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As emoções e o trabalho intelectual

Emotions and intellectual work

Resumo

Este artigo aborda o lugar das emoções na produção de conhecimento científico, com foco na área das ciências sociais. Trata-se de um texto de natureza bibliográfica composto de três seções. Na primeira, discute-se a existência de três momentos na reflexão sobre o lugar das emoções no fazer antropológico: a) como intrusas indesejáveis no trabalho de campo; b) como um incômodo com o qual se pode aprender sobre a natureza do trabalho de campo; c) como via de acesso para a compreensão da alteridade. A segunda seção aborda o papel da nostalgia e do pessimismo, respectivamente, nas disciplinas da antropologia e da sociologia, discutindo-os como molas propulsoras do desejo de conhecer. A terceira seção explora o lugar do amor no trabalho intelectual, tomando a história da relação entre Sidney e Beatrice Webb (narrada por Wolf Lepenies em seu livro As três culturas) como um conjunto de dados etnográficos.

Palavras-chave:
emoções; produção científica; trabalho intelectual; emoções na academia

Abstract

This paper approaches the role of emotions in the production of scientific knowledge focusing on Social Sciences. It is a bibliographical enterprise composed of three sections. The first one discusses the existence of three moments in the way emotions’ presence in anthropological research is thought of: a) as undesirable invaders in fieldwork; b) as a nuisance through which the nature of fieldwork can be better grasped; c) as a way to the understanding of Otherness. The second section analyzes nostalgia and pessimism as “propelling springs” to the desire for knowledge in Anthropology and Sociology. The third section explores the role played by love in intellectual work based on the story of Sidney and Beatrice Webb (such as told by Wolf Lepenies in his book The three cultures) hereby taken as a set of ethnographic data.

Keywords:
emotions; scientific production; intellectual work; emotions in academia

Introdução

O campo da antropologia das emoções tem, entre suas questões fundadoras, a relação entre a emoção e a razão. Enquanto categorias “nativas” da etnopsicologia euro-americana (Lutz, 1988LUTZ, C. Unnatural emotions: everyday sentiments on a Micronesian atoll and their challenge to Western theory. Chicago: The University of Chicago Press, 1988.), emoção e razão se encontram em polos opostos, dotadas de valências divergentes, porém não fixas, podendo se alternar nos papéis de polo “positivo” e “negativo” em função, principalmente, da relação estabelecida com o gênero e com o (des)controle. A relação entre emoção e razão, contudo, nem sempre é de oposição: entre os textos fundadores do campo, podemos também encontrar esforços de articulação entre elas, como na formulação balizadora do campo das emoções como “pensamentos incorporados” (Rosaldo, M., 1984ROSALDO, M. Toward an anthropology of self and feeling. In: SHWEDER, R. A.; LEVINE, R. A. (ed.). Culture theory: essays on mind, self, and emotion. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. p. 137-157.).

A relação entre os dois termos engendrou já um conjunto expressivo de análises voltadas para a compreensão de uma enorme diversidade de fenômenos, tais como experiências de saúde e doença e vivências do gênero e da sexualidade, entre aqueles associados à intimidade; e movimentos sociais, modalidades da violência ou transformações de regimes políticos, entre aqueles associados à “vida pública”.1 1 Para uma discussão recente da gama de objetos passíveis de construção pela antropologia das emoções, ver Coelho e Durão (2017).

Entre esses estudos, encontram-se aqueles voltados para a análise das emoções em instituições e universos profissionais. Aí, é recorrente a identificação de discursos e práticas profissionais que representam as emoções como “poluidoras”, capazes de conspurcar o desempenho profissional idealizado que teria, entre seus atributos desejáveis, uma impermeabilidade à vida emocional, entre os quais se encontra o trabalho intelectual.

A produção de conhecimento científico parece, assim, viver às turras com as emoções desde sua mais tenra idade. Bloch (2002)BLOCH, C. Managing the emotions of competition and recognition in academia. In: BARBALET, J. (ed.). Sociological review monograph. Oxford: Blackwell, 2002. p. 113-131., discutindo a cultura emocional da academia e o trabalho emocional ali realizado, aponta para a representação do senso comum, evidente no riso de seus colegas diante de seu tema, de que emoções e academia seriam incompatíveis. Outros autores já se dedicaram também a analisar essa tensão entre emoção e razão no mundo da ciência e/ou da academia, tais como Barbalet (2002)BARBALET, J. Science and emotions. The Sociological Review, v. 50, n. 52, p. 132-150, 2002. e Spivak L’Hoste (2017)SPIVAK L’HOSTE, A. Trajetórias e emoção em uma instituição tecnocientífica argentina. Interseções, v. 19, n. 1, p. 188-208, 2017. DOI: https://doi.org/10.12957/irei.2017.30401
https://doi.org/10.12957/irei.2017.30401...
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Mas essa tensão tem pelo menos dois aspectos: uma dimensão institucional (o lugar das emoções nas instituições acadêmicas) e uma dimensão intelectual (o lugar das emoções na produção do conhecimento em si). É essa segunda dimensão que constitui o foco do presente artigo.

Seu objetivo principal é examinar o lugar das emoções no trabalho intelectual na área das ciências sociais. A proposta é discutir a relação das ciências sociais com as emoções sob três aspectos: a) na antropologia, enfocando o lugar das emoções no trabalho de campo; b) nas ciências sociais, como molas propulsoras dos projetos disciplinares da antropologia e da sociologia; e d) na própria produção de conhecimento, nas atividades cotidianas daqueles que se dedicam à pesquisa, tomando como “caso” o casal Sidney e Beatrice Webb.

Para isso, o texto está dividido em três seções. Na primeira, partindo das considerações de Andrew Beatty (2010)BEATTY, A. How did it feel for you: emotions, narrative, and the limits of ethnograpy. American Anthropologist, v. 112, n. 3, p. 430-443, 2010.) sobre a escrita das emoções, examino três formas de se conceber o lugar das emoções no trabalho de campo: a) as emoções como intrusas indesejáveis a serem extirpadas, se não do campo, ao menos do texto final (tomando por base a publicação dos “Diários” de Bronislaw Malinowski [1997])MALINOWSKI, B. Um diário no sentido estrito do termo. Rio de Janeiro: Record, 1997.; b) as emoções como incômodo inevitável, mas com o qual se pode aprender algo sobre o que é fazer antropologia (partindo do trabalho, já canônico, de Roberto DaMatta [1978]DAMATTA, R. O ofício de etnólogo, ou como ter “anthropological blues”. In: NUNES, E. (org.). A aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 23-35. sobre o anthropological blues); e c) as emoções como parte integrante do trabalho de campo e possível via de acesso para a compreensão do outro (com base no conhecido texto de Renato Rosaldo [1989]ROSALDO, R. Introduction: grief and a headhunter’s rage. In: ROSALDO, R. Culture and truth. Boston: Beacon Press, 1989. p. 1-21. sobre a relação entre o luto e a raiva).

A segunda parte do texto abre o ângulo e aborda os sentimentos2 2 A distinção entre emoções, sentimentos e afetos é multifacetada, com a literatura em antropologia das emoções estando muito longe de um consenso acerca da existência de qualquer matriz hegemônica capaz de orientar o uso desses termos como conceitos. Para evidenciar essa polissemia dos termos (ainda mais complexa porque, em inglês, temos quatro termos, e não apenas três - emotion, feeling, sentiment e affect), cito algumas passagens de autores canonicamente entendidos como fundadores do campo da antropologia das emoções nos Estados Unidos. A primeira passagem se encontra em Veiled sentiments, etnografia de autoria de Lila Abu-Lughod. Diz ela: “In fact, I use the term sentiment rather than emotion or affect specifically to signal the literary or conventional nature of these responses” (Abu-Lughod, 1986, p. 34, grifo da autora). A segunda passagem é a formulação fundadora de Michelle Rosaldo, em que as emoções são definidas como “pensamentos incorporados”: “Emotions are thoughts somehow ‘felt’ in flushes, pulses, ‘movements’ of our livers, minds, hearts, stomachs, skin. They are embodied thoughts, thoughts seeped with the apprehension that ‘I am involved’” (Rosaldo, M., 1984, p. 143, grifo da autora). E é relevante assinalar que a passagem prossegue aprofundando a reflexão sobre a relação já não mais entre pensamentos e emoções, mas entre pensamento e afeto: “Thought/affect thus bespeaks the difference between a mere hearing of a child crying and a hearing felt […]” (Rosaldo, M., 1984, p. 143, grifo da autora). Finalmente, no texto de revisão bibliográfica de autoria de Catherine Lutz e Geoffrey White (1986), intitulado “The anthropology of emotions”, encontramos diversas passagens em que os termos aparecem de maneira intercambiável, sem maiores preocupações com o traçado nítido de diferenças conceituais. A título de exemplo, cito uma passagem exemplar dessa intercambialidade: “Both linguistic theory […] and ethnographic studies indicate that emotion words do not function solely, or even primarily, as labels for feeling states or facial expressions. Hence it is not likely that semantic studies will yield direct evidence for universal physiological dimensions of affective experience” (Lutz; White, 1986, p. 417, grifo meu). Esses termos, assim, parecem ser tomados como sinônimos, sem chegarem a ser erigidos em conceitos, como sugere o próprio título dado por Lutz e White a seu artigo - “The anthropology of emotions” - sem qualquer discussão conceitual sobre eventuais distinções entre “emotion”, “sentimento”, “affect” ou “feeling” (sendo que os quatro termos aparecem ao longo do texto); ou, em movimento inverso, está implicado também no título do artigo de Michelle Rosaldo, que o batiza de “Toward an anthropology of self and feeling”, embora a preocupação seja com a definição das emoções. O fato de, por um lado, Lutz e White discutirem o campo da “antropologia das emoções” e de, por outro, Rosaldo se propor a fazer uma “antropologia do self e do sentimento” sugere que os termos são, nessa área de investigação, utilizados como sinônimos, com suas variações eventuais de uso sendo de natureza semântica ou sintática, e não conceitual. Neste artigo, opto pelo uso preferencial do termo “emoção”, recorrendo, autorizada pela intercambialidade entre os termos nesses textos fundadores do campo, apenas eventualmente a “sentimentos” ou “afetos”, sem pretender com isso traduzir distinções de ordem conceitual. Agradeço a Claudia Barcellos Rezende a interlocução para a elaboração dessa discussão. que orientam os projetos disciplinares da antropologia e da sociologia, com base nas sugestões feitas por David Berliner (2015)BERLINER, D. Are anthropologists nostalgist?. In: ANGÉ, O.; BERLINER, D. (ed.). Anthropology and nostalgia. New York: Berghahn Books, 2015. p. 17-34. sobre a centralidade da nostalgia no desejo de conhecer dos antropólogos e por Stephen Kalberg (1987)KALBERG, S. The origin and expansion of Kulturpessimismus: the relationship between public and private spheres in early twentieth century Germany. Sociological Theory, v. 5, p. 150-165, 1987. sobre a relação indissociável entre o pessimismo diante da vida moderna e a emergência da disciplina sociológica.

Finalmente, na terceira parte recorro ao estudo de Wolf Lepenies (1996)LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996. sobre o surgimento da sociologia na França, nos Estados Unidos e na Alemanha para esboçar algumas sugestões sobre o lugar do amor na produção de conhecimento. Faço, aqui, um uso assumidamente iconoclasta das teses de Lepenies, arriscando tratar como “dados etnográficos” seus relatos sobre a relação entre o amor, a literatura e a criação da sociologia nos universos francês e inglês, através das figuras de Auguste Comte e Clotilde de Vaux, John Stuart Mill e Harriet Taylor e o casal Sidney e Beatrice Webb. As “considerações finais” trazem, à guisa de conclusão, algumas observações sobre a ambivalência do lugar que se reconhece (ou não) terem as emoções no trabalho intelectual.

O lugar das emoções na etnografia: de intrusas indesejáveis a caminhos para a compreensão da alteridade

Em texto de revisão bibliográfica voltado para o campo da antropologia das emoções, Andrew Beatty (2010)BEATTY, A. How did it feel for you: emotions, narrative, and the limits of ethnograpy. American Anthropologist, v. 112, n. 3, p. 430-443, 2010. examina diversas perspectivas voltadas para a etnografia das emoções, com foco em um problema particular: a escrita das emoções. Beatty contrapõe a “etnografia pessoal” à análise construcionista: para a primeira, utiliza como exemplo o bem conhecido texto de Renato Rosaldo (1989)ROSALDO, R. Introduction: grief and a headhunter’s rage. In: ROSALDO, R. Culture and truth. Boston: Beacon Press, 1989. p. 1-21. sobre a relação entre raiva e luto, em que o autor postula que somente o encontro entre o dado etnográfico e o episódio biográfico do pesquisador pode facultar uma plena compreensão da experiência emocional do outro; para a segunda, a etnografia Unnatural emotions, de Catherine Lutz (1988)LUTZ, C. Unnatural emotions: everyday sentiments on a Micronesian atoll and their challenge to Western theory. Chicago: The University of Chicago Press, 1988., em que a autora examina a concepção Ifaluk das emoções - sua “etnopsicologia”.

Discutindo as estratégias textuais vinculadas a essas diferentes perspectivas teórico-metodológicas, Beatty aborda a importância da inserção da emoção etnografada em uma narrativa, recorrendo, entre outros exemplos, à etnografia de Lila Abu-Lughod (1993)ABU-LUGHOD, L. Writing women’s worlds. Berkeley: University of California Press, 1993. de uma aldeia beduína no Egito, em que a autora procura, por meio da narrativa de histórias de pequenos dramas cotidianos, expor, entre outras questões, a vivência da poliginia pelas mulheres dessas famílias.

Beatty (2010BEATTY, A. How did it feel for you: emotions, narrative, and the limits of ethnograpy. American Anthropologist, v. 112, n. 3, p. 430-443, 2010., p. 438, tradução minha) defende assim a abordagem narrativa:

[…] uma abordagem narrativa nos permite apreender os significados humanos que definem a experiência da emoção. Uma consciência da emoção em contexto narrativo traz à luz as contradições e conflitos que as pessoas vivenciam em sua vida social, seus desajustes, sua resistência ou rendição involuntária a pressões sociais, seus choques com a realidade, sua luta por sentido. Pela mesma razão, a narrativa trabalha contra um relativismo que encompassaria a emoção pela cultura - despersonalizando-a - como se nada pudesse escapar ao abraço da cultura (Abu-Lughod, 1993). Uma abordagem narrativa deixa opaco aquilo que resiste à análise social; ela reconhece o irredutível; ela não força uma resposta.

Não se trata - e Beatty é enfático nisso - de colocar as emoções do pesquisador-etnógrafo no proscênio. Longe disso: para o autor, deixar para trás as emoções sentidas no campo seria condição mesmo de possibilidade para a escrita etnográfica.

O que seria, então, advogar em favor de uma “abordagem narrativa”? Para Beatty (2010BEATTY, A. How did it feel for you: emotions, narrative, and the limits of ethnograpy. American Anthropologist, v. 112, n. 3, p. 430-443, 2010., p. 440, tradução minha), a narrativa “alocaria a emoção na prática; no fluxo indivisível da ação, do personagem e da história”. Mas ele mesmo reconhece que não há nada de novo nessa forma de escrever sobre as emoções: afinal, é isso o que fazem os romancistas. O etnógrafo precisaria “aprender essa lição”.

O texto de Andrew Beatty faz, assim, um apelo preciso: que a etnografia voltada para o estudo das emoções busque na literatura inspiração para encontrar uma forma textual adequada à descrição da vida emocional. Realiza, assim, um movimento de 360 graus em relação à história das ciências sociais. Porque, de um lado, o indivíduo (locus do emocional e, por isso mesmo, objeto da psicologia), foi tradicionalmente tratado, nos momentos fundadores das ciências sociais, como aquilo a ser excluído do escopo da análise sociológica como forma de demarcação de sua singularidade disciplinar; por outro, a literatura - gênero narrativo associado à exposição da subjetividade, avesso lógico da impessoalidade objetiva que se esperava do empreendimento científico - foi definida, em alguns projetos fundadores, como um perigo tentador a ser evitado.

Psicologia e literatura podem, assim, ser entendidas (em um uso um tanto heterodoxo das teses tradicionais dos estudos sobre identidade com sua ênfase na exigência do contraste) como “outros disciplinares”, contra os quais as ciências sociais buscaram construir sua “identidade”: um “outro” em relação ao objeto, um “outro” em relação à forma. Ao se voltarem, contudo, para as emoções como objeto de estudo, a démarche teórica e metodológica parece nos conduzir, de maneira algo irônica, de volta ao ponto de partida: como estudar as emoções, esse aspecto da experiência individual empurrado originalmente, junto com o indivíduo, para os braços da psicologia? E como escrever sobre elas, sem incorrer no “pecado original” do relato subjetivo e impressionista, tratado em algumas cenas intelectuais fundadoras como tentação a ser resistida?

A publicação póstuma dos “Diários” de Malinowski, em 1967, foi um divisor de águas na teoria antropológica. Podemos elencar pelo menos quatro avaliações de naturezas muito distintas: a opinião de Raymond Firth, expressa no prefácio da primeira edição, de que os Diários não ofereciam qualquer interesse à teoria antropológica, seu destino não sendo mais do que “uma nota de pé de página”; a estrondosa repercussão de sua publicação, majoritariamente voltada para um desencanto com a figura do mestre, que em seus escritos íntimos revela-se um personagem hipocondríaco e desagradável, impaciente com seus informantes e chegando mesmo a utilizar termos depreciativos e preconceituosos para se referir a eles; a guinada na maneira de entender a importância metodológica dos Diários sugerida por Geertz (1997)GEERTZ, C. “Do ponto de vista do nativo”: a natureza do entendimento antropológico. In: GEERTZ, C. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 85-107.; e seu uso para a investigação da etnografia como um gênero narrativo (Geertz, 2002GEERTZ, C. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.), seguindo a trilha aberta pelos autores de Writing culture (Clifford; Marcus, 2016CLIFFORD, J.; MARCUS, G. (ed.). A escrita da cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ: Papéis Selvagens, 2016.).

Recorro aqui aos Diários para ilustrar uma espécie de “primeiro tempo” do lugar das emoções nos relatos etnográficos: a separação, nos textos produzidos a partir do trabalho de campo, entre aqueles de natureza íntima, para consumo do próprio pesquisador, e aqueles elaborados para publicação - a “etnografia” propriamente dita (tal como se entendia então). Podemos ainda apontar um terceiro tipo de texto, nem sempre presente: o “par” da etnografia, o livro que traz o relato pessoal acoplado à descrição etnográfica, tal como discutido por Pratt (2016)PRATT, M. L. Trabalho de campo em lugares comuns. In: CLIFFORD, J.; MARCUS, G. (ed.). A escrita da cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ: Papéis Selvagens, 2016. p. 63-90.. De toda forma, seja entre os dois tipos de livros publicados, seja entre o diário de campo e a etnografia em sua forma “pública”, há uma cisão fundamental nessa forma de conceber a relação entre emoções e trabalho de campo: as emoções do pesquisador durante o trabalho de campo são intrusas indesejáveis. Inevitáveis, sem dúvida, como parte da vivência subjetiva do campo, nem por isso as emoções são entendidas como parte inerente ao trabalho de campo e, portanto, como algo digno de figurar no relato a ser apresentado ao público. As emoções atrapalham, parece ser essa a mensagem, e o etnógrafo é aquele que as aguenta e supera heroicamente, expulsando-as do “produto final” de seu trabalho, tanto mais merecedor de credibilidade quanto expurgado dos afetos.

A publicação dos Diários perturba duplamente essa assepsia. A primeira pergunta feita por Geertz (1997)GEERTZ, C. “Do ponto de vista do nativo”: a natureza do entendimento antropológico. In: GEERTZ, C. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 85-107. é: qual o lugar da empatia no trabalho de campo? Malinowski, em suas etnografias, construiu a si mesmo como uma persona marcada pela empatia para com seus “nativos”. Entretanto, lendo seus Diários, vemos um outro personagem, um pesquisador irritado com seus informantes, queixando-se de seu assédio, etc. Se é assim, diz Geertz, fica evidente que não era por meio da empatia que Malinowski captava “o ponto de vista do nativo”. Como ninguém nega a natureza extraordinária de seus resultados etnográficos, como era então que ele fazia?

A segunda pergunta, que guarda relação lógica direta com o lugar da empatia na pesquisa de campo, diz respeito a quais traços devem ser reportados, e onde, e como. Se era assim que Malinowski se sentia, por que achou necessário ocultar isso? Por que separou o relato de sua infelicidade pessoal, sua angústia, sua solidão, da descrição etnográfica destinada ao público acadêmico?

Em suma: essa dupla cisão, entre o que o etnógrafo sente e o que revela que sente, entre o texto íntimo e o texto público, diz muito sobre o lugar atribuído às emoções nesse “primeiro tempo” da história da antropologia. Aqui, sua existência é, na melhor das hipóteses, eventualmente reconhecida (como nos “pares” de livros discutidos por Pratt), mas sua função no campo em si parece ser de um incômodo, uma conspurcação, um aspecto desagradável da experiência que precisa ser superado para o êxito do trabalho científico e, por isso, não encontra lugar no texto final. A angústia do etnógrafo não interessa a ninguém; sua solidão, cuja superação é atestada pela conclusão em si do trabalho, não é mais do que um “rito iniciático” atravessado com bravura, literariamente recluso às páginas do “diário de campo”.

Em 1978, Roberto DaMatta publica um pequeno texto intitulado “O ofício de etnólogo ou como ter anthropological blues”. Nele, advoga a existência de uma “etapa existencial” no trabalho de campo junto a sociedades tribais, em que a biografia do antropólogo seria “sintetizada” com a teoria. DaMatta (1978DAMATTA, R. O ofício de etnólogo, ou como ter “anthropological blues”. In: NUNES, E. (org.). A aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 23-35., p. 25) expõe assim essa terceira etapa:

É vivenciando esta fase que me dou conta (e não sem susto) que estou entre dois fogos: a minha cultura e uma outra, o meu mundo e um outro. De fato, tendo me preparado e me colocado como tradutor de um outro sistema para a minha própria linguagem, eis que tenho que iniciar minha tarefa.

O texto se dedica a analisar essa etapa “existencial”, partindo de uma constatação que guarda semelhanças com o exposto acima: que há um conjunto de elementos, aos quais DaMatta se refere como “anedóticos” ou “românticos”, que, embora de existência reconhecida por todo pesquisador de campo, não integram os textos finais, sendo relegados a conversas em corredores e festas. O autor elege, para discutir essa etapa, a noção de anthropological blues, proposta por Jean Carter Lave.

O anthropological blues é a forma que a solidão assume tipicamente no trabalho do etnógrafo. Estaria no âmago do sentimento que acomete o antropólogo no momento da “descoberta etnográfica”: aquele instante iluminado em que compreende algo central na experiência do grupo etnografado.

Entretanto, é precisamente nesse momento de euforia intelectual que o antropólogo se descobre só. É porque não há com quem compartilhar a alegria da descoberta, não há nem mesmo quem possa compreendê-la. Se, no momento em que DaMatta escreve essas considerações, a solidão do antropólogo é geográfica, espacial mesmo, não é demais nos aventurarmos na suposição de que a essência dessa solidão se manteria mesmo em um mundo “conectado”. Pois quem, além do antropólogo e, com sorte, alguns poucos colegas, poderia considerar seu achado etnográfico como uma descoberta capaz de produzir euforia? Por outro lado, como compartilhá-la com aqueles que estão “próximos” - os nativos que pautam suas vidas pela regra tão arduamente descoberta? Pois esses sempre souberam daquilo, embora o soubessem, como diria Geertz (1997)GEERTZ, C. “Do ponto de vista do nativo”: a natureza do entendimento antropológico. In: GEERTZ, C. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 85-107., como um conceito de “experiência-próxima” (ou seja, não sabem que sabem, pois não concebem outra forma de estar no mundo), e não, como para o antropólogo, como um conceito de “experiência-distante”.

O anthropological blues seria, assim, a forma antropológica da solidão. É aquela solidão que advém do saber-se entre dois mundos, aprisionado em um interstício criado pela compreensão do projeto antropológico como um esforço de tradução (e a metáfora aqui, que é também usada por DaMatta no trecho citado acima, não é casual). Essa solidão, assim, se encontra no âmago do fazer etnográfico, um sentimento criado pela natureza intelectual mesma do projeto de compreensão da alteridade, sendo, exatamente por isso, uma via de acesso privilegiada para o entendimento do que é fazer etnografia.

Há, aqui, um resgate de um sentimento cuja presença no campo é intelectualmente legitimada em seu potencial para compreender o que faz um antropólogo. Estamos, assim, diante do segundo momento dessa “história” da presença das emoções no trabalho antropológico: já não mais uma intrusa a ser erradicada do texto final, mas agora uma presença capaz de nos ilustrar quanto à operação intelectual de compreensão realizada na etnografia.

Sua importância, contudo, tem uma natureza algo panorâmica: o antropólogo sente, isso não precisa ser escondido, e há um sentimento típico que é engendrado pelo método em si. Mas esse sentimento nos serve para entender o que faz um antropólogo, em abstrato, e não o modo de vida particular estudado ali. E aqui entramos no terceiro momento dessa história: o sentimento como aquilo que pavimenta o caminho para a compreensão do outro.

Favret-Saada (2005)FAVRET-SAADA, J. Ser afetado. Cadernos de Campo, n. 13, p. 155-161, 2005., em seu conhecido texto “Ser afetado”, discute um modo de conhecimento da alteridade apoiado no exame reflexivo das emoções do pesquisador. Com base em suas pesquisas sobre a feitiçaria na França rural, a autora discute as limitações e tensões da “observação participante”, contrapondo à prescrição da “empatia” a ideia de “deixar-se afetar” como forma de compreensão.

A “empatia” teria, em sua percepção, dois sentidos possíveis: como experiência vicária e como fusão com o outro por meio da identificação. Para Favret-Saada, ambos os sentidos teriam pouca serventia como forma em si de acesso à experiência do outro. Entretanto, aceitar ocupar um lugar no sistema da feitiçaria “abre uma comunicação específica com os nativos: uma comunicação sempre involuntária e desprovida de intencionalidade, e que pode ser verbal ou não” (Favret-Saada, 2005FAVRET-SAADA, J. Ser afetado. Cadernos de Campo, n. 13, p. 155-161, 2005., p. 159).

Por outro lado, deixar-se afetar traz um risco:

Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível. (Favret-Saada, 2005FAVRET-SAADA, J. Ser afetado. Cadernos de Campo, n. 13, p. 155-161, 2005., p. 160).

Esse tipo de etnografia exige uma separação entre o tempo da experiência e o tempo da análise, que guardaria relação direta com o dilema da observação participante:

As operações de conhecimento acham-se estendidas no tempo e separadas umas das outras: no momento em que somos mais afetados, não podemos narrar a experiência; no momento em que a narramos não podemos compreendê-la. O tempo da análise virá mais tarde. (Favret-Saada, 2005FAVRET-SAADA, J. Ser afetado. Cadernos de Campo, n. 13, p. 155-161, 2005., p. 160).

O projeto teórico de Favret-Saada entroniza, assim, as emoções do pesquisador no cerne mesmo do fazer etnográfico. Concede-lhe um lugar central, não só como autorização para participar e observar (como, de resto, já discutia Geertz ao analisar a empatia a partir da experiência de Malinowski), mas como meio de conhecimento em si. Guarda, portanto, relação com outros projetos teóricos que fazem da experiência emocional, suscitada pela participação naquilo que se quer compreender, um modo em si de conhecimento.

O próprio texto de Renato Rosaldo (1989)ROSALDO, R. Introduction: grief and a headhunter’s rage. In: ROSALDO, R. Culture and truth. Boston: Beacon Press, 1989. p. 1-21., comentado acima por Andrew Beatty, oferece um outro modelo para a compreensão do rendimento que as emoções podem ter no processo de entendimento da alteridade. Renato Rosaldo (1989)ROSALDO, R. Introduction: grief and a headhunter’s rage. In: ROSALDO, R. Culture and truth. Boston: Beacon Press, 1989. p. 1-21. recorre à noção de “conhecimento posicionado” para defender sua tese de que é somente no encontro entre a biografia do pesquisador e o modo de vida etnografado que se pode “compreender o outro”. O autor nos conta sobre sua dificuldade em entender do que falavam os Ilongot quando explicavam a prática de caçar cabeças como uma forma de lidar com a raiva decorrente do luto. Em sua trajetória existencial/etnográfica, Rosaldo diz só ter sido capaz de compreender essa articulação emocional após a morte de sua mulher, Michelle Rosaldo, em um acidente durante o trabalho de campo. Para ele, foi só após vivenciar uma experiência emocionalmente devastadora de luto e se deparar com a raiva que o acometia que foi capaz de entender esse “trabalho emocional” da raiva na dinâmica subjetiva do luto. Para ele, trata-se de compreender a natureza inevitavelmente “posicionada” do conhecimento, em mais um percurso teórico que integra as emoções ao modo de conhecer.

Outras etnografias, partindo de experiências sensoriais ou corporais, realizam movimentos teóricos semelhantes, ou seja, exploram-nas como forma de acessar o modo de vida do grupo estudado. Os trabalhos de Robert Desjarlais (1992)DESJARLAIS, R. Body and emotion: the aesthetics of illness and healing in the Nepal Himalayas. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1992. sobre o transe e a cura xamanísticos no Nepal e de Loïc Wacquant (2002)WACQUANT, L. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002. sobre uma academia de boxe podem ser arrolados nessa rubrica. Desjarlais advoga a intersubjetividade como estratégia de investigação etnográfica, abordando a própria experiência do transe como tentativa de compreender o que é o êxtase entre os xamãs no Nepal. Colocando-se no lugar de um “aprendiz de feiticeiro”, Desjarlais (1992DESJARLAIS, R. Body and emotion: the aesthetics of illness and healing in the Nepal Himalayas. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1992., p. 16, tradução minha) relata um episódio em que, tendo vivenciado um transe (ou, pelo menos, achado que sim), conta sobre as imagens que viu a seu mestre, que as desqualifica como inteiramente desprovidas de sentido: “Quando você treme, os deuses estão observando o seu corpo para ver se você é puro ou não. Mas, como você não conhece bem nossa língua, e não sabe como são os deuses, você só enxerga flashes no escuro, como quando alguém leva uma pancada na cabeça.” Uma segunda diferença entre o “transe” experimentado por Desjarlais e o transe nepalês está no efeito sobre o corpo: os tremores de Desjarlais têm uma estética diferente da nativa e são objeto de riso por parte das crianças, pois, ao invés de oscilar, ele treme “como geleia”. Desjarlais (1992DESJARLAIS, R. Body and emotion: the aesthetics of illness and healing in the Nepal Himalayas. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1992., p. 19, tradução minha) explica assim sua proposta de tomar a intersubjetividade como meio de conhecimento da alteridade:

Mas talvez seja exatamente no choque entre visões de mundo, na tensão entre sistemas simbólicos (como se define a realidade, como se lida com o corpo, como se articula a experiência), que alguns insights antropológicos emergem. Aprende-se sobre outro modo de ser e sentir pelo contraste, observando as diferenças que fazem diferença. Ao participar da vida cotidiana de uma sociedade diferente da sua, um etnógrafo se depara e lentamente aprende (muitas vezes tacitamente, mas sempre parcialmente) padrões de comportamento antes desconhecidos para seu corpo. Na minha experiência, é por meio desse trabalho comportamental que as diferenças que caracterizam duas formas de vida se tornam mais evidentes: novos modos de andar, falar e interagir contribuem para uma apreciação visceral das forças que geram essas ações.

Wacquant advoga também esse “aprender com o corpo” como estratégia etnográfica. Seu longo treinamento como boxeador termina com sua estreia em uma luta, no início de uma “carreira” que ele chega a considerar seguir. É, contudo, dissuadido por seu treinador, que lhe diz que “você já teve sua luta”, contendo assim o perigoso escorregar da observação para a participação ao qual Wacquant ameaça sucumbir.

Nada há aí de muito inédito, sendo razoável entender seu desejo de boxear e a negativa de seu treinador como a “versão Wacquant” do perigo de “virar nativo”, momento icônico do cânone etnográfico. O que nos interessa aqui, pela possibilidade de aproximação com a sugestão de Desjarlais, é a forma como Wacquant descreve a importância de se abrir mão da racionalidade que caracteriza o modo de aprendizado ocidental, tão profundamente inscrito no projeto etnográfico: para ele, boxear é “jogar xadrez com o corpo”.

Temos, assim, três maneiras de lidar com as emoções no projeto etnográfico: como intrusas indesejáveis a serem escondidas dos olhos do público, uma vez que conspurcariam a “objetividade científica”; como maneira de entender a natureza da pesquisa etnográfica em si; e como forma de conhecimento da experiência do outro por meio do contraste com a vivência do pesquisador (via “conhecimento posicionado”, via “intersubjetividade” ou via “deixar-se afetar”). Mas, para além de como conhecer por meio das emoções, resta uma questão: por que queremos conhecer? O que motiva, afetivamente, o desejo de compreender a diferença cultural? Ou ainda: o que mobiliza, emocionalmente, a curiosidade por aqueles que inventaram maneiras distintas de existir no mundo?

Ciências sociais, projetos disciplinares e emoções: motivações para conhecer

Berliner (2015)BERLINER, D. Are anthropologists nostalgist?. In: ANGÉ, O.; BERLINER, D. (ed.). Anthropology and nostalgia. New York: Berghahn Books, 2015. p. 17-34. nos oferece uma pista preciosa para entender a dinâmica afetiva da curiosidade antropológica: para ele, somos movidos pela nostalgia. Seria essa a mola propulsora da antropologia: um desejo de preservação, pela via da compreensão/documentação, de algo percebido como em processo de desaparecimento, de certa forma tornado precioso exatamente por isso.

Como pano de fundo dessa atitude emocional/cognitiva, estaria uma “crise da transmissão cultural”, entendida como ideologia básica de tantas políticas de “preservação”. Haveria assim uma “melancolia” disciplinar na antropologia, um sentimento de perda de alguma coisa que estaria em processo de desaparecimento, seja pela extinção pura e simples, seja pela transformação que descaracterizaria a essência “autêntica”.

Melancolia e nostalgia seriam, na visão de Lourenço (1999)LOURENÇO, E. Mitologia da saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999., modalidades da relação humana com o passado, jogos da memória com o tempo. Entre elas, uma distinção fundamental: na melancolia, o passado é definitivamente passado, enquanto que na nostalgia é representado como fora de alcance, porém recuperável, ainda que por vezes só na imaginação.

A nostalgia que Berliner (2015BERLINER, D. Are anthropologists nostalgist?. In: ANGÉ, O.; BERLINER, D. (ed.). Anthropology and nostalgia. New York: Berghahn Books, 2015. p. 17-34., p. 20) entende como inscrita no projeto antropológico parece corresponder a essa caracterização de Lourenço: trata-se de uma “atitude de lamento pelo passado”, que apresenta, entre suas características fundamentais, uma percepção da temporalidade como irreversível e uma possibilidade de experimentação vicária. É assim que Berliner distingue entre “exonostalgia” e “endonostalgia”: na primeira, lamentamos a perda de algo que não vivemos, enquanto que na segunda ansiamos por uma recuperação de algo que integra nossa memória pessoal.

A nostalgia antropológica seria uma “exonostalgia”, que poderia ser encontrada em etnografias paradigmáticas, tais como os Argonautas de Malinowski ou os Tristes trópicos de Lévi-Strauss, marcados por expressões explícitas de pesar por modos de vida ameaçados, que se quer resgatar e preservar pela descrição.

Ao longo da história do pensamento antropológico surgem, entretanto, “reações” teóricas a essa nostalgia fundadora, sintetizadas em novas preocupações teóricas tais como os estudos sobre mudança cultural, sobre aculturação e, mais recentemente, a noção de “ressignificação”, tão recorrente nas críticas à visão da globalização como ação homogeneizante.

A nostalgia, contudo, segundo Berliner, não desaparece por isso da atitude antropológica. Ela seria recriada por meio da eleição de novos objetos - o “local” particular - ou por uma “nostalgia do método” - os sucessivos retornos aos Argonautas como orientação para os etnógrafos de hoje. Outros “outros” emergem também para substituir as “sociedades primitivas em desaparecimento”, definidos em essência por sua fragilidade, seu lugar destituído nas teias contemporâneas do poder. Como diz Berliner (2015BERLINER, D. Are anthropologists nostalgist?. In: ANGÉ, O.; BERLINER, D. (ed.). Anthropology and nostalgia. New York: Berghahn Books, 2015. p. 17-34., p. 29, tradução minha):

Hoje, o Outro pequeno e frágil já não é mais o selvagem cultural em vias de desaparecimento, o colonizado sem poder (embora ainda possa ser, em casos específicos). Ao contrário, é o pobre, o fraco, o sofredor, o vulnerável diante da instabilidade social, da pobreza urbana, da migração econômica, das guerras e da fragilidade política.

Berliner (2015BERLINER, D. Are anthropologists nostalgist?. In: ANGÉ, O.; BERLINER, D. (ed.). Anthropology and nostalgia. New York: Berghahn Books, 2015. p. 17-34., p. 24, tradução minha) sintetiza a centralidade desse sentimento nostálgico inerente à antropologia em uma expressão algo irônica de Ramon Sarró: a etnografia seria “a arte de chegar atrasado”. A formulação central aqui, tomada de empréstimo a Vladimir Jankélévitch, seria “tarde demais”. Esse “tarde demais” nos reconduz à dimensão temporal da nostalgia, à peculiaridade daquele “jogo com o passado” de que fala Eduardo Lourenço.

A nostalgia, contudo, ainda segundo Berliner, não joga somente com o passado. Joga também com o futuro, em uma forma de engajamento que define expectativas vividas no presente. Nesse sentido, faria um contraponto à esperança, da qual “nunca estaria muito distante” (Berliner, 2015BERLINER, D. Are anthropologists nostalgist?. In: ANGÉ, O.; BERLINER, D. (ed.). Anthropology and nostalgia. New York: Berghahn Books, 2015. p. 17-34., p. 30, tradução minha). A nostalgia seria, como sugere Rebecca Bryant (2015BRYANT, R. Nostalgia and the discovery of loss: essentializing the Turkish Cypriot past. In: ANGÉ, O.; BERLINER, D. (ed.). Anthropology and nostalgia. New York: Berghahn Books, 2015. p. 155-177., p. 155, tradução minha), a “esperança em colapso”.

“Tarde demais” faria assim um contraponto ao “ainda não” que, segundo Crapanzano (2004)CRAPANZANO, V. Imaginative horizons: an essay in literary-philosophical anthropology. Chicago: The University of Chicago Press, 2004., de acordo com Ernst Bloch seria aquilo que definiria a esperança: um jogo com o futuro, entendido como o tempo das possibilidades imaginadas, irreais porque ainda não existentes. É porque, se por um lado o “tarde demais” fala de um sentimento de perda, o projeto etnográfico de resgatar pela descrição fala de uma perspectiva de futuro, implícita em todo projeto de preservação. É assim, então, que nostalgia e esperança se entrelaçariam no projeto antropológico. A nostalgia, tempo do “tarde demais”, como dimensão afetiva do fenômeno cognitivo que diagnostica o perigo: a perda de uma singularidade cultural. A esperança, tempo do “ainda não”, como a dimensão afetiva que anima seu enfrentamento: o projeto etnográfico.

O desejo que move o conhecimento antropológico estaria, assim, atravessado por relações ambivalentes com a temporalidade. Mas seria essa dinâmica emocional uma exclusividade antropológica? Ou seria possível esboçar uma relação com a tonalidade afetiva presente nas teorias sociológicas sobre seu objeto de predileção, talvez mesmo constitutivo - a modernidade?

O sujeito blasé de Georg Simmel (1987)SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, O. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. p. 13-28., o homo clausus de Norbert Elias (2001)ELIAS, N. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. e - com o perdão da iconoclastia do atravessamento disciplinar - o mal-estar da civilização de Sigmund Freud (1997)FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997. podem ser, todos eles, compreendidos como teses sobre o vazio, diagnósticos da falta, leituras da modernidade comprometidas com uma visão sombria do mundo.3 3 Entre outro lugar (Coelho, 2008), desenvolvi uma análise comparativa das teses de Georg Simmel, Norbert Elias e Sigmund Freud voltadas para o exame das formações da subjetividade contemporânea, em que comento a centralidade do tema do “vazio” nas teorizações sobre a modernidade elaboradas por esses autores. Podemos supor que, à nostalgia dos antropólogos, corresponderia o pessimismo dos sociólogos?

Stephen Kalberg (1987)KALBERG, S. The origin and expansion of Kulturpessimismus: the relationship between public and private spheres in early twentieth century Germany. Sociological Theory, v. 5, p. 150-165, 1987., com base nas discussões de Max Weber sobre o lugar dos valores como orientação da ação, propõe uma tese a respeito da criação de um ambiente de “pessimismo cultural” na Alemanha, um Zeitgeist que estaria na base da fundação da sociologia alemã. Esse “espírito do tempo” seria marcado por um ceticismo diante da modernidade, uma crítica violenta à sociedade de massas e à atomização do indivíduo diante da multidão.

Para o autor, a natureza peculiar das relações entre as esferas pública e privada na Alemanha poderia explicar a prevalência desse “pessimismo”. Kalberg recorre aos Estados Unidos como “caso de contraste”, com a intenção de iluminar a peculiaridade da Alemanha. Nos Estados Unidos, público e privado se articulariam de maneira muito estreita, com a confiança que rege as relações entre estranhos em particular na esfera econômica, oriunda do protestantismo, se fazendo presente também na vida privada.

Já na Alemanha, o luteranismo criaria um ambiente calculista e voltado para o interesse individual nas transações econômicas, gerando uma hipertrofia dos mecanismos estatais e legais para a regulação da esfera econômica. O poder estatal e o aparato legal substituiriam, assim, a confiança como forma de arbitragem das relações econômicas.

Assim, nos Estados Unidos a vida privada seria profundamente permeada pelos valores que regem o mundo público, enquanto que na Alemanha haveria uma profunda clivagem entre as duas esferas, levando a uma idealização da vida privada:

[…] uma fenda se abriu à medida que a esfera pública se expandia, em que uma esfera pública caracterizada por relações formais, funcionais e hierárquicas se situava em nítida oposição a uma esfera privada na qual prevaleciam a compaixão, a confiança, o calor humano e uma ética de irmandade profundamente personalizada da Freundschaft e das relações familiares. De forma diametralmente oposta ao caso alemão, todos os valores da esfera pública alemã, por serem impessoais e estranhos à família, foram estritamente banidos das práticas de socialização da esfera privada. (Kalberg, 1987KALBERG, S. The origin and expansion of Kulturpessimismus: the relationship between public and private spheres in early twentieth century Germany. Sociological Theory, v. 5, p. 150-165, 1987., p. 160, tradução minha, grifo do autor).

Para Kalberg, seria essa cisão entre os mundos público e privado na Alemanha, com o primeiro regido pela mediação impessoal do Estado e da legislação como freios ao cálculo e o segundo pautado na compaixão e na confiança, que teria levado a uma visão da modernidade como algo nocivo, uma visão animosa diante da “sociedade de massas” e do “materialismo”, profundamente desconfiada quanto ao futuro da humanidade.

Teríamos, assim, de um lado, a nostalgia como afeto propulsor do conhecimento antropológico; de outro, o pessimismo como atitude afetiva da sociologia diante da modernidade. Antropologia e sociologia seriam então disciplinas impulsionadas por sentimentos: uma nostalgia por um passado representado como perdido, um pessimismo diante de um futuro vislumbrado como sombrio.

Mas esses são sentimentos atribuídos a um projeto intelectual, levado a cabo, por certo, por indivíduos, porém inextricavelmente ligados não à subjetividade de cientistas sociais específicos, mas a uma curiosidade científica típica dessas disciplinas. Essas disciplinas, contudo, são desenvolvidas por pessoas de carne e osso, que se movem em meio a redes de relações pessoais, intelectuais e institucionais. O que as leva, em seu cotidiano, a produzir conhecimento?

“O que conhecemos depende daquilo que sentimos”: o casal Sidney e Beatrice Webb como personagens etnográficos

Em seu livro As três culturas, Wolf Lepenies traça o surgimento da sociologia em três países: França, Inglaterra e Alemanha. A narrativa articula contexto histórico e biografias dos seus fundadores, elegendo como ponto central a disputa entre literatura e sociologia como guias para a compreensão da vida moderna. Ciência e literatura, contudo, não são rivais em si mesmas, mas como formas de concretização no mundo de uma tensão mais fundamental: aquela entre a “fria razão” e a “cultura dos sentimentos”. Para Lepenies (1996LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996., p. 23), entre a razão e os sentimentos trava-se um embate ao qual se refere como “‘a história secreta’ das modernas ciências sociais”.

É essa história, em particular por ser “secreta”, que nos interessa. Na narrativa de Lepenies, as biografias dos fundadores estão a serviço da compreensão das tensões que configuravam o panorama intelectual da época de fundação da sociologia. Aqui, faço um uso assumidamente iconoclasta dos dramas pessoais relatados: eles nos servirão como “dados etnográficos” para examinar o papel dos afetos na produção intelectual.

Entre os vários personagens de Lepenies, escolhi como foco o casal Beatrice e Sidney Webb. Para entender a particularidade da relação que sua história deixa entrever entre o amor e a sociologia, é preciso primeiro, contudo, acompanhar a narrativa de Lepenies dos dramas de dois outros personagens: Auguste Comte e John Stuart Mill.

A vida e a obra de Auguste Comte podem ser divididas em dois momentos: antes e depois de Clotilde de Vaux. Se a primeira parte é marcada pela forte rejeição da literatura, após conhecer Clotilde e se apaixonar por ela, Comte revê pontos centrais de suas convicções: o lugar atribuído à literatura, o papel da mulher e, acima de tudo, a “reabilitação” do sentimento.

Comte declara seu amor a Clotilde, que o rejeita, mas lhe oferece sua amizade. Esperançoso de conseguir um dia transformar essa amizade em amor, Comte corresponde-se diariamente com ela, várias vezes ao dia. Leem e discutem romances e Comte incentiva-a a escrever. Em seu desejo de estar perto dela, chega até mesmo a convidá-la a colaborar em seus projetos.

Clotilde morre cerca de um ano e meio após conhecer Comte. Apaixonado, Comte lhe concede seu máximo reconhecimento: em carta escrita a John Stuart Mill, poucos dias após sua morte, a ela se refere como sua “digna colega” (Lepenies, 1996LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996., p. 42).

O amor e a produção intelectual se articulam, na trajetória de Auguste Comte, em uma relação que ora parece ser de substituição, ora de complementariedade. Em um plano mais amplo, Comte descreve assim sua percepção das relações pessoais, em carta a John Stuart Mill: “Seriam exclusivamente o resultado de contatos científicos” (Lepenies, 1996LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996., p. 34).

O amor por Clotilde parece cumprir mais de uma função na vida e trajetória de Comte. Aparece às vezes como um misto de cura espiritual e incentivo para o trabalho: “Imediatamente se convenceu de seu amor por Clotilde e de que - e a esse respeito estava certo - esse amor o livraria de sua miséria pessoal e daria um novo estímulo a seu trabalho” (Lepenies, 1996LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996., p. 35-36). Esse amor pode também encontrar substitutos em outras formas de relações, como o compadrio (juntos batizaram o sobrinho de Clotilde), descrito por ele como um “casamento espiritual” (Lepenies, 1996LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996., p. 38), ou a “crítica literária” (Comte aceita aconselhá-la como escritora). A relação de substituição entre o amor e a convivência intelectual é claramente percebida por Comte: “Aceitou o romance como um meio pelo qual Clotilde e ele podiam trocar pensamentos e sentimentos, cuja expressão a vida lhes negava” (Lepenies, 1996LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996., p. 39).

A natureza da relação entre Comte e Clotilde encontra paralelos com a relação entre John Stuart Mill e Harriet Taylor. Ambos vivenciam severas crises e sua superação é assim descrita por Lepenies (1996LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996., p. 111):

De modo um tanto surpreendente, foi na mesma época que Comte e Mill atravessaram graves crises espirituais; ambos encontraram a causa da crise na excessiva intelectualização de suas vidas e atividades científicas. Reagiram a isso com uma reabilitação da cultura dos sentimentos e uma mudança drástica em suas concepções de valor: o aumento crescente da importância da literatura em relação à ciência. Tanto em Comte como em Mill, esse processo de emocionalização da vida e de literarização da obra foi acelerado e intensificado pela relação com uma mulher.

Mill conhece Harriet aos 24 anos. Ele a descreve como “uma mulher de sentimentos intensos e profundos, de inteligência penetrante e intuitiva e uma natureza extremamente meditativa e poética” (Lepenies, 1996LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996., p. 111). Mas Harriet é casada e os dois estabelecem uma curiosa relação: vivem juntos por longos períodos (sem cometer adultério), convivência essa que muitas vezes inclui o próprio John Taylor, marido de Harriet.

Mill e Harriet dedicavam-se a debater “apaixonadamente” (segundo Lepenies) filosofia e ciência, diante do silêncio de John. Esse ménage dura cerca de 19 anos, até a morte de John. Dois anos depois, Mill e Harriet se casam, e ficam juntos até a morte dela, sete anos depois. Em sua autobiografia, Mill assim descreve a vida com ela: “Uma parceria de pensamento, sentimento e escrita” (Lepenies, 1996LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996., p. 112).

A semelhança do sofrimento e da “cura” sugere, assim, não ser por acaso que Mill é um grande confidente de Comte. Os dois trocavam cartas assiduamente, embora nunca tenham se encontrado pessoalmente. A máxima de Vauvenargues, que para Lepenies “serve de moto” para a “reabilitação do sentimento” na obra de Comte, poderia também servir para Mill: “Les grandes pensées viennent du coeur” (Lepenies, 1996LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996., p. 36).

Na trajetória de ambos, o amor não correspondido encontra um substituto na troca intelectual, sob a forma de debates e parcerias. Se essa intercambialidade pode ser tomada como um “atestado de equivalência”, é difícil, quase inevitável, não pensar nisso à luz das teses freudianas sobre a sublimação das pulsões.4 4 O conceito de “pulsão” atravessa a obra de Sigmund Freud. Um esforço de sistematização pode ser encontrado no artigo “Os instintos e suas vicissitudes” (Freud, 1996). Nessa chave analítica, a pulsão - o amor entendido como “investimento libidinal”, para usar o jargão psicanalítico - estaria desviada de sua finalidade, gerando a energia deslocada para a atividade intelectual. Esse processo, contudo, é de natureza inconsciente, sendo da ordem da substituição - o trabalho intelectual vem ocupar o lugar da relação erótica.

Esse modelo teórico, contudo, por adequado que possa parecer à compreensão da natureza dos relacionamentos entre Comte e Clotilde ou entre Mill e Harriet, parece-me insuficiente para dar conta da relação entre Beatrice e Sidney Webb. Vejamos o porquê.

O enredo começa de forma semelhante: Sidney apaixona-se por Beatrice tão logo a conhece, declara seu amor e ela o rejeita. Cultiva, entretanto, sua amizade, em clara oposição ao amor. Diante da insistência de Sidney, ela o ameaça com a perda da amizade, se insistisse em uma relação amorosa.

Sob certos aspectos, a relação entre eles evolui por um caminho semelhante àquele trilhado pelos outros dois casais, com a relação erótica sendo substituída por trocas intelectuais variadas - debates, leituras comuns, projetos em parceria. A intercambialidade é clara nessa passagem: “Sidney apaixonou-se imediatamente por Beatrice e pediu-a em casamento; ela reagiu friamente e permaneceu assim por um longo tempo. Ele a pressionava, mesmo que ela não o amasse, a realizar pelo menos um trabalho em parceria […]” (Lepenies, 1996LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996., p. 119).

Entretanto, à medida que a relação se desenvolve, um outro elemento, de ordem distinta da intercambialidade, parece surgir. Beatrice conclui assim seu livro My apprenticeship:

Aqui termina “meu aprendizado” e começa “nossa parceria”: um companheirismo no trabalho assentado em convicções comuns e aperfeiçoado pelo casamento; sem dúvida o mais duradouro, provavelmente o mais extraordinário de todos os tipos de felicidade. (Lepenies, 1996LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996., p. 119-120).

O casamento, aqui, já não se opõe à troca intelectual em uma relação de substituição; ao contrário, para Beatrice, o “aperfeiçoa”, dessa conjugação provindo uma “felicidade extraordinária”.

Para Sidney, a articulação entre o amor e o trabalho também se coloca de outra forma. Em uma carta a ela, ele explica assim o efeito da relação afetiva entre ambos sobre seu trabalho intelectual:

Agora você é para mim o sol e a fonte de todo meu trabalho. Hoje trabalhei como um escravo para terminar coisas inacabadas e tudo pareceu como se fosse nada, porque era para você. […] Agora sei o que Comte buscava com sua glorificação da mulher, nunca antes entendi a vida de Dante. Você torna tudo novo para mim. Você simplesmente duplica minha força. (Lepenies, 1996LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996., p. 121-122, grifo meu).

Com o tempo, Beatrice vai cedendo à persistência de Sidney e aceita se casar com ele. Lepenies (1996LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996., p. 125) explica assim a mudança: “A oposição de Beatrice diminuía; mesmo não achando Sidney mais atraente que no início da amizade, estava convencida de que o trabalho científico e político que planejavam realizar juntos seria antes favorecido que prejudicado pelo casamento.”

O ponto-chave, aqui, é que ele escreve para ela; ela, por sua vez, se casa com ele para favorecer o trabalho. Estamos, assim, longe daquela relação sublimada sugerida pela substituição entre o erotismo e o trabalho intelectual. Aqui, o amor é mola propulsora do trabalho intelectual, motivação para fazer ciência. Eles escrevem um para o outro, para agradar ao outro. Escrevem para seduzir.

Fazer sociologia como um ato de amor.

Considerações finais

“Os grandes pensamentos vêm do coração”, afirma Vauvenargues. “O que conhecemos depende daquilo que sentimos”, reitera Sidney Webb. E completa o Visconde de Bonald (cuja proximidade da sociologia é apontada por Lepenies): “Esta máxima está incompleta e é preciso acrescentar: ‘As grandes e legítimas afeições vêm da razão.’” (Les grandes…, 2001LES GRANDES pensées viennent du coeur a dit Vauvenargues. Cette [...] - Louis Gabriel Ambroise, vicomte de Bonald. Le Monde, Citations avec Dico-Citations, 2001. Disponível em: Disponível em: http://dicocitations.lemonde.fr/citations/citation-120111.php . Acesso em: 30 abr. 2017.
http://dicocitations.lemonde.fr/citation...
, tradução minha).

Em uma direção ou em outra, afetos e razão se encontram a meio caminho. Reside aí a natureza “secreta” da história contada por Lepenies, em que a “fria razão” e a “cultura dos sentimentos” duelam escondidas sob as máscaras da ciência e da literatura nos primórdios da história das ciências sociais.

E hoje? A história da antropologia avança, como sugeri, rumo a um progressivo reconhecimento do papel dos afetos na produção intelectual, àquela “reabilitação” do sentimento que custou tão caro a Comte, a Mill e aos Webbs. As emoções ocupam papel cada vez mais proeminente na cena antropológica, nos observados ou nos observadores, como objetos, formas ou motivações para conhecer.

Mas estarão as emoções já plenamente reabilitadas?

Renato Rosaldo, protagonista de uma história sobre amor, perda, luto e trabalho de campo, muito conhecida dos antropólogos, produziu a partir de sua experiência duas reflexões muito relevantes para os temas aqui tratados. A primeira, já comentada acima, diz respeito à importância da posicionalidade do conhecimento para a etnografia. A segunda, publicada 33 anos depois da morte de sua esposa, aborda as formas da escrita daquelas emoções então suscitadas. Trata-se de um livro de poemas sobre os sentimentos provocados pelo “evento” da sua morte, no qual o autor propõe o conceito de antropoesia, assim formulado: “Antropoesia, versos dotados de sensibilidade etnográfica, designa uma poesia na qual a descrição é central” (Rosaldo, R., 2014ROSALDO, R. Notes on poetry and ethnography. In: ROSALDO, R. The day of Shelly’s death. Durham: Duke University Press, 2014. p. 101-113., p. 105-106, tradução minha).5 5 Agradeço ao parecerista anônimo da revista a sugestão de inclusão dessa obra de Renato Rosaldo.

E com isso as duas pontas do arco, flexionado, se tocam. Nesse percurso esboçado da trajetória das emoções ao longo da história da antropologia, elas passam de intrusas indesejáveis a motivações para conhecer, exigindo para isso novas formas de pesquisar e novas formas de narrar - da reclusão em diários à antropoesia.

A sugestão de escrever poesia como forma de narrar a experiência emocional, nessa aproximação com a etnografia, evoca o comentário de Wolf Lepenies acerca do paradoxo contido na forma sugerida por Auguste Comte para a escrita sociológica. Em seu afã de afastar-se da literatura, Comte regula minuciosamente o número de capítulos, partes, seções, parágrafos e frases que um texto sociológico deveria conter. Sobre os efeitos dessas regras sobre a prosa de Comte, Lepenies (1996LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996., p. 28) faz um comentário algo jocoso, com o qual encerramos o trajeto aqui delineado: elas lhe dariam “uma rigidez que somente era própria, até então, de poemas”.

Referências

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  • WACQUANT, L. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.
  • 1
    Para uma discussão recente da gama de objetos passíveis de construção pela antropologia das emoções, ver Coelho e Durão (2017)COELHO, M. C.; DURÃO, S. Introdução ou como fazer coisas com emoções. Interseções: Revista de Estudos Interdisciplinares, v. 19, p. 44-60, 2017..
  • 2
    A distinção entre emoções, sentimentos e afetos é multifacetada, com a literatura em antropologia das emoções estando muito longe de um consenso acerca da existência de qualquer matriz hegemônica capaz de orientar o uso desses termos como conceitos. Para evidenciar essa polissemia dos termos (ainda mais complexa porque, em inglês, temos quatro termos, e não apenas três - emotion, feeling, sentiment e affect), cito algumas passagens de autores canonicamente entendidos como fundadores do campo da antropologia das emoções nos Estados Unidos. A primeira passagem se encontra em Veiled sentiments, etnografia de autoria de Lila Abu-Lughod. Diz ela: “In fact, I use the term sentiment rather than emotion or affect specifically to signal the literary or conventional nature of these responses” (Abu-Lughod, 1986ABU-LUGHOD, L. Veiled sentiments: honour and poetry in a Bedouin society. Berkeley: University of California Press, 1986., p. 34, grifo da autora). A segunda passagem é a formulação fundadora de Michelle Rosaldo, em que as emoções são definidas como “pensamentos incorporados”: “Emotions are thoughts somehow ‘felt’ in flushes, pulses, ‘movements’ of our livers, minds, hearts, stomachs, skin. They are embodied thoughts, thoughts seeped with the apprehension that ‘I am involved’” (Rosaldo, M., 1984ROSALDO, M. Toward an anthropology of self and feeling. In: SHWEDER, R. A.; LEVINE, R. A. (ed.). Culture theory: essays on mind, self, and emotion. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. p. 137-157., p. 143, grifo da autora). E é relevante assinalar que a passagem prossegue aprofundando a reflexão sobre a relação já não mais entre pensamentos e emoções, mas entre pensamento e afeto: “Thought/affect thus bespeaks the difference between a mere hearing of a child crying and a hearing felt […]” (Rosaldo, M., 1984ROSALDO, M. Toward an anthropology of self and feeling. In: SHWEDER, R. A.; LEVINE, R. A. (ed.). Culture theory: essays on mind, self, and emotion. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. p. 137-157., p. 143, grifo da autora). Finalmente, no texto de revisão bibliográfica de autoria de Catherine Lutz e Geoffrey White (1986)LUTZ, C.; WHITE, G. The anthropology of emotions. Annual Review of Anthropology, n. 15, p. 405-436, 1986., intitulado “The anthropology of emotions”, encontramos diversas passagens em que os termos aparecem de maneira intercambiável, sem maiores preocupações com o traçado nítido de diferenças conceituais. A título de exemplo, cito uma passagem exemplar dessa intercambialidade: “Both linguistic theory […] and ethnographic studies indicate that emotion words do not function solely, or even primarily, as labels for feeling states or facial expressions. Hence it is not likely that semantic studies will yield direct evidence for universal physiological dimensions of affective experience” (Lutz; White, 1986LUTZ, C.; WHITE, G. The anthropology of emotions. Annual Review of Anthropology, n. 15, p. 405-436, 1986., p. 417, grifo meu). Esses termos, assim, parecem ser tomados como sinônimos, sem chegarem a ser erigidos em conceitos, como sugere o próprio título dado por Lutz e White a seu artigo - “The anthropology of emotions” - sem qualquer discussão conceitual sobre eventuais distinções entre “emotion”, “sentimento”, “affect” ou “feeling” (sendo que os quatro termos aparecem ao longo do texto); ou, em movimento inverso, está implicado também no título do artigo de Michelle Rosaldo, que o batiza de “Toward an anthropology of self and feeling”, embora a preocupação seja com a definição das emoções. O fato de, por um lado, Lutz e White discutirem o campo da “antropologia das emoções” e de, por outro, Rosaldo se propor a fazer uma “antropologia do self e do sentimento” sugere que os termos são, nessa área de investigação, utilizados como sinônimos, com suas variações eventuais de uso sendo de natureza semântica ou sintática, e não conceitual. Neste artigo, opto pelo uso preferencial do termo “emoção”, recorrendo, autorizada pela intercambialidade entre os termos nesses textos fundadores do campo, apenas eventualmente a “sentimentos” ou “afetos”, sem pretender com isso traduzir distinções de ordem conceitual. Agradeço a Claudia Barcellos Rezende a interlocução para a elaboração dessa discussão.
  • 3
    Entre outro lugar (Coelho, 2008COELHO, M. C. Teorias de um mundo sem qualidades: interpretações sobre a subjetividade contemporânea. Cadernos de Psicanálise (Círculo Psicanalítico/RJ), v. 21, p. 317-322, 2008.), desenvolvi uma análise comparativa das teses de Georg Simmel, Norbert Elias e Sigmund Freud voltadas para o exame das formações da subjetividade contemporânea, em que comento a centralidade do tema do “vazio” nas teorizações sobre a modernidade elaboradas por esses autores.
  • 4
    O conceito de “pulsão” atravessa a obra de Sigmund Freud. Um esforço de sistematização pode ser encontrado no artigo “Os instintos e suas vicissitudes” (Freud, 1996FREUD, S. Os instintos e suas vicissitudes. In: FREUD, S. Obras completas: vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 115-144.).
  • 5
    Agradeço ao parecerista anônimo da revista a sugestão de inclusão dessa obra de Renato Rosaldo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2018
  • Aceito
    05 Fev 2019
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