Acessibilidade / Reportar erro

MEIRELLES, Renato; ATHAYDE, Celso. Um país chamado favela: a maior pesquisa já feita sobre a favela brasileira. São Paulo: Gente, 2014. 167 p.

MEIRELLES, Renato; ATHAYDE, Celso. Um país chamado favela: a maior pesquisa já feita sobre a favela brasileira. 2014. São Paulo: Gente, 167

Como é rico o meu favelado, esse poderia ser um dos subtítulos do livro lançado em 2014 e já em sua terceira edição Um país chamado favela de Renato Meirelles e Celso Athayde, mas que traz em seu subtítulo um slogan de efeito, a maior pesquisa já feita sobre a favela brasileira. A tentativa dos autores, apesar de o subtítulo remeter a uma pesquisa, é uma obra de divulgação e autopromoção de seus próprios trabalhos em outras frentes. Se há alguma tônica científica na obra essa repousa em sua retórica científica iluminista, na época em que se acreditava que o conhecimento era trazido à tona, descoberto e apresentado aos intelectuais. É preciso analisar esse aspecto frágil da obra que a todo momento anuncia e declara uma ciência e um conhecimento científico passível de captação e sistematização por parte dos pesquisadores. Esse pressuposto, ultrapassado, contraria a contemporânea visão de que o conhecimento é construído a partir de certos pressupostos metodológicos e a partir de paradigmas contemporâneos e vigentes em determinadas comunidades de pesquisa.

Para os que se debruçam sobre os estudos das classes populares e dos moradores de favelas e comunidades, a obra quebra um paradigma de construção de narrativa e propõe uma nova ótica para se compreender o fenômeno nas favelas: o favelado empreendedor.

Nesse sentido, o tema central do livro parece ser o coroamento dos moradores de comunidade como consumidores e empreendedores, e para comprovar tal hipótese, o livro, apesar de se apresentar como “a maior pesquisa já realizada sobre a favela brasileira”, torna-se um apanhado de dados acumulados na trajetória de vida de Celso Athayde, um dos articuladores da fundação da Central Única das Favelas (Cufa), e do conhecimento acumulado por Renato Meirelles à frente do DataPopular, instituto de pesquisa de mercado voltado às classes populares.

Ao propor realizar o maior estudo sobre a favela já realizado os autores fazem um recorte intencional em busca do perfil empreendedor do morador de comunidade, ou seja, aquele voltado para a criação de um mercado dentro das comunidades. Esse é um vício evidente, e vai na contramão do achado de diversos estudos que demonstram como dentro de comunidades, e na sociedade ocidental, o dinheiro é apenas uma das formas de troca existentes, podendo as trocas serem mediadas pelo prestígio, favores ou planejamento futuro. Ou ainda, que a troca de dinheiro só é viabilizada por uma troca anterior de prestígio, favores ou planejamento futuro. Nessa obra, a existência de uma economia pautada pelo dinheiro que é obtido pelo esforço pessoal dos empreendedores surge com uma lógica econômica natural e não analisada com as ferramentas das ciências sociais.

É no viés de utilizar as técnicas da pesquisa social para provar que as comunidades são um mercado de consumo potencial e de empreendedorismo fértil que surge a romantização da imagem do morador de comunidade, como vivendo dentro de relações mais “comunitárias”. Esse é um erro evidente que apenas replica um pensamento socialmente construído e não se fundamenta em pesquisas que mostram relações estratificadas e hierárquicas dentro da própria comunidade, sejam elas mediadas ou não por instituições de poder, como as igrejas ou o narcotráfico.

Outro vício evidente é o recorte geográfico. Apesar de se propor como um estudo sobre as favelas brasileiras, o visível recorte nas favelas do Rio de Janeiro aponta para um viés na análise dos dados que, infelizmente, não são devidamente apresentados para a compreensão e devida crítica das inferências. Na falta de apresentação correta dos dados, os números, quase sempre em percentuais, aparecem apenas como argumentos de poder dentro da obra, uma vez que as tabelas de onde foram gerados não são apresentadas.

É preocupante a reificação da imagem de, em meus termos, um “favelado esforçado” ou ainda um “self-made favelado” que consegue se inserir dentro do jogo neoliberal do empreendedorismo e do acesso à cidadania via consumo. Essa construção é evidente pelas diversas metáforas e termos utilizados pelos autores, e culmina na alegação de um novo ator nas comunidades: o empreendedor social (p. 101).

Entretanto, é importante compreender a publicação dentro de um cenário maior que movimenta o setor de pesquisa e ações “sociais” nos estratos populares. Desde meados da década de 1990 diversas associações e movimentos populares dentro das comunidades e favelas, especialmente do Rio de Janeiro, vêm experimentando uma virada neoliberal no modelo de gestão. Sobretudo na transformação de organizações populares em Organizações Social de Interesse Público (OSCIP) e no seu consequente financiamento via contratos de “responsabilidade social” de grandes empresas. Essa mudança, que em parte pode explicar essa guinada do “empreendedorismo social” defendida no livro dos autores, não aparece como dado, uma vez que a própria Cufa é resultado desse processo e o DataPopular, prestador de serviço nesse nicho de “pesquisa científica”.

Em termos de pesquisa, para além da citada ausência das tabelas e dados de onde os números apresentados foram obtidos, é visível uma fragilidade na compreensão metodológica da pesquisa em ciências sociais. Os autores, ao afirmarem sobre o objetivo do livro “desde o início, pretendíamos associar a pesquisa científica à percepção de quem vive o cotidiano da favela” (p. 166), revelam que na concepção da pesquisa o survey, mais científico, seria associado aos depoimentos dos “favelados”. Nesse ponto, técnicas como a observação participante, etnografia, entre outros modos de obter dados “qualitativos” aparecem somente como um elemento acessório para uma aproximação quase que pitoresca com a vida dos moradores de favela, que aparecem no livro em descrições caricatas. Ou seja, a fala dos atores, que vivem o fenômeno de inserção da cidadania via consumo, não é tão importante quanto os dados estatísticos, mesmo quando não se consegue entender como os mesmos foram obtidos.

A obra, apesar de se apresentar como científica e ter prefácio do antropólogo Luiz Eduardo Soares – para quem “a obra inaugura um novo momento. Um tempo de maturidade, abertura, liberdade crítica, diversidade. A era em que não é mais preciso crachá e diploma para se fazer ouvir e para ajudar a escrever a História de nosso país” (p. 15) – deve ser alvo de consideração sobre esses novos atores na pesquisa em ciências sociais. A pesquisa de mercado, aquela na qual as técnicas e metodologias de pesquisa em ciências sociais são realizadas sob demanda de atores políticos ou empresariais, tem dominado e moldado a forma como os paradigmas de conhecimento nas ciências sociais têm sido produzidos e coloca em discussão os limites desse tipo de produção e as implicações éticas do mesmo. A obra Meirelles e Athayde, apesar de pouca relevância para a academia, revela um momento atual onde a profissionalização da pesquisa em ciências sociais para o mercado, seja privado ou estatal, começa a vender a “cientificidade” dos estudos como estratégia de marketing, e esse fato merece nossa maior atenção e reflexão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2016
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: horizontes@ufrgs.br