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ESPAÇO ABERTO

Entrevista com Richard Parker1 1 (Realizada no dia 12/12/01, no Hotel Embaixador, em Porto Alegre, por ocasião do Encontro da ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar da AIDS.)

Ceres Gomes Víctora; Daniela Riva Knauth

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil

Richard Parker tem sido uma referência emblemática para o pensamento sobre sexualidade e sobre o impacto causado pelo HIV/AIDS no Brasil nos últimos anos. Desde os anos 80, Richard Parker tem se dedicado, tanto na academia quanto no movimento social da AIDS, a analisar a sexualidade no Brasil considerando diferentes dimensões, que vão desde o comportamento sexual, até os fatores sociais e econômicos que conformam as condições de vulnerabilidade ao HIV, e as respostas sociais aos desafios impostos pela epidemia. Em conjunto com colaboradores advindos de diferentes áreas – como a epidemiologia, a saúde reprodutiva e o direito – e de diferentes locais – como a academia, os movimentos sociais e os serviços de saúde – Richard Parker tem enfatizado a importância do diálogo e da articulação, e, por que não dizer, da solidariedade, não só para conhecermos a realidade em que vivemos como também para transformá-la.

Richard Parker é Diretor-Presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, Professor Titular e Chefe do Departamento de Ciências Sociomédicas da Universidade de Columbia e Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A entrevista foi realizada por ocasião do Seminário Solidariedade e Cidadania: princípios possíveis para as respostas ao HIV/AIDS, organizado pela ABIA, GAPA/RS, Prefeitura de Porto Alegre e UFRGS, entre os dias 10 e 13 de dezembro, em Porto Alegre.

Entrevista

Ceres Víctora: Tu, que foste um dos pioneiros nos estudos sobre AIDS e Sexualidade no Brasil, poderias nos contar um pouco como foi o início da constituição do campo da sexualidade no Brasil?

Richard Parker: Tá certo. Eu até daria um passo atrás, para falar um pouco sobre antes da constituição dos estudos no Brasil: a constituição dos estudos de AIDS na Antropologia. A Antropologia, na minha opinião, demorou um pouco para entrar nesse campo. Eu acredito que o artigo que publiquei no Medical Anthropology Quarterly, em 87, foi o primeiro numa revista de Antropologia com peer review. Até havia alguns artigos, quando a Medical Anthropology Quarterly era mais um tipo de newsletter, em 86. Passaram-se 4 ou 5 anos de epidemia até que se tivesse algum estudo antropológico sobre a questão. Até então os psicólogos tinham entrado em 83, 84 e até 87 e já dominavam por completo o campo. Eu até acho que uma boa parte do que a Antropologia tem feito tem sido reativo. Tem sido uma reação, de certa forma, contra a hegemonia ou o estabelecimento vindo de outro olhar, uma outra epistemologia e, fundamentalmente, contra uma psicologia, em sua vertente norte-americana, mais comportamentalista, mais individualista, etc. Eu participei de uma sessão, no começo de 87, da American Association for the Advancement of Science – AAAS –, que foi uma sessão sobre AIDS com uma perspectiva comparativa, cross-cultural (que nunca se traduz bem para o português. Talvez transcultural, mas não é bem isso). Mas enfim, tinha uma meia dúzia de pessoas, três ou quatro pessoas que pesquisam, ou pesquisavam, na África, eu no Brasil, e acho que ninguém da Ásia. Depois disso, de 87 para 88, 90 tinha muito pouco trabalho feito na Antropologia. Começou a surgir por aí uma nova geração de alunos de pós-graduação, e quando eu comecei a pesquisar sobre AIDS, eu também era aluno fazendo pós-graduação. Mais ou menos na mesma época, Paul Farmer estava fazendo tese de doutorado sobre o trabalho dele no Haiti; Stephanie Kane e Teresa Mason, trabalhando com usuários de drogas e as parceiras sexuais de homens usuários de drogas nos Estados Unidos, em Chicago. Brooke Schoepf já era formada, mas teve um trabalho durante muito tempo na África. Começou a ter uma série de trabalhos que, mais ou menos a partir de 90, 91, foram sendo feitos e começaram a construir um campo de estudos antropológicos sobre AIDS. Acho que talvez a concretização mais clara disso tenha sido em 90, em junho ou julho, com a reunião da Wenner Gren Foundation for Anthropological Research, que é praticamente a única fundação que financia pesquisa antropológica. Essa fundação faz, a cada ano, dois ou três seminários fechados sobre temas que são vistos como emergentes e importantes para a formação da disciplina. Tem feito coisas sobre Antropologia Médica, sobre estudos de parentescos, enfim. Dos assuntos que poderiam ser temática de um curso num departamento de Antropologia, quase todos já passaram por essa Fundação. E a Wenner Gren fez uma reunião sobre AIDS em 90, que mais ou menos reuniu umas 15 a 16 pessoas que trabalham com essas questões. E eu acho que esse foi, de certa forma, um pouco o nascimento dos estudos Antropológicos sobre AIDS. Foi publicado depois um livro, organizado pelo Gilbert Herdt e Shirley Lindenbaum, chamado In the time of AIDS – social analysis, theory and method. Enfim, resumidamente, o que eu diria é que a Antropologia não se comportou muito bem no começo, foi devagar para enfrentar a questão da AIDS. As primeiras pessoas a pesquisar com AIDS foram vistas com uma certa, sei lá, meio marginais, meio "isso não é assunto sério", e só aos poucos, e quase depois de 10 anos de epidemia, é que se começa a ter uma resposta antropológica frente a ela. Ao longo dos anos 90, isso cresceu muito, mas quase sempre de maneiras reativas. Eu acho que seja colocando questões de cultura ou de desigualdade, sempre a Antropologia esteve reagindo frente à perspectiva da Psicologia, da Saúde Pública, ou outras perspectivas que, para nós, antropólogos, pareciam muito limitadas no seu olhar. Voltando um pouco para a questão do Brasil, então, me parece, e aí vocês podem acrescentar outra visão, mas me parece que foi um pouco semelhante. A Antropologia aqui no Brasil também demorou muito e, de fato, dentro do espaço de departamentos de Antropologia, o trabalho de vocês, aqui, é quase o único em que eu posso pensar. Não consigo pensar em outro departamento de Antropologia onde você tem um núcleo estabelecido que prioriza pesquisas nessa área. Quase todo o trabalho tem sido feito por antropólogos baseados no Instituto de Medicina Social, ou em Faculdade de Saúde Pública, enfim, em outros espaços institucionais, não é? Então, a Antropologia da AIDS, sempre é construída como uma coisa meio marginal em relação ao centro da disciplina, enquanto disciplina acadêmica. Nem por isso acho que deva ser menosprezado, e é importante lembrar isso. Eu acho que a maneira que isso se instalou no Brasil foi justamente assim. Foram espaços institucionais como o IMS [Instituto de Medicina Social], por exemplo, onde você tinha, enfim, diversas pessoas das Ciências Sociais vinculadas a um projeto institucional priorizando questões de saúde. Foi a prioridade da AIDS, dentro do campo da saúde que abriu espaço para um olhar antropológico, não é? E, me lembro até, em 88, 89, você tinha alguns estudos feitos em nível brasileiro, não estudos de largo alcance, mas coisas mais pontuais. Você tinha aquela publicação, Comunicações do ISER, de 85, que tinha um artigo da Jane Galvão sobre um trabalho que ela estava fazendo de AIDS na Mídia; tinha dois artigos, em que o Sérgio Carrara era co-autor, novamente sobre as construções simbólicas da AIDS. E me parece que foi muito nesses primeiros passos da Antropologia brasileira da AIDS, foi muito nesse enfoque da Antropologia Simbólica, da simbologia, da análise das representações sociais que os primeiros estudos realmente se concentraram naquela época; mas, em grande medida, fora dos departamentos de Antropologia, nesses outros espaços institucionais. Acho que é importante, porque desde o início a Antropologia fez parte de uma ótica muito interdisciplinar. E às vezes eu acho que é difícil de distinguir quando você olha pesquisa social sobre AIDS no Brasil, enfim, o que é Antropologia, o que é Sociologia, o que é História. Acho que fica um pouco uma mistura, não é? Eu acho que tem um número razoável de antropólogos que tem feito trabalhos importantes, mas que novamente não é uma coisa que... Se você vai para a Reunião da ABA, você vê pouca coisa apresentada lá. Então eu acho que é menos uma Antropologia da AIDS, do que a contribuição de um olhar antropológico para uma investigação interdisciplinar sobre a AIDS.

Aí sim, eu acho que, o fato de a Nancy Scheper-Hughes, uma vez, metade brincando, metade séria, comentou num seminário em que eu estava, que ela achava que nenhum país do mundo é tão desconstrutivista quanto o Brasil... E, de certa forma, ela tem razão. A coisa do construtivismo cultural e social é muito forte na tradição brasileira, seja vindo da Psicanálise, da Antropologia, da Sociologia; enfim, tem várias vertentes. E eu acho que isso foi uma característica, e onde a Antropologia contribuiu bastante com a questão da AIDS foi na desconstrução das categorias culturais. Com um olhar crítico sobre as classificações epidemiológicas, acho que muito rapidamente nós conseguimos demonstrar que categorias como homossexual, prostituta, e até homem e mulher são categorias construídas relativas, que têm significados diferenciados em diferentes espaços sociais e culturais. E que nós tínhamos que ficar atentos a esse processo de construção, porque, sem entender esse processo e as regras culturais que o organizam, não teríamos como fazer frente à epidemia. Naquele primeiro momento, me parece que o projeto antropológico frente à AIDS foi um projeto muito preventivo. Vamos pesquisar as culturas localizadas, e, compreendendo as representações sociais dentro daquele contexto, as regras lingüísticas e de significado que organizam as experiências práticas das pessoas, nós poderemos desenvolver uma ação preventiva mais adequada, mais apropriada. Certamente uma boa parte do meu trabalho, no final dos anos 80 e começo dos anos 90, tinha um pouco essa trajetória, ou essa preocupação. Me parece que ao longo dos anos 90 isso vem mudando. Não quer dizer que desistimos de fazer isso, mas acho que o olhar antropológico foi colocado sobre outros ângulos. Começamos a investigar também a própria política da AIDS, e a mobilização social ao redor da epidemia virou objeto de estudo, o ativismo em AIDS. Então você tem uma série de teses que pegam mais essa vertente. Não simplesmente ferramentas para fazer prevenção melhor, mas sobre as campanhas, sobre a maneira em que a sociedade se mobiliza ao redor de um novo fenômeno que surge. Enfim, o número de questões antropológicas que a AIDS coloca é quase infinita, não é?

Ceres Víctora: E, em termos de estudos mais gerais sobre sexualidade?

Richard Parker: Eu diria que no Brasil os estudos sobre sexualidade têm uma longa tradição, e bastante rica. Até os anos 50 você tinha sociólogos investigando sexualidade e, desde o final dos anos 60, começo dos anos 70, você tem o trabalho de pessoas como Peter Fry, Maria Andréa Loyola. Você tem investigação no campo da sexualidade, bastante importante, que antecede realmente a AIDS, e cuja problemática, de certa forma, era muito mais integrada, eu acho, com um projeto de uma Antropologia do Brasil. Enfim, um livro como Para Inglês Ver, do Peter Fry, é um livro sobre a identidade nacional, e muito em diálogo com outros antropólogos, como Roberto DaMatta, por exemplo. Então, quando alguém como Peter Fry investigou a homossexualidade, não foi simplesmente como uma finalidade em si, foi para dizer alguma coisa sobre o Brasil, foi para dizer alguma coisa sobre a construção social e cultural do Brasil que indagou a sexualidade. E tinha um grupo ativo, pelo menos no Rio e São Paulo (não sei em outros centros como isso evoluiu). Mas no Rio e São Paulo, nos anos 80, já tinha um grupo de estudos que se reunia lá na UERJ, na Medicina Social, o pessoal ao redor da Andréa [Loyola], o pessoal do NEPO, da UNICAMP, em São Paulo. Você tinha uma coisa bastante ativa. Eu me lembro que em 82, 83, 84, quando eu estava como aluno fazendo pesquisa de campo, eu ia participar de algumas dessas reuniões. Pessoas como Nestor Perlonguer, Maria Dulce Gaspar, às vezes Gilberto Velho, pessoas da nata da Antropologia, participavam desses encontros. Eu acho que isso é interessante. Ao longo dos anos 80 e nos anos 90, especialmente, essa corrente da Antropologia tem um encontro com pelo menos dois campos mais aplicados, ou mais práticos, uma sendo a AIDS e a outra a Saúde Reprodutiva. Eu acho que são três correntes que acabam, de certa forma, se misturando lá pelo começo dos anos 90. Como em outras áreas, eu acho que financiamento para pesquisa é uma das coisas que motiva, que estrutura as possibilidades. Então, tanto a AIDS como a Saúde Reprodutiva, no começo dos anos 90, foram áreas com bastante possibilidade de apoio para pesquisa, com fundações de setores governamentais específicos, interessados em fomentar investigações nessa área. E aí me parece que, como tem sido ao longo dos anos 90, a sexualidade tem surgido como um campo em si, onde essas diferentes correntes contribuem de diversas maneiras.

Ceres Víctora: E o encontro desses três campos – Saúde Reprodutiva, AIDS e Sexualidade – pode estar relacionado ao fato de que no início da década de 90 aumenta a prevalência de AIDS entre mulheres em fase reprodutiva? Será que é quando as mulheres começam a ser mais atingidas pelo vírus da AIDS, e que elas têm filhos portadores do vírus, que esta surge como uma problemática social também?

Richard Parker: Certamente, social e epidemiológica. Lendo os estudos antropológicos dos anos 80, isso foi absolutamente previsível antes de acontecer como fato epidemiológico. Mas os recursos vêm não em cima dos estudos antropológicos, mas eles vêm em cima dos números epidemiológicos. Se eles tivessem nos escutado em 87, 88, talvez pudéssemos ter até poupado algumas vidas, não é? Mas acho que foi só quando isso ficou mais visível empiricamente, com a feminilização da epidemia, com o crescimento da infecção entre mulheres, a transmissão vertical, etc., que você tem, então, essa junção mais clara em termos de pesquisa, financiamento, preocupação em nível governamental e na Academia também.

Ceres Víctora: E como é que tu situarias, em termos internacionais, essa produção brasileira na área de Antropologia e Saúde Pública?

Richard Parker: Acho muito importante, certamente. De novo, tem dois campos, eu acho que em termos... Bom, em ambos os campos, um impedimento é sempre o português, porque é uma língua a que muitas pessoas não têm acesso. Então, a produção brasileira é muito rica, e sempre acho frustrante que circule muito pouco internacionalmente, por causa do problema de poucas pessoas lerem em português. Mas, independente disso, eu diria que tanto no ca mpo da AIDS, quanto no campo específico da Antropologia da AIDS, a produção do Brasil tem tido um impacto bastante grande. Eu acho que quando você vai ao Congresso Internacional de AIDS, que antigamente era a cada ano, hoje em dia é a cada dois anos, é raro que o Brasil não tenha a segunda maior delegação de investigadores. Normalmente os americanos são o primeiro lugar, e os brasileiros o segundo. Parcialmente porque o Brasil tem recursos para a AIDS do Banco Mundial; enfim, recursos que viabilizam viagens, projetos de pesquisa que as pessoas queiram apresentar, etc., mas é sempre muito impressionante para as pessoas de outros países, da Austrália, da Inglaterra: "Como tem brasileiros, meu Deus, parece que os brasileiros reinam no Congresso Internacional de AIDS". Isso é uma coisa significante. Acho que é uma área em que o Brasil se apresenta muito bem. Na Antropologia, lamentavelmente, eu acho que o problema lingüístico é até pior. Na Antropologia internacional, você vai ver muitas referências de trabalhos publicados em inglês, mas uma porção muito grande do que é produzido no Brasil, não circula muito. Imagina se você fosse contabilizar referências, e tem alguns serviços que fazem isso, você ia ver que são referências de pessoas um pouco com o meu perfil: alguém que escreve em inglês e publica em inglês, porque vem de um país de língua inglesa e que acaba escrevendo sobre o Brasil. E é menos freqüente o trabalho feito por brasileiros publicado em inglês. Eu tenho feito algumas tentativas de publicar traduções do trabalho de antropólogos, ou de pessoas cujo trabalho me parece muito simpático em termos antropológicos. Pessoas como Vera Paiva, ou Veriano Terto, de conseguir publicar em inglês, mas é um processo muito intensivo em termos do trabalho de fazer tradução, de adequar a tradução à linguagem e até...

Ceres Víctora: Ao estilo?

Richard Parker: O estilo, o estilo acadêmico, para publicar numa revista ou livro nos Estados Unidos e Inglaterra, é muito diferente. Eu, particularmente, como falo muito e escrevo usando muitas palavras, eu não tenho o estilo enxuto. Até acho que me encaixo bem, razoavelmente bem, no estilo brasileiro, que é um pouco mais livre, um pouco mais fluido. Quando as pessoas traduzem o meu trabalho, elas até falam que é mais fácil traduzir do que muitas pessoas que escrevem em inglês, onde é muito mais pão-pão, queijo-queijo; muito menos barroco, talvez. Mas isso cria uma dificuldade, porque um artigo escrito para ser publicado aqui, escrito dentro da cabeça da academia brasileira, tem o seu próprio estilo, e não é o estilo de outras tradições acadêmicas. Então, a pessoa ou tem que escrever pensando nesse outro estilo, ou tem que fazer um trabalho de revisão muito extensivo. Nas vezes em que eu tenho organizado livros em inglês que incluem trabalhos escritos originalmente em português, por pesquisadores brasileiros, normalmente levam três etapas de revisão. Uma primeira coisa, que é só a tradução; uma segunda, que é revisão (que eu procuro uma outra pessoa para fazer); e uma terceira revisão que eu faço, depois que alguém já fez uma intervenção. Porque senão você fica muito envolvido no texto e não consegue fazer a revisão tão duramente quanto seria necessário para realmente adequar o sentido. Mas, fora esses problemas de estilo, ainda assim eu acho que os trabalhos sobre o Brasil continuam tendo um papel bastante importante. Enfim, na Antropologia internacional da AIDS, se fôssemos olhar, existem algumas bibliografias sobre isso. Nunca fiz um estudo quantitativo, mas apostaria que você teria poucos países que figurariam tanto nos títulos. Na África você tem muitos estudos, muitos e muitos, só que é a África toda, com aqueles cinqüenta e não sei quantos países. E quando você olha a produção do Brasil, é significativa. E até quando você compara com a produção sobre toda a América Latina, imagino que o Brasil tem mais da metade dos estudos feitos que tem a ver com a América Latina. Então, realmente o Brasil é quase um continente em si e tem uma importância nessas pesquisas comparativas e uma bibliografia antropológica bastante importante.

Daniela Knauth: Outra questão sobre trabalhar com AIDS dentro da Antropologia é essa coisa de estar na academia e, ao mesmo tempo, ter uma posição de militância política. Como é que tu vês isso? Tu estás bem nisso, não é?

Richard Parker: Essa é uma questão difícil e interessante ao mesmo tempo. Por um lado, eu acho que me ajudou muito estar trabalhando no Brasil para poder fazer isso. Até acho que é uma característica da vida brasileira, talvez de muitos países em desenvolvimento ou com recursos escassos, não é? Tem mais trabalho a ser feito dentro da sociedade do que gente para fazer o trabalho. Então o que você vê é que as pessoas acabam fazendo diversos trabalhos. Às vezes é porque a remuneração é muito pouca, e as pessoas têm que fazer isso para sobreviver; mas também, além do lado prático, eu acho que tem um lado que é muito de compromisso social e político que as pessoas têm. Então, no meu caso, foi a militância com a questão da AIDS; mas quase todos os meus colegas têm algum tipo de envolvimento em trabalhos sociais que, de certa forma, andam paralelos com a sua produção acadêmica, a sua área de pesquisa, onde esses dois lados se complementam de uma maneira muito importante. Até porque talvez a pesquisa saia um pouco da Torre de Marfim e acabe sendo uma coisa mais útil para o mundo em que a gente vive e para os projetos políticos em que a gente está engajado, não é? Eu acho que é sempre um risco, você acaba arriscando se perder no caminho. Não vou citar nomes, mas eu acho que você tem isso, de pessoas que durante um tempo conseguiram compatibilizar, mas acabam indo para um lado ou para outro e meio se perdendo com essa tensão. Gostaria de pensar que para mim tem sido uma tensão bastante produtiva.

Eu acho que o envolvimento político e na militância, no ativismo, me ajudou muito a conceitualizar o objeto de estudo das minhas pesquisas, as questões que eu queria investigar; e sinto, ou gostaria de pensar, que o que eu tenho produzido como pesquisador é mais significante por causa desse processo de ser informado por uma prática cotidiana na militância. Às vezes eu acho que dificulta, sim, um certo tipo de aprimoramento acadêmico; que se você pegasse todo aquele tempo que está gastando na prática, toda aquela energia e colocasse exclusivamente em raciocínio, análises, interpretações, certamente a sua produção seria bem maior, e talvez a sofisticação das suas idéias também. Não sei se a importância que o seu trabalho teria para o mundo seria maior. Muito cedo na minha carreira, até antes de eu ter doutorado, eu tinha feito uma escolha muito clara, que se fosse simplesmente ficar na Torre de Marfim, na academia norte-americana, eu não ia continuar. Eu não tinha a menor vontade de gastar o resto da minha vida sendo um professor de Antropologia em alguma universidade qualquer, simplesmente formando alunos para serem novos antropólogos. Acho ótimo para quem quer fazer, não era o que eu queria fazer. Então eu realmente queria tentar desenvolver algum tipo de trabalho que formasse pessoas, antropólogos, ou não, para agir no mundo e para ter algum impacto que, esperamos nós, acabe fazendo do mundo um lugar um pouquinho melhor para viver. E, nesse sentido, até o perfil dos meus alunos, quase todos os meus alunos, tanto os daqui do Brasil quanto os doutorandos que eu oriento em Columbia, são pessoas que têm um perfil muito semelhante, em termos de engajamento, um envolvimento na prática. São pessoas que trabalham em ONGs, ou que trabalham em programas governamentais. Uma grande parte delas nunca vai ter uma imensa produção acadêmica – quase todas elas têm uma produção –, mas isso não é um indicador que pode ser usado, no final das contas, para julgar a produtividade delas, porque isto se vê é na ação, é em criar dentro dos espaços de movimentos sociais, a possibilidade, muito incomum de fato, de fazer produção de conhecimento fora das paredes da academia. Aí tem diversas visões a respeito. Tem pessoas que acham que militante não pode ser um bom pesquisador, que menospreza a sua capacidade de pesquisa. Eu, ao contrário, acho que se às vezes os militantes não são grandes pesquisadores, não é porque eles não têm objetividade suficiente, é porque eles não têm formação. Eu acho que com a formação adequada, pessoas da prática podem ser absolutamente geniais em termos da sua capacidade intelectual, de investigação. O rigor com que as suas investigações são feitas é uma questão do tipo de formação, do treinamento que é fornecido para as pessoas, mais do que o espaço onde elas estão atuando. Agora... interessante... eu acho que, num primeiro momento, essa dupla militância, vamos dizer, dificultou um pouco para mim. Se eu tivesse procurado trabalho na academia, há uns 10 anos atrás, talvez as pessoas tivessem levantado um pouco a sobrancelha e dito: "Hum, não sei não, é meio duvidoso... Isso é Ciência?" Bom, eu tinha plena consciência de que o que eu faço não é Ciência, Ciência com C maiúsculo, pelo menos; eu acho que nenhum antropólogo faz isso. Eu penso que, fundamentalmente, nas Ciências Sociais, nós fazemos um trabalho interpretativo, que, no final das contas, é motivado por nossos projetos políticos. O problema é que a gente não tem clareza sobre isso, muitas vezes. E aí, quando a gente não tem clareza, é que a gente fica com problemas, não é? Mas com o passar do tempo... é uma coisa engraçada: se você consegue vencer as primeiras barreiras, então isso acaba sendo muito valorizado. Enfim, no fato de eu ter sido nomeado em Columbia, quando eles olharam mais de 100 nomes para essa vaga, não há nenhuma dúvida de que o meu perfil, de ter esse tipo de ação prática, capacidade de agir um pouco em diversos espaços, foi uma coisa supervalorizada, de maneira muito positiva e...

Ceres Víctora: ... e dentro da academia...

Richard Parker: E dentro da academia, e dentro da "Ivy League", quer dizer, nos espaços da elite da academia. Então eu acho que é uma batalha ter o reconhecimento para isso. Não diria que é fácil, mas eu acho que se você é persistente, e insistente, depois de algum tempo as pessoas acabam um pouco entendendo o porquê disso. E até vendo que isso cria uma contribuição que, de outro modo, não haveria.

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    (Realizada no dia 12/12/01, no Hotel Embaixador, em Porto Alegre, por ocasião do Encontro da ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar da AIDS.)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Ago 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2002
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