Acessibilidade / Reportar erro

Coleção Antropologia da Política

RESENHAS

Carlos Alberto Steil

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

Diversos. Coleção Antropologia da Política. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1998-2000. 7 v.* * Resenha também publicada no Caderno de Resenhas da Folha de São Paulo em 10 jun. 2000.

Todos dias somos bombardeados por denúncias de corrupção, violência, fraudes eleitorais, cassação de mandatos, escândalos políticos, clientelismos... As notícias se sucedem com tal velocidade que acabam produzindo a sensação de que nada muda na política brasileira. Situados no contexto idealizado de um estado de direito, onde estes acontecimentos aparecem como resíduos e testemunhos de um passado a ser superado, a política brasileira aparece cindida entre um setor tradicional e atrasado e outro moderno e racional.

No entanto, quanto mais a sociedade se moderniza, mais se reproduzem e se sofisticam os mecanismos clientelistas, as fraudes eleitorais, as formas de violência. Questionar esta divisão da política e jogar um pouco de luz sobre o seu lado sombrio e obscuro, é o que pretendem os antropólogos que integram o Núcleo de Antropologia da Política (NUAP), coordenado pelo professor Moacir Palmeira (UFRJ/Museu Nacional) e que conta com a participação de outros pesquisadores da UnB, UFC, UFRJ e UFRGS.

Mas, o que os antropólogos, afeitos ao estudo das sociedades primitivas e arcaicas, têm a dizer sobre a política na sociedade brasileira contemporânea? Uma tentativa de resposta a esta questão, podemos encontrar nos sete volumes da Coleção Antropologia da Política, publicada pela Editora Relume-Dumará (1998-1999). Com o propósito de elaborar uma interpretação dos problemas políticos que afetam o cotidiano da vida social, seus autores buscam aplicar o instrumental teórico e o método etnográfico e comparativo clássico da antropologia, desenvolvidos no contexto das sociedades tradicionais, às análises da política e suas instituições na sociedade brasileira.

Tratando de temas diversos, como violência e pistolagem, campanhas eleitorais, clientelismo e favor, política e religião, honra e decoro parlamentares, identidade camponesa, voto e adesão partidária, os volumes que compõem esta coleção mantém uma unidade que se realiza através do uso de um método e de um corpo conceitual comum no tratamento e análise dos fatos sociais. Mais do que explicar estes fatos, os autores buscam uma inteligibilidade das tramas que envolvem a política em suas múltiplas dimensões.

A interpretação é realizada "desde o ponto de vista do nativo", que no caso se refere ao modo como aqueles que participam do exercício da política concebem sua experiência. Assim, Marcos Otávio Bezerra, no livro Em nome das "bases" , toma a participação dos parlamentares na elaboração e execução do orçamento da União como um lugar sociológico privilegiado para estudar as suas relações com lideranças locais, com autoridades do executivo e agentes privados, como escritórios de consultoria e empreiteiros. A sua análise é construída tomando como referência o ponto de vista dos parlamentares.

A etnografia é a marca dos trabalhos que compõem esta coleção. De modo que, mesmo quando o objeto de estudo são crimes de pistolagem ligados ao voto, como no caso de César Barreira, em Crimes por encomenda. Violência e pistolagem no cenário brasileiro, o autor busca dar voz aos pistoleiros, deixando transparecer códigos de honra e de moralidade que estão fora daqueles que regem a convivência social e democrática convencional. Orientado pelo viés antropológico, Barreira compara e relativiza as múltiplas verdades/versões (a dos meios de comunicação, a autenticidade jurídica, a dos narradores e a da literatura de cordel) que estão implicadas na pistolagem política. Mostra ainda que, embora esteja associada ao contexto rural, a pistolagem política vem ocupando espaços cada vez mais eminentes no cenário urbano.

Em todos os autores, observa-se um deslocamento do institucional para dimensões da vida social em que a política se faz presente de uma forma capilar. Um deslocamento que, em muitos casos, significa transformar as instituições políticas, especialmente o Congresso Nacional, em campos etnográficos. Neste sentido, Carla Costa Teixeira, em A honra da política, partindo dos debates parlamentares sobre o decoro e as reflexões weberianas acerca da autonomia da política, resgata a noção de honra, uma categoria largamente analisada no contexto das sociedades tradicionais, como o valor distintivo da política. Com muita acuidade e perspicácia, mostra que, se por um lado, as noções de honradez e dignidade estão ausentes na imagem que a sociedade brasileira construiu dos seus políticos, por outro, a noção de honra é o valor distintivo da política.

Outro elemento comum nas análises elaboradas pelos autores desta coleção é uma perspectiva ritual da política. Partindo da noção de um tempo da política, conforme designação de Moacir Palmeira e Beatriz Heredia, Irlys Barreira analisa campanhas políticas nacionais e locais como um momento ritual, revestido de grande teatralidade, onde se realiza a cerimônia de contrato entre representantes e representados. Tomando como contexto etnográfico a "Caravana da Cidadania", da campanha de Luís Inácio Lula da Silva às eleições presidenciais de 1994 e as candidaturas femininas de 1996, nas cidades de Natal, Fortaleza e Maceió, a autora mostra, no livro Chuva de papéis. Ritos e símbolos de campanhas eleitorais no Brasil, como as categorias de representação, apresentação e reconstrução resultam de um intenso trabalho simbólico de associação da "biografia" dos candidatos e candidatas à história do "povo" e à situação das mulheres na sociedade.

Júlia Miranda, em Carisma, sociedade e política. Novas linguagens do religioso e do político, faz da campanha para vereador de um candidato de Fortaleza que pertence à Renovação Carismática Católica e que se elege com o apoio explícito do movimento, o seu campo etnográfico. Apoiando-se na "antropologia ritual" e destacando a dimensão simbólica da linguagem no cotidiano do movimento e no momento extraordinário da política, a autora analisa as transformações e re-significações que estão ocorrendo no campo da política a partir de uma nova sociabilidade que vem sendo urdida pelos carismáticos no interior da Igreja Católica.

Se a maioria dos trabalhos privilegia - para usar um termo "nativo" - os eventos que ocorrem no "tempo da política", John Cunha Comerford, em Fazendo a luta. Sociabilidade, falas e rituais na construção de organizações camponesas, vai analisar o cotidiano de um assentamento de sem-terras, chamando a atenção do leitor para aqueles aspectos que são mais naturalizados e menos evidentes num esforço de "estranhamento do familiar". Como ele mesmo afirma, "apesar de remeter a temas `quentes', o livro trata de dimensões `frias'".

Por fim, em Alguma Antropologia, Márcio Goldman publica alguns ensaios que traçam a sua trajetória intelectual ao longo de 20 anos, a qual desemboca numa investigação de "antropologia política", direcionada para o estudo do processo eleitoral e do voto na sociedade brasileira. Nos dois últimos capítulos do seu livro, retoma os pressupostos teóricos que orientam as pesquisas em tela, aplicando-os à análise das eleições. Seu objetivo é investigar "o voto em sua densidade de escolha individual e agenciamento coletivo". Afastando-se de uma perspectiva com pretensões explicativas e que busca estabelecer algum tipo de relação causal entre o voto e sua motivação, mostra que "vota-se por interesse, afinidade ideológica, adesão partidária, mas também por simpatia, identificação pessoal, torcida de futebol, autoridade materna... e mais uma infinidade de razões impossíveis de esgotar".

A maior contribuição da abordagem antropológica da política presente nesta coleção está em perceber que muitas das práticas e categorias que tendemos a remeter à política local (a "pequena política"), como resíduos de uma cultura tradicional, na verdade são estruturantes da política moderna oficial ou institucional (a "grande política"). Como estruturas simbólicas de longa duração, os elementos da "pequena política" - o clientelismo, a pistolagem, o favor, a honra, a religião - invadem a "grande política", impondo-lhe sua lógica e orientando sua ação. Se o local é penetrado pela racionalidade moderna, o moderno também é continuamente colonizado pelo local.

  • *
    Resenha também publicada no Caderno de Resenhas da
    Folha de São Paulo em 10 jun. 2000.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Nov 2000
    Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: horizontes@ufrgs.br