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MEDEIROS, Flavia. Matar o morto: uma etnografia do Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro. Niterói: EDUFF, 2017. 221 p.

MEDEIROS, Flavia. . Matar o morto: uma etnografia do Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro. Niterói: EDUFF, 2017. 221 p.

Seria a morte o fim absoluto? Segundo a obra da antropóloga Flávia Medeiros, não necessariamente. Em seu livro intitulado Matar o morto: uma etnografia do Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro, fruto de um trabalho etnográfico elaborado inicialmente como dissertação de mestrado, a autora nos leva a pensar a morte, não como o fim, mas como o ponto de partida para compreender como um fenômeno “natural” se torna cultural por meio de uma série de processos institucionais que expressam distintos significados de um corpo sem vida.

Aqui, a autora discute como uma instituição da burocracia público-estatal, submetida à polícia, exerce o controle sobre corpos sem vida e como esses corpos são transformados em mortos pela burocracia. Para isso, adentra no cotidiano do Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto (IML), destacando a prática de trabalho com cadáveres, para então entender como os registros públicos lá produzidos se relacionam com a produção de verdade sobre os mortos. Os exames dos corpos e a produção de registros têm como objetivo revelar a causa da morte, a identificação civil do cadáver e, concomitantemente, produzir informações sobre a morte, isto é, o IML dá prosseguimento à morte à medida que a define. Assim, é a morte que dá vida a esta estrutura que se organiza através dos saberes da medicina, da polícia, do direito e da medicina legal; saberes que conformam o esquema básico da vida burocrático-institucional.

Para além de uma atribuição do IML, a morte é um acontecimento ao qual cada cultura atribui significados próprios. Suas relações encontram-se presentes nas sociedades e fazem com que ela e as maneiras de lidar com ela sejam particulares a partir de significados construídos. Enquanto tabu, a morte ocupa nos sistemas de classificação o lugar de impureza e do perigo (Douglas, 2010DOUGLAS, M. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 2010.), principalmente através da figura do cadáver. Entretanto, argumenta a autora, a morte no IML é tratada segundo formas disciplinares de dominação dos corpos inseridos nos processos de construção das homogeneizações dos indivíduos pela violência simbólica (Bourdieu, 1994BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, R. (Org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1994. p. 122-155. (Coleção Grandes Cientistas Sociais, v. 39).) e pela normalização (Foucault, 2007FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2007.). A utilização de tal argumentação teórica possibilitou enxergar a morte como uma imposição da vida sobre os indivíduos, isto é, enquanto mecanismo de poder que deixa marcas no espaço social.

Para além disso, a morte marca seu lugar no tempo e reivindica a sua importância. Nesse sentido, ela é um acontecimento do fenômeno da vida que marca a história e, consequentemente, a estrutura social (Sahlins, 1990SAHLINS, M. Ilhas de história. Rio e Janeiro: Jorge Zahar, 1990.), estando presente na sequência cronológica e lógica da vida. Assim, ela é um acontecimento dos vivos, ao mesmo tempo em que é um evento potencialmente transformador e desafiador da estrutura a partir do inesperado.

Aqui, o par “vida” e “morte” é acionado de modo indissociável através do controle da sociedade sobre os indivíduos e seus corpos. Desse modo, a autora destaca o papel do saber médico e do poder do Estado. O primeiro se apresenta como um conhecimento disciplinado discursivamente que objetiva o discurso do corpo natural e tem como estratégia biopolítica (Foucault, 2007FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2007.) o controle e a normatização dos corpos. Já o segundo é caracterizado pelo controle do Estado, através de sua forma jurídico-policial, exercido sobre os corpos mortos enquanto corpos de indivíduos. A burocracia pública expande seus limites de ação e de controle marcando os mortos através dos registros correntemente produzidos no exercício do controle das funções do IML.

Esse lugar é assim apresentado pela autora como um espaço privilegiado para observação de tais questões, não apenas por possuir formas de controle médicas e policiais, mas por ser o local onde a morte ocorre. Lá os corpos encontram a morte, por meio da medicina, da polícia, da justiça e da medicina legal, e se transformam em mortos, sendo o IML a caixa-preta das vítimas fatais da cidade do Rio de Janeiro, onde nenhum morto ingressa por acaso.

Ao adentrar no IML, os mortos realizam os atos de instituição (Bourdieu, 2008BOURDIEU, P. A economia de trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.) da morte nos registros públicos. Caminhos que levam cadáveres em mesas por corredores, ao mesmo tempo em que constroem os procedimentos médico-legais e burocráticos. Caminhos estes que, após cruzados por corpos sem vida, constroem mortos. Assim, a partir da descrição das trajetórias dos corpos e dos papéis, a autora analisa as práticas de seus interlocutores e como a institucionalização da morte possibilita a existência de uma burocracia pública que determina e institui um corpo como “morto”. Matar o morto, nesse sentido, significa construir a morte a partir de categorias próprias; transformar o corpo sem vida em um morto com causa mortis definida em termos médicos. Por outro lado, os peritos do IML buscam conclusões, a partir das rotinas médico-legais e cartoriais, que dão vida aos mortos na medida em que os identificam e classificam suas mortes.

Além dos elementos estruturantes do IML a autora apresenta como a experiência (dela e de seus interlocutores) afeta o cotidiano do trabalho com a morte. Com um trabalho de campo minucioso e consistente, a autora realiza uma descrição sensorial desse universo. O tato, o olfato, o paladar, a visão, a audição e o afeto correspondem às experiências marcadas no próprio corpo. Seja pela presença mesma do corpo, seja pelo odor que marca o tempo e o espaço no IML ou pelo uso de metáforas que remetem a um “banquete”.

O ato de “ver cadáveres” com suas entranhas sendo expostas, medidas e pesadas na necropsia estabelece o tom do trabalho e deixa claro que poucos seriam os antropólogos dispostos a se aventurar em um campo como esse. Não apenas pelo conteúdo gráfico e violento da observação, mas pelo que a ideia de morte representa em nossa sociedade, na qual mortos são representantes da desordem na classificação sistêmica. Além disso, há a questão do cheiro, que é um dos principais motivos de repúdio e curiosidade. O cheiro é tema de conversa entre os funcionários do IML, e os odores que habitam seus corredores ativam a memória dos que circulam por ali. Como afirmou um de seus interlocutores: “Ver morto a gente acostuma, mas o cheiro mexe com a gente diferente… nem sempre tem como controlar” (p. 154). Ainda, a atenta observação dos exames necrópsicos evidenciou uma série de categorias ou metáforas que remetem ao universo alimentar. O cadáver chamado de presunto, a bandeja, a mesa, a carne; as palavras e expressões utilizadas pelos policiais, como um universo de metáforas, remetem e evocam o campo semântico de um banquete, dos alimentos, da comida.

Ao longo do texto é possível observar como a presteza e o cuidado nos procedimentos podem caracterizar o respeito ou a punição com o morto. Com uma organização textual em capítulos intitulados “esqueleto”, “carne e sangue” e “espírito”, o livro se torna a representação metafórica de um corpo vivo, no qual a autora produz uma etnografia refinada sobre o cotidiano da instituição. Flavia Medeiros encerra seu texto com epílogo referente ao atirador de Realengo, um jovem que invadiu uma escola no subúrbio carioca e matou mais de 12 pessoas, na maioria mulheres, e se suicidou em seguida. Ao perscrutar os diversos sentidos atribuídos aos mortos, a autora nos faz lembrar, com um trabalho de fôlego, consistente e de indiscutível originalidade, como os tratos envolvendo os procedimentos no IML denotam formas de continuidade social dos mortos e permitem que a instituição produza diferentes mortos e estabeleça seu lugar social mesmo após a morte.

Referências

  • BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, R. (Org.). Pierre Bourdieu São Paulo: Ática, 1994. p. 122-155. (Coleção Grandes Cientistas Sociais, v. 39).
  • BOURDIEU, P. A economia de trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
  • DOUGLAS, M. Pureza e perigo São Paulo: Perspectiva, 2010.
  • FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2007.
  • SAHLINS, M. Ilhas de história Rio e Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017
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