Resumo
O campo de produção dos relatórios antropológicos para fins de titulação de territórios quilombolas deu à antropologia um lugar singular na escrita de uma história dos quilombos no Brasil. Baseado nesse tipo de produção, proponho uma etnografia da história do quilombo Linha Fão, comunidade localizada no meio rural de Arroio do Tigre (RS). Com ela, ofereço descrição etnográfica baseada em três diferentes sentidos da história mobilizados nesse tipo de pesquisa: como nation building, como dispositivo cultural e como paisagem. Isso permitirá mostrar que a história a partir do Fão é uma subversão radical ao que o oficialismo da cidade ensina sobre seu passado; ao que o Estado brasileiro define sobre abolição da escravidão; ao que as paisagens do lugar evidenciam com sua atual conformação; ao que o memorialismo gaúcho explica sobre suas guerras passadas; e ao que o achado de um tesouro por parte de um ancestral quilombola parece significar.
Palavras-chave:
história quilombola; relatórios antropológicos; paisagens quilombolas; expulsões
Abstract
The production of anthropological reports for the purpose of titling quilombola territories has given anthropology a unique place in the writing of a history of quilombos in Brazil. Based on this type of production, I propose an ethnography of the history of the quilombo Linha Fão, a community located in the rural area of Arroio do Tigre (RS). With it, I intend to offer an ethnographic description based on three different senses of history mobilized in the context: as nation building, as a cultural device and as a landscape. This will allow me to show that history from Fão is a radical subversion of what the city’s officialdom teaches about its past; what the Brazilian state defines about the abolition of slavery; what the landscapes of the place show with their current conformation; what the gaucho memorialism explains about their past wars; and what the finding of a treasure by a Quilombola ancestor seems to mean.
Keywords:
Quilombola history; anthropological reports; Quilombola landscapes; expulsions
Relatórios antropológicos e história quilombola1
Reconhecida como importante campo temático da antropologia brasileira, a realização de laudos, perícias e relatórios antropológicos tem aberto um leque de reflexões e debates acerca não somente do compromisso da antropologia diante das demandas sociais no cenário nacional, mas das implicações metodológicas e epistemológicas desse tipo de produção, caracterizada pelo aspecto circular das demandas e expectativas comunitária, acadêmica e jurídico-administrativa. Centrado nas temáticas indígena e quilombola, um conjunto de dossiês, livros e artigos tem trazido, a partir dos anos 1990, essa discussão desde diferentes abordagens, inserindo-se numa tendência do campo de produção antropológica marcada pela necessidade de reflexão sobre seu próprio lugar, atribuição e limite.2
No âmbito dos estudos sobre quilombos, a reivindicação das centenas de comunidades quilombolas por seus direitos territoriais preconizados no artigo 68 da Constituição Federal de 1988 fez com que a antropologia se assentasse em uma nova conjuntura do debate étnico e racial brasileiro.3 Para isso, nas três últimas décadas se efetivou como importante interlocutora em prol dos direitos das comunidades quilombolas, não apenas por seu envolvimento no processo de conceituação do termo quilombo junto às instâncias do Estado, mas pela capacidade de traduzir as realidades quilombolas a partir do método que a caracteriza: a etnografia.4
Isso a fez implicar-se como a área das humanidades autorizada a cumprir um dos requisitos legais para a efetivação dos direitos das comunidades quilombolas nos processos administrativos do Incra, compondo, inclusive, o nome de sua primeira e principal peça técnica: o “Relatório Antropológico”.5 É nesse cenário jurídico-administrativo que a antropologia passa a contribuir de forma mais sistemática para a produção de uma história dos quilombos no Brasil, matéria então circunscrita ao campo historiográfico, sociológico, memorialista e artístico.6
O faz, no entanto, de uma forma bastante peculiar, tendo em vista que deve conjugar a orientação etnográfica que lhe é inerente às regras do campo do direito, em especial, um documento do Incra chamado “Instrução Normativa”, que “regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos”, incluindo as diretrizes das pesquisas a serem realizadas para esse fim (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, 2009).7 De acordo com este documento, o Relatório Antropológico deve guiar-se pelos tópicos que articulam temas e fontes heterogêneas de pesquisa implicados na história do grupo e o contexto em que se insere. Nele, o (a) antropólogo(a) responsável e sua equipe devem comprovar a “presunção da ancestralidade negra” da comunidade ligada a um “histórico de opressão vivida” e o “histórico de ocupação da área com base na memória”; fazer o “levantamento e análise das fontes documentais e bibliográficas existentes sobre a história do grupo e sua terra”; proceder a “contextualização do histórico regional e com a história da comunidade […] a partir do histórico vivido pelas gerações anteriores”; descrever a “representação genealógica do grupo”; além de indicar “os sítios que contenham reminiscências históricas dos antigos quilombos” (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, 2009, grifo meu).
Trata-se, portanto, de um tipo de pesquisa que articula de modo singular “memória”, “fontes documentais e bibliográficas” em benefício do argumento sobre dimensões diversas do passado do grupo, das terras e da região. Nota-se que a produção dessa história oficial estimulada pelas Instruções Normativas está ancorada no paradigma do “historicismo” (Palmié; Stewart, 2016) e da “filosofia da história” (Lévi-Strauss, 1976, 1978), onde a concepção e compreensão dos fatos humanos passa pela recuperação dos processos que determinaram o atual estado das coisas. De teor revisionista, esse sentido da história toma o marco da escravidão e suas resistências como referência determinante para explicar o lugar dos grupos quilombolas na desigual estrutura social do Brasil de hoje. O que implica dizer que não há afirmação política possível para esse novo sujeito do Direito se ela não se realizar sob o signo da História.8
Como a elaboração dessa peça técnica tende a abarcar essa variedade de referências com vistas a responder diferentes questões do passado, defendo que a escrita de uma história quilombola inserida nesse tipo de pesquisa mobiliza diferentes usos e sentidos da história, que podem ser pensados a partir de uma perspectiva cruzada e conjugada em basicamente três aspectos. O primeiro está ligado ao que chamo de história como nation bulding, e tem como fundamento justamente essa premissa revisionista do passado que toma o marco da escravidão como argumento central para a justificativa de um direito para o Estado. Esse sentido da história tende a ser acionado pela própria comunidade, que passa a publicizar sua trajetória vinculada à escravidão e suas resistências como forma de legitimar seus direitos na arena do ativismo étnico. Cabe ao(à) pesquisador(a) articular e/ou contrapor essa história pública assumida pela comunidade com as versões já instituídas local e regionalmente. Assim acaba por enquadrar as informações das tais fontes heterogêneas da pesquisa em um eixo temporal diacrônico relacionado aos eventos oficiais regionais e/ou nacionais (escravidão, abolição, República, pós-abolição, fundação da vila ou freguesia, emancipação do município, etc.) como argumento para legitimar o direito do grupo.
Enquanto mediadora de uma História para o Estado, a antropologia passa a contribuir para uma memória revisitada da nação a partir de fontes e perspectivas até então inacessíveis, inexistentes e deslegitimadas: onde a escravidão e a resistência à opressão histórica sofrida atuam não somente como evidências de um passado não incorporado aos documentos oficiais, mas como fontes de argumento e justificativa de um direito para o futuro. Não raro, resultados das pesquisas passam, inclusive, a ser incorporados publicamente pelo grupo, contribuindo para a narração de uma nova história local (Arruti, 2006; Buti, 2015). Isso faz com que pesquisas para o Relatório Antropológico fomentem uma História outra sobre um Brasil outro, que passa a disputar sentidos com as narrativas oficiais já instituídas. Nesse sentido, “fazer” História é, também, “fazer” Nação, implicar essa produção oficial chamada Relatório Antropológico ao processo de nation building (O’Dwyer, 2016; Silva, 2016).
O segundo aspecto relaciona-se com o que chamo de história como dispositivo cultural. Nela, o foco são os modos culturais de lidar com a temporalidade, em sentido análogo ao que Lefort (1979) chama de “regimes de historicidade”. Ela nos remete à observação de Lévi-Strauss (1976, 1978) sobre a necessidade de a antropologia não sobrepor o sentido e a verdade histórica baseados no historicismo aos sentidos locais enunciados nas teorias etnográficas. Trata-se de buscar saídas para o fato de a História, como disciplinamento dos Estados modernos amparado pelo historicismo, exercer um imperialismo político-epistemológico que se projeta às outras realidades-temporalidades. Escapar dessas reduções exige do(a) pesquisador(a) atentividade aos modos culturais de lidar com o tempo, e um compromisso de multiplicar os conceitos de história pela diversidade das historicidades.
A história como dispositivo cultural tem como principal fonte de interlocução os sujeitos quilombolas, devendo o(a) pesquisador(a) apreender os sentidos e regimes locais da história a partir de teorias e perspectivas não hegemônicas. Aqui não importam documentos, livros e narrativas oficiais. Sequer é necessário tomar a história a partir dos cânones da oficialidade, tampouco enquadrar as narrativas locais em uma estrutura prévia ligada à cronologia dos eventos regionais ou nacionais. Trata-se apenas de levar a sério o ponto de vista dos sujeitos e suas formas de narrar, que não raro trazem sentidos plurais sobre o passado e diferentes relações com a temporalidade não necessariamente coincidentes com as formas e expectativas oficiais. A história quilombola como dispositivo cultural tem os “causos” como importante estrutura narrativa (Anjos; Leitão, 2009), sendo mais cronotópica do que propriamente cronológica, pois espacialmente marcada e referenciada no território. Pode não coincidir com os marcadores oficiais legitimados, incorporando outras referências e sentidos da própria escravidão e suas resistências. Ela é importante não apenas pelo conteúdo narrado sobre um passado, mas pelo modo como evidencia aspectos importantes do grupo no tempo presente.
A perspectiva etnográfica implicada na história como dispositivo cultural nos leva ao terceiro aspecto da escrita de uma história quilombola em contextos de relatórios antropológicos: a história como paisagem. Paisagem, aqui, é entendida não como o objeto exterior e passivo ao grupo, mas o resultado da imbricação das atividades humanas com os ambientes ao longo das gerações, constituindo lugares e modos de habitar (Cáceres, 2017; Ingold, 2002). Podemos reivindicar, portanto, a materialidade da história a partir de uma observação feita por Tim Ingold (2002) sobre a dicotomia que marca a relação entre ciências da vida e ciências humanas: sua crítica às noções de uma história pensada como “desmaterializada” (fora da natura) e de uma natureza apreendida como “atemporalizada” (fora do socius). Nesse sentido, a história não pode ser vista somente como uma tapeçaria de representações “sobre” o mundo (como se existisse somente nos documentos, monumentos e nas narrativas humanas, incluindo teorias oficiais e etnográficas), haja vista ela ser e estar incorporada “no” mundo (Ingold, 2002, p. 208).
O ato de recobrar essa história imersa no mundo exige do(a) pesquisador(a) percepção das paisagens de vida dos sujeitos em suas relações vitais, onde a história para estes se realiza, é sentida e faz sentido. Apreender a temporalidade de um grupo passa, portanto, por apreender a temporalidade dos lugares produzidos e habitados por humanos e não humanos em seus ambientes de vida. E é justamente uma descrição sobre esses três usos e sentidos da história mobilizados nessas situações de pesquisa o que pretende este texto, tomando como contexto etnográfico o Relatório Antropológico do quilombo de Linha Fão, por mim elaborado entre os anos de 2012 e 2013 no município de Arroio do Tigre, região do Centro-Serra gaúcho.9
Durante este período, estive por 32 dias na comunidade, com estadia intercalada em quatro etapas. Ali pude acompanhar o cotidiano de vida dos moradores do Fão, incluindo as lidas das famílias na produção do fumo (principal fonte de renda comunitária), além de caminhar pelo território tradicionalmente ocupado, visitar as casas de quilombolas moradores e não moradores do Fão, sistematizar os documentos pessoais ligados às situações e histórias comunitárias, entrevistar informantes-chave, organizar reuniões para discussão do processo de demarcação, bem como propor oficinas de mapeamento. Visitei também o centro de Arroio do Tigre e municípios de Soledade e Espumoso para conhecer suas igrejas, prefeituras, cemitérios, bibliotecas, cartórios e museus municipais. Pesquisas na sede do Incra e no Arquivo Público de Porto Alegre forneceram documentação variada (inventários e documento de terras, processos-crime, mapas históricos), adensada com análise dos textos oficiais sobre a história local nos sites das prefeituras de Arroio do Tigre e municípios vizinhos, bem como literatura disponível na internet ligada ao contexto local e regional.10
A partir do cruzamento dos dados produzidos dessas fontes variadas de pesquisa com a finalidade de responder às questões da história, a etnografia do Fão permitirá: confrontar a tese do primordialismo europeu propagado pela história oficial sobre a formação do município de Arroio do Tigre e região, introduzindo aspectos de sua história africana e afro-brasileira; problematizar os marcos cronológicos do escravismo jurídico brasileiro abolido pelo Estado nacional no ano de 1888, uma vez que no Fão a escravidão é uma categoria mobilizada para descrever situações ocorridas no pós-abolição e atuais; mostrar que os processos de violência, apagamento e silenciamento vividos por vivos e mortos do Fão estão dispostos nas paisagens; confrontar interpretações unívocas do memorialismo gaúcho acerca da Revolução Constitucionalista, uma vez que o Fão a apreende sob outro quadro de sentido; e, por fim, mostrar, a partir do causo de um tesouro achado por um ancestral quilombola, porque o sentido da história do Fão tende a reproduzir, e não transformar, um estado permanente de precariedade e exploração ligado às figuras da branquitude, do patronato, da propriedade e da expropriação de terras da região.
Fazer história em terra de alemães
A primeira menção ao quilombo de Linha Fão na literatura acadêmica foi resultado de um estudo sucinto feito pela antropóloga Rosane Rubert, em pesquisa encomendada pela Secretaria do Desenvolvimento Rural do Estado do Rio Grande do Sul (SDR/RS). Os resultados dessa pesquisa foram publicados no ano de 2005, no livro Comunidades negras rurais do RS: um levantamento socioantropológico preliminar (Rubert, 2005). Um ano depois, a Fundação Cultural Palmares emitia a certidão de autorreconhecimento do grupo enquanto coletivo quilombola, período também de sua entrada no processo administrativo para regularização fundiária junto ao Incra, que teria sua pesquisa iniciada no ano de 2012, com minha chegada à campo.11
Foi justamente dois anos após a publicação junto à SDR, em 2007, que o grupo virava notícia no principal jornal da região de Arroio do Tigre. Guardada na casa de uma moradora quilombola à época do meu trabalho de campo, uma matéria publicada em 29 de setembro de 2007 na Gazeta do Sul informava que “em meio a um município onde predomina a cultura alemã existe um fato peculiar: a existência de uma comunidade remanescente negra, habitada por descendentes de africanos escravizados, os quilombos” (Drachler, 2007a).12
A “peculiaridade” do fato a que faz menção a matéria está expressa em sua manchete: “Um quilombo faz história em terra de alemães.” Era ali, no Vale do Rio Pardo, lugar de “predomínio da cultura alemã”, que essa peculiaridade era “descoberta”, pois, de acordo com a reportagem, poucas eram as cidades da região com esse tipo de povoação. De fato, a história oficial da região de Arroio do Tigre não localiza a escravidão como elemento importante, tampouco coloca a população negra e africana como sujeitos de seu passado ou presente.13
Se tomarmos o site da prefeitura de Arroio do Tigre como fonte importante da oficialidade local, temos a informação de que a “ocupação efetiva iniciou[-se] por volta de 1900, quando chegaram as primeiras famílias de origem germânica, procedentes de Santa Cruz do Sul e arredores. A estes somaram-se posteriormente os italianos e luso-brasileiros.” Segundo o texto, foi nesse contexto inóspito que “os colonos enfrentaram a mata e seus perigos, abriram picadas, construíram casas, ergueram as primeiras capelas que, em geral, também serviam de escolas”. Nesse período teria também ocorrido o episódio que batiza o próprio nome da cidade: o abate de um “leão” às margens de um arroio por parte dos próprios moradores. Eis que nasce o nome Arroio do Tigre (Histórico […], [2024]).
Essa saga é contada em pormenores naquela que pode ser considerada a primeira obra sobre a história da cidade, de autoria do padre da paróquia municipal, Benno Reis (1992), e publicada no ano de 1992 como parte dos eventos comemorativos ao aniversário da igreja. Trata-se de livro que, por relatar a trajetória da frente de colonização alemã em uma região até então “inóspita” e “selvagem”, traz para si um fundacionismo que toma como centro irradiador a cultura, a história e a sociedade do município de Santa Cruz do Sul, evidenciado no nome da região então colonizada e no próprio título da obra: Um pedaço da história na Nova Serra Gaúcha.
No título da obra, a “serra”, esse elemento da topografia local, é “nova” porque nova era a colonização que se criava e, portanto, um pedaço da história que se contava. Veja-se que, na proposição do autor, a história tem efeito temporal na topografia, a ponto de tomar a serra como nova justamente por vinculá-la à frente de colonização alemã. Trata-se, portanto, da produção de um lugar a partir de uma perspectiva e modo de habitar ligado à frente de ocupação alemã: o que corresponde à frente de ocupação fumageira na região. O escopo da referida obra se insere no que Kujawa (2001) indica como recorrente nas representações historiográficas da região: o papel fundamental e fundacional da religião, tendo em vista que “na busca por fatos e elementos que deem sentido à história dos municípios, o religioso [ter] ocupa[do] sempre um lugar de destaque” (Kujawa, 2001, p. 73). Nesse sentido, a construção de igrejas e elevação de uma comunidade em paróquia são sinônimos de grande avanço e progresso, igualados aos processos de emancipação política dos municípios. Assim é que a história dos municípios passa a ser, de alguma forma, a história da própria igreja, e vice-versa.
Não é intuito me deter sobre essa obra ou sobre a história de Arroio do Tigre, apenas mencionar esses elementos por evidenciarem esse caráter enviesado das representações sobre as histórias oficiais presentes no que Wolff (2009) chama de “abordagens tradicionais locais”.14 Esse enviesamento tende a suprimir outras histórias e, portanto, outros lugares e centros de interesse que não interessam. Ele parece implicado em algo que me foi dito em conversa no ano de 2013 com o padre responsável pela paróquia dos capuchinhos de Arroio do Tigre. Me disse o pároco que a igreja local teve pouco interesse nas famílias que não eram vinculadas aos primeiros imigrantes alemães e italianos que ocuparam a região, sobretudo as que residiam em sua parte norte: onde viviam os negros e caboclos. Essa região, referenciada por pesquisadores da história local como “fundão”,15 foi habitada de forma itinerante e intermitente por populações luso-brasileiras, negras e indígenas em um período anterior à chegada dos alemães, época em que os domínios territoriais da cidade pertenciam ao município de Soledade, antiga sesmaria e importante entreposto de gado e charque levado dos campos e vacarias do Rio Grande do Sul para Sorocaba.16
Na ocasião, eu me dirigia à paróquia justamente para rastrear as fontes documentais da igreja, sobretudo informações sobre registros de batismo e óbito dos ancestrais do Fão. Me contara o referido padre que parte dessa leva alemã que colonizou Arroio do Tigre no início do século XX ocupara a hoje sede municipal no centro-sul da cidade, onde está a paróquia, ficando as áreas ao norte legadas a uma ocupação remota e tardia. Essa distância em relação ao centro político-religioso da cidade somada ao desinteresse dos padres alemães para com os negros nos seus fundões é o que, segundo o padre, teria feito com que os negros da região ficassem esquecidos pela igreja, relegados à invisibilidade por parte dos responsáveis por contar e escrever uma história da cidade, da região e de sua religião.
Não foi à toa que nada encontrei nos registros acerca das famílias do Fão: em parte porque as jurisdições eclesiásticas da região mudaram ao longo dos anos, em parte pela condição histórica itinerante e precária deles, além do desinteresse histórico da paróquia, tendo em vista que até poucos anos atrás sequer os negros podiam ser enterrados no cemitério da igreja, além de serem proibidos de participar das missas junto às famílias alemãs. Pode-se dizer que tais elementos fizeram dos negros do Fão sujeitos epistemologicamente antipáticos à História: fora dos documentos, fora dos cemitérios, fora das representações oficiais centradas no protagonismo e predomínio alemão. E subverter esse (não) lugar na história oficial foi o que “fez” o grupo ao entrar na arena do direito quilombola, e virar, por isso, matéria do principal jornal da região.
Tomando como interlocutoras três das quatro anciãs à época vivas da comunidade (as “tias” Funé, Mida e Pretinha17), a matéria veicula aspectos importantes da história local da perspectiva do grupo, ligadas à guerra, à escravidão e ao racismo, bem como a situação atual de precariedade e exploração das famílias negras da região. Com então 86 anos de idade, Tia Funé ali afirmava que “há algumas décadas hav[ia] somente famílias negras no Sítio”, tendo os “agricultores luso-brasileiros e alemães” - “hoje seus lindeiros” - chegado posteriormente. Tia Pretinha, com então 96 anos, contava que os negros ali se estabeleceram por conta de uma série de fugas e guerras, sendo a região local de esconderijo. Ela informava que tanto seu pai (Aparício Miranda) quanto seu avô paterno (Manoel Miranda) “teriam falado que aquela região de barrancos e florestas servia de abrigo aos negros que fugiam do cativeiro”, existindo também uma “toca de pedras usada como esconderijo em tempos de revoltas”, onde “centenas de pessoas ocupavam o lugar camufladas”.
Além de aspectos da localidade e da guerra, a reportagem enfatiza as trajetórias ancestrais vinculadas às resistências e agruras da escravidão. Conforme o jornal, os ancestrais Aparício e Manoel trabalharam como “escravos” domadores de gado nas fazendas localizadas em regiões planas do então vasto município de Soledade. O nome do patrão e fazendeiro é, inclusive, o de um membro de uma família alemã ligada ao patronato do grupo: Pedro Simão, sobre o qual me deterei adiante. Este figurava, de acordo com a matéria, como um dentre os “primeiros proprietários brancos” da região, e que, em uma ocasião de guerra, teria fugido de outros “chefões dos escravos” junto com seus próprios “cativos” que, como ele, estavam jurados de morte. A reportagem evoca algumas “lembranças” das anciãs acerca das “condições impostas pelo regime de trabalho escravo”, onde seu próprio pai dormia três horas por dia e trabalhava na construção de valetas e cercas, carregando pedras como um boi, haja vista usarem os negros como tração humana na ausência de animais de carga. Segundo a matéria, o “laço pegava” aqueles que não obedecessem ao patrão, em referência aos que viveram nesse “tempo malvado”.
Baseada nas histórias das anciãs quilombolas, a versão apresentada pelo jornal guardado na casa de uma moradora quilombola destoava radicalmente dos textos oficiais que narram a formação da cidade a partir da saga daquelas famílias alemãs que, num relato de fundo quase messiânico, se estabeleceram na região e ali fundaram sua primeira capela. A começar porque a versão das anciãs do Fão é inversa às do livro escrito pelo pároco e do site da prefeitura: naquela, os negros chegam primeiro para depois chegarem os alemães e luso-brasileiros; nestas, os negros sequer existem, são os alemães quem chegam primeiro para, posteriormente, chegarem italianos e luso-brasileiros. O hino oficial da cidade, inclusive, menciona apenas os imigrantes europeus como os formadores da cidade.18
Ao reportar-se aos quilombos como os que “fazem história em terra de alemães”, a reportagem não somente chama atenção ao movimento atual de reivindicação do grupo pelos direitos quilombolas, mas estimula uma provocação à oficialidade regional, invertendo postulados e lugares-comuns que alocaram os negros do Sítio à condição de uma invisibilidade e subalternidade deliberada. Subverter essa condição foi o que “fez” o grupo ao entrar na arena do direito quilombola, na medida em que tornar-se sujeito de direito implica um deslizamento epistemológico (e político) à condição de objeto (e sujeito) de pesquisa - e, portanto, da História. Assim o fazendo, e sem necessariamente o querer, o Fão mexeu nessa história oficializada pela igreja e prefeitura, provando não somente que as terras jamais poderiam ser somente dos alemães, mas também que a serra jamais poderia ser nova.
“Fazer história”, aqui, está implicado com o sentido da história como nation building, pois o processo de reconhecimento do grupo por parte do Estado passa a ter efeito na própria oficialidade: jornal, relatório antropológico e universidade passam a contar outra história da região, e disputar seus sentidos em prol de um projeto de nação fundamentado pelas ações afirmativas. “Fazer história” é também fazer acervo, guardar em casa os documentos que realçam a existência do grupo, contribuindo para sua própria produção. No entanto, se os quilombolas agora “fazem” história, os donos das terras continuam sendo os colonizadores da “Nova Serra Gaúcha”. O efeito dessa condição está imerso nas paisagens do Sítio, lugar onde as 15 famílias negras, vinculadas pelo parentesco e ligadas entre si por um histórico de ocupação centenário marcado por seguidos processos de expulsão, viviam confinadas e cercadas em uma área íngreme e de pouca produtividade cada vez mais rodeada pela monocultura do fumo e da soja. A necessidade de retomar as terras expropriadas fez com que o grupo entrasse com o processo administrativo no Incra para fins de reconhecimento e demarcação de seu território quilombola. Isso implicou contar histórias de lugares para além da interdição das cercas e da transfiguração das paisagens.
Fantasiar paisagens em lugares quilombolas
Mencionei acima que os antepassados do Fão não eram enterrados no cemitério da igreja da cidade. A isso somam-se relatos de que, até poucos anos, os negros sequer podiam frequentar as missas consagradas pelos alemães. No contexto da pesquisa, tal condição fazia as próprias anciãs afirmarem que os antigos viviam em um tempo dos loucos, sem religião, além de pouca participação dos adultos de hoje nos ritos e festas religiosas das igrejas do Sítio e entorno. A respeito, boa parte dos antepassados do Fão foi enterrada em um cemitério próximo três quilômetros do local de suas residências, conhecido por “Unha de Gato”, em referência a uma árvore que recebe esse nome.
Nesse cemitério, desativado há algumas décadas, não há lápides para os antepassados do Fão: a pobreza pretérita é o que explica o fato de seus mais velhos terem sido enterrados sem lápide debaixo da terra, como me relatara Márcia, então presidente da associação quilombola. À época, Márcia trabalhava como peã na produção de fumo de uma família alemã conhecida como colonos fortes do Sítio, e intercalava seus compromissos diários com a interlocução na pesquisa.19 Para essa família alemã seus pais também trabalharam, assim como seus avós. Márcia chegara a viver alguns anos na fazenda dos patrões como agregada, até se divorciar do marido e retornar ao lugar onde nascera. Vive junto à mãe, Mida, e às famílias dos dois irmãos, em casas de madeira separadas por cercas, na área residencial do grupo da matriarca. Além dos sucessores do grupo familiar de Mida estão os do grupo familiar das irmãs desta (as tias Funé, Nair e Pretinha20) e de sua cunhada (Tia Judite). À época da pesquisa, todos os casais moradores do Fão eram primos, sendo, portanto, uma comunidade “de uma só panela”, como me relatara Tia Funé em conversa em sua casa (Buti, 2015).
Todos trabalham no fumo como peões dos colonos do Sítio: o que consiste em receber a diária em conformidade com as etapas do ciclo produtivo da planta, desde preparar a terra do patrão, roçar, semear, transportar as mudas, jogar veneno, arrancar as primeiras folhas, cortar os pés com a faca, transportar, subir a planta para o galpão, amarrar, sortir e preparar para a venda. Há também os que intercalam sua condição de peão à de meeiro: quando dividem o produzido com o trabalho junto ao dono da terra, participando de todas as etapas do processo produtivo. A condição de peões do fumo torna a vida no Fão bastante precária, uma vez que não são cobertos por direitos trabalhistas, a despeito dos inúmeros problemas de saúde derivados do excessivo trabalho e exposição aos agrotóxicos. No ano de 2013, por exemplo, uma diária de colheita como peão demandava em média 14 horas de trabalho no dia e um rendimento de apenas 40 reais (Buti, 2015).
A precariedade da condição de ser peão é explicada pelos negros do Fão como correlata à condição de ser escravo. Durante o período de campo, este termo volta e meia era utilizado pelos interlocutores (tanto peões como patrões) para explicar as relações do patronato e as condições de trabalho. Em uma ocasião de visita de uma patroa a casa de uma mulher quilombola, presenciei aquela referir-se a esta, em sua frente, como uma “mucama que comprou”. A filha da patroa, também presente, intercedera replicando a mãe: “Comprou, mas não pagou, né, mãe?”, sob um fundo de riso e constrangimento que marca as relações jocosas assimétricas.
Escravo era também um termo usado pelos próprios moradores quando buscavam explicar suas condições precárias de trabalho, bem como suas relações junto aos patrões. Tal condição não era prerrogativa apenas do meu contexto etnográfico, mas de outras pesquisas desenvolvidas junto aos quilombos de Júlio Borges e Rincão dos Caixões, formados por parentes das famílias do Fão e a estas ligados por um histórico em comum (Aguilar, 2012; Anjos, 2009; Coelho, 2014). Além de explorados, os moradores do Fão entendem que a Justiça e os direitos só servem aos patrões e brancos (Buti, 2015). Do ponto de vista local, há uma correlação entre trabalho e exploração e “ser peão” e “ser escravo” como continuidade de um mundo desigual racialmente demarcado. De um lado os negros, quilombolas, peões, pequenos, expulsos e sem terra para plantar; de outro os brancos, colonos, patrões, grandões, expropriadores, com terras para plantar.
A condição atual de peã de Márcia e dos seus parentes é decorrência do fato de viverem em uma área muito pequena e não terem terras para plantar o próprio fumo ou comprar terras com o que se ganha de diária plantando para os outros. O lugar em que sua mãe e tias nasceram, maior, mais produtivo, plano e próximo do local da atual moradia, foi tomado por um colono forte e antigo patrão e padrinho da família, motivo que fez sua família, no início dos anos 1970, se deslocar para o atual local de moradia, menor, íngreme e pedregoso. Por isso Márcia afirmara, em uma ocasião, que as únicas terras que possui “são as que sujam as mãos” nas lidas diárias com o fumo: terras no sentido literal, portanto. As terras no sentido fundiário pertencem aos colonos do Sítio, em grande medida descendentes dos imigrantes alemães, figuras históricas ligadas ao patronato, ao compadrio e à expropriação. A aquisição das terras por parte dos colonos é explicada pelos moradores do Fão por quatro motivos: o poder de escriturar as terras mesmo não sendo dono; o poder de engambelar as pessoas no momento da compra, ou seja, enganá-las (“comprar um hectare e medir dois”); o poder de expulsar os pequenos; e o poder de empregar e lucrar com a produção de fumo, podendo comprar mais terras.
Embora boa parte das famílias alemãs ocupe o local há cinco ou seis gerações, no cemitério Unha de Gato os túmulos presentes não as referenciam: o que se lê nas inscrições são os nomes e sobrenomes portugueses de pessoas nascidas a partir de 1850, incluindo assinaturas homônimas às das famílias do Fão (como Fernandes e Rodrigues da Silva), ali provavelmente estabelecidas no contexto das primeiras sesmarias ofertadas pela Coroa no então município de Soledade, que abrangia os atuais domínios territoriais de Arroio do Tigre (Buti, 2013; Montagner, 2005; Ortiz, 2011).21
A inexistência de mortos das famílias alemãs nesse cemitério desativado é uma contraprova inequívoca à versão oficial da prefeitura, para quem estes foram os primeiros a chegar na região. Ela evidencia, também, as diferentes temporalidades de ocupação no local: uma ligada à chegada de portugueses e africanos, onde os primeiros, diferente destes, podiam enterrar seus mortos em lápides e assim serem rememorados pelos sucessores; a outra, referente ao ingresso dos alemães para a fundação da “Nova Serra Gaúcha”, seus cemitérios, cidades e igrejas, onde negros não costumavam entrar, vivos ou mortos. Embora pertencentes a períodos de ocupação distintos, portugueses e alemães (e italianos) são os sujeitos da história oficial arroio-tigrense: os africanos e afro-brasileiros nela não existem, mesmo que ali sempre tenham estado, quer sujando com a terra suas mãos em prol dos senhores e patrões, quer debaixo dela enterrados sem direito à lápide e memória.
Muito embora a ocupação seja anterior à chegada dos alemães, as terras (no sentido fundiário) hoje são destes, como afirmava a manchete da referida matéria veiculada sobre o quilombo que “faz” história no Vale do Rio Pardo. E o mundo dos vivos tem tido, no Fão, implicação no mundo dos mortos. Isso porque há alguns anos o cemitério Unha de Gato tem tido seus limites atravessados pela área de um vizinho, colono alemão, que tem aos poucos aumentado seu terreno para intensificar a produção fumageira. A área tomada pelo fumo diz respeito ao local onde foi enterrado, dentre outros troncos velhos, o velho Germano, pai de Judite, assassinado nos anos 1950 no quintal de sua casa por conta de uma discussão sobre limites territoriais. A imagem aérea abaixo indica o avanço da produção fumageira dos vivos colonos imigrantes por sobre os mortos do Fão no Unha de Gato.
Muito próxima do local do assassinato, a casa da mesma Judite 30 anos mais tarde seria alvo de um incêndio proposital por parte de um colono forte, determinando o despejo da família e realocação na casa de uma de suas irmãs no Fão, onde hoje se encontra. O Fão é resultado, portanto, de uma rede familiar que abriga parentes expulsos de suas terras em distintos momentos. Na ocasião, a família de Judite se deslocara temporariamente para trabalhar na colheita das acácias, no município de Camaquã (RS). O faziam todo ano. Não esperavam que no retorno encontrariam sua residência incendiada por um colono que se dizia dono por tê-la comprado de outro colono. Judite é cunhada de Mida: ambas, anciãs do Fão, partilham de uma memória em comum dos lugares em que viviam e onde não vivem mais, hoje interditados pelas cercas e transfigurados pelas paisagens monocultoras.
Em suma, os mortos do Fão estão virando fumo, além de passarem por fenômenos recorrentes da vida dos seus vivos: o confinamento paulatino pelas cercas e a transfiguração de seus lugares à serviço da fronteira agrícola. Aqui entramos, portanto, no sentido da história que conjuga temporalidade e paisagem. O exemplo acima é emblemático: o lugar dos mortos está sendo transfigurado, mexido por um colono. Condição estendida aos vivos: justo porque as histórias e trajetórias dos moradores do Fão incidem sobre lugares não somente transfigurados, mas a eles não mais pertencentes em decorrência de seguidos processos de expulsão.
A começar pelos lugares de habitação das famílias no Fão. No presente, o que separa os lugares onde as famílias viveram dos lugares onde vivem é, além da transfiguração radical nas paisagens, as cercas dos proprietários. Não é ao acaso que a principal via de acesso ao Fão foi, há 15 anos, cercada por um lindeiro que, tendo comprado e escriturado a área vizinha, a reivindicou para si, despejando Lacir, filho de Mida.22 O referido comprador praticou o que dona Maria, em uma ocasião de conversa, me afirmara ser o ato de fantasiar o lugar por parte dos grandões, aqueles que chegam e escrituram as terras. Na ocasião, o então comprador mudou a rota da estrada que dava acesso às casas das famílias; criou, para o novo acesso, um morro que não existia; além de soterrar a principal fonte de captação de água do grupo, conhecido por olho d’água do tio Marcelino, ao lado da antiga morada de taipinha e vassoura construída por Lacir.
Por conta desse fantasiamento e cercamento os moradores do Fão são obrigados a pular diariamente uma cerca de arame para entrar e sair da comunidade. As casas confinadas do Fão atuam, portanto, como o espaço-limite da resistência, estando as cercas dos colonos praticamente coladas aos lados externos das paredes domiciliares: como se as casas escudos fossem. Não é ao acaso que Ivair, irmão de Lacir, em um tom de piada, comemorava o fato de o rio dos Caixões (num dos extremos da comunidade) não andar como o fazem as cercas dos colonos. Em todo caso, segundo ele, era prudente que alguém de sua família ali construísse uma casa: “Vai que o rio resolva andar”, me disse na ocasião.
Imagem do acesso à comunidade fechado pela cerca. Na ocasião, um quilombola pula a cerca para entrar na comunidade.
Fantasiar as paisagens é um exercício de poder dos colonos de transfigurar os lugares historicamente habitados pelos negros do Fão. Trata-se, aqui, da produção de uma história inscrita nos ambientes e implicada com dimensões importantes de violência sofrida pelo grupo. Por isso o sentido da história como paisagem tende a contribuir para a compreensão de aspectos importantes do contexto. Percebe-se, com ele, que a lógica de silenciamento e negação não se dá apenas através das representações de uma história oficial local que nega a existência das vidas negras da região, mas da transfiguração das paisagens, que modifica radicalmente as referências da história local e suas vidas. O que implica dizer que, no Fão, ocorre algo análogo ao que Borba (2008, p. 47), para o contexto do quilombo Rincão dos Martinianos, indicou ser não somente uma “transfiguração” do espaço, mas, igualmente, da própria “memória-referência”, uma vez que “a transformação agressiva do meio natural” e “a adulteração do ambiente de vida gera[m] diversas rupturas nos vínculos biográficos da comunidade”.
Para o caso de uma pesquisa implicada em contar a trajetória histórica do grupo, as memórias dos moradores do Fão em relação a um lugar não implicavam necessariamente a continuidade da relação com esse lugar; não implicavam sequer a continuidade da existência desse lugar, uma vez que transformados pelos colonos. O olho d’água recém-aterrado, a estrada velha recém-fantasiada, o salão de festas dos avós hoje transformado em monocultivo do fumo, assim como o terreno de onde Judite foi expulsa, a casa onde Germano foi assassinado e o cemitério onde foi enterrado. Tudo hoje é outra coisa feita por outra gente. E era somente estimulado por este antropólogo em um contexto específico de pesquisa que os interlocutores buscavam explicar os processos de fantasiamento dos lugares, diferenciando um Fão atual, menor, das paisagens cercadas e transformadas, de um Fão antigo, maior, da memória, pois anterior aos processos de expulsão e transfiguração.
Enquanto terra de alemães que fundaram a “Nova Serra Gaúcha” no início do século XX, as narrativas oficiais sobre a história do município pouco deram atenção às referências históricas desse espaço-tempo submerso. Talvez, e justamente, para legitimar a cultura dos imigrantes, no sentido também agrícola, de base católica e fumageira alinhada à ideologia do progresso e do branqueamento. Por isso, enquanto implicada no movimento de busca pelo direito quilombola, a reivindicação de um pertencimento territorial sobre esses lugares de referência do grupo passou necessariamente pela necessidade de a pesquisa levantar informações sobre uma história e memória do local para além das cercas e paisagens fantasiadas. Como tratava-se ali de fazer coexistir com a nova paisagem os velhos marcos que fundamentam o direito quilombola, a memória territorial dos moradores do Fão tendeu a ser uma memória à distância e sobre referentes transfigurados, memória daquilo que se aponta e se projeta em uma paisagem que não correspondia mais às reminiscências narradas.
E provocar essa memória não era senão fundamentar um direito outro, haja vista apenas ela, a memória (e não a paisagem tal qual se descortinava aos olhos, e não os documentos de terras, e não a história local e oficial, e não o próprio cemitério) fazer referência às trajetórias dos negros do Fão. E isso porque a história era do outro, porque a terra (em sentido fundiário) é do outro, e era justamente contada como a história dos alemães que ali chegaram para “matar” o tigre, fazendo jus à ação que descreve a narrativa mítica fundacional da cidade, fruto de um episódio de abate do animal na beira de um dos rios. “Matar o tigre” corresponde a domesticar uma certa natureza (e cultura), fazê-la transformar-se pelo braço imigrante vindo de Santa Cruz do Sul e fazer da cidade o “celeiro do Centro-Serra”, um dos maiores produtores de fumo do Brasil, projetado no próprio brasão da cidade, que mostra um tigre sobre um rio represado, uma bíblia, duas torres de transmissão e duas hastes de trigo e fumo.
Essa história oficial cujo brasão reverencia a religião, o monocultivo e o progresso sobre a natureza tende a estar, também, incorporada na paisagem: o que explica boa parte do meio rural arroio-tigrense ser o lugar, por excelência, das propriedades a serviço da soja e do fumo, sobrepondo a “Nova Serra Gaúcha” às biografias, trajetórias, trilhas, olhos d’água, vidas, trabalhadores e mortos de um Fão antigo.
Historicidade em guerra
Além de o Fão ser referenciado como lugar de esconderijo nos tempos da escravidão, um dos principais eventos que a memória local aponta como determinante para a chegada das famílias no Sítio é uma guerra conhecida como guerra do Fão, ou guerra dos escravos, ocorrida em uma localidade distante do Fão atual, na beira do rio Fão, próximo a Soledade. Boa parte dos antepassados das principais famílias que ocuparam o Sítio estivera nessa guerra. Ou seja, além do Fão atual, há outro Fão, da guerra, nas margens de um rio homônimo. Há, portanto, evidências da trajetória do grupo no próprio topônimo que dá nome ao lugar onde vivem as famílias. Ainda que não figure como uma teoria local, tudo indica que o Fão hoje ocupado tenha esse nome por ser o antigo lugar de ocupação dos negros que lutaram no outro Fão, da guerra.
Essa mesma guerra do Fão é adjetivada por alguns dos seus moradores como a guerra dos escravos, momento no qual os negros lutavam contra os brancos e, também, a mando de alguns deles. Boa parte dos troncos velhos já mortos estivera na guerra, sendo um dos eventos que determinaram a sua fixação no Sítio. As descrições em torno da batalha acionam relatos dos tempos em que as anciãs, ainda crianças, ficavam escondidas junto a mãe velha Belmira, na própria casa, esperando Aparício (seu marido) aparecer para pegar comida. Se não o fazia, era a própria Belmira quem saía com a boia para entregar ao marido em algum lugar escondido do entorno. Teria sido nessa guerra que Aparício ficara com o rosto todo furado de pólvora, período em que Belmira pernoitava ao lado da porta com uma espingarda à espreita do iminente inimigo. Teria sido justamente pelos serviços de guerra prestados ao patrão e compadre Pedro Simão, que Aparício ganhara terras no Sítio.
À primeira vista, esses elementos do discurso local (replicados no já referenciado jornal Gazeta do Sul) me remetiam ao marco da escravidão jurídica do Estado: uma guerra dos escravos, onde brancos lutavam contra negros, onde fazendeiros eram tanto aliados quanto inimigos dos negros, na beira de um rio próximo, e onde os escravizados ganhavam terras pelos serviços prestados. Esses aspectos pareciam conversar, inclusive, com aqueles descritos pela literatura historiográfica sobre a função de pessoas escravizadas nas guerras do sul do país, quando eram recrutados em troca de terras e liberdade, como a Guerra do Paraguai e a própria Revolução Farroupilha (Aladrén, 2009; Petiz, 2006). A própria literatura antropológica recente sobre os quilombos de Júlio Borges e Rincão dos Caixões (parentes das famílias do Fão) informa Pedro Simão ser um típico escravocrata do século XIX (Aguilar, 2012; Anjos, 2009).
No entanto, muito embora todos esses registros da vida pretérita dos negros do Fão acionassem tais elementos, me causava alguma estranheza encaixá-los na cronologia da nação. Isso porque, durante a pesquisa de campo, as anciãs afirmavam terem testemunhado, enquanto crianças escondidas em casa, a batalha que determinou a morte de gente conhecida. Ora, como, nascidas na década dos anos 1920, Funé, Pretinha, Mida e Judite diziam se recordar da guerra dos escravos? Dos tempos em que os brancos lutavam contra os negros, e que os negros morreram na beira do rio Fão? Eu sabia que, nas narrativas, as guerras pretéritas que assolaram o Rio Grande do Sul bem que poderiam se justapor nas memórias, compondo um fundo bélico geral e cronologicamente indiscriminado, haja vista outras batalhas terem também determinado o deslocamento dos antepassados de outras gerações, como um tal velho Leocádio, bisavô das anciãs, que foi raptado nas bandas de Pelotas e de Rio Grande até chegar pelado no Sítio, num período correspondente a meados do século XIX, possivelmente no contexto da Guerra do Paraguai.
O que me chamava atenção nas menções a essa guerra específica na beira do rio Fão era ela ter sido vivenciada pelas anciãs, referenciar a toponímia local, acionar elementos ligados ao marco escravista, determinar processos de territorialização no Sítio e, ao mesmo tempo, ter ocorrido no século XX. Esses elementos indicavam que os sentidos da escravidão no Fão correspondiam aos eventos ocorridos em um período que extrapolava o marco cronológico do escravismo jurídico abolido pelo Estado brasileiro.
Buscando aprofundar-me no que a literatura regional teria para dizer sobre algum episódio do tipo ocorrido na primeira metade do século XX, me deparo com informações sobre a assim conhecida “batalha” ou “combate do Fão”, referenciada como o confronto mais violento da Revolução Constitucionalista do ano de 1932 ocorrido em terras gaúchas.23 Tratava-se, de acordo com a literatura consultada, da última batalha deflagrada no Rio Grande do Sul entre os apoiadores do regime varguista (os “integralistas ditatoriais”, ligados às forças governamentais) e os adeptos da causa paulista (os “revolucionários constitucionalistas”, contrários ao regime de Getúlio Vargas). Ocorrida nas margens do rio Fão, então vila de Bella Vista do Fão, à época pertencente a Soledade, tal literatura informa a batalha ter sido determinada pelo encontro entre os “revolucionários constitucionalistas” saídos de Soledade em direção a São Paulo e as “forças da Brigada Militar” do Estado do Rio Grande do Sul.24
Em linhas gerais, essas obras parecem marcadas por uma perspectiva da história política regional ligada aos grandes feitos de seus formadores, estando divididas em basicamente duas propostas: uma implicada em analisar a própria Revolução Constitucionalista e suas batalhas (com focos em outros municípios do Rio Grande do Sul e estados brasileiros), e a outra enviesada na história da região de Soledade e de sua colonização. Não pretendo ater-me aos teores e conteúdos dessas produções, que não são poucas e fugiriam do escopo deste artigo, apenas descrever elementos presentes em algumas delas, pois interessam ao argumento.
É de um ex-combatente da batalha, Jorge Augusto de Paula (1972), político e escritor natural de Soledade, a obra O Fão, a primeira acerca dos episódios que culminaram no que chamou de epopeia do “combate do Fão”. Publicada um ano depois de sua ocorrência, em 1933, a referida obra serviu como principal testemunho historiográfico do episódio ocorrido às margens do rio Fão, no dia 13 de setembro de 1932, além dos bastidores do movimento constitucionalista que se formou, impulsionado por algumas figuras ilustres do governo varguista em Soledade: onde as elites soledadenses se incorporaram à causa paulista, formando as “Forças Constitucionais Revolucionárias” (De Paula, 1972, p. 25).
De caráter biográfico, a obra traz elementos muito interessantes acerca não somente da revolução e do lugar que as elites e a população soledadense tiveram em sua efetivação, mas dos modos pelos quais ela é contada dentro de um viés próprio da história política e dos grandes feitos característicos das “abordagens tradicionais locais” (Wolff, 2009). Na ocasião, o próprio autor se colocava como pertencente às elites econômicas e políticas locais, saudando a fibra do povo gaúcho e soledadense em sua busca pela “redemocratização do país”, a “deposição de Vargas” e a honra à “liberdade e fé cívica” de uma gente que seguia a vocação dos principais heróis combatentes da história do Rio Grande do Sul, como Bento Gonçalves, Caxias, Osório, além daqueles tidos como os próprios líderes e idealizadores da revolução, como Raul Pilla e Cândido Carneiro.
No próprio prefácio à primeira edição o autor faz salvas ao povo “frenteunista de Soledade” (em relação à Frente Única Revolucionária), alertando os historiadores do futuro ao entendimento do seu gesto, além de lembrar que suas “narrações […] fornecerão dados concretos à elucidação da História, que naturalmente almejará a verdade” (De Paula, 1972, p. 9, grifo meu). Em boa medida, obras posteriores escritas sobre o tema se valem da descrição do ex-combatente que buscou, mesmo com a derrota daqueles com os quais guerreou, honrar a justa e única causa do conflito, que contou com um número aproximado de “1500 voluntários”.
Organizando os eventos em uma ordem cronológica, a obra busca descrever os bastidores da guerra, desde o início do levante, em agosto de 1932, os motivos da revolução, seus principais personagens, alguns episódios onde estivera o próprio autor, o conteúdo e os signatários do Manifesto Constitucionalista (datado de 1º de setembro) e os fatores que determinaram o combate sangrento do Fão, que culminou, no dia 13 de setembro daquele mesmo ano, na derrota dos revolucionários pelas forças oficiais, descritas como “ditatoriais”.
Alguns dados específicos ali descritos chamam pontual atenção: dos 53 nomes das pessoas que assinaram o manifesto figura o de ninguém menos que “Pedro Guilherme Simon”, patrão de Aparício e proprietário de vastos domínios de terras naquela Soledade da primeira metade do século XX.25 Não é à toa que quando relata o momento de deslocamento de parte das tropas revolucionárias em direção ao oitavo distrito de Soledade no dia 6 de setembro de 1932, De Paula (1972, p. 59-60) afirma ter “recebido a incorporação de valorosos correligionários, Pedro e Fritz Simom”, dentre outros, que se apresentavam “com fortes contingentes”.
Muito embora faça menção ao contingente de Fritz e Pedro Simon (possivelmente parentes), o autor não minucia seus componentes, que podemos aqui somente imaginar ligados às famílias negras do Fão. Outro dado guarda relativo interesse: o fato de o conjunto da obra fazer uma breve menção a “dois negros” que acompanhavam, no mesmo dia 6 de setembro, os capitães Albino Senger e Dario Carneiro (De Paula, 1972, p. 61). Na obra, e em todas as outras aqui elencadas, nada mais é possível extrair de qualquer referência ligada à participação dos antepassados das famílias quilombolas no combate, tampouco de descendentes de africanos. Nota-se que, nas memórias sobre as dezenas de combatentes elencados pelo autor, negros não tem nome nem sobrenome: apenas cor e apenas “dois”.
Não é intenção aqui me ater ao livro e aos discursos sobre a guerra. Importa mencionar que tudo o que é escrito sobre ela (e replicada nas outras obras) não coincide com os modos pelos quais os sujeitos do Fão, ao reportá-la, a referenciam. E isso por uma razão relativamente interessante: o fato de a participação de boa parte dos combatentes, da perspectiva do Fão, não ser determinada por aquilo que esse tipo de literatura afirma como determinante da própria guerra e revolução: lutar pela “redemocratização do país”, pela “deposição de Vargas”, por uma “nova constituinte” e pelo “espírito heroico do Rio Grande do Sul”.
Essa ponderação está presente, inclusive, em um apontamento feito por Leandro Lampert na obra Os Lampert: origens, história e genealogia, que historiciza a genealogia dessa família soledadense. Sobre a Revolução Constitucionalista e seus adeptos, enfatiza o autor que a “maioria dos voluntários nem sabia bem o que estava ocorrendo e foram à revolução levados por lideranças ou por mero espírito de aventura” (Lampert, 2005 apudTrombini, 2010, p. 29).26 Muito embora aponte para os diferentes objetivos e subjetividades que levam sujeitos à guerra, são necessárias algumas ressalvas em torno da afirmação do autor.
Por mais que a maioria dos voluntários tenha sido levada por lideranças, dificilmente alguém participa de uma batalha com esses contornos “por mero espírito de aventura”, ou sem que com essas lideranças esteja fortemente enredada por laços de favor, respeito e promessa. Até porque não se brinca com a morte, independentemente do que quer que seja a vida que se viva. Além disso, não se trata de pensar que esses voluntários não soubessem o que estava ocorrendo, justamente pela possibilidade de, para eles, estar ocorrendo outra coisa. E é esse o ponto que interessa aqui, por ele indicar a coexistência de regimes de historicidade dispostos por diferentes códigos culturais mencionados na introdução deste artigo, o que nos leva impreterivelmente a evidenciar a inexistência de um referente comum, de uma batalha única, de uma única história ou “verdade”: meta a ser alcançada pelo combatente Jorge Augusto de Paula (1972, p. 60), que, ao sobreviver e poder escrever as suas memórias, pretendia fornecer “dados concretos à elucidação da História, que naturalmente almejará a verdade”.
Certamente Aparício, Leocádio, Felipe, Benedito, Germano e outros troncos velhos antepassados das famílias do Fão faziam parte daqueles 1500 voluntários que a história oficial jamais se empenhou em conhecer, narrar e revelar (embora pudessem ser um dentre aqueles “dois negros”). Faziam a guerra, no entanto, por uma causa diferente da que essa mesma história descreve, escreve e impõe. Aparecendo como determinante para a fixação dos antepassados nas terras do Sítio, a alcunha Fão empregada ao então lugar de destino se deve possivelmente ao fato de essas famílias participarem do referido combate. Nas histórias narradas pelos moradores do Fão, no entanto, ela não aparece ligada aos valores constitucionais, democráticos do país e do povo gaúcho. Pelo contrário, a guerra do Fão está ligada ao escravismo e ao momento em que brancos bradavam contra e com os negros na luta por terras. Não é por acaso que a reportagem da Gazeta do Sul informava que Pedro Simão e seus cativos estavam fugindo dos outros “chefões dos escravos”. A própria territorialização do grupo no Fão é resultado dos serviços prestados pelos troncos velhos a Pedro Simão, dono de vastas extensões de terras na região.
O que se pode ensaiar é que o sentido da batalha no rio Fão ser o de uma guerra de escravos para os moradores do Fão se deva também ao processo de continuidade de variadas privações que perduraram sobre esses sujeitos e seus antepassados a despeito da abolição oficial da escravatura. A interpretação êmica como episódio em que brancos lutam contra negros também nos reporta para a ressonância das desigualdades sociais e do arcabouço perverso de preconceito e racismo lançado sobre os últimos pelos primeiros: uma guerra entre brancos e negros que remonta à escravidão e atinge expressão máxima, ainda que simbólica e constituinte de uma memória coletiva, numa batalha em que negros lutam também a mando de seus antigos senhores, à época seus novos patrões, e sob o jugo dos interesses políticos e econômicos destes.
Trata-se, por isso, de tomar os elementos da história do Fão como não coincidentes com o memorialismo e a historiografia gaúcha, e por dois motivos principais: pelo primeiro extrapolar a escravidão das linhas cronológicas da Nação; e pela segunda elaborar uma narrativa sobre o combate do Fão marcada pelos cânones de uma história oficial e política escrita pelas elites do Rio Grande. Se o Estado brasileiro e a causa constitucionalista não cabem no primeiro regime de historicidade, os negros e a escravidão não poderiam caber no segundo.
Uma etnografia da história do Fão subsumida ao historicismo nacional e regional poderia tomar os episódios ligados à “guerra do Fão” e à “guerra dos escravos” como ocorridos no século XIX, o que inviabilizaria a compreensão de um regime de historicidade que não aboliu a escravidão. As histórias de fixação do grupo no Sítio têm implicação muito forte nos modos como os elementos da escravidão são atualizados nos dias de hoje, através do uso das categorias “escravo” e “mucama”, como forma de explicar a exploração no Fão determinada pelas relações entre peão e patrão, negros e brancos. Relações essas de dependência assimétrica, marcadas por laços tensos cujos contornos são a exploração, a expropriação, os favores e o compadrio. A história oficial escapa do Fão porque a trajetória do Fão tende a escapar não somente dos documentos, monumentos e paisagens, mas dos próprios marcos cronológicos de uma história que aboliu a escravidão em 1888. No Fão a escravidão não foi abolida, e a condição de precariedade na qual vivem os negros, ligada à dependência do patronato branco e à ausência de terras para plantar e trabalhar com autonomia, são suas provas inequívocas.
O causo do tesouro
Os causos, enquanto estrutura do relato histórico quilombola, tendem a referir-se a eventos espacialmente, e não cronologicamente, localizados, servindo como marco constitutivo do tempo de hoje (Anjos; Leitão, 2009, p. 22). Por isso, servem de continuum entre passado e presente através dos lugares. Não há causos, portanto, sem lugares, o que impõe aos ambientes a temporalidade. Mesmo não referenciado pela historiografia sobre quilombos, o Fão foi lócus de fuga de escravizados, lugar para servir de esconderijo em guerras. Contudo, não só guerras e fugas determinam a chegada das famílias no Fão, mas algo que está presente em boa parte dos causos (e lugares) dos quilombos do Brasil de hoje: o achado de tesouros ou guardados enterrados.
No Fão há um causo sobre o achado de um tesouro por um ancestral quilombola escravizado. E justamente ali o achado desse tesouro significa o contrário daquilo que parece evidenciar: riqueza e prosperidade. E isso diz o suficiente sobre o que é o Fão no presente, sobretudo o que é a relação dos seus moradores com os donos das terras e as figuras do patronato.
Uma das versões sobre o estabelecimento das famílias no Sítio têm relação com as terras de Aparício. Foi por decorrência de um tesouro encontrado por Rufino (seu cunhado) na beira do rio dos Caixões que Aparício ganhara as terras de Pedro Simão. Esse tesouro, referenciado também como uma panela de dinheiro, foi encontrado pelo velho tio Rufino, ou Tio Rufo, na casa do leão, em uma laje de pedras localizada na beira do rio dos Caixões. Percebe-se que o leão é um agente dessa história, por guardar um tesouro. Na história oficial o abate de outro felino (um tigre) na beira de um rio é o evento que nomeia a cidade e funda a frente de colonização alemã. Enquanto o tigre oficial está morto, o leão quilombola guarda um tesouro.27 A laje do leão, embora tenha sido modificada pela ação dos colonos, continua na beira do rio, estando seu acesso interditado pelas cercas.
Alguns moradores informaram que tesouros foram deixados pelos jesuítas que percorreram a região fugidos dos bandeirantes paulistas vindos de Minas Gerais. Impossibilitados de carregá-los, esses jesuítas, conhecedores da arte de fazer magia e encantamento, os enterraram em caixas ao longo do rio, guardando-os embaixo de pedras marcadas por sinais e protegidas com encantes e feitiçarias. Nesse sentido, e exemplo da toponímia “Fão”, a hidronímia é sugestiva para pensar história: o rio teria esse nome por ser o lugar onde esses tesouros foram guardados, em “caixões” até hoje escondidos em seu curso e protegidos por visagens que se manifestam caso os humanos se aproximem. Trata-se, portanto, de uma dimensão mágica da história, onde personagens do sobrenatural atuam como desdobramento da trajetória e ação jesuítica na região: o que implica dizer que a ação do tempo tem um efeito para além do humano.
O primeiro movimento do relato é esse: Tio Rufo encontra o tesouro na casa do leão e o entrega a Pedro Simão em troca de banha e carne. Tal transação é considerada pelos interlocutores como um negocião feito por Pedro Simão, que com o tesouro fica rico e compra muitas terras, restando a Rufino, empregado, continuar pobre e, junto aos seus parentes, viver de serviços ao patrão. Um segundo movimento é consequência do primeiro: compadres e ligados por relações de trabalho e favores, Pedro Simão doa parte dessas terras ao cunhado de Rufino, Aparício, como presente de nascimento da filha deste, Nair, sua afilhada. Parte das terras adquiridas pela troca assimétrica do tesouro se torna um presente de compadre: uma dádiva, portanto.
Depois desse movimento, o colono alemão deixa o local para se estabelecer no Paraná, onde morre. As terras onde foi encontrado o tesouro serviram de habitação ao grupo de Aparício, sendo ao longo dos anos perdidas tanto por trocas assimétricas junto a patrões, fazendeiros e compadres quanto por processos violentos de expulsão. A conformação das casas do Fão atual foi determinada por essas trocas e expulsões, marcadas nos relatos por momentos de constrangimento sofrido pelos negros que, quanto mais confinados ficavam, mais viam os proprietários de terras aumentar seus domínios e “fantasiar” seus lugares.28
O causo do tesouro parece compor um tipo de estrutura do relato histórico no Fão sobre essas trocas assimétricas feitas em diferentes gerações. O resultado dessas trocas é o confinamento e a escassez territorial dos negros em benefício do aumento das terras dos brancos. Assim, os moradores do Fão contam sobre as trocas realizadas com patrões, compadres e fazendeiros em diferentes gerações, nessa ordem: com Pedro Simão, Elói, Auri, Nauber e José. Pedro Simão, compadre, patrão e doador de terras, fica rico às custas do tesouro de Rufino, seu escravizado, em troca de banha e carne. Atravessados por relações de compadrio, patronato e serviços de guerra, Pedro Simão doa as terras ao cunhado de Rufino (Aparício), cujo grupo familiar as perderia décadas depois para Elói. Este, compadre, patrão e doador de telhas, fica com as terras de Aparício em troca da manutenção do emprego de Belmira (esposa deste, já viúva), uma casa de madeira no atual Fão, além de banha, carne e novilha.
O filho de Belmira e Aparício que recebeu essas telhas (Balduíno, casado com Judite), teve sua casa queimada por alguém que afirma tê-la comprado. Nauber, proprietário de terras, fica com trechos do Fão em troca de novilha, um guarda-louça azul e promessa de trabalho para Janice, que se retira do local. José, proprietário de terras, fica com um trecho do Fão em troca do negócio feito com o vendedor, compadre, arrendatário e patrão das famílias do Fão: acarretando o despejo de Lacir (neto de Aparício), o aterramento do olho d’água do tio Marcelino, a imposição de uma cerca por sobre o principal acesso do grupo e a conformação do Fão tal qual se encontra atualmente.
Ainda que expliquem episódios ocorridos em momentos muito distintos (dos tempos em que as anciãs não eram nem nascidas até os dias atuais), essas histórias acionam elementos comuns. Nelas, alguns bens são colocados em circulação: banha, novilha, carne, telhas e madeiras são bastante recorrentes e dadas aos quilombolas por tesouro e terra. A manutenção e a promessa de emprego também são garantidas a eles. De um lado estão os patrões (grandões, vizinhos, proprietários, compadres), do outro os parentes do Fão (pequenos, empregados, negros, escravos, mucamas): são os primeiros que engambelam, enganam os segundos, que são os engambelados.
Os patrões são também aqueles que transformam o território: fazem estradas e mudam cercas, fantasiam. São eles que ficam em cima, ficando os pequenos embaixo, sendo também aqueles que chegaram depois, e que, ao fazê-lo, escrituram as terras. Quando um parente do Fão ganha algo, o perde depois: tesouro trocado, terras de Aparício por terras do Fão atual, telhas que foram queimadas, partes do Fão perdidas, Fão antigo pelo Fão atual. Além disso, quando um parente do Fão ganha algo, é porque o patrão ganha coisa melhor (terras, dinheiro, propriedade, peão), dando-se bem em cima dos pequenos, ignorantes, analfabetos e provisórios.
Essas histórias contam como os sujeitos do Fão, ao terem terras, as negociaram com os patrões sob condições de vulnerabilidade e a partir de trocas assimétricas. O causo do ancestral quilombola que acha um tesouro e fica pobre deixando seu patrão rico e com terras é sugestivo não somente pelo evento passado que pretende reportar, mas pelo mundo presente que parece traduzir. Por isso vinculado ao sentido da história como dispositivo cultural. Ele parece típico de uma historicidade “prescritiva” ou “mítica”, disposta não a produzir mudanças e transformações, mas a reproduzir permanências através de repetições dispostas em um sistema fechado. Por isso o causo desliza para o mito: pensado aqui não como oposto à História, mas como seu organizador (Sahlins, 1996; Lévi-Strauss, 1978).29 Passam-se as décadas, e a estrutura se mantém.
O causo do tesouro não somente pareceu estruturar os modos pelos quais os sujeitos do Fão reivindicavam os eventos passados onde se deram mal por causa de quem se deu bem, mas afirmar o Fão no hoje: sua condição de “ser escravo” de quem está com o tesouro, com as terras. Afinal de contas, é o peão do Fão que hoje é pobre por continuar deixando rico seu patrão, dono das terras e do fumo, esse tesouro que faz de Arroio do Tigre o “celeiro do Centro-Serra”. É a moradora do Fão quem é chamada de “mucama” pela própria patroa; é ela quem entende que a Justiça não é feita para os negros. As histórias envolvendo processos de territorialização e desterritorialização no Fão organizam os eventos a partir de um eixo comum racialmente demarcado: pois mostram que negros são pobres porque ricos são os brancos, os grandões, seus patrões. Nelas, tesouro e terras, esses dois elementos da potencial riqueza, poder e prosperidade humana, figuram como marcadores da injustiça e pobreza mediados pela relação junto aos fazendeiros brancos em diferentes períodos.
Adiante, outra história?
Em novembro de 2023, o Incra emitiu a portaria de reconhecimento do território quilombola de Linha Fão, exatos dez anos após a entrega do Relatório Antropológico ao instituto. Embora importante, a portaria não garante o direito ao território e, por isso, a retomada das terras onde foi encontrado o tesouro pelo velho tio Rufo. Para isso, é necessário outro ato normativo do Estado: a expedição do título definitivo sobre a área. Quantos anos mais a comunidade terá que esperar para retornar às terras de onde foi expulsa? Quando poderão dormir sabedores que alguma justiça foi feita? Quanto tempo mais homens e mulheres do Fão viverão sem terra para trabalhar e tirar seu próprio sustento, tendo que se submeter aos mandos e desmandos dos colonos brancos? Tendo que trocar terra por telha, tesouro por banha, dignidade por trabalho?
Enquanto isso, o hino oficial de Arroio do Tigre não reconhece a presença passada e presente negra africana na cidade; as paisagens dos mortos e dos vivos do Fão continuam sendo transfiguradas pelo fumo e pelos colonos; os memorialistas gaúchos da guerra do Fão continuam reverenciando seu estado e suas elites brancas; os olhos d’água dos parentes ancestrais continuam a ser fechados para a monocultura; as crianças, adultos, mulheres e idosos continuam confinados às cercas impostas pelos proprietários, obrigados a pulá-las para sair de casa a troco de alguns reais pela diária trabalhada.
Para além do que as paisagens podem dispor e do que a oficialidade, a ciência, a imprensa e o memorialismo podem contar, os moradores do Fão têm elaborado sua síntese histórica nesse contexto específico de reivindicação dos direitos territoriais e quilombolas. Com as forças que dispõem diante de condições estruturalmente adversas, o retorno às terras do tesouro é a única forma pela qual podem construir um futuro que não repita as injustiças do passado e que não atualize o mito. Única forma pela qual podem, adiante, viver um novo presente para contar, quiçá, outra história.
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Este texto é desdobramento de minha tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC (Buti, 2015). Agradeço profundamente às mulheres, homens e crianças do quilombo de Linha Fão, que abriram as portas de suas casas para que eu pudesse entrar e colaborar minimamente com seus processos de reivindicação por terra e direito. Ainda que hoje longe, levo seus ensinamentos no fundo do meu coração. Agradeço à minha orientadora, Miriam Furtado Hartung, e a José Maurício Arruti, pelos bons diálogos à época da defesa. Agradeço aos(às) amigos e colegas, Thiago Mota Cardoso, Cinthia Creatini da Rocha e Cassius Marcelus Cruz, pela leitura atenta e sugestões para a versão final do texto. Agradeço também aos(às) pareceristas de Horizontes Antropológicos, e à equipe de revisão final.
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O artigo 68 informa que “[a]os remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (Brasil, 1988).
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No ano de 1994, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) foi convidada pelo Ministério Público Federal para auxiliar na definição do termo “quilombo” e assim orientar a aplicação do artigo 68. Ver O’Dwyer (2002).
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O Incra é o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, autarquia do executivo federal desde o decreto nº 4.887 de 2003, responsável pelos procedimentos de identificação e titulação das terras quilombolas (Brasil, 2003). O “Relatório antropológico de caracterização histórica, econômica, ambiental e sócio-cultural da área quilombola identificada” é a primeira de um conjunto de peças técnicas do Incra que compõem o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, conhecido por RTID. A finalidade do RTID é justamente subsidiar a titulação definitiva do território quilombola.
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Refiro-me, por exemplo, a Carneiro (1958), Moura (1959), Santos (1962), Freitas (1973), Nascimento (1980), Nascimento (1982, 1985), Mattoso (1982), Quilombo (1984), Reis e Silva (1989) e Reis e Gomes (1996). É válido mencionar que as comunidades negras rurais que passaram a ser estudadas pela antropologia a partir da segunda metade do século XX não eram reconhecidas como quilombos ou remanescentes de quilombos. Por isso, à época, seus estudos não estavam relacionados ou enquadrados a esse campo temático. Nesses casos, o reconhecimento da contribuição antropológica a uma história quilombola se deu a posteriori ao próprio contexto das pesquisas, na medida em que comunidades passaram a publicizar a identidade quilombola impulsionadas pelos direitos garantidos na Constituição Federal. Não é ao acaso que, quando convidada no ano de 1994 pelo Ministério Público para conceituar a definição do termo “quilombo” e orientar na aplicação do artigo 68, a ABA o fez através do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais (O’Dwyer, 2002). Ali se iniciava também, de forma mais sistemática, o processo de formatação antropológica ao campo de estudos sobre quilombos. Uma interessante historicização desse processo está em Arruti (2006, p. 64-65).
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Refiro-me à Instrução Normativa nº 57 de 20 de outubro de 2009, ainda em vigor. Importante ressaltar que as Instruções Normativas sofreram revogações e atualizações desde que implementadas pelo Incra como procedimento dos processos demarcatórios. A compilação das Instruções Normativas do Incra vigentes e revogadas podem ser acessadas em: https://www.gov.br/incra/pt-br/centrais-de-conteudos/legislacao/instrucao-normativa (acessado em 15/03/2024).
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Não é ao acaso que as categorias centrais que articulam esta premissa no âmbito geral das políticas afirmativas sejam termos que relacionam escravidão e temporalidade, como dívida histórica, reparação histórica e justiça compensatória. Estes termos dispõem sobre a necessária revisão ao que o Estado Brasileiro e suas disposições jurídicas impuseram e impõem como tragédia aos africanos trazidos escravizados às Américas e seus descendentes na diáspora.
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Arroio do Tigre está localizado a aproximadamente 250 quilômetros da capital Porto Alegre. O Censo do IBGE de 2022 informa população de 12.058 habitantes, dentre os quais 13,3% autodeclarados negros (12,9% pardos e 2,4% pretos). Segundo a prefeitura municipal, sua principal atividade econômica é a produção de tabaco e soja. Em 2011, figurava na lista dos 12 municípios gaúchos com maior produção de fumo em folha do estado (Buti, 2013). Ver Coimbra (2023) e Perfil ([2024]).
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A pesquisa nos arquivos de Porto Alegre teve contribuição de Tiago Lemões da Silva, a quem agradeço imensamente também pelo compartilhamento de ideias. Uma interessante reflexão sobre o diálogo cruzado entre campo e arquivo nos processos de elaboração de relatórios antropológicos está em Mello (2008).
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Embora a publicação de Rubert date de 2005, fui o primeiro antropólogo a fazer pesquisa de campo em Linha Fão. Além disso, minha primeira ida a campo correspondeu à primeira visita dos técnicos do Incra à comunidade, o que para os moradores do Fão fundia ainda mais a figura do antropólogo à de operador do direito. O número do processo administrativo no Incra referente ao pleito da comunidade é 54220.001413/2006-40.
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A primeira parte da matéria está disponível no site do Instituto Socioambiental (Drachler, 2007b).
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Do ponto de vista da produção local, Clara Montagner (2005) é uma referência importante na crítica contemporânea à omissão historiográfica em relação ao tema da escravidão na região de Arroio do Tigre. A crítica ao que se convencionou chamar de “mito da democracia” nas fazendas pastoris da região de Soledade está presente em Maestri e Ortiz (2009); esta coletânea traz produções historiográficas recentes sobre escravidão na região.
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Geralmente escritas por figuras ilustres do próprio contexto, tais abordagens compõem as representações historiográficas sobre a formação das cidades, estando coadunadas à concepção de uma história dos grandes feitos, homens e acontecimentos, com ênfase nos fatos religiosos, políticos e militares.
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A ideia de “fundão” conota paragens remotas e distantes de um centro irradiador e político da cidade, conforme indicado no título da obra de André Pereira e Carlos Wagner (1981) sobre o movimento messiânico e o massacre dos monges barbudos ocorrido na primeira metade do Novecentos na região: Monges barbudos e o massacre do fundão.
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Sobre o tropeirismo na região de Soledade, Ver Zimmermann e Netto (1991). Sobre a história da região, ver Verdi (1987), Pereira e Wagner (1981) e Franco (1975).
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As tias Mida, Pretinha e Funé são os apelidos das irmãs Venilda Miranda, Oralina Fernandes e Edotilde Xavier, respectivamente. Estas três anciãs, além de Tia Judite, seriam, cinco anos mais tarde, importantes interlocutoras da pesquisa que subsidiou o Relatório Antropológico.
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Assim canta um trecho do hino: “Alemães, portugueses, italianos/ Precursores de um mesmo ideal/ Com sua força mostraram aguerridos/ Com graça e atrevidos e com muita luz/ E aparece o Arroio do Tigre no centro do nosso Rio Grande do Sul”. Ver Histórico […] ([2024]).
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Ao afirmar que Márcia trabalhava para uma “família alemã”, estou apenas reproduzindo as informações do campo, sem com isso negar a possibilidade de outras ascendências europeias nesta e em outras situações de relações dos quilombolas com o patronato. Agradeço à(ao) parecerista da revista pela observação sobre esse ponto. Como já pudemos perceber através de fontes jornalísticas e literatura regional, há uma tendência em realçar o protagonismo alemão da região. Esse realce pode sobrepor outras ascendências europeias ali estabelecidas, sobretudo no caso das não italianas e portuguesas.
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Tia Pretinha faleceu no ano de 2014.
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A repetição desses sobrenomes lusos nas famílias do Fão indica um possível vínculo pretérito, mediante apropriação dos prenomes senhoriais por parte dos antigos escravizados. Essa é uma hipótese que carece de maiores estudos.
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No Relatório Antropológico fiz uma análise desse processo de escrituração do referido terreno. Quando o então comprador informa os limites da área, não indica como lindeiras as famílias do Fão. Isso facilita o avanço de suas terras sobre a comunidade (Buti, 2013).
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O local da batalha está situado nos atuais municípios de Fontoura Xavier, Pouso Novo e Progresso (RS). Para melhores informações e imagens do local, ver Resgate […] (2011).
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O nome Simon é a referência escrita e documental de Simão. “Simão” é, portanto, o aportuguesamento do sobrenome do antigo patrão de Aparício. Optei por manter ambas as formas de referência para realçar esses dois tipos de fonte e registro. Além desse manifesto, menções documentais a Pedro Guilherme Simon foram encontradas no Ofício de Registros de Imóveis na Comarca de Soledade, e em um processo-crime em que ele estava envolvido junto ao próprio Aparício. O fato de Pedro “Simon” e Aparício estarem num mesmo documento reforça ainda mais a tese segundo a qual Pedro Simon é Pedro Simão (Buti, 2013).
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Trechos do livro de Lampert podem ser acessados no blog do autor; ver Livro […] (2016).
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Ainda que a cidade se chame Arroio do Tigre pela menção ao episódio de abate de um felino, a própria prefeitura corrige o dado informando que o animal abatido em verdade foi uma onça. Ver Perfil ([2024]).
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Vários são os tipos de constrangimento: desde negociar com o patrão, perdendo as terras em troca de algum agrado (como casas de madeira, telhas e favores), a sair sem pedir nada ou ter a própria casa incendiada.
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A “estrutura prescritiva” estaria em oposição à “estrutura performativa”, própria dos grupos que tendem a assimilar-se às circunstâncias contingentes, justo pela ordem cultural produzir-se na mudança (Sahlins, 1996). Essas duas atitudes e modelos ideais de história poderiam ser encontrados em uma mesma sociedade, correspondendo à formulação lévi-straussiana sobre história quente e fria: as primeiras sendo do tipo abertas e históricas, onde a mudança tende a ser concebida como produtora da ordem, e onde a própria estrutura social deve transformar-se, e as segundas do tipo mítica ou fechada, onde elementos recorrentes tendem a combinar-se de maneiras diferentes, mantendo a reprodução da estrutura social (Lévi-Strauss, 1976, 1978).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
31 Mar 2025 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2025
Histórico
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Recebido
15 Mar 2024 -
Aceito
13 Set 2024