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Entrevista com Aihwa Ong

ESPAÇO ABERTO

Entrevista com Aihwa Ong

Apresentação

Aihwa Ong é antropóloga e professora na Universidade da Califórnia, Berkeley. Ela cresceu na Malásia e fez seu Ph.D. na Columbia University em 1982. É autora de Spirits of resistance and capitalist discipline (1987), The cultural logics of transnationalism (1999), Flexible citizenship (1999), Buddha is hiding (2003) e Global assemblages (2005), este realizado em parceria com Stephen Collier, e sua mais recente publicação é Privatizing China, socialism from afar (2008).

Aihwa Ong tem contribuído de forma fundamental ao debate sobre a circulação internacional de pessoas, formas de poder e bens simbólicos. De um modo extremamente produtivo, suas interpretações nos revelam a importância do fazer etnográfico, ressituando problemas de pesquisa e colocando em primeiro plano os modos de percepção da experiência dos(as) imigrantes diante de diversos agentes sociais. De outra parte, encontramos em seu trabalho um debate interdisciplinar (com a medicina e a economia, por exemplo) sobre o mundo contemporâneo e as formas de subjetivação, tecnologias de poder e governança.

Em seus trabalhos, os sujeitos de pesquisa atravessam diversas fronteiras e "tramas" relativas às noções de cidadania. Suas análises desses processos nos permitem conhecer as tecnologias de sujeição a discursos e os modos de atuar desses em arenas de negociação de valores e jogos de poder. Ela nos apresenta, portanto, sujeitos interpelados por agentes e micropráticas de poder. Aihwa Ong nos provoca a pensar sobre como os sujeitos experimentam contextualmente a modernidade, o neoliberalismo e as noções de cidadania, detendo-se nas maneiras particulares de reconfigurar a cidadania que estão em jogo. Nos propõe compreender as formas como são incorporados os novos valores resultantes de uma adequação do capitalismo global às realidades locais, quais seus agentes e protagonistas relevantes na distribuição de poderes e saberes dessa "cidadania".

Suas inquietações sobre o Sudeste asiático nos levam a refletir sobre as biopolíticas que permeiam distintos segmentos de população, formas de governar que estão sendo amplamente preconizadas como valores tidos e vistos como da modernidade. A crítica a visões orientalistas e a inspiração foucaultiana são explícitas. Os uso de conceitos de biopoder, revelando técnicas de incorporação e exclusão, potencializam a descrição etnográfica de Aihwa Ong atingindo um nível de detalhamento que abarca as ambiguidades e paradoxos experimentados pelos sujeitos de pesquisa.

A circulação internacional não se restringe à observação de pessoas que imigram, senão que aponta para a urgência de colocar em relevo os distintos mecanismos e tecnologias de poder que atuam contextualmente.

Nessa entrevista, concedida em julho de 2008 a Horizontes Antropológicos, a autora reitera seu interesse por aquilo que chamara de "um emaranhado da política, tecnologia e cultura". Nos fala sobre seu mais recente livro, Privatizing China, socialism from afar (2008) e nos demonstra a vitalidade de suas propostas de análise dos processos de globalização e transnacionalismo observados no Sudeste asiático. Motivados pela leitura de seus trabalhos a respeito do Sudeste asiático e o moderno transnacionalismo chinês, entendemos que o trabalho de Aihwa Ong não se restringiria a uma "área" ou "temática", ou seja, a um recorte geográfico ou tão-somente à extensa e complexa reflexão sobre o neoliberalismo na Ásia.

Finalmente, deve-se enfatizar que suas propostas são inspiradoras. Ao entrevistá-la, nosso objetivo foi de torná-la mais visível aos leitores brasileiros. Isso inicialmente a surpreendeu, talvez porque suas propostas estão centradas na experiencia direta acumulada com a pesquisa e temas asiáticos. Entretanto, essa entrevista é um primeiro encontro com leitores do idioma português. Esperamos assim ampliar a circulação de ideias e divulgação das propostas dessa autora. A entrevista e tradução foram realizadas por Daniel Etcheverry, contando com a supervisão e revisão de Denise Jardim.

Daniel Etcheverry e Denise Jardim

Horizontes Antropológicos: Seus interesses de pesquisa estão condensados em sua página da internet da seguinte maneira: "[ ] meu trabalho foca nos regimes de governo, tecnologia e cultura que cristalizam novos significados e práticas do fazer humano. Essas ideias são exploradas em Neoliberalism as exception (2006) e em Privatizing China, socialism from afar (2008). Meu universo de pesquisa varia entre o Sudeste asiático e a China, a fim de localizar centros globais emergentes e experimentos com biotecnologia no modernismo do Leste asiático". Entretanto, seu entendimento dos debates sobre transnacionalidade e neoliberalismo não se restringe ao Sudeste asiático e China. De fato, seu trabalho sugere uma coleitura da contribuição da etnografia à antropologia como um todo. De que forma seus interesses na etnografia se desenvolveram ao longo dos anos? Em que termos você pensa o papel e o significado da etnografia hoje?

Aihwa Ong: Como Stephen Colier e eu sugerimos em Global assemblages (2005), a antropologia contemporânea se interessa pelas formas que as tecnologias modernas, a política e as culturas interagem para definir o que é humano, ou o que o coloca em questão, em contextos diversos. Isso significa que temos que visualizar quais marcos são apropriados a nossa investigação etnográfica de um problema antropológico em particular. Em nosso mundo desigualmente entrelaçado, as categorias dadas de culturas e nações não têm a capacidade de incluir a multiplicidade de situações configuradas pela interação entre o global e os elementos locais.

Ao invés de tomar as fronteiras nacionais ou culturais como o marco da pesquisa etnográfica, nosso foco é a interatividade nos moldes da internet; ela reúne elementos heterogêneos – tecnologias globais política, ética – num conjunto interativo. A investigação antropológica não deve ignorar as condições dinâmicas geradas pelos fluxos e relações entre o global e o local ao desenhar os contextos de pesquisa. O antropólogo contemporâneo situa a pesquisa dentro dessas constelações de relações, as quais entram num jogo de sobreposições com a cultura e o Estado-Nação sem, entretanto, ficar presas a eles.

Assim, o espaço de tal universo torna-se o espaço da investigação antropológica. A pesquisa etnográfica pode focar, então, nas interações locais de diversos componentes e na cristalização das condições que possibilitam o surgimento de atores e as tomadas de decisões na solução dos problemas da vida.

O conceito de conjunto serve à natureza situada e à conduta do nosso método etnográfico. Os questionamentos antropológicas sobre as definições em constante mudança do que é humano são assim situados nas articulações entre o local e o global. O nosso método observa de perto e nos mantém próximos às práticas concretas de atores e instituições que têm lugar em contextos sociais particulares e em tempo real; não pretendemos predizer resultados. Isso significa que os paradigmas estáticos da causalidade e dos resultados predeterminados podem não mais ser o marco da pesquisa etnográfica; nós precisamos de conceitos que nos forneçam um contexto definido e que identifiquem as interações estratégicas e contingentes dos fluxos e ações globais e locais.

Horizontes Antropológicos: Os debates recentes parecem manifestar uma tendência de apresentar a noção de diversidade como meio de mitigar "a ameaça" da diversidade. Entretanto, como você aponta, esta ênfase pode ser uma nova forma de disfarçar as desigualdades políticas: o diverso não significa igualmente empoderado. Dada a importância que a etnografia tem em seu trabalho, qual seria o papel do etnógrafo e quais os desafios que precisa enfrentar ao lidar com esse paradoxo?

Aihwa Ong: Pensar em termos causais tão absolutos, como "a homogeneidade necessariamente se desfaz perante a diversidade" ou "a diversidade necessariamente conduz à desigualdade" não é de grande utilidade. Na realidade, tais declarações são reveladoras das posições numa concorrência pelo poder, ou seja, o poder de definir ou solidificar um tipo de arranjo social particular. A pesquisa etnográfica examinará o jogo entre práticas discursivas e não discursivas num campo dinâmico de relações de poder. Por isso, eu sugeriria que o etnógrafo analise os atores-chave, as técnicas e as idéias envolvidas em cada contexto particular de luta pelo poder, além de descobrir quais normas e práticas (diversidade, homogeneidade, desigualdades enraizadas, ou nenhuma delas) que acabam se institucionalizando em consequência de tais embates.

Horizontes Antropológicos: Em Flexible citizenship: the cultural logics of transnationalism (1999) você se remete à experiência colonial das populações locais para mostrar como as "culturas orientais do anel do Pacífico" adotaram e adaptaram localmente os valores liberais, assim criando suas próprias formas de modernidade e pós-modernidade. Quais são os resultados dessa experiência de colonização no "Ocidente"? Você diria que, de alguma forma, essa experiência ajudou o Ocidente a moldar a percepção que tem da sua própria diversidade?

Aihwa Ong: O contexto de minha pesquisa em Flexible citizenship são os fluxos através do Pacífico levados adiante pelos gerentes de corporações com base em Hong Kong durante as décadas de 1980 e 1990. Enquanto que as circunstâncias históricas e culturais são particulares de Hong Kong, meu estudo aponta para uma convergência da lógica cultural chinesa da transnacionalidade com os princípios flexíveis do capitalismo moderno da forma como os articula David Harvey. Meu foco é num novo tipo de prática transnacional – a relocação das famílias cujas atividades comerciais são multifocalizadas – que não é exclusividade das populações asiáticas. Vivemos uma época de fluidez dos mercados; as práticas corporativas têm se aliado à manipulação flexível dos regimes migratórios, e tais estratégias de mobilidade que objetiva à incorporação aos mercados e aos países afluentes pode ser encontrada também entre as elites da América do Sul, cujas experiências de colonização também afiaram suas habilidades em manipular e penetrar as fronteiras econômicas, políticas e culturais em busca de dividendos flexíveis.

Os novos fluxos de atores em posições de chefia que partem das economias emergentes em direção à América do Norte engrossa também as redes tecidas sobre o anel do Pacífico. O envolvimento de atores de diversas nacionalidades, capazes de navegar por diferentes esferas do capital e da cultura, tem alimentado um certo conhecimento crescente, embora lento, da diversidade cultural e demográfica na América do Norte. O entrelaçamento das economias do Pacífico também tem erguido barreiras culturais contra a entrada de imigrantes das nações emergentes, sejam eles pobres ou ricos.

Horizontes Antropológicos: Tendemos a considerar a globalização como um fenômeno ocidental que se espalhou a partir dos países do Atlântico Norte em direção ao resto do mundo, apesar do fato de que essa visão dualista de um mundo dividido em centro e periferia há tempo vem sendo desafiada. Concomitantemente, muitos intelectuais provenientes das antigas colônias hoje em dia combinam a suas experiências de nativos de seus lugares de origem às de produção intelectual em seus novos locais trabalho no Ocidente. Como você poderia descrever a relação entre essas duas formas de percepção – a globalização centrada nos Estados Unidos e na Europa e a globalização como um processo de múltiplos centros – e a mudança concreta de lugar de residência? Quais são os desafios enfrentados pelos intelectuais que migram ao suposto "centro" e por aqueles que permanecem em seus lugares de origem?

Aihwa Ong: Não existe um consenso sobre o que é a globalização. Os sociólogos e os economistas políticos tendem a considerar que a globalização é um momento específico do desenvolvimento do capitalismo e uma integração estrutural em nível global. A perspectiva centro-periferia é um exemplo disso. Eu acho que esses paradigmas são demasiadamente deterministas e estáticos, e não conseguem dar conta das mudanças concretas nos fluxos e das conexões entre os lugares. Além do mais, elementos completamente díspares são levados a formar novos arranjos e a realizar novas interações através das fronteiras, assim configurando novos espaços. Num contexto de globalização como esse o Estado-Nação, enquanto unidade de análise, assume uma singularidade de ação; estou dando suficiente atenção às diversas estratégias de governo e negociação com os poderes externos que operam em múltiplas escalas.

Contrariamente, e pensando em termos weberianos, considero a globalização como um processo em andamento, no qual as formas modernas de racionalidade originadas na Europa ocidental vão se universalizando de maneira não homogênea e inacabada.

Minha abordagem enfatiza a interatividade dos fluxos e dos elementos que configuram e reconfiguram os diversos campos de poder, mais do que uma fórmula de abrangência planetária para definir o que é a globalização. As formas globais, tais como as práticas capitalistas, as biotecnologias, os regimes de direitos humanos, entre outras, entrelaçam-se com os sistemas políticos e as culturas, e suas relações produzem novas situações de globalidade. A interface entre a lógica transnacional e locais específicos evidencia o global nos diversos ambientes. O antropólogo pode permanecer em seu vilarejo e ainda assim estudar como uma forma global, por exemplo, os valores dos direitos humanos, é introduzida em relação aos arranjos políticos e éticos preexistentes num contexto específico.

Horizontes Antropológicos: As mudanças culturais, econômicas, políticas e sociológicas resultantes do declínio de uma visão polarizada do mundo – Oriente versus Ocidente, ou capitalismo versus socialismo – levaram a antropologia ocidental a refletir sobre seu próprio lugar e papel e a se engajar num diálogo com outras disciplinas. Não podemos menosprezar o papel da economia nessa nova configuração, que é de grande relevância. Qual é a sua percepção da forma como se desenvolve esse diálogo entre antropólogos e economistas no contexto contemporâneo?

Aihwa Ong: Meu trabalho é inerentemente interdisciplinar. Os antropólogos deveriam ler textos clássicos da economia política e da filosofia, mas nós tendemos a levantar questões diferentes e a desenvolver métodos de pesquisa também diferentes daqueles dos economistas.

Os antropólogos se beneficiam de não ficar presos às fronteiras disciplinares tradicionais, contextualizando suas pesquisas no entrecruzamento de elementos diversos (sociais, políticos, econômicos, culturais, éticos, etc.) que configuram uma situação na qual o humano é colocado em questão.

Horizontes Antropológicos: Em Neoliberalism as exception (2006), ao observar as novas políticas e práticas que atingem os refugiados e os trabalhadores migrantes, você aponta para a importância das firmas globalizadas, tais como Reebock e Nike, mas também reflete sobre as ações dos agentes globais e as políticas humanitárias globalizadas. Como você avaliaria o trabalho antropológico sobre tais organizações humanitárias, não governamentais e globalizadas?

Aihwa Ong: Em Neoliberalism as exception eu arguo que o neoliberalismo é uma tecnologia de governo destinada a otimizar resultados na política e no comportamento cultural. Nos países asiáticos emergentes, a decisão soberana sobre o "neoliberal" faz de sua racionalidade uma exceção à forma usual de fazer negócios. Sob políticas neoliberais, as zonas especiais de desenvolvimento de capital são esculpidas no território nacional, e os valores de autogoverno são encorajados, mas dentro de limites políticos precisos. Em meu novo livro, Privatizing China, socialism from afar (2008), eu proponho uma junção entre os valores neoliberais de autoempreendimento e a política autoritária chinesa na conformação da modernidade chinesa.

Em termos mais abrangentes, a exceção política é uma decisão do Estado que permite dividir as práticas de governo, de tal maneira que sujeitos autônomos são privilegiados em detrimento daqueles que não conseguem alcançar os patamares ótimos de autossuficiência.

Em situações de "graduated sovereignty"1 1 Esse conceito é desenvolvido em Neoliberalism as exception: mutations in citizenship and sovereignty. o tratamento diferencial das populações é uma decisão soberana que reforça o interesse discriminatório das corporações por trabalhadores capacitados. Assim sendo, os critérios neoliberais de responsabilidade individual vão além das discriminações políticas que diferenciam o status de cidadão daquele do estrangeiro.

Os regimes de direitos humanos e o novo humanitarismo são formas ocidentais universalizadas que procuram expandir a governança cultural a múltiplos ambientes. Uma suposição equivocada da escola da globalização convencional é que o Estado-Nação está em declínio e de que novas formas de governança em níveis múltiplos irão moldar novas configurações políticas. Agências multilaterais tais como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, por outro lado, além das ONGs tais como Médicos Sem Fronteiras estão engajados em alguma forma de governamentalidade global, ou seja, aquilo que Foucault chama de administração ou conduta dos povos, ao contornar as autoridades estatais. As agências multilaterais e as ONGs competem com os países soberanos na tentativa de substituir o governo soberano pela governança transnacional por parte de cidadãos e estrangeiros.

É crucial para a etnografia investigar as atividades desses praticantes de humanitarismo contemporâneos que agem em nome da transparência e da responsabilidade (o FMI, por exemplo), ou dos direitos universais e da ética (como, por exemplo, uma enorme variedade de organizações sem fins lucrativos que trabalham em favor dos refugiados, dos migrantes, trabalhadores, mulheres e crianças). Na realidade, elas são formas de intervenção nos "regimes de vida" (regimes of living) – um termo cunhado por Stephen Colier e Andy Lakeoff – que designa ambientes onde as condições políticas, sociais e econômicas entrelaçadas entre si levantam a questão de "como se deve viver". Os antropólogos podem questionar os valores e práticas que são introduzidos em arenas preexistentes pelas ONGs e procurar descobrir quais normas e formas estão sendo instituídas e como elas entram em conflito com as formas culturais e éticas existentes. Em outras palavras, não existe nenhuma instância não problemática quando se trata de direitos humanos, pois nem mesmo as atividades humanitárias operam fora das relações de poder; são elas mesmas constelações de autoridade que procuram refazer as vidas políticas mediante a imposição de formas globais de governança ou responsabilidade.

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    Esse conceito é desenvolvido em
    Neoliberalism as exception: mutations in citizenship and sovereignty.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009
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