As condições de possibilidade das ocupações de terra. Tempo Social, São Paulo, v. 17, n. 1, p. 255-280, 2005.). Entretanto, penso que a competência própria para “o direito” - seja como campo de conhecimento, linguagem ou complexo de instituições, aparatos e agentes estatais - e o manejo dos seus códigos peculiares comprometem ainda mais densamente um grupo de advogados e assessores jurídicos populares àquela força e àquele desejo.

Por isso, antes de seguir adiante, parece-me importante notar que o desenvolvimento da reflexão a que me proponho neste texto requer de mim o cuidado metodológico de reconhecer a indelével normatividade presente em nossa atuação. Isso porque “jogar pra frente, jogar pro Estado” e articular-se “em defesa da democracia e dos trabalhadores/as” são ações que arregimentam projetos, prescrições e moralidades, distintos modos de “dever ser” por meio dos quais se abrem disputas e investimentos em torno de noções como Estado, democracia e trabalhadores. Assim, a meu ver, perspectivar a atual crise democrática a partir do cotidiano do setor de Direitos Humanos do MST de Pernambuco demanda, seguindo Gabriel Feltran (2010FELTRAN, G. Periferias, direito e diferença: notas de uma etnografia urbana. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 53, n. 2, p. 565-610, 2010., p. 578, grifo do autor), “retirar o normativo dos locais de formulação das categorias analíticas, para situá-lo como mais um objeto de análise, mais uma representação ou discurso a compreender”.

Tal movimento metodológico consiste em algo que a etnografia permite, vez que se volta à observação tanto de discursos quanto de práticas. No caso das discussões que aqui desenvolvo, talvez seja possível falar em autoetnografia, como Mauricio Fiore (2020)FIORE, M. Substâncias, sujeitos, eventos: uma autoetnografia sobre uso de drogas. Rio de Janeiro: Telha, 2020. a entende, visto que minhas experiências representam elas mesmas fonte de dados, ao lado daquilo que tenho vivido junto aos demais membros do setor de Direitos Humanos do MST.7 7 Parte relevante dessas experiências compartilhadas ocorre on-line, como é possível perceber ao longo deste artigo. Dá-se, afinal, a ratificação do contínuo on-line-off-line, a que se referem Miller e Slater (2004), cada dia mais inescapável à vida e, portanto, à etnografia. As discussões aqui desenvolvidas, contudo, não se propõem a nada perto de uma antropologia digital ou etnografia on-line, metodologias de maior complexidade e que já encontram significativas contribuições na antropologia brasileira (Cesarino, 2021a; Leitão; Gomes, 2017; Parreiras, 2012). Bem mais rudimentar, a metodologia empregada para a elaboração deste texto toma aquele contínuo como uma inexorabilidade do contexto etnográfico e, em certos momentos, considera analiticamente os seus efeitos nas práticas dos sujeitos implicados nos conflitos aqui abordados, como na performance do vereador Pedro Leme, conforme discutirei adiante. Em outras oportunidades, como na pesquisa que subsidiou minha tese de doutorado e alguns trabalhos posteriores (Efrem Filho, 2017aEFREM FILHO, R. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. 2017. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017a., 2019EFREM FILHO, R. “Os evangélicos” como nossos “outros”: sobre religião, direitos e democracia. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 39, n. 3, p. 124-151, 2019.; Efrem Filho; Mello, 2021EFREM FILHO, R.; MELLO, B. M. de. A renúncia da mãe: sobre gênero, violência e práticas de Estado. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 24, n. 62, p. 323-349, 2021.), tais experiências garantiram “entradas em campo” e o acesso inicial a interlocutores de pesquisa. Eu era, afinal, o “professor comprometido com o movimento”, alguém em quem se podia confiar, ainda que em cenários de violência e criminalização. Agora, porém, são as práticas geradoras daquele comprometimento o que - sendo experienciado, observado e estranhado - engendra propriamente a análise. Este artigo não resulta de um projeto de pesquisa facilitado por compromissos políticos anteriores, portanto. No limite, ele advém da ação que compromete. Em outras palavras, este texto equivale a uma tentativa minha muito inicial, talvez não madura o suficiente, de encarar analiticamente essas experiências levando a sério sua potência político-analítica para a compreensão disso que nos cerca.

Ressonâncias e constrangimentos de Estado

Quando recebi as mensagens de Vicente Gaspar, do MST, na noite de 24 de abril de 2021, Marcos havia sido liberado pelo delegado de plantão há algumas horas, mas permanecia muito preocupado com o que poderia acontecer consigo e incomodado com os efeitos da repercussão midiática de sua prisão. O vídeo postado pelo vereador Pedro Leme nas redes sociais já alcançava algumas milhares de pessoas, adentrava grupos de WhatsApp em Bromélia e chegava a familiares e vizinhos de Marcos. Segundo me contou Darcy Marçal ainda naquela noite, Marcos temia perder oportunidades de trabalho. Darcy era então presidenta do diretório municipal do Partido dos Trabalhadores em Bromélia e covereadora do mandato coletivo Darcy da Gente. Ela, que conseguira meu número de telefone através de Vicente, estava também preocupada com o acontecido e com suas consequências, inclusive as jurídicas. Pediu então a Vicente o contato dos “juristas” próximos ao MST e, assim, chegou a mim. De pronto, eu tentei tranquilizá-la, ao menos quanto aos aspectos judiciais do problema. É que só muito dificilmente o gesto de Pedro Leme poderia ensejar a condenação ou prisão de Marcos.

Dava-se que, em 24 de abril de 2021, no momento em que o vereador deu voz de prisão ao motorista nas ruas de Bromélia, o país já havia testemunhado uma série de casos parecidos, em que aliados do presidente da República buscavam criminalizar seus críticos procurando enquadrá-los no artigo 26 da Lei de Segurança Nacional ou em alguma modalidade dos “crimes contra a honra” previstos no Código Penal.8 8 Um artigo de autoria de Ricardo Balthazar (2021), publicado na Folha de S. Paulo algumas semanas após a prisão de Marcos, listou 20 casos de pessoas interpeladas por acusações de crimes previstos na Lei de Segurança Nacional, sobremaneira em razão de críticas a Jair Bolsonaro. Por sua vez, um artigo de Igor Carvalho (2020), publicado em junho do ano anterior no Brasil de Fato, apontou que nos últimos 20 anos havia-se instaurado 155 inquéritos na Polícia Federal relativos à Lei de Segurança Nacional, sendo que 26% deles deram-se apenas nos 18 primeiros meses do governo Bolsonaro. Matéria de Marcelo Rocha (2021), também na Folha de S. Paulo, demonstrou que, dos 84 inquéritos com base na Lei de Segurança Nacional existentes na Polícia Federal, 26 tinham sido iniciados em 2019 e 51 em 2020. Desde figuras públicas notáveis, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, até cidadãos desconhecidos do grande público, mas com posições de esquerda, como a professora Erika Suruagy, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, haviam sido acusados do cometimento de crimes contra a honra de Bolsonaro. Entre seus acusadores achavam-se agentes de Estado de alta estatura, de regra muito próximos à cúpula do governo federal, como ministros9 9 Inicialmente, afirmou-se que o então ministro Sérgio Moro acionara ele mesmo a polícia contra Lula, o que depois foi desmentido em nota pública do próprio Ministério da Justiça, que “corrigiu” a informação divulgada anteriormente (Lula…, 2020; Ministério…, 2020). Já André Mendonça, que sucedeu Moro no ministério, chegou a ser questionado, durante sua sabatina no Senado a propósito de seu ingresso no Supremo Tribunal Federal, acerca do uso político da Lei de Segurança Nacional contra adversários do bolsonarismo (André Mendonça…, 2021). e um secretário-executivo do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, e o vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente, que representou contra o youtuber Felipe Neto numa delegacia da Polícia Civil no Rio de Janeiro.

Em nenhum desses casos, a pessoa acusada foi processada judicialmente, tampouco condenada. Na verdade, os inquéritos policiais foram sendo paulatinamente arquivados, ou a pedido do delegado da Polícia Federal, como no caso de Lula (Lula…, 2020LULA depõe à Polícia Federal em inquérito que apura crime contra a honra de Bolsonaro. G1, [s. l.], 20 fev. 2020. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/02/20/lula-depoe-a-pf-em-inquerito-que-apura-crime-contra-contra-a-honra-de-bolsonaro.ghtml . Acesso em: 2 fev. 2022.
https://g1.globo.com/politica/noticia/20...
), ou a pedido de procuradores da República, como se deu no caso de Erika Suruagy (Balthazar, 2021BALTHAZAR, R. Conheça 20 atingidos por investigações de crimes da Lei de Segurança Nacional e críticas a Bolsonaro. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 maio 2021. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/conheca-20-atingidos-por-investigacoes-de-crimes-da-lei-de-seguranca-nacional-e-opositores-de-bolsonaro.shtml . Acesso em: 2 fev. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021...
; Rocha, 2021ROCHA, M. Sob Bolsonaro, Ministério da Justiça tem atuação ideológica escorada na Lei de Segurança Nacional. Folha de S. Paulo, São Paulo, 10 maio 2021. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/sob-bolsonaro-ministerio-da-justica-tem-atuacao-ideologica-escorada-na-lei-de-seguranca-nacional.shtml . Acesso em: 2 fev. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021...
). Houve ainda decisões judiciais que, a propósito de habeas corpus impetrados por advogados de defesa, suspenderam os inquéritos e impediram que os acusados fossem obrigados a depor junto à polícia, como aconteceu com Felipe Neto (Balthazar, 2021BALTHAZAR, R. Conheça 20 atingidos por investigações de crimes da Lei de Segurança Nacional e críticas a Bolsonaro. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 maio 2021. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/conheca-20-atingidos-por-investigacoes-de-crimes-da-lei-de-seguranca-nacional-e-opositores-de-bolsonaro.shtml . Acesso em: 2 fev. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021...
). Os agentes estatais responsáveis por esses arquivamentos e suspensões justificaram-nos a partir, principalmente, da reivindicação do direito de liberdade de expressão, algo que eu também imaginava ser aplicável ao caso de Marcos.

Mas a decisão judicial acerca do inquérito contra Felipe Neto influenciava particularmente a minha impressão, explicada a Darcy Marçal na conversa por telefone que tivemos naquela noite de sábado, a respeito da baixa probabilidade de Marcos ser processado judicialmente e condenado: em sua decisão, a juíza Gisele Guida de Farias suspendia o inquérito contra Felipe Neto sob o argumento legal um tanto óbvio de que a competência para investigar crimes da Lei de Segurança Nacional contra o presidente da República era da Polícia Federal, e não da Polícia Civil (Souza, 2021SOUZA, R. Lei de Segurança Nacional é usada para intimidar opositores. Correio Braziliense, Brasília, 19 mar. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/03/4912761-lei-de-seguranca-nacional-e-usada-para-intimidar-opositores.html . Acesso em: 2 fev. 2022.
https://www.correiobraziliense.com.br/po...
), o que a priori um delegado de polícia deveria saber. Enfim, ao dar voz de prisão ao motorista Marcos, o vereador Pedro Leme levou-o, com ajuda de policiais militares, à delegacia da Polícia Civil de Bromélia, ou seja, incidiu no mesmo “equívoco jurídico” em que incorrera Carlos Bolsonaro.

Entretanto, àquele momento, embora essa minha impressão me levasse a tranquilizar Darcy, eu mesmo não estava absolutamente tranquilo. É que, conhecendo a propensão à criminalização característica às nossas lógicas de Estado, eu temia alguma complicação. Em verdade, eu sabia que, para que essa complicação se desse, bastaria a existência de um simples servidor público profundamente comprometido com um suposto senso de cumprimento de dever, alguém que não poderia permitir que a notícia de um “crime” - “caluniar ou difamar o presidente da República”… - não fosse investigada e processada. O mal, nós sabemos desde Hannah Arendt (1999)ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999., é banal. Seus perpetradores não precisam ser soberanos, sujeitos concentradores de poder ou decisivamente mal-intencionados, tampouco monstruosos. São, no mais das vezes, operadores da burocracia que, quando voltados ao sistema de justiça criminal, tendem a pressupor o crime desde a sua mera enunciação, endossando e retroalimentando processos de criminalização que se dão em “linhas de montagem”, como Manuela Abath Valença (2012)VALENÇA, M. A. Julgando a liberdade em linha de montagem: um estudo etnográfico do julgamento dos habeas corpus nas sessões das câmaras criminais do TJPE. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012. percebeu, e que se realizam reciprocamente à gestão de corpos racializados e de regra marcados por relações desiguais de classe, gênero, sexualidade, geração e territoriais, como um cada vez maior conjunto de etnografias têm perquirido (Efrem Filho, 2017bEFREM FILHO, R. Os meninos de Rosa: sobre vítimas e algozes, crime e violência. Cadernos Pagu, Campinas, n. 51, e175106, 2017b.; Farias, 2014FARIAS, J. Governo de mortes: uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro. 2014. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.; Maldonado, 2020MALDONADO, J. Jogando meu corpo no mundo: relações entre marcadores sociais da diferença e conflito urbano. 2020. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2020.; Mello, 2019MELLO, B. M. de. Na selva de pedras: as performances de gênero e sexualidade no conflitos entre prostituição, crime e Estado. 2019. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas) - Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2019.).

Além disso, se o bem-intencionado dever de ofício dos agentes do sistema de justiça criminal me preocupava de antemão, as peculiaridades do caso de Marcos não me preocupavam menos. Dava-se que aquele sábado de abril nos aproximava de uma prática criminalizante que, até então, víamos partir das mais altas esferas governamentais, em especial de membros do Ministério da Justiça e da Segurança Pública e do próprio filho do presidente da República. O exemplo mais próximo, o caso da professora Erika Suruagy, da associação de docentes da UFRPE, também resultara da iniciativa de um desses sujeitos. Agora, porém, a ordem de prisão partira de um vereador de um município pernambucano de pouco mais de 140 mil habitantes e se voltava a um motorista de carro de som, o que de certo modo apontava para a capilarização da prática criminalizante ou, mais complexamente, para a sua “ressonância”.

Aqui tomada de empréstimo dos trabalhos de Fábio Mallart (2019MALLART, F. O arquipélago. Tempo Social, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 59-79, 2019., p. 70), a noção de ressonância articula variação e continuidade e implica “lógicas, enunciados, práticas e políticas que vão se atualizando em espaços diferenciais”. A seu modo, o gesto do vereador Pedro Leme ressoava uma prática criminalizante inicialmente mobilizada por agentes centrais do governo Bolsonaro ou do bolsonarismo. Essa ressonância, contudo, não se limitava ao acionamento da Lei de Segurança Nacional com vistas à criminalização do dissenso e à censura. Ela arregimentava identidades e pautas, performances públicas e uma linguagem de mobilização política facilmente reconhecíveis naqueles agentes centrais e em seu espectro de alianças.

Emblemática dessa ressonância é, por exemplo, a descrição de Pedro Leme no site da Câmara de Vereadores de Bromélia. “Natural de Bromélia, o vereador Pedro Leme é Empresário, Cristão Evangélico, Patriota e Conservador”. À época filiado ao Democratas (DEM), a descrição apresenta-o ainda como “ligado politicamente ao Presidente Jair Bolsonaro”, o que, segundo afirma, notabiliza-o por buscar investimentos para a cidade junto ao governo federal, inclusive “a autorização para implantação da Escola Cívico-Militar em Bromélia”. A descrição no site destaca, além disso, o fato de Pedro Leme funcionar, na Câmara, como relator da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos - presidida pela covereadora Darcy da Gente, do PT - e como membro da Comissão de Defesa Social.

A descrição do vereador converge as diferentes linhas de força que, conforme as análises de Ronaldo de Almeida (2019)ALMEIDA, R. de. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 38, n. 1, p. 185-213, 2019., confluem para a expansão do conservadorismo no país: as linhas econômica, securitária, moral e societal. De certo, Pedro Leme não é o único “empresário” ou o único “cristão evangélico” dentre os 17 vereadores de Bromélia. Essas identidades ou referências são partilhadas por outros parlamentares, que as apresentam, aqui e ali, também em suas descrições no site da Câmara e as replicam em suas práticas políticas, o que faz com que Darcy Marçal haja classificado, em uma conversa que tivemos já a propósito da escrita deste texto, a composição legislativa municipal como “bastante conservadora”, atravessada por vereadores filiados ao PSL, ao PP e ao PTB,10 10 Como se sabe, o Partido Social Liberal (PSL), criado ainda em 1994, foi aquele que emprestou o número - “17” - para a candidatura à presidência de Jair Bolsonaro em 2018. Recentemente, fundiu-se ao Democratas (DEM), antigo Partido da Frente Liberal (PFL), fundado em 1985, para a formação do partido União Brasil. Por sua vez, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) data de 1945 e o Progressistas (PP) foi criado em 1995. As cinco siglas conformam parte relevante da base de apoio do governo Bolsonaro no Congresso Nacional. Curiosamente, Jair Bolsonaro foi filiado a cada uma delas, em algum momento de sua já longa carreira político-eleitoral. Depois de exercer a presidência, desde novembro de 2019, sem vínculo partidário oficial, Bolsonaro filiou-se ao Partido Liberal (PL) para disputar as eleições de 2022. mas também por vereadores pertencentes a “siglas progressistas, como o PSB, por exemplo, que vieram de campanhas inteiramente feitas em igrejas protestantes”. Pedro Leme é, entretanto, o único vereador de Bromélia autodeclarado bolsonarista, como a própria Darcy também me contou.

Essa assunção pública, talvez arquetípica, da identidade bolsonarista ressoa uma agenda de pautas políticas características. Uma rápida passagem pelo perfil do vereador no Instagram o demonstra. Multiplicam-se lá postagens contra a obrigatoriedade da vacinação infantil para a Covid-19, homenagens póstumas a Olavo de Carvalho, campanhas anticomunistas, discursos contra o fechamento das igrejas durante a pandemia, preleções em defesa dos “sexos biológicos existentes no planeta” e toda sorte de pânico moral relativo a expressões como ideologia de gênero, pedofilia, aborto e incesto, controvérsias públicas relativas a gênero e sexualidade fundamentais para a consolidação das condições de possibilidade da eleição de Jair Bolsonaro em 2018, como Vanessa Leite (2019)LEITE, V. “Em defesa das crianças e da família”: refletindo sobre discursos acionados por atores religiosos “conservadores” em controvérsias públicas envolvendo gênero e sexualidade. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 32, p. 119-142, 2019. bem percebeu.

No entanto, além das pautas políticas, a referida assunção identitária ressoa reciprocamente um modus operandi tão característico quanto. De acordo com o que Darcy Marçal me relatou na conversa a que me referi acima, quando o vereador abordou Marcos naquela tarde de sábado de abril de 2021, seu carro de som sequer tocava a música com críticas a Bolsonaro. Marcos havia sido contratado por apenas uma hora para realizar o serviço, sobretudo nas ruas de bairros periféricos da cidade. Ele, portanto, divulgava mídias comerciais quando Pedro Leme trancou o carro de som em plena avenida e, segundo Darcy, “já veio um assessor segurando um celular, outro assessor gritando que ele ia ser preso, que iam chamar a polícia”. Essa cena, como outras disponíveis nas redes sociais do vereador, concerne a uma performance combativa, denuncista e estridente, que sugere força e virilidade, algo próximo, mesmo que em menor grau, ao que Patricia Birman e Carly Machado (2012)BIRMAN, P.; MACHADO, C. A violência dos justos: evangélicos, mídia e periferias da metrópole. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 27, n. 80, p. 55-69, 2012. perceberam ao se deparar com as práticas religiosas de salvação conduzidas pelo pastor Marcos Pereira, da Assembleia de Deus dos Últimos Dias. Essas práticas se viam intensamente dispostas à midiatização, possivelmente apenas se conjugavam em correlação à produção e à circulação de imagens.

Talvez ainda mais proximamente, essa inclinação para a produção de conteúdo alarmista, de tom persecutório ou conspiratório, suficientemente capaz de projetar um algoz do presidente da República num motorista de carro de som, relacione-se àquilo que Letícia Cesarino (2019)CESARINO, L. Identidade e representação no bolsonarismo: corpo digital do rei, bivalência conservadorismo-neoliberalismo e pessoa fractal. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 63, n. 3, p. 530-557, 2019. denominou de “memética bolsonarista”. Segundo Cesarino, caracteriza essa memética, dentre outros elementos, o estabelecimento de canais de comunicação direta entre a liderança política e seu público, dispensando a imprensa e a ciência de suas funções como instâncias mediadoras, então tomadas como ilegítimas. A forte presença on-line, sobretudo em redes sociais e grupos de aplicativos de conversação, como o WhatsApp e o Telegram, tem sido imprescindível para o desenvolvimento dessa comunicação direta. É assim, penso, que aquele vídeo de Pedro Leme diante da delegacia de polícia, acusando Marcos de estar “caluniando, difamando, imputando crime ao presidente da República”, acaba chegando aos telefones e grupos de WhatsApp de familiares e vizinhos do motorista do carro de som.

A linguagem on-line marca e incita tão decisivamente esse modo de fazer política que levou Cesarino (2019)CESARINO, L. Identidade e representação no bolsonarismo: corpo digital do rei, bivalência conservadorismo-neoliberalismo e pessoa fractal. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 63, n. 3, p. 530-557, 2019. a manejar o conceito de “populismo digital”, avançando sobre o argumento de Ernesto Laclau (2013)LACLAU, E. A razão populista. Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Três Estrelas, 2013. em torno da “razão populista”. Esse novo populismo apresenta traços próprios, resultantes das mediações digitais, dentre eles a possibilidade de multiplicação do “corpo digital do rei”, como Cesarino (2019)CESARINO, L. Identidade e representação no bolsonarismo: corpo digital do rei, bivalência conservadorismo-neoliberalismo e pessoa fractal. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 63, n. 3, p. 530-557, 2019. o chamou. Durante a última campanha eleitoral presidencial, esse corpo digital ter-se-ia formado pelos apoiadores da liderança cujo corpo físico havia sido debilitado, o Jair Bolsonaro após o advento da facada, em 6 de setembro de 2018.

[…] o mecanismo do populismo digital não colocou em relação líder e povo enquanto sujeitos políticos preexistentes, mas os (re)constituiu enquanto tais: num sentido bastante concreto, o líder Bolsonaro era esse corpo digital, e não existiria sem ele. O atentado a faca consumou o processo em que corpo do líder e corpo político - relação de equivalência amplamente ancorada na simbologia da nação brasileira - tornaram-se metáforas um do outro: o corpo (Bolsonaro, o Brasil) foi ferido e está sob ameaça; é preciso união e pronta ação para defendê-lo do inimigo comum (a corrupção, a esquerda, etc.). (Cesarino, 2019CESARINO, L. Identidade e representação no bolsonarismo: corpo digital do rei, bivalência conservadorismo-neoliberalismo e pessoa fractal. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 63, n. 3, p. 530-557, 2019., p. 534).

A sua maneira, o vereador Pedro Leme ressoa a memética bolsonarista, põe-se a produzir conteúdo on-line ao seu estilo, encarna a liderança capaz de falar imagética e explicitamente aos seus e incorpora a defesa do soberano ameaçado em sua honra. Essa ressonância comezinha, ao nível do chão da rua em que o carro de som de Marcos foi trancado, nas mensagens e arquivos de vídeo compartilhados em grupos de WhatsApp de familiares e vizinhos em Bromélia, conformava parte relevante do que me fazia não estar absolutamente tranquilo quanto às possíveis consequências jurídicas, para Marcos, do gesto do vereador. É que, mesmo havendo aquela significativa quantidade de inquéritos de casos semelhantes arquivados país afora, bastaria a presença de um ou outro agente estatal propenso a também ressoar alguma dimensão da memética bolsonarista para que a situação de Marcos se complicasse. Foi isso, afinal, o que nos parecia haver acontecido com o delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro que iniciou o inquérito contra Felipe Neto.

Alguns dias após o incidente provocado por Pedro Leme, o delegado de polícia de Bromélia resolveu pela incompetência da Polícia Civil para o tratamento do problema. De acordo com o que a covereadora Darcy Marçal me contou, porém, os autos do procedimento foram remetidos à Polícia Federal de Caruaru, a mais próxima. Aparentemente, portanto, aquele agente estatal compreendeu - sob alguma justificativa burocrática alusiva seja àquele bem-intencionado dever de ofício, seja à ressonância do bolsonarismo - que as acusações do vereador Pedro Leme contra o motorista Marcos consubstanciavam razão suficiente para a provocação de uma investigação a ser desenvolvida por policiais federais. A tal razão, por sua vez, somente poder-se-ia materializar na letra da música divulgada no carro de som. Era através da letra da música, afinal, que Marcos teria supostamente caluniado ou difamado o presidente da República Jair Bolsonaro. Aqui está a letra da música em questão:

Bolsonaro é cego Fala mal de vacina E gasta o nosso dinheiro Comprando cloroquina Não ouve a ciência Não olha pro seu povo Um ano de pandemia E troca ministro de novo Deus é a vida Bolsonaro é a morte Não compra as vacinas Deixa o povo à própria sorte Essa conta só aumenta E já pagamos muito caro Por tanto despreparo O Brasil já não aguenta Então vamos deixar claro Com grito na garganta É fora Bolsonaro! Fora Bolsonaro Meu país quer crescer Fora Bolsonaro Acabou pra você Fora Bolsonaro Meu país quer crescer Fora Bolsonaro Acabou pra você Quatro mil mortos por dia E a conta vai aumentando Enquanto a nossa economia Também vai desmoronando Desemprego só aumenta E o Bolsonaro é o culpado A carne e o feijão e arroz A cada dia tá mais caro Isolamento social já teria acabado Se não fosse o desgoverno De alguém tão despreparado Essa conta só aumenta E já pagamos muito caro Por tanto despreparo O Brasil já não aguenta Então vamos deixar claro Com grito na garganta É fora Bolsonaro! Fora Bolsonaro Meu país quer crescer Fora Bolsonaro Acabou pra você Fora Bolsonaro Meu país quer crescer Fora Bolsonaro Acabou pra você Diz que acabou Com a corrupção Enquanto seu filho compra Uma enorme mansão Intervém na Federal Não quer ser investigado Quem não deve não teme Mas esse deve e é culpado Foi o pior presidente Que este país já viu Já chega, Bolsonaro Vai pra longe do Brasil Essa conta só aumenta E já pagamos muito caro Por tanto despreparo O Brasil já não aguenta Então vamos deixar claro Com grito na garganta É fora Bolsonaro! Fora Bolsonaro Meu país quer crescer Fora Bolsonaro Acabou pra você Fora Bolsonaro Meu país quer crescer Fora Bolsonaro Acabou pra você

Em um trabalho anterior, Breno Mello e eu nos valemos da noção de “constrangimento de Estado” na tentativa de compreender processos de produção de Estado que provocam desconforto e embaraço, assim como restringem, comprimem e induzem sujeitos e suas possibilidades de ação (Efrem Filho; Mello, 2021EFREM FILHO, R.; MELLO, B. M. de. A renúncia da mãe: sobre gênero, violência e práticas de Estado. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 24, n. 62, p. 323-349, 2021.). Esses processos tanto são risíveis quanto perigosos. Tanto nos fazem duvidar de sua verossimilhança quanto nos insultam e ameaçam. Em certo sentido, eles se aproximam daquilo que Camila Fernandes (2017FERNANDES, C. Figuras de causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017., p. 214) chamou de “pedagogia do constrangimento”, pois também remetem a “rituais ordinários de rebaixamento dos outros” que integram práticas de gestão e negação de direitos. Mas o fazem - é isto que pretendo ressaltar - acionando o ridículo e o burlesco, o inacreditável e o imponderável.

A assunção pública da probabilidade, mínima que seja, de que a letra11 11 A música - que eu recebi em arquivo de áudio no WhatsApp - pode ser escutada também no YouTube (cf. Música…, 2021). Não consegui descobrir, contudo, a sua autoria. Antes de a letra ser propriamente cantada, o arquivo de áudio anuncia: “Assista aos vídeos do canal Plantão Brasil no YouTube.” Essa e outras informações disponíveis on-line me levam a crer, portanto, que a música resultou de Thiago Reis, o responsável pelo referido canal, que atualmente agrega mais de 683 mil seguidores. acima transcrita possa materializar um crime lesivo à segurança nacional representa, nesses termos, um constrangimento de Estado. Algo semelhante sucede diante da acusação de que as críticas a Jair Bolsonaro expostas pelo ex-presidente Lula ou pelo youtuber Felipe Neto reúnem condições para ferir a honra do presidente da República a ponto de representarem ameaça à segurança nacional ou à ordem política e social, os objetos da proteção da Lei de Segurança Nacional de 1983. Esses processos de Estado constrangem porque, risíveis e inverossímeis, confundem-nos o tempo - a invocação da Lei de Segurança Nacional em 2021… - e porque apontam que se a repetição performática desse tempo acaba aparentando farsa, não é menos trágica por isso.

Imagens do passado e crise democrática

Alexandre não foi o primeiro sem-terra perseguido e ameaçado de morte que eu conheci. Nesses 13 anos de dedicação à assessoria jurídica popular e a pesquisas junto a conflitos territoriais, deparei-me com mais casos assim do que posso contar nos dedos das mãos. Eu, portanto, quando li e ouvi as mensagens de Tomás naquele início de tarde de sábado de abril, já tinha alguma ideia do que deveria ser feito. E sabia que era muito pouco. De pronto, nós do setor de Direitos Humanos nos reportamos a integrantes da direção estadual do MST, que providenciaram, seguindo nossas sugestões, que Alexandre fosse retirado da região de Rio das Nuvens em poucas horas, o que garantiria emergencialmente o resguardo de sua vida. Depois, acionando contatos pessoais, nós conseguimos acesso à profissional de plantão do Programa Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PEPDDH), que nos orientou acerca da formalização do pedido de proteção e das medidas a serem adotadas junto às distintas esferas estatais. Nossos fortes receios quanto à polícia fizeram-nos decidir, porém, a não seguir com Alexandre para a delegacia de plantão. Embora estivéssemos convencidos de que seus relatos apontavam para um notável conjunto de crimes praticados por policiais e jagunços, desde ameaça e perseguição até porte ilegal de arma e constituição de milícia privada, o risco de que houvesse uma ordem de prisão desconhecida contra Alexandre e, pior, o risco de que na delegacia houvesse policiais comprometidos com os usineiros demandavam muita cautela. Isso se confirmaria nas semanas seguintes, com o adensamento do conflito.

É que em 27 de abril de 2021, um desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco deferiu um pedido liminar para suspender o despejo de uma área ocupada pelos sem-terra também em Rio das Nuvens. Esse despejo havia sido determinado liminarmente pela juíza da comarca local, em uma ação de reintegração de posse ajuizada pelos advogados de uma usina chamada Consórcio Sucroalcooleiro Nacional. Integrantes do setor de Direitos Humanos do MST, no entanto, recorreram dessa decisão ao tribunal. No recurso - um “agravo de instrumento” - os advogados dos sem-terra contestavam a legalidade da decisão judicial, sobretudo em razão do não cumprimento dos requisitos legais para a concessão liminar de um despejo nessas circunstâncias. Entre tais requisitos não cumpridos estariam a prova da data do esbulho, a citação por edital dos ocupantes não encontrados no local e a intimação de representantes do Ministério Público e da Defensoria Pública.12 12 Os requisitos legais acima citados acham-se no Código de Processo Civil, a Lei nº 13.105/2015, sobremaneira em seus artigos 178, 554, 561 e 562 (Brasil, [2022]). Boa parte deles - como a necessidade de intimação de representantes do Ministério Público e da Defensoria Pública em casos dessa natureza - resultam de históricas reivindicações de direitos que visam à minimização da violência no campo, em especial em episódios de despejos coletivos que envolvem muitas pessoas. Além disso, os advogados lembravam da existência de um “ato conjunto” do Tribunal de Justiça que suspendia a emissão de mandados de reintegração de posse em razão da pandemia de Covid-19. Em sua decisão, o desembargador relator acolheu as alegações presentes no agravo, sobretudo a discussão em torno da citação dos ocupantes,13 13 A citação é o ato processual que convoca o réu, o executado ou o interessado para fazer parte do processo judicial (ou da “relação processual”). Segundo o artigo 239 do Código de Processo Civil (Brasil, [2022]), a citação do réu é indispensável para a validade do processo. No caso de ações judiciais que têm como objeto a posse de determinado imóvel - as “ações possessórias” - e envolvem um grande número de pessoas entre os réus (o “polo passivo”), o artigo 554 do CPC impõe a realização de citação pessoal, pelo oficial de justiça, dos ocupantes encontrados no local, e de citação por edital dos demais ocupantes. Ademais, o artigo 554 também determina que o magistrado intime representante do Ministério Público e, se o caso compreender pessoas em situação de “hipossuficiência econômica”, também da Defensoria Pública. o que levou à suspensão do despejo, como dito. Em Rio das Nuvens, porém, a novidade da suspensão pareceu tornar-se rastilho de pólvora.

Chegavam-nos notícias de que circulava na cidade o rumor de que os sem-terra seriam expulsos dos dois engenhos ocupados “quer a justiça quisesse, quer não”. Alexandre, sempre em contato com Tomás, continuava externando suas preocupações com as ações de jagunços e policiais. Coincidentemente ou não, no dia seguinte à decisão do desembargador, em 28 de abril de 2021, um grupo de policiais militares apareceu no acampamento situado no engenho da usina Força e Indústria, aquele mesmo acampamento de que Alexandre falara nos áudios do sábado anterior, quando homens encapuzados o procuraram em sua casa. A juíza de Rio das Nuvens também havia concedido liminarmente o despejo nessa área e agora policiais fardados entravam nas terras, alarmando os acampados. O despejo, contudo, não aconteceu em 28 de abril. Mas alguns dias depois, em 6 de maio, a companheira de Alexandre, Alana, recebeu uma intimação para que ele comparecesse à delegacia de polícia de Mangueira14 14 Com população estimada de pouco mais de 15 mil pessoas, Mangueira é um município pernambucano vizinho a Rio das Nuvens. As terras dos engenhos e usinas aqui referidas, de tão grandes, algumas vezes trespassam as fronteiras dos dois municípios. Parte das intimações a Alexandre vem da delegacia de polícia de Mangueira, na qual atua um policial civil cujo nome foi reiteradamente citado nos documentos que enviamos a agentes e órgãos estatais de proteção aos direitos humanos. às 10h do dia 10, segundo disseram a ela, por conta da acusação de um suposto crime ambiental.15 15 Como notei em outra oportunidade (Efrem Filho, 2017a), é comum que, em meio a investidas de criminalização de sem-terra e sem-teto, acione-se a figura do crime ambiental, de regra atrelada a acusações de derrubada de árvores ou de queima de pneus. Intimações assim repetir-se-iam em agosto, novembro e dezembro de 2021, sem qualquer informação oficial acerca do porquê de sua existência, com algumas delas sendo dirigidas à própria Alana.

Em meio ao adensamento do conflito, nós do setor de Direitos Humanos nos mobilizávamos em margens estreitas. Em 3 de maio de 2021, alguns dias após a visita do grupo de policiais ao engenho da Força e Indústria, os advogados dos sem-terra recorreram da nova decisão liminar da juíza de Rio das Nuvens, expondo no recurso questões e argumentos bastante parecidos àqueles do primeiro agravo de instrumento. Nas semanas seguintes, também protocolaram representação às promotorias do Ministério Público de Pernambuco relacionadas às agendas de proteção aos direitos humanos e de conflitos agrários. Além disso, enviaram denúncia à Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados - presidida por Carlos Veras (PT-PE), um aliado histórico do MST no estado - e submeteram ofício ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), nesse caso requerendo incidência direta junto ao governo de Pernambuco e às delegacias de polícia de Rio das Nuvens e Mangueira. Em todos esses documentos, destacava-se a preocupação acerca das articulações entre policiais e pistoleiros na região e dos consequentes riscos vivenciados por Alexandre.

Em 19 de maio de 2021, entretanto, nós recebemos a notícia de outra ameaça de despejo do acampamento localizado no engenho da Força e Indústria. Logo pela manhã, Carlos Eduardo Madeira, um dos membros do setor, informou em nosso grupo de WhatsApp que postagens no perfil do MST-PE no Instagram alertavam que policiais haveriam dado até as 14h daquela quarta-feira para que o engenho fosse desocupado pelos sem-terra. Estudante da Faculdade de Direito do Recife, Carlos havia trabalhado nos dois agravos de instrumento e acompanhava de perto seu andamento no Tribunal de Justiça. O segundo agravo, relacionado ao engenho da Força e Indústria, restava parado desde o início do mês de maio, quando foi protocolado. O pedido liminar que poderia suspender o despejo, portanto, ainda não fora apreciado pelo desembargador responsável, mesmo 16 dias após a sua postulação.16 16 Segundo o artigo 1.019 do Código de Processo Civil (Brasil, [2022]), após o recebimento do agravo de instrumento, o magistrado relator poderá, em cinco dias, atribuir efeito suspensivo ao recurso. Nesse período, Carlos tentara telefonar ao gabinete do desembargador inúmeras vezes para insistir que o pedido liminar fosse julgado, mas sem sucesso. Em 19 de maio, a ameaça de despejo não se realizou. No dia seguinte, Carlos finalmente conseguiu ser atendido por servidores do gabinete, explicar a urgência do problema, tendo em vista a possibilidade de execução do despejo, e solicitar pressa no julgamento do pedido liminar.

Num golpe de ironia, contudo, Carlos viu também ser publicado, naquela mesma data, um novo despacho do desembargador nos autos do agravo. No despacho, o magistrado requeria que “os agravantes” - no caso, os sem-terra - provassem sua “hipossuficiência”, ou seja, a sua condição de pobreza que fez seus advogados requererem o benefício da justiça gratuita e, desse modo, o não pagamento das custas do recurso.17 17 O benefício da justiça gratuita decorre do artigo 98 do Código de Processo Civil (Brasil, [2022]) e atinge pessoa natural ou jurídica com insuficiência de recursos para pagar custas, despesas processuais e honorários advocatícios. Nos agravos de instrumento, o pedido de gratuidade é normalmente formulado na sua petição e acompanhado de uma “declaração de pobreza”, assinada pelos “agravantes”. Sim, ao invés de julgar o pedido liminar que poderia suspender o despejo, o desembargador exigia que os sem-terra provassem nos autos a sua pobreza. Isso a despeito de já haver, no agravo, a declaração pessoal de hipossuficiência, que se encontrava junto com a procuração assinada pelos ocupantes. Apreensivo com a premência do despejo - que não nos concedia tempo para, aqui também constrangidos, explicar a um desembargador os porquês de aqueles homens e mulheres acampados declararem-se pobres… -, Carlos resolveu desistir da declaração de hipossuficiência e pagar ele mesmo as custas do agravo. Pagas as custas, ele contatou novamente, na manhã seguinte, os servidores do gabinete do desembargador e voltou a enfatizar a necessidade do julgamento. Era uma sexta-feira, dia 21 de maio. Na segunda-feira, os sem-terra sabiam que a tropa de choque não demoraria 24 horas para adentrar o engenho e dirigentes do MST denunciavam publicamente o silêncio e a complacência das autoridades estaduais.

Na terça-feira, dia 25 de maio de 2021, Tomás praticamente amanhece no acampamento em Rio das Nuvens. Às 6h07 já nos manda, no grupo de WhatsApp, fotografias das barricadas de pneus que os sem-terra haviam posto na via de acesso ao acampamento para, quando queimados, dificultar a entrada dos policiais. Às 7h30, Tomás informa ao grupo que os policiais vieram com batalhão de choque e cavalaria. Às 8h25 Gersinho, o membro da direção estadual do MST que atualmente acompanha o setor de Direitos Humanos, envia-nos uma mensagem de áudio. Sua voz arfava enquanto ele dizia que os policiais haviam atingido com balas de borracha alguns sem-terra. A partir daí, passamos a receber seguidamente, de várias fontes, novos vídeos e fotografias em que a imagem da fumaça negra dos pneus queimados mistura-se ao som do helicóptero da Polícia Militar que sobrevoa o engenho e aos gritos dos sem-terra que tentam desviar-se das balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo. Às 9h25, Tomás nos conta que houve dois presos e o despejo acabou. Os sem-terra deixaram o engenho. Explica que seguirá, em seu carro, o veículo da Polícia Militar que conduzirá os dois presos à delegacia de Rio das Nuvens. Às 10h20, Tomás nos diz que na verdade há sete presos na delegacia, inclusive uma criança de 12 anos.

Para Tomás, as horas seguintes de delegacia não seriam menos difíceis, sobretudo por conta da quantidade de policiais militares que lá estavam e anunciavam em alto e bom som, na ausência do delegado de polícia, que seriam imputados vários crimes aos sem-terra detidos. Naquela manhã, Tomás ouvira de uma policial militar fardada que aquele era “um ótimo dia pra quem não gosta de Lula descontar toda a sua raiva”. Depois de tudo a que assistira, depois de saber na delegacia que cinco dos presos não foram detidos no acampamento, mas acossados por policiais e jagunços já distantes do local do confronto, Tomás de fato temia a ratificação das prisões. Porém, no início da tarde, com a delegacia mais calma e após conversas com policiais civis, ele já acreditava que os sem-terra seriam liberados após serem ouvidos e assinarem termos circunstanciados de ocorrência.18 18 Previsto no artigo 69 da Lei nº 9.099/1995 (Brasil, [2021b]), o termo circunstanciado de ocorrência consiste num documento, lavrado pela autoridade policial, de registro da detenção, sob flagrante, de um possível autor de infração de menor potencial ofensivo. Por sua vez, segundo a mesma lei, “infrações de menor potencial ofensivo” são contravenções penais e crimes com pena máxima não superior a dois anos. Enquanto acompanhava os depoimentos dos detidos, entretanto, Tomás percebeu o nome de Alexandre surgir das bocas dos policiais civis. Eles mostravam um vídeo em que Alexandre aparece falando sobre o acampamento, atribuíam a ele a liderança do movimento e perguntavam aos depoentes se o conheciam. Um policial específico parecia sobremaneira disposto a vincular Alexandre a alguma acusação criminal e dizia abertamente que iria “caçá-lo”. No início da noite, após todos os depoimentos, Tomás confirma que ninguém ficará preso.

Ainda no final da manhã daquela terça-feira, com o despejo finalizado e os sem-terra detidos esperando na delegacia de Rio das Nuvens, o desembargador relator do agravo de instrumento enfim decidiu acerca do pedido liminar de suspensão do despejo. Indeferiu-o. Aquilo que seu colega desembargador havia interpretado como ilegalidade num caso muitíssimo semelhante, ele enxergou nesse caso como sendo o estrito cumprimento dos requisitos legais postos no primeiro parágrafo do artigo 554 do Código de Processo Civil. Assim, para esse desembargador, a citação de apenas alguns acampados seria suficiente para o respeito à norma, não sendo necessária a citação por edital. Pois bem, a norma do referido parágrafo primeiro: “No caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais” (Brasil, [2022]BRASIL. Lei nº 13.115, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília: Presidência da República, [2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm . Acesso em: 15 ago. 2022.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
). O texto desse parágrafo segue com a exigência da intimação de representantes do Ministério Público e, se o caso “envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica”, também da Defensoria Pública.

* * *

Num artigo fundamental publicado em 1996 e intitulado “Dimensões políticas da violência no campo”, a socióloga Leonilde Servolo de Medeiros argumentou que as práticas brasileiras de repressão no campo, publicamente menos visíveis durante a ditadura militar em razão da censura à imprensa, estenderam-se durante a Nova República e se reproduziam na chamada “consolidação democrática”. Àquela época já uma intelectual com contribuições imprescindíveis às discussões sobre a nossa “questão agrária”, Leonilde Medeiros (1996)MEDEIROS, L. S. de. Dimensões políticas da violência no campo. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, p. 126-141, 1996. voltou-se nesse texto ao tema da violência logo após a deflagração do massacre de Eldorado dos Carajás, em 17 de abril daquele mesmo ano de 1996, quando policiais militares do Pará assassinaram ao menos 19 sem-terra.19 19 Uma das mais relevantes análises acerca do massacre de Eldorado dos Carajás foi empreendida, ainda no final dos anos 1990, pelo também sociólogo César Barreira (1999). A socióloga então explicou que o patronato rural brasileiro, profundamente acostumado ao que seriam relações tradicionais de domínio, inadmitia a emergência de sujeitos políticos identificados como trabalhadores e que, preenchendo as funções próprias ao espaço público, apresentassem-se como interlocutores aptos à reivindicação de direitos. Assim, em estreito diálogo com a noção de violência empregada por Hannah Arendt (1994)ARENDT, H. Sobre a violência. Trad. de André Duarte. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994., Leonilde Medeiros defendeu naquele artigo que o exercício da violência no campo consistiria num sinal de “perda de poder”, ao tempo que se implicaria no que faz da questão agrária um dos mais substanciais exemplos da dificuldade de manutenção de práticas democráticas no país.

Como notei no início deste texto, o episódio de prisão de Marcos em Bromélia e as ameaças e perseguições sofridas por Alexandre em meio aos conflitos agrários em que se vê envolvido atinem a relações sociais e processos de Estado em que se atualizam e rearticulam diferentes temporalidades. Estas aludem tanto à imagem de um passado colonial - com suas “relações tradicionais de domínio” - quanto à imagem de um passado ditatorial - com sua aversão a uma experiência democrática que, portanto, precisa ser urgentemente defendida. No modo como as tenho entendido (Efrem Filho, 2017aEFREM FILHO, R. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. 2017. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017a.), tais imagens do passado operam em ao menos dois planos proeminentes e imbricados, separáveis apenas no exercício da análise. No primeiro desses planos, as imagens do passado concernem à sua materialização sociológica. Elas se incorporam nos homens encapuzados que se apresentam de madrugada à frente da casa onde Alexandre morava, desenlaçam-se nas íntimas correlações entre agentes policiais e jagunços, confirmam-se na prisão de um motorista de carro de som que, contratado, divulgava uma vinheta com críticas ao presidente da República. Parte dessas materializações, acredito, permitem a conclusão de Leonilde Medeiros (1996)MEDEIROS, L. S. de. Dimensões políticas da violência no campo. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, p. 126-141, 1996. acima apresentada, segundo a qual nosso patronato rural não admite a emergência de “trabalhadores” dedicados à reivindicação de direitos.

Por sua vez, em seu segundo plano, essas imagens do passado resultam do investimento político protagonizado por certos atores sociais, como o próprio MST, para a configuração de determinado estado de realidade como uma brutal inadmissibilidade histórica, algo cuja permanência no presente deve-se mostrar inadmissível, intolerável. Trata-se de um esforço político de constituição narrativa que visa também a fazer notar o inadmissível no interior da linguagem de direitos para, aqui mais uma vez, enfrentá-lo. É assim, por exemplo, que jagunços apareceram, ao lado de policiais, seguidas vezes nas denúncias públicas a respeito dos conflitos de Rio das Nuvens, assim como apareceram notícias de acusações de emprego de trabalho análogo ao escravo naquelas terras (Em meio…, 2021EM MEIO à pandemia, famílias sem-terra estão sendo despejadas em Amaraji. Brasil de Fato, [s. l.], 23 maio 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/05/25/familias-sem-terra-estao-sendo-despejadas-no-acampamento-bondade-em-amaraji-pe . Acesso em: 2 fev. 2022.
https://www.brasildefato.com.br/2021/05/...
; MPF denuncia…, 2010MPF DENUNCIA usina de cana-de-açúcar em Primavera por trabalho escravo. Repórter Brasil, [s. l.], 10 set. 2010. Disponível em: Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2010/09/mpf-denuncia-usina-de-cana-de-acucar-em-primavera-por-trabalho-escravo/ . Acesso em: 2 fev. 2022.
https://reporterbrasil.org.br/2010/09/mp...
).

Como se sabe, as ciências sociais brasileiras vivenciaram intensas e profícuas discussões acerca da permanência insistente do “arcaico” ou do “tradicional” no presente do país. Apenas para citar alguns exemplos dessas discussões, vale lembrar que autores como Sérgio Buarque de Holanda (1995)HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. compreendiam que aquela permanência impediria o correto desenvolvimento da modernidade, dos seus valores e, portanto, da democracia entre nós. Já para autores como Florestan Fernandes (2006)FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006., o arcaico participaria decisivamente da nossa modernização e caracterizaria os limites e sentidos da experiência democrática brasileira. Trata-se, como se percebe, de um debate amplo e complexo cujo aprofundamento fugiria ao escopo deste texto. Considerando sua importância, interessa-me aqui, todavia, ter em conta como se articulam e atualizam diferentes temporalidades no presente, como se produzem suas imagens do passado e operam seus planos nos interstícios dos conflitos e lutas sociais de que nos ocupamos analiticamente. Isso me parece fundamental para que fenômenos sociais como a violência e a repressão não sejam reduzidos à ideia de “resquício”. Não sejam, em outras palavras, tomados como algo que restou de um passado relutante e supostamente estranho ao presente democrático. Pelo contrário, tê-lo em conta demanda-nos o confronto com esse presente democrático e, dessa maneira, com os sujeitos que o consubstanciam.

Digo isso tendo em vista especialmente o argumento lançado por Luciano Oliveira (2018)OLIVEIRA, L. De Rubens Paiva a Amarildo. E “Nego Sete’? O regime militar e as violações de direitos humanos no Brasil. Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 202-225, 2018. acerca da chamada “herança da ditadura militar”, expressão esta muitas vezes acionada como chave explicativa para a reprodução contemporânea da violência policial, assim como de práticas de tortura, desaparecimento e execução sumária. Segundo Luciano Oliveira (2018)OLIVEIRA, L. De Rubens Paiva a Amarildo. E “Nego Sete’? O regime militar e as violações de direitos humanos no Brasil. Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 202-225, 2018. bem entendeu, denotar essas práticas como um resquício ditatorial tanto representa uma incongruência histórica, elas afinal antecedem em muito o regime iniciado em 1964, quanto evita a nossa prestação de contas com uma experiência democrática que precisou haver-se na terrível confluência entre uma “mentalidade escravocrata” e o fenômeno da criminalidade violenta associado a agentes e estruturas de criminalização e gestão populacional.

O confronto com o presente democrático a que me referi acima busca compreender a experiência democrática em suas fronteiras. Afasta, sendo assim, a suposição de que a democracia não passa de uma forma invertida ou dissimulada de estado de exceção. Pelo contrário, procura enfatizar as porosidades e deslocamentos dessa experiência, os conflitos em torno da definição dos seus limites e inclusive as lutas por sua expansão e aprofundamento. Democracia, nessa perspectiva abertamente inspirada em Jacques Rancière (2014)RANCIÈRE, J. O ódio à democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014., é sobretudo luta pela democracia. Não se circunscreve, portanto, a um regime de governo, embora não deixe de sê-lo como ânimo político para sê-lo, sob intensa disputa. Alexandre e os sem-terra em Rio das Nuvens, ao promoverem ocupações de engenhos que eles denunciam como improdutivos e grilados, participam daqueles conflitos e lutas. Fazem-no ao tempo que ativam a “forma acampamento”, como Lygia Sigaud (2000SIGAUD, L. A forma acampamento: notas a partir da versão pernambucana. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 58, p. 73-92, 2000., 2005SIGAUD, L. As condições de possibilidade das ocupações de terra. Tempo Social, São Paulo, v. 17, n. 1, p. 255-280, 2005.) a denominou.

De acordo com Sigaud (2005)SIGAUD, L. As condições de possibilidade das ocupações de terra. Tempo Social, São Paulo, v. 17, n. 1, p. 255-280, 2005., essa forma de reivindicação consiste num modelo engendrado no sul do país nos idos dos anos 1970 e início dos anos 1980, ao longo do processo que desembocou na constituição do MST. Foi essa forma, com suas adaptações ao redor do Brasil, que ensejou a assunção e a apreensão da identidade política do sem-terra atrelada aos sujeitos que, sob lonas pretas ou atuantes nos movimentos sociais que as multiplicam, requerem reforma agrária e a democratização do acesso à terra. A década que sucedeu a promulgação da Constituição Federal de 1988 testemunhou a forma acampamento consolidar-se e institucionalizar-se, de maneira que ela se tornou a via prioritária de reclamação pela desapropriação de determinada área, tida como improdutiva, junto aos órgãos estatais competentes, notadamente o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra. Como Lygia Sigaud (2005)SIGAUD, L. As condições de possibilidade das ocupações de terra. Tempo Social, São Paulo, v. 17, n. 1, p. 255-280, 2005. e Marcelo Rosa (2009)ROSA, M. C. Biografias e movimentos de luta por terra em Pernambuco. Tempo Social, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 157-180, 2009. registraram em seus trabalhos e eu vi acontecer incontáveis vezes desde que me aproximei da assessoria jurídica do MST, os servidores daquele órgão passaram a reconhecer os dirigentes de movimentos sociais e ocupações como interlocutores legítimos e, inclusive, como agentes produtores de dados que viabilizariam a política de desapropriações.

Eu não exageraria ao dizer que as ocupações de terra, entremeadas ao processo de redemocratização, consistiram num dos mais proeminentes fenômenos políticos, de organização de sujeitos e de reivindicação de direitos no campo brasileiro nas últimas décadas. A forma acampamento engendrou ademais a criação de novas políticas públicas e órgãos estatais direcionados aos conflitos fundiários, como a promotoria de justiça voltada a conflitos agrários no Ministério Público de Pernambuco. Por outro lado, engendrou também, junto a outros órgãos de proteção de direitos humanos, a compreensão de que os conflitos agrários importam sobremaneira. Não à toa, nós nos reportamos à promotoria de Direitos Humanos do MP-PE, à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, para tratar do caso de Alexandre num cenário de desconfiança acerca de agentes policiais. Mas as lutas sociais envoltas na forma acampamento ensejada pelo MST são também historicamente responsáveis pelas recentes normas do Código de Processo Civil cujo descumprimento os advogados do setor de Direitos Humanos tentaram demonstrar naqueles dois agravos de instrumento, ganhando um, perdendo outro. No limite, a forma acampamento oportuniza mesmo a existência de um grupo de advogados, professores e estudantes reunidos em um setor de Direitos Humanos a receber mensagens de WhatsApp em tardes e noites de sábados de abril.

Alexandre e os demais sem-terra em Rio das Nuvens incorporam a forma acampamento naquele contexto. Alexandre sobretudo é “significado socialmente”, diria Marcelo Rosa (2009)ROSA, M. C. Biografias e movimentos de luta por terra em Pernambuco. Tempo Social, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 157-180, 2009., através da mobilização que exerce e dos contatos que estabelece com agentes estatais, advogados e ativistas de direitos humanos, por exemplo. Mas ele é também significado pelas respostas que uma ameaça à sua pessoa pode motivar. Afinal, é difícil imaginar outras circunstâncias em que suspeitas contra policiais ligados àquelas delegacias da Mata Sul pernambucana levariam à intervenção de representantes do CNDH ou à abertura de procedimentos na corregedoria de polícia, após a provocação de uma promotoria de justiça. Não é difícil imaginar, no entanto, o fato de que essas diligências retroalimentam o desejo de “caça” sobre a liderança sem-terra, como na cena a que Tomás assistiu, preocupado, no interior daquela delegacia de polícia após a conclusão do despejo.

Como disse anteriormente, Alexandre não foi o primeiro sem-terra perseguido e ameaçado de morte que eu conheci. Sua trajetória aponta para a combinação de experiências de violência e criminalização que eu vi replicar-se em uma série de outros casos em Pernambuco e na Paraíba, sobre alguns dos quais eu pude escrever (Efrem Filho, 2017aEFREM FILHO, R. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. 2017. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017a.). Essas experiências são o revide mais evidente à forma acampamento e à mobilização por direitos, mas também podem aludir simplesmente ao modus operandi característico das relações patronais e laborais no campo. Elas, as experiências, arregimentam de regra a proximidade entre agentes policiais, jagunços e proprietários de terras. Não raro, os próprios policiais exercem irregularmente a função de “vigia”, ou seja, cumprem eles mesmos com a jagunçagem. Tampouco é raro que os jagunços sejam também moradores das terras reivindicadas para a reforma agrária, de modo que conheçam de perto e há muito as famílias de posseiros mobilizados na luta. Com suas peculiaridades, cenários assim se dão em Pernambuco e na Paraíba, mas também no Paraná e no Rio Grande do Norte, como Dibe Ayoub (2021)AYOUB, D. Terra e desaforo: violência no campo, brigas e éticas de luta nos faxinais do Paraná. Mana, Rio de Janeiro, v. 27, n. 1, e271206, 2021. e Fernanda Figurelli (2011)FIGURELLI, M. F. Família, escravidão, luta: histórias contadas de uma antiga fazenda. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. têm demonstrado, respectivamente.

Nessas experiências há, porém, um capítulo especificamente reservado ao Poder Judiciário. Aqui está, mais uma vez, o bem-intencionado dever de ofício dos agentes do sistema de justiça criminal, como o chamei ao tratar dos meus receios sobre as consequências da prisão de Marcos. Contudo, aqui também está o igualmente bem-intencionado dever de ofício de defesa da propriedade privada. Este último se exprime na pronta disposição da juíza local de deferir os pedidos liminares de reintegração de posse, sem muita atenção aos requisitos postos no Código de Processo Civil, sem muita preocupação com as possíveis consequências dessa “falta de atenção”. Mas se exprime ainda mais constrangedoramente na exigência do desembargador do Tribunal de Justiça de que os sem-terra comprovassem sua pobreza… Quando li a mensagem de Carlos que nos informava, às vésperas do despejo, a respeito desse despacho, eu senti uma raiva tal que me desconheci. Levei algum tempo para localizar o gesto do desembargador em meio àqueles constrangimentos de Estado, que nos desconfortam e embaraçam enquanto restringem nossas possibilidades de ação. Levei ainda mais algum tempo para situar tal despacho entre os efeitos do jogo temporal do processo judicial. Neste, como Adriana Vianna (2002)VIANNA, A. Limites da menoridade: tutela, família e autoridade em julgamento. 2002. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002. já ressaltou, “nada fazer” não deixa de ser um modo próprio de governo. Como também governa quem maneja a legibilidade ou a ilegibilidade de certos documentos e de suas lógicas, conforme Juliana Farias (2014)FARIAS, J. Governo de mortes: uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro. 2014. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. tem notado.

Tudo isso, da repressão às ocupações de terra até a sua gestão judicial, integra as fronteiras do presente democrático cujos dilemas nós precisamos confrontar, como dito. Tais fronteiras, no entanto, têm sido densamente redimensionadas no transcurso da crise brasileira, de que Ronaldo de Almeida (2019)ALMEIDA, R. de. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 38, n. 1, p. 185-213, 2019. vem tratando. Essa crise ter-se-ia iniciado ao menos desde as movimentações de 2013 e, segundo Ronaldo de Almeida (2019)ALMEIDA, R. de. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 38, n. 1, p. 185-213, 2019., é caracterizada por sua alta instabilidade, sua baixa previsibilidade e um potencial desestruturante maior do que aquele das situações de tensão próprias da dinâmica política. A crise vem contando com o desgaste consistente da legitimidade dos políticos, da própria política e de suas instituições. Dentre seus episódios mais notáveis esteve a deposição parlamentar da presidenta eleita Dilma Rousseff, em 2016, a prisão e a declaração de inelegibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva em 2018 e, consequentemente, a eleição de Jair Bolsonaro à presidência do país nesse mesmo ano, apresentando-se como um outsider da “velha política”.

Na seara das políticas públicas e de assistência social, a crise contextualizou a concretização da agenda de reformas neoliberais, como a trabalhista e a previdenciária, e de restrições de direitos e participação popular. Agente notório da crise, o bolsonarismo viria a promover, segundo Cesarino (2021bCESARINO, L. As ideias voltaram ao lugar? Temporalidades não lineares no neoliberalismo autoritário brasileiro e sua infraestrutura digital. Caderno CRH, Salvador, v. 34, e021022, 2021b., p. 2-3), um “realinhamento retrospectivo do substrato sócio-histórico brasileiro à configuração neoliberal-autoritária emergente globalmente”. Evidente, a crise impactou, cortante, o MST e suas mobilizações. Ela está de pronto nas palavras dos sem-terra em Rio das Nuvens que, em vídeos gravados às vésperas do despejo, diziam ocupar terra porque sentem fome, o que no mínimo sugere que a fome voltou a preencher estômagos e repertórios de lutas por direitos. Ademais, a crise alcançou a política nacional de reforma agrária. De pronto, ela se apresenta nos sucessivos cortes orçamentários e emerge nas palavras dos servidores do Incra que, diante das reivindicações postas pela forma acampamento, têm respondido repetidamente, numa ladainha cansada tanto de dizer quanto de ouvir, que “a autarquia não tem recurso” nem mesmo para periciar a improdutividade de um imóvel, muito menos para empreender uma desapropriação.20 20 Em 2020, os cortes promovidos pelo governo Bolsonaro no orçamento do Incra e da reforma agrária levaram-no a quase zero (Bragon, 2020).

Essa escassez orçamentária converge, no entanto, com o acionamento narrativo de uma “nova reforma agrária”, pensada para o “novo mundo rural” e justificada a partir do que seria uma perspectiva “modernizante” e “desburocratizante”. De acordo com Simone Lopes Dickel (2020DICKEL, S. L. Perspectivas sobre a reforma agrária no contexto pós-golpe de 2016. In: DICKEL, S. L.; ZANELLA, A. (org.). História do mundo rural: o sul do Brasil: volume 3. Passo Fundo: Acervus Editora, 2020. p. 267-291., p. 288), tal propalada novidade não prioriza as desapropriações de terras improdutivas - o que reforça a concentração de riquezas e inibe as ocupações de terras -, assim como retira dos movimentos sociais sua incidência como agentes mediadores na composição de beneficiários da política pública. Além disso, impõe uma concepção privatista da terra que se expressa em políticas que visam à titulação das terras em assentamentos rurais e à regularização fundiária através da legitimação da grilagem (Dickel, 2020DICKEL, S. L. Perspectivas sobre a reforma agrária no contexto pós-golpe de 2016. In: DICKEL, S. L.; ZANELLA, A. (org.). História do mundo rural: o sul do Brasil: volume 3. Passo Fundo: Acervus Editora, 2020. p. 267-291.; Zeneratti, 2021ZENERATTI, F. L. O acesso à terra no Brasil: reforma agrária e regularização fundiária. Katálysis, Florianópolis, v. 24, n. 3, p. 564-575, 2021.). Verifica-se, portanto, como definiu recentemente Leonilde Medeiros (2021MEDEIROS, L. S. de. Atores, conflitos e políticas públicas para o campo no Brasil contemporâneo. Caderno CRH, Salvador, v. 34, e021003, 2021., p. 1), “o progressivo desmantelamento da institucionalidade anteriormente criada e só aparentemente consolidada, trazendo à tona forças sociais e concepções de rural que pareciam estar superadas”.

Há, porém, uma dimensão da crise democrática que ressoa comezinha, ao nível do chão da delegacia de polícia, da terra batida do engenho de cana-de-açúcar, como da rua em que o carro de som de Marcos foi trancado. Trata-se, por exemplo, da anunciação de que aquele era, afinal, “um ótimo dia pra quem não gosta de Lula descontar toda a sua raiva”. Trata-se do “ódio de classe” que Jaime Amorim, dirigente estadual do MST de Pernambuco, relatou haver enxergado nos policiais militares que procederam ao despejo. De acordo com o que Jaime diria numa coletiva de imprensa promovida pelo Centro Dom Helder Câmara em 3 de junho de 2021, aqueles policiais pareciam externar uma raiva desproporcional, o que se demonstraria na opção por, valendo-se de drone e helicóptero, perseguir os sem-terra em meio ao canavial mesmo após a finalização do despejo, num gesto que Jaime interpretou como produtor de humilhação. Esse ódio ressoaria, em seus termos, “a ideologia fascista do governo Bolsonaro” e, mais que isso, a perda de controle das polícias pelo governo de Pernambuco, uma discussão que pautava gravemente o debate público àquele momento21 21 Em 29 de maio de 2021, alguns dias após o despejo em Rio das Nuvens, o batalhão de choque reprimiu violentamente uma manifestação pública no centro do Recife que reclamava o impeachment do presidente da República. Dois transeuntes perderam olhos em decorrência da ação de policiais militares (Manifestantes…, 2021). e se relaciona com a compreensão das bases e forças sociais de sustentação do bolsonarismo. Dessas, afinal, Jair Bolsonaro frequentemente se vale para sugerir a possibilidade de uma intervenção militar, reacendendo e atualizando imagens do passado.

Hoje penso que o pedido que Alexandre fez a Tomás naquela manhã de sábado de abril - “Vê aí o que é que tu faz, joga pra frente, joga pro Estado. Vê como tu faz aí” - exige de nós, pesquisadores e militantes, o confronto com o presente com vistas à expansão da experiência democrática. Mas de modo a compreender e alimentar as lutas sociais pelo seu aprofundamento, pela desestruturação dos seus limites e fronteiras, pela potencialidade de criticá-la ao tempo que a defendemos. Nesses anos junto ao Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais Sem Terra, tenho aprendido que a articulação “em defesa da democracia e dos trabalhadores/as” é, por pressuposto, a tessitura de uma aliança histórica. Ela alinhava a indignação e o temor de Marcos dentro daquela delegacia de polícia, a ousadia e o medo de morte de Alexandre ao ser perseguido por aquele veículo branco, a cólera que nos atravessou diante do despacho do desembargador. Há potência nesse alinhavo, Paulo Freire (1996)FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Ed. Unesp, 1996. a chamou de “justa raiva”. Confrontar o presente é lidar com ela. É fazer dela futuro.

Referências

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    » https://reporterbrasil.org.br/2010/09/mpf-denuncia-usina-de-cana-de-acucar-em-primavera-por-trabalho-escravo/
  • MÚSICA Fora Bolsonaro do Canal Plantão Brasil. [S. l: s. n], 21 ago. 2021. 1 vídeo (4min41s). Publicado pelo canal Wellington Oficial. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kyJh4S8_Kxw Acesso em: 2 fev. 2022.
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    » https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/sob-bolsonaro-ministerio-da-justica-tem-atuacao-ideologica-escorada-na-lei-de-seguranca-nacional.shtml
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  • ZENERATTI, F. L. O acesso à terra no Brasil: reforma agrária e regularização fundiária. Katálysis, Florianópolis, v. 24, n. 3, p. 564-575, 2021.
  • 1
    Neste texto, ficcionalizei e mantive em itálico a maior parte dos nomes próprios. Embora os casos aqui discutidos sejam facilmente encontráveis on-line, preferi a ficcionalização para evitar que as identidades dos sujeitos sejam mais uma vez expostas ou que determinados agentes alcancem este artigo a partir da busca on-line por seus nomes. Preservei no artigo, porém, os nomes originais de algumas pessoas públicas - não envolvidas diretamente nos casos - e de Tomás Agra e Carlos Eduardo Madeira, integrantes do setor de Direitos Humanos do MST-PE que, consultados por mim, optaram estrategicamente pela visibilidade.
  • 2
    Rio das Nuvens é um município com população estimada de aproximadamente 23 mil pessoas, situado na Zona da Mata Sul de Pernambuco, uma região historicamente comprometida com a monocultura da cana-de-açúcar. Dista 96 km da capital do estado, Recife.
  • 3
    Localizada no Agreste, a 230 km do Recife, Bromélia possui pouco mais de 141 mil habitantes e consiste no terceiro município mais populoso do interior do estado de Pernambuco.
  • 4
    “Jagunços”, “pistoleiros” e “vigias” são categorias êmicas que se confundem nas narrativas dos integrantes do MST e mesmo nas denúncias empreendidas por advogados e ativistas de direitos humanos. De regra, compreende-se “jagunço” como aquele que presta serviço de vigilância e proteção aos proprietários e suas terras. São vigias irregulares, portanto. Um “pistoleiro”, por sua vez, pode ser tido como um homem contratado especificamente para crimes de pistolagem, mortes ou ameaças. Entretanto, desde que porte uma “pistola” ou uma arma de fogo qualquer, não é incomum que um jagunço seja chamado de pistoleiro, algo que também pode acontecer com policiais contratados irregularmente para o trabalho de vigilância privada. Para discussões a respeito, ver Barreira (1998)BARREIRA, C. Crimes por encomenda: violência e pistolagem no cenário brasileiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1998. e Ayoub (2015)AYOUB, D. Guardas, jagunços e pistoleiros: narrativas sobre homens de armas em um conflito de terras. Ruris, Campinas, v. 9, n. 2, p. 13-43, 2015..
  • 5
    Em abril de 2021, o setor de Direitos Humanos do MST de Pernambuco era composto por três advogados, por um estudante de direito, por uma professora e um professor universitários e por um integrante da direção estadual do MST. À exceção deste último, que não possui formação jurídica, e de um dos advogados, que é filho de assentados e realizou sua graduação na turma do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) da Universidade Federal de Goiás, todos os demais integrantes do setor estudaram na Faculdade de Direito do Recife, da Universidade Federal de Pernambuco, e participaram de grupos de movimento estudantil e de juventude e/ou de assessoria jurídica universitária popular, mesmo que em diferentes épocas.
  • 6
    Há no país, especialmente a partir das faculdades de direito, um interessante campo de discussões sobre “advocacia popular” e “assessoria jurídica popular” - categorias próximas, mas não substituíveis uma pela outra - e que não raro tematiza as correlações entre direito e política. As teses de doutorado de Luiz Otávio Ribas (2015)RIBAS, L. O. Direito insurgente na assessoria jurídica popular (1960-2010). 2015. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. e Ana Lia Almeida (2015)ALMEIDA, A. L. Um estalo nas faculdades de direito: perspectivas ideológicas da assessoria jurídica universitária popular. 2015. Tese (Doutorado em Ciências Jurídicas) - Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2015. estão certamente entre os melhores exemplos dos trabalhos desse campo.
  • 7
    Parte relevante dessas experiências compartilhadas ocorre on-line, como é possível perceber ao longo deste artigo. Dá-se, afinal, a ratificação do contínuo on-line-off-line, a que se referem Miller e Slater (2004)MILLER, D.; SLATER, D. Etnografia on e off-line: cibercafés em Trinidad. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 41-65, 2004., cada dia mais inescapável à vida e, portanto, à etnografia. As discussões aqui desenvolvidas, contudo, não se propõem a nada perto de uma antropologia digital ou etnografia on-line, metodologias de maior complexidade e que já encontram significativas contribuições na antropologia brasileira (Cesarino, 2021aCESARINO, L. Antropologia digital não é etnografia: explicação cibernética e transdisciplinaridade. Civitas, Porto Alegre, v. 21, n. 2, p. 304-315, 2021a.; Leitão; Gomes, 2017LEITÃO, D. K.; GOMES, L. G. Etnografia em ambientes digitais: perambulações, acompanhamentos e imersões. Antropolítica, Niterói, p. 41-65, n. 42, 2017.; Parreiras, 2012PARREIRAS, C. Altporn, corpos, categorias e cliques: notas etnográficas sobre pornografia on-line. Cadernos Pagu, Campinas, n. 38, p. 197-222, 2012.). Bem mais rudimentar, a metodologia empregada para a elaboração deste texto toma aquele contínuo como uma inexorabilidade do contexto etnográfico e, em certos momentos, considera analiticamente os seus efeitos nas práticas dos sujeitos implicados nos conflitos aqui abordados, como na performance do vereador Pedro Leme, conforme discutirei adiante.
  • 8
    Um artigo de autoria de Ricardo Balthazar (2021)BALTHAZAR, R. Conheça 20 atingidos por investigações de crimes da Lei de Segurança Nacional e críticas a Bolsonaro. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 maio 2021. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/conheca-20-atingidos-por-investigacoes-de-crimes-da-lei-de-seguranca-nacional-e-opositores-de-bolsonaro.shtml . Acesso em: 2 fev. 2022.
    https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021...
    , publicado na Folha de S. Paulo algumas semanas após a prisão de Marcos, listou 20 casos de pessoas interpeladas por acusações de crimes previstos na Lei de Segurança Nacional, sobremaneira em razão de críticas a Jair Bolsonaro. Por sua vez, um artigo de Igor Carvalho (2020)CARVALHO, I. Em 20 anos, Brasil instaurou 155 inquéritos usando a Lei de Segurança Nacional. Brasil de Fato, [s. l.], 26 jun. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/06/26/em-20-anos-brasil-instaurou-155-inqueritos-usando-a-lei-de-seguranca-nacional . Acesso em: 2 fev. 2022.
    https://www.brasildefato.com.br/2020/06/...
    , publicado em junho do ano anterior no Brasil de Fato, apontou que nos últimos 20 anos havia-se instaurado 155 inquéritos na Polícia Federal relativos à Lei de Segurança Nacional, sendo que 26% deles deram-se apenas nos 18 primeiros meses do governo Bolsonaro. Matéria de Marcelo Rocha (2021)ROCHA, M. Sob Bolsonaro, Ministério da Justiça tem atuação ideológica escorada na Lei de Segurança Nacional. Folha de S. Paulo, São Paulo, 10 maio 2021. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/sob-bolsonaro-ministerio-da-justica-tem-atuacao-ideologica-escorada-na-lei-de-seguranca-nacional.shtml . Acesso em: 2 fev. 2022.
    https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021...
    , também na Folha de S. Paulo, demonstrou que, dos 84 inquéritos com base na Lei de Segurança Nacional existentes na Polícia Federal, 26 tinham sido iniciados em 2019 e 51 em 2020.
  • 9
    Inicialmente, afirmou-se que o então ministro Sérgio Moro acionara ele mesmo a polícia contra Lula, o que depois foi desmentido em nota pública do próprio Ministério da Justiça, que “corrigiu” a informação divulgada anteriormente (Lula…, 2020LULA depõe à Polícia Federal em inquérito que apura crime contra a honra de Bolsonaro. G1, [s. l.], 20 fev. 2020. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/02/20/lula-depoe-a-pf-em-inquerito-que-apura-crime-contra-contra-a-honra-de-bolsonaro.ghtml . Acesso em: 2 fev. 2022.
    https://g1.globo.com/politica/noticia/20...
    ; Ministério…, 2020MINISTÉRIO corrige informação e diz que Moro não pediu Lei de Segurança Nacional para Lula. G1, [s. l.], 24 fev. 2020. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/02/24/ministerio-corrige-informacao-e-diz-que-moro-nao-pediu-o-enquadramento-de-lula-na-lei-de-seguranca-nacional.ghtml . Acesso em: 2 fev. 2022.
    https://g1.globo.com/politica/noticia/20...
    ). Já André Mendonça, que sucedeu Moro no ministério, chegou a ser questionado, durante sua sabatina no Senado a propósito de seu ingresso no Supremo Tribunal Federal, acerca do uso político da Lei de Segurança Nacional contra adversários do bolsonarismo (André Mendonça…, 2021ANDRÉ MENDONÇA nega uso político da Lei de Segurança Nacional. Correio do Povo, Porto Alegre, 1 dez. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/andré-mendonça-nega-uso-pol%C3%ADtico-da-lei-de-segurança-nacional-1.732941 . Acesso em: 2 fev. 2022.
    https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%...
    ).
  • 10
    Como se sabe, o Partido Social Liberal (PSL), criado ainda em 1994, foi aquele que emprestou o número - “17” - para a candidatura à presidência de Jair Bolsonaro em 2018. Recentemente, fundiu-se ao Democratas (DEM), antigo Partido da Frente Liberal (PFL), fundado em 1985, para a formação do partido União Brasil. Por sua vez, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) data de 1945 e o Progressistas (PP) foi criado em 1995. As cinco siglas conformam parte relevante da base de apoio do governo Bolsonaro no Congresso Nacional. Curiosamente, Jair Bolsonaro foi filiado a cada uma delas, em algum momento de sua já longa carreira político-eleitoral. Depois de exercer a presidência, desde novembro de 2019, sem vínculo partidário oficial, Bolsonaro filiou-se ao Partido Liberal (PL) para disputar as eleições de 2022.
  • 11
    A música - que eu recebi em arquivo de áudio no WhatsApp - pode ser escutada também no YouTube (cf. Música…, 2021MÚSICA Fora Bolsonaro do Canal Plantão Brasil. [S. l: s. n], 21 ago. 2021. 1 vídeo (4min41s). Publicado pelo canal Wellington Oficial. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kyJh4S8_Kxw . Acesso em: 2 fev. 2022.
    https://www.youtube.com/watch?v=kyJh4S8_...
    ). Não consegui descobrir, contudo, a sua autoria. Antes de a letra ser propriamente cantada, o arquivo de áudio anuncia: “Assista aos vídeos do canal Plantão Brasil no YouTube.” Essa e outras informações disponíveis on-line me levam a crer, portanto, que a música resultou de Thiago Reis, o responsável pelo referido canal, que atualmente agrega mais de 683 mil seguidores.
  • 12
    Os requisitos legais acima citados acham-se no Código de Processo Civil, a Lei nº 13.105/2015, sobremaneira em seus artigos 178, 554, 561 e 562 (Brasil, [2022]BRASIL. Lei nº 13.115, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília: Presidência da República, [2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm . Acesso em: 15 ago. 2022.
    https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
    ). Boa parte deles - como a necessidade de intimação de representantes do Ministério Público e da Defensoria Pública em casos dessa natureza - resultam de históricas reivindicações de direitos que visam à minimização da violência no campo, em especial em episódios de despejos coletivos que envolvem muitas pessoas.
  • 13
    A citação é o ato processual que convoca o réu, o executado ou o interessado para fazer parte do processo judicial (ou da “relação processual”). Segundo o artigo 239 do Código de Processo Civil (Brasil, [2022]BRASIL. Lei nº 13.115, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília: Presidência da República, [2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm . Acesso em: 15 ago. 2022.
    https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
    ), a citação do réu é indispensável para a validade do processo. No caso de ações judiciais que têm como objeto a posse de determinado imóvel - as “ações possessórias” - e envolvem um grande número de pessoas entre os réus (o “polo passivo”), o artigo 554 do CPC impõe a realização de citação pessoal, pelo oficial de justiça, dos ocupantes encontrados no local, e de citação por edital dos demais ocupantes. Ademais, o artigo 554 também determina que o magistrado intime representante do Ministério Público e, se o caso compreender pessoas em situação de “hipossuficiência econômica”, também da Defensoria Pública.
  • 14
    Com população estimada de pouco mais de 15 mil pessoas, Mangueira é um município pernambucano vizinho a Rio das Nuvens. As terras dos engenhos e usinas aqui referidas, de tão grandes, algumas vezes trespassam as fronteiras dos dois municípios. Parte das intimações a Alexandre vem da delegacia de polícia de Mangueira, na qual atua um policial civil cujo nome foi reiteradamente citado nos documentos que enviamos a agentes e órgãos estatais de proteção aos direitos humanos.
  • 15
    Como notei em outra oportunidade (Efrem Filho, 2017aEFREM FILHO, R. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. 2017. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017a.), é comum que, em meio a investidas de criminalização de sem-terra e sem-teto, acione-se a figura do crime ambiental, de regra atrelada a acusações de derrubada de árvores ou de queima de pneus.
  • 16
    Segundo o artigo 1.019 do Código de Processo Civil (Brasil, [2022]BRASIL. Lei nº 13.115, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília: Presidência da República, [2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm . Acesso em: 15 ago. 2022.
    https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
    ), após o recebimento do agravo de instrumento, o magistrado relator poderá, em cinco dias, atribuir efeito suspensivo ao recurso.
  • 17
    O benefício da justiça gratuita decorre do artigo 98 do Código de Processo Civil (Brasil, [2022]BRASIL. Lei nº 13.115, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília: Presidência da República, [2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm . Acesso em: 15 ago. 2022.
    https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
    ) e atinge pessoa natural ou jurídica com insuficiência de recursos para pagar custas, despesas processuais e honorários advocatícios. Nos agravos de instrumento, o pedido de gratuidade é normalmente formulado na sua petição e acompanhado de uma “declaração de pobreza”, assinada pelos “agravantes”.
  • 18
    Previsto no artigo 69 da Lei nº 9.099/1995 (Brasil, [2021b]BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, [2021b]. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm . Acesso em: 15 ago. 2022.
    https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
    ), o termo circunstanciado de ocorrência consiste num documento, lavrado pela autoridade policial, de registro da detenção, sob flagrante, de um possível autor de infração de menor potencial ofensivo. Por sua vez, segundo a mesma lei, “infrações de menor potencial ofensivo” são contravenções penais e crimes com pena máxima não superior a dois anos.
  • 19
    Uma das mais relevantes análises acerca do massacre de Eldorado dos Carajás foi empreendida, ainda no final dos anos 1990, pelo também sociólogo César Barreira (1999)BARREIRA, C. Crônica de um massacre anunciado: Eldorado dos Carajás. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 13, n. 4, p. 136-143, 1999..
  • 20
    Em 2020, os cortes promovidos pelo governo Bolsonaro no orçamento do Incra e da reforma agrária levaram-no a quase zero (Bragon, 2020BRAGON, R. Bolsonaro incrementa verba para ruralistas e reduz quase a zero a reforma agrária. Folha de S. Paulo, São Paulo, 7 set. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/09/bolsonaro-incrementa-verba-para-ruralistas-e-reduz-quase-a-zero-a-reforma-agraria.shtml . Acesso em: 2 fev. 2022.
    https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020...
    ).
  • 21
    Em 29 de maio de 2021, alguns dias após o despejo em Rio das Nuvens, o batalhão de choque reprimiu violentamente uma manifestação pública no centro do Recife que reclamava o impeachment do presidente da República. Dois transeuntes perderam olhos em decorrência da ação de policiais militares (Manifestantes…, 2021MANIFESTANTES fazem ato contra Bolsonaro e PM atira balas de borracha e gás lacrimogêneo nos participantes. G1, [s. l.], 29 maio 2021. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2021/05/29/manifestantes-fazem-ato-contra-bolsonaro-e-a-favor-da-vacina-no-recife.ghtml . Acesso em: 2 fev. 2022.
    https://g1.globo.com/pe/pernambuco/notic...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2022
  • Aceito
    18 Ago 2022
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